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Revista Estudos Feministas

versão impressa ISSN 0104-026Xversão On-line ISSN 1806-9584

Rev. Estud. Fem. vol.30 no.1 Florianópolis jan./abr 2022  Epub 20-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/1806-9584-2022v30n180240 

Seção Temática María Lugones

A presença da colonialidade no cinema feminista latino-americano

La presencia de la colonialidad en el cine feminista latinoamericano

The presence of coloniality in Latin American feminist cinema

Danielle Parfentieff de Noronha1 
http://orcid.org/0000-0002-9167-9674

Maíra Ezequiel2  3 
http://orcid.org/0000-0001-8307-5697

1Universidade Federal Fluminense, Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual, Niterói, RJ, Brasil. 24210-200 - secretaria.ppgcine@gmail.com

2Universidade Federal de Sergipe, Departamento de Comunicação Social, São Cristóvão, SE, Brasil. 49100-00 - dcos@academico.ufs.br

3Universidade Federal Fluminense, Instituto de Artes e Comunicação Social, Departamento de Cinema e Audiovisual, Niterói, RJ, Brasil. 24210-590 - ega@id.uff.br


Resumo:

Este artigo investiga de que forma a colonialidade está presente em algumas narrativas desenvolvidas pelo cinema feminista latino-americano produzido entre os anos 1960 e 1970, a partir da análise de três filmes: Araya, de Margot Benacerraf (Venezuela, 1959), De cierta manera, de Sara Gómez (Cuba, 1974) e A propósito de la mujer, de Kitico Moreno (Costa Rica, 1975). Em diálogo com teóricas feministas e com a perspectiva decolonial latino-americana, nosso objetivo é compreender como os filmes, entendidos como atos de resistência, refletem sobre o colonialismo do passado e do presente, em especial através do pensamento de María Lugones (2008; 2019).

Palavras-chave: cinema; colonialismo; colonialidade; feminismo; América Latina

Resumen:

Este artículo investiga cómo la colonialidad está presente en algunas narrativas desarrolladas por el cine feminista latinoamericano producidas entre las décadas de 1960 y 1970 a través del análisis de tres películas: Araya, de Margot Benacerraf (Venezuela, 1959), De cierta manera, de Sara Gómez (Cuba, 1974) y A propósito de la mujer, de Kitico Moreno (Costa Rica, 1975). En diálogo con las teóricas feministas y con la perspectiva decolonial latinoamericana, nuestro objetivo es comprender cómo las películas, entendidas como actos de resistencia, reflexionan sobre el colonialismo del pasado y presente, especialmente a través del pensamiento de María Lugones (2008; 2019).

Palabras clave: cine; colonialismo; colonialidad; feminismo; América Latina

Abstract:

This article investigates how coloniality is present in some narratives developed by Latin American feminist cinema produced between the 1960s and 1970s through the analysis of three films: Araya, by Margot Benacerraf (Venezuela, 1959), De cierta manera, by Sara Gómez (Cuba, 1974) and A propósito de la mujer, by Kitico Moreno (Costa Rica, 1975). In dialogue with feminist theorists and Latin American decolonial perspective, our goal is to perceive how films, understood as acts of resistance, reflect on colonialism (from past and present), in particular through the thought of María Lugones (2008; 2019).

Keywords: Cinema; Colonialism; Coloniality; Feminism; Latin America

Introdução

A visualização refere-se a uma forma de memória que condensa outros sentidos. No entanto, a mediação da linguagem e a sobre interpretação dos dados fornecidos pelo olhar faz que os outros sentidos - toque, olfato, gosto, movimento, audição - sejam diminuídos ou apagados da memória. A descolonização do olhar consistiria em libertar a visualização dos laços da linguagem, num processo de reatualizar a memória da experiência como um todo indissolúvel, no qual os sentidos corporais e mentais se fundem.

Silvia Rivera Cusicanqui, 2015, p. 22.

No contexto de Guerra Fria, de reorganização geopolítica e de consolidação da hegemonia dos Estados Unidos e do liberalismo, as décadas de 1960 e 1970 foram marcadas por diversos movimentos políticos e culturais em várias partes do globo. Enquanto no Norte global aconteciam mobilizações como a luta pelos direitos civis de pessoas negras nos Estados Unidos e a segunda onda do feminismo (EUA e Europa), no Sul assistíamos, por exemplo, às lutas por libertação na África e Ásia, o desenvolvimento da Revolução Cubana e os movimentos contrários às ditaduras civis-militares - e seus aparatos de repressão - que assolaram diversos países da América Latina, principalmente entre os anos de 1950 e 1980. Todos esses movimentos faziam parte de uma intensa disputa pelas memórias, narrativas e formas de compreender o mundo.

Nesse cenário, diversos grupos - entre ativistas, pensadoras, pensadores e artistas - passaram a refletir mais criticamente sobre as realidades daquele período e, entre eles, muitos utilizaram as artes visuais como instrumentos capazes de transmitirem suas reflexões e críticas. O cinema passa a ser um desses instrumentos que possibilitam o engajamento individual e coletivo e a visibilização dos debates propostos pelos movimentos. A partir do final da década de 1950, alguns países latino-americanos acompanharam o desenvolvimento de um cinema político e crítico, que visava refletir através do audiovisual sobre as mazelas sociais do período. As ditaduras, o subdesenvolvimento, as desigualdades sociais e o colonialismo foram alguns dos temas que começaram a pautar as narrativas produzidas, nas quais se buscava repensar tanto a forma quanto o conteúdo do fazer cinematográfico.

O Nuevo Cine Latinoamericano é, sem dúvida, o movimento mais conhecido do período, assim como seus diretores: Fernando Solanas, Fernando Birri, Glauber Rocha, Octávio Getino, entre outros. Ricardo Mendes (2006, p. 2) explica que:

Em comum, estes cineastas pensavam o cinema como instrumento para se discutir os problemas que caracterizavam boa parte do continente naquele momento, apresentando como eixo central a temática político-social. Solanas e Getino, em princípios dos anos 1970, apresentam uma das definições sobre o que seria o cinema político: “Cine militante es aquel cine que se asume integralmente como instrumento complemento o apoyatura de una determinada política y de las organizaciones que la llevan a cabo, al margen de la diversidad de objetivos que procure: contra informar, desarrollar niveles de conciencia, agitar, formar cuadros etc” (apud Marino, 2004, p. 73).

Apesar de reconhecermos a importância do movimento e de seus diretores para o cinema da América Latina e para a construção de uma reflexão mais crítica naquele período, compreendemos que outros movimentos e cineastas, em especial diretoras, foram invisibilizados dessa história. Como lembra Marina Tedesco (2020, p. 43), podemos citar como exemplos “o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), os primeiros festivais de Cine Joven do Cine Club de Viña del Mar, os festivais de cinema de Marcha no Uruguai, o Primer Encuentro de Cineístas Independientes durante o Festival del SODRE de 1958” (TEDESCO, 2020, p. 43), e realizadoras como Helena Solberg, Josefina Jordán, Maria do Rosário, Vera de Figueiredo, entre outras, que além de trazerem para as telas discussões relacionadas a gênero e feminismo - e a intersecção com outros marcadores como raça e etnia, classe e trabalho -, também refletiam sobre outros importantes temas das realidades latino-americanas. Para Ana Maria Veiga (2018, p. 31),

A concepção do cinema como “instrumento” de uma revolução pode ser trazida para o contexto do cinema realizado por mulheres, principalmente a partir dos anos 1970. Mesmo considerando-os um meio artístico de expressão, sabemos que os filmes foram elementos fundamentais na “revolução social” travada naqueles anos também por elas, mesmo que ainda raras, no meio cinematográfico.

Em diálogo com teorias feministas e decoloniais, em especial a partir das contribuições da pesquisadora María Lugones e de seu conceito de colonialidade do gênero (LUGONES, 2008; 2019), neste artigo pretendemos contribuir com um olhar sobre o cinema realizado por algumas dessas mulheres, analisando de que forma a colonialidade está presente nas narrativas desenvolvidas nos filmes Araya, de Margot Benacerraf (Venezuela, 1959), De cierta manera, de Sara Gómez (Cuba, 1974) e A propósito de la mujer, de Kitico Moreno (Costa Rica, 1975). O recorte prioriza filmes dirigidos por mulheres latino-americanas e que mantêm um diálogo com a estética documental. O enfoque nessas três realizadoras e obras específicas leva em consideração o caráter pioneiro de suas trajetórias e narrativas, tanto quando observamos a produção de seus países, como da América Latina como um todo. Além disso, seus filmes trazem diversos caminhos para refletirmos, através de registros ficcionais e reais, sobre como operam os mecanismos da colonialidade de gênero, do poder, do ser e do saber, em especial nas vidas das mulheres.

Além desta introdução e das considerações finais, este artigo está dividido em cinco partes. Na primeira delas, refletiremos sobre o paradigma da colonialidade e do gênero como ferramentas de análise. Na sequência, abordaremos os processos de resistência ao colonialismo e à colonialidade e o papel de obras cinematográficas nesses processos na América Latina. Por fim, apresentaremos um tópico para cada um dos filmes propostos, os quais serão analisados através de uma perspectiva transdisciplinar, decolonial e feminista.

A colonialidade e o gênero como ferramentas de análise

O processo de colonização iniciado na América a partir de 1492 gera até hoje diversas leituras que buscam refletir sobre o passado com o intuito de entender o nosso presente. A construção da memória coletiva sobre o continente passa por uma constante tensão entre as diferentes interpretações que - pautadas em vivências e interesses contextualizados - reivindicam o direito de falar sobre ele.

Neste trabalho vamos dialogar com as perspectivas construídas a partir do grupo Modernidade/Colonialidade1, que propõe uma leitura crítica sobre o passado e o presente e aponta para a continuidade do projeto colonial mesmo após os processos de independência das antigas colônias. Diferente do colonialismo - “que denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo reside no poder de outro povo ou nação” (Nelson MALDONADO-TORRES, 2007, p. 131, tradução nossa) -, a manutenção do projeto colonial é conceitualizada como colonialidade, consequência do colonialismo e entendida como a cara oculta da modernidade europeia, isto é, processos inseparáveis e interdependentes2 (Walter MIGNOLO, 2013), que constituem um padrão mundial de poder que consolida múltiplas hierarquias em torno de categorias como raça, gênero, sexualidade, nacionalidade, etc.

O conceito de colonialidade, entre outras coisas, baseia-se na ideia de sistema-mundo, de Immanuel Wallerstein (1999), que busca explicar as bases da construção da economia capitalista moderna, que se origina no século XVI, com a conquista e criação da América pela Europa (Aníbal QUIJANO; WALLERSTEIN, 1992), e que persiste até hoje, devido, principalmente, a uma divisão mundial do trabalho produtivo. Essa divisão baseia-se na separação do planeta em zonas centrais, semiperiféricas e periféricas, em diferenças étnicorraciais e na criação e gestão de aparelhos burocráticos do Estado (e das grandes corporações) pelos países que ocupam as posições centrais nesse sistema (DE NORONHA, 2019). Nas palavras de Quijano (2000, p. 342): “a colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista (...), que opera em cada um dos planos, âmbitos e dimensões materiais e subjetivas, da existência social cotidiana e da escala social. Origina-se e mundializa-se a partir da América”.

Além disso, o autor explica que as relações de poder constituídas a partir da conquista da América, e a implantação do capitalismo histórico, são baseadas no domínio da outra/outro, que ocorreu com a invenção da raça como categoria de diferenciação hierárquica e possibilitou a criação desse sistema mundial (moderno/colonial/capitalista/racista/sexista) caracterizado pela ‘colonialidade do poder’. Ballestrin (2013, p. 99-100) explica que:

A colonialidade do poder é um conceito desenvolvido originalmente por Aníbal Quijano, em 1989, e amplamente utilizado pelo grupo. Ele exprime uma constatação simples, isto é, de que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findaram com a destruição do colonialismo. O conceito possui uma dupla pretensão. Por um lado, denuncia “a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial” (Ramón GROSFOGUEL, 2008, p. 126). Por outro, possui uma capacidade explicativa que atualiza e contemporiza processos que supostamente teriam sido apagados, assimilados ou superados pela modernidade.

Nesse sentido, ao olharmos para a América Latina contemporânea, é possível identificar distintos modos em que a colonialidade se faz presente: no poder - tanto nas relações internas como externas -, nas relações de gênero e raciais, nos padrões impostos ao ser e ao ver e na forma como são construídos o conhecimento e as nossas principais referências. Todas essas questões são baseadas em hierarquias ou heterarquias3 (GROSFOGUEL, 2006), dicotômicas e binárias, que atuam tanto no plano do imaginário quanto da prática e constituem a diferença colonial4, isto é, a diferença hierárquica entre o moderno e o não moderno (LUGONES, 2019). Para Lélia Gonzalez (2019[1983], p. 344), ao analisarmos as estratégias utilizadas pelos países europeus nas colônias, “verificamos que o racismo desempenha um papel fundamental na internalização da “superioridade” do colonizador pelos colonizados”. Segundo Lugones (2019, p. 358):

Começando com a colonização das Américas e do Caribe, uma distinção hierárquica e dicotômica entre humanos e não humanos foi imposta sobre os colonizados, a serviço dos interesses do homem branco ocidental - e ela foi acompanhada por outras distinções que obedeciam à mesma lógica, como aquela entre homens e mulheres. Esse tipo de diferenciação se tornou uma marca da humanidade e da civilização. Somente homens e mulheres civilizados são humanos; povos indígenas das Américas e escravos africanos eram classificados como não humanos - animais, incontrolavelmente sexuais e selvagens. O homem europeu, burguês, colono, moderno foi transformado em sujeito/agente, próprio para governar, para a vida pública, um ser civilizado, heterossexual, cristão, um ser da mente e da razão.

Dessa forma, a colonialidade foi estendida “para outros âmbitos que não só o do poder”, se reproduzindo “em uma tripla dimensão: a do poder, do saber e do ser” (BALLESTRIN, 2013, p. 100). Outras autoras e autores ainda propõem ampliar essas dimensões, como a partir da colonialidade do ver (Adolpho COLOMBRES, 2012; CUSICANQUI, 2015; Joaquín BARRIENDOS. 2019; Christian LEÓN, 2019), que está relacionada com a forma como produzimos e consumimos imagens, e da colonialidade do gênero, elaborada a partir da leitura que María Lugones faz do conceito de Quijano, e que serve como aporte principal para a nossa análise por possibilitar a reflexão sobre o papel da diferenciação de gênero na estrutura das sociedades modernas/coloniais.

Quijano (2009) pensa a ‘colonialidade do poder’ como um espaço de relações sociais de exploração, dominação e conflito, que é articulado, principalmente, a partir das disputas pelo controle de importantes meios de existência social como o trabalho, a natureza, o sexo, as subjetividades (que inclui saberes e formas de compreender o mundo) e a autoridade. Além disso, tem entre seus objetivos, a garantia da manutenção do padrão atual de relações sociais e dos privilégios, sendo a raça o principal critério de diferenciação. Para Lugones, o conceito de colonialidade do poder é importante por possibilitar “um entendimento histórico da inseparabilidade dos processos de racialização e a exploração capitalistas” (LUGONES, 2019, p. 361). Porém, para a autora, é preciso ampliar a discussão proposta por Quijano no que se refere ao papel desempenhado pelas diferenciações de gênero:

Para Quijano, as lutas pelo controle do “acesso ao sexo, seus recursos e produtos” definem a esfera sexo/gênero e são organizadas a partir dos eixos da colonialidade e da modernidade. Essa análise da construção moderna/colonial do gênero e seu alcance são limitados. O olhar de Quijano pressupõe uma compreensão patriarcal e heterossexual das disputas pelo controle do sexo, seus recursos e produtos. Ele aceita o entendimento capitalista, eurocêntrico e global sobre o gênero. Seu quadro de análise - capitalista, eurocêntrico e global - mantém velado o entendimento de que as mulheres colonizadas, não-brancas, foram subordinadas e destituídas de poder. Conseguimos perceber como é opressor o caráter heterossexual e patriarcal das relações sociais quando desmistificamos as pressuposições de tal quadro analítico. (LUGONES, 2008, p. 78, tradução nossa).

Lugones (2008, p. 78, tradução nossa) reflete que não é preciso que as relações sociais sejam organizadas em termos de gênero, porém, “uma vez dada, uma organização social em termos de gênero não tem por que ser heterossexual ou patriarcal”. A autora acredita que entender as marcas historicamente específicas “da organização do gênero em seu sistema moderno/colonial (dimorfismo biológico, a organização patriarcal e heterossexual das relações sociais) é central para entendermos como essa organização acontece de maneira diferente quando acrescida de termos raciais”. Nesse sentido, o dimorfismo biológico, a heterossexualidade e o patriarcado são característicos do que ela denomina de “lado iluminado/visível da organização colonial/moderna do gênero” (LUGONES, 2008, p. 78).

Além disso, Lugones sugere incluir o gênero como critério fundamental de diferenciação do sistema-mundo moderno/colonial, isto é, ‘constituído por e constituindo a colonialidade do poder’, que a partir da intersecção (Kimberlé CRENSHAW, 1989) com raça possibilita revelar “o que não conseguimos ver quando categorias como gênero e raça são concebidas separadas uma da outra” (LUGONES, 2008, p. 81): a dupla opressão pela qual as mulheres não brancas colonizadas passaram e passam até hoje. A autora propõe decolonizar os gêneros5, uma práxis que busca transformar a crítica da opressão de gênero - racializada, colonial, capitalista e heterossexista - em uma mudança viva na sociedade. “A colonialidade dos gêneros me permite entender a imposição opressora como uma complexa interação de sistemas econômicos, raciais e atribuídos de gênero, na qual toda pessoa no encontro colonial pode ser entendida como um ser vivo, histórico e plenamente descrito” (LUGONES, 2019, p. 363).

Sobre resistências decoloniais e o papel do cinema

Após apresentarmos essa revisão sobre o conceito de colonialidade e sua relação com o gênero, nos interessa agora entender os processos de resistência a esse padrão de poder, como também as possibilidades provocadas pela decolonialidade, entendida como um movimento que busca “apontar e provocar um posicionamento - uma postura e atitude contínuas - de transgredir, intervir, insurgir e influenciar. O decolonial denota, então, um caminho de luta contínua, em que podemos identificar, visibilizar e encorajar ‘lugares’ de exterioridade e construções alternativas” (Catherine WALSH, 2009, p. 14-15, tradução nossa). Em outras palavras, a perspectiva decolonial, que aqui assume a perspectiva de gênero proposta por Lugones, permite que ampliemos o nosso olhar para compreendermos nossos padrões culturais e nos possibilita refletir sobre as diversas relações de poder - econômicas, políticas, culturais - que se mantêm a partir do nascimento do sistema-mundo moderno/colonial, como também sugere possibilidades outras. León (2019, p. 62) explica que a opção teórica decolonial propõe um duplo procedimento: “por um lado, de ‘desprendimento’ das epistemologias ocidentais que colonizaram os saberes e as disciplinas modernas”; e, por outro, “de ‘abertura’ a um pensamento-outro que inaugure uma nova forma de pensar a partir da pluralidade de pontos de enunciação geo-historicamente situados”.

Nesse sentido, conforme destaca Lugones (2019), o longo percurso da colonialidade começa do tenso encontro entre os diferentes mundos, e o ponto crucial nesse processo é “que a sua construção subjetiva e intersubjetiva informa sobre a resistência aos agentes de dominação colonial”. Em outras palavras, esse sistema de poder “não encontrou um mundo a ser formado”, mas sim, “seres complexos, atravessados por organizações culturais, políticas, econômicas e religiosas”, que foram submetidos a “tensos, violentos e arriscados encontros” e submetidos ao apagamento de suas subjetividades, vivências e crenças (LUGONES, 2019, p. 364).

Trazendo para os tempos mais recentes, propomos neste trabalho pensar o cinema como uma dessas ferramentas de resistência à diferença colonial. León (2019, p. 64) acredita que “Talvez sejam a colonialidade das imagens, o poder que elas exibiram e a resistência que elas permitiram, o precedente mais importante para a construção de uma cultura visual global na América Latina”. Segundo Natalia Barrenha (2014, p. 2), “os usos do documentário na América Latina, a partir de 1950, redefiniram a função social do cinema” e possibilitaram que diretoras e diretores reelaborassem narrativas que passaram a disputar a memória coletiva sobre o passado e também a discutir sobre os problemas do presente. Em suas palavras, na América Latina:

O filme documentário tornou-se arena para o debate político, cultural e social na região. Começaram a se manifestar olhares de resistência e desconfiança com relação às promessas de que a mecanização, a industrialização e a transferência tecnológica chegariam ao “subcontinente” de mãos dadas ao progresso social. A partir de então, o documentário assumiu funções que vão além de sua concepção convencional como meio educativo dirigido a espectadores passivos, tornando-se ferramenta primordial para aproximar-se e descobrir o que está submerso, negado e desvalorizado na sociedade. Ele torna-se fonte de contrainformação que questiona as estruturas hegemônicas de comunicação, maneira de reconstruir eventos históricos e desafiar interpretações dominantes e frequentemente elitistas do passado. (BARRENHA, 2014, p. 2).

Esse movimento que inicialmente começou no documentário, estende-se para os filmes ficcionais ou híbridos, que aproveitaram as possibilidades narrativas da ficção para tratar de temas com uma profundidade distinta. Nesse contexto, podemos inserir os filmes feministas produzidos na América Latina a partir dos anos 1960 até os anos 1980, que podem ser considerados duplamente resistentes, tanto pelas imagens, sons, personagens e temáticas que propuseram, que trouxeram novos rostos, vozes, cenários e problemáticas para o audiovisual desenvolvido na região, quanto por terem sido realizados por mulheres que conseguiram subverter o perverso e complexo sistema de gênero6, que insistia, e segue insistindo em determinar que a produção cinematográfica é um lugar quase que exclusivo para os homens brancos (Karla HOLANDA, 2019). Somado a isso, ainda se deve levar em consideração que os filmes latino-americanos enfrentam um mercado extremamente desigual em nível mundial, marcado pela colonialidade do poder. Dessa forma, trata-se de filmes e diretoras que atuaram de forma efetiva e concomitante para o que, atualmente, chamamos de decolonizar o ver, o ser, o saber e as relações pautadas no gênero, como é o caso dos filmes que analisaremos nos próximos tópicos. Como explica Tedesco (2019, p. 83):

As mudanças tecnológicas e a ascensão de novos modos de produção cinematográficos, somadas a uma espécie de “aceleração” pós-Segunda Guerra Mundial na intensidade das mudanças (fossem elas legais ou sociais) relativas a uma parcela maior de mulheres latinas, permitiram um aumento das condições para que surgissem primeiras diretoras em países onde as condições cinematográficas eram menos favoráveis, porém, de alguma maneira, existentes.

Apesar de terem sido invisibilizadas da história hegemônica sobre o cinema latino-americano do período, seja dentro do contexto do Nuevo Cine Latinoamericano, seja em outros impulsionados pelo diálogo entre práticas artísticas e políticas, diversas mulheres da região encontraram no cinema uma forma de contestação social, tanto de modo individual como a partir da associação em coletivos, como é o caso do Cine Mujer no México e do coletivo feminista Miércoles na Venezuela.

Esse apagamento das mulheres em importantes áreas do conhecimento, incluindo o cinema, tem a ver com a “imposição opressora”, resultado da “complexa interação de sistemas econômicos, raciais e atribuídos ao gênero”, citada por Lugones (2019, p. 363), que vai determinar quem tem autoridade para contar e ser parte da história, como também quem pode filmar e construir uma trajetória no cinema. Por outro lado, cada vez mais pesquisadoras em toda a América Latina têm se dedicado a preencher essas lacunas da presença de mulheres na história do audiovisual, mesmo não sendo uma tarefa fácil, ao visibilizar suas obras e percursos e auxiliar na discussão da parcialidade sexista, racista e colonial que envolve a construção da memória coletiva.

Neste artigo, vamos nos dedicar a discutir filmes de três diretoras que realizaram suas obras em realidades distintas, mas que estavam completamente conectadas com um contexto político maior, que inclui a compreensão do cinema como uma ferramenta com função social e crítica. Margot Benacerraf (Venezuela), Sara Gómez (Cuba) e Kitico Moreno (Costa Rica) e seus filmes foram escolhidos pelo pioneirismo de suas presenças no cinema e pelas narrativas apresentadas naquele momento. Sem esgotar o tema, nossa proposta é visibilizar a crítica de seus filmes ao colonialismo e à colonialidade, atuando nesse processo de compreensão do passado e do presente, não apenas do momento em que foram realizados, mas também do momento atual. Como nos lembra Léon (2019, p. 63):

Os debates sobre Cultura Visual pensados a partir da América Latina são chamados a reintroduzir a história no pensamento da imagem e a propor a descontinuidade geográfica que cerca o campo da visualidade. Estudos visuais reconceitualizados a partir de nossa região exigem pensar a diversidade de histórias e a heterogeneidade estrutural que moldam a visualidade no patamar do sistema-mundo moderno.

A venezuelana Margot Benacerraf foi a única cineasta latino-americana a realizar um filme na década de 1950. Conforme relata Tedesco (2019, p. 88), a diretora compartilhava diversas características dos diretores daquele período: “a proposta estético-política de fazer um cinema fora dos estúdios e voltado para a realidade latino-americana, a formação universitária (...) e a circulação pelos principais festivais europeus daquele momento”. Araya (1959), seu segundo e último filme, apresenta, através de uma poesia cinematográfica, 24 horas na rotina de três famílias numa salina natural da Venezuela, cujos recursos eram explorados manualmente há muitos anos. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, sendo que um deles foi dividido com Hiroshima, mon amour, de Alain Resnais. Porém, a diretora recebeu pouco destaque na história do cinema e não conseguiu financiamento para novas obras. Corroboramos com Tedesco (2019, p. 89) e com outras pesquisadoras, como Barrenha (2014), quando questionam se Benacerraf não deveria ser incluída, com destaque, na construção historiográfica dos antecedentes do Nuevo Cine Latinoamericano.

Ainda no Caribe, Sara Gómez, a “primeira realizadora cubana e primeira diretora negra da América Latina” (TEDESCO, 2019, p. 89), que temos conhecimento até hoje, dirigiu o seu primeiro filme em 1962, atuou no Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC) e colaborou de forma efetiva para a construção da linguagem do documentário cubano pós-revolução, além de promover temas, como os relacionados a questões de gênero e raça, que naquele momento ainda eram pautas difíceis para a esquerda (TEDESCO, 2019). Entretanto, “enquanto viveu, Sara Gómez não foi suficientemente reconhecida pela crítica” (Olga YERO, 2017, p. 42 apud TEDESCO, 2019, p. 90). Infelizmente, a cineasta morreu precocemente com um pouco mais de 30 anos, mas realizou 18 curtas documentais e um longa, sua última obra, De cierta manera (1974), que retrata através da relação entre Yolanda, uma nova professora comunitária, e Mario, um trabalhador do bairro de Miraflores, os esforços da Revolução para erradicar a marginalidade, como também os problemas que ainda persistem como o racismo e o machismo, resquícios de um passado colonial que não são fáceis de transformar. Diferente do que ainda ocorre com a produção das outras duas diretoras analisadas neste artigo, nos últimos anos, a trajetória e filmes, em especial De cierta manera, de Sara Gómez têm sido temas de muitas pesquisas, inclusive no Brasil (VEIGA, 2018; Cláudia MESQUITA; Roberta VEIGA, 2021, entre outras), com as quais buscamos dialogar à luz da perspectiva da decolonialidade de gênero que nos possibilita refletir sobre as marcas deixadas pelo colonialismo às mulheres, mesmo quando olhamos para um contexto revolucionário.

Por fim, chegando à América Central, no início da década de 1970, Kitico Moreno “foi o motor da produção cinematográfica sistemática” da Costa Rica naquele período (María CÓRTES, 2005, n.p., tradução nossa). Kitico foi fundadora do Departamento de Cinema do Ministerio de Cultura, Juventud y Deportes (que depois passou a se chamar Centro Costarricense de Producción Cinematográfica), posteriormente assumiu o cargo de vice-ministra da cultura, escreveu e dirigiu dois filmes, sendo um deles o curta-metragem documental A propósito de la mujer (1975), além de ter participado de outros trabalhos como produtora executiva. A propósito de la mujer se baseia nos testemunhos de diversas mulheres e traça um panorama das possibilidades que são apresentadas para elas no contexto da sociedade patriarcal da Costa Rica. Para Cortés (2005, p. 4, tradução nossa), o filme merece destaque por ser “a primeira obra cinematográfica sobre a condição feminina”, além de trazer elementos inovadores para o gênero documentário feito até aquele momento no país.

Araya (1959) e a colonialidade do viver

Araya, o lugar e o filme, é um registro extremo das marcas da colonialidade em uma comunidade latino-americana, cuja vida está condenada à repetição do gesto. Na península, a colonialidade se expressa nos movimentos de seus moradores, gestos sincronizados, que se repetem ritualmente há séculos, mais especificamente desde 1500, quando os espanhóis desembarcaram no quente, seco e salgado solo de Araya.

Os colonizadores viram em Araya uma mina de ouro, em uma época na qual o sal valia tanto quanto, ou até mais que o cobiçado metal. A coroa espanhola levou pessoas para trabalhar na extração do sal da região, ‘o mais belo e mais puro’, como diziam os viajantes. Construiu uma fortaleza para protegê-la. E quando não havia mais interesse estratégico, a colônia ‘libertada’ foi, mais uma vez, golpeada com o abandono. A fortaleza hoje é ruína, memória de um passado que se faz presente. Através de um texto poético, que se repete como o tempo, o gesto e o trabalho em Araya, o narrador questiona: “O que sobrou de Araya? O que sobrou do seu passado?”.

Passados 450 anos desde o “descobrimento” de Araya até o amanhecer que é retratado no início do filme, no qual um dia mais vai começar, hoje como ontem, num passado que se repete. Com uma fotografia em preto e branco, que parte da natureza da península para as grandes montanhas de sal, acompanhamos 24 horas de três famílias, formadas por distintas gerações presas nesse eterno ciclo do gesto, que sobrevivem das possibilidades que vêm do mar - seja do sal, seja da pesca:

Temos os Pereda, cujos homens, Beltrán, o pai; Fortunato, César e Toñico, os filhos, são salineiros da noite, enquanto a irmã de Beltrán, Luisa, fabrica potes de barro, e sua esposa, Daria, cuida dos afazeres domésticos. Temos os Ortiz, que vivem da pesca, Adolfo trabalha no mar, sua esposa Isabel alimenta os povoados da península vendendo peixe, as filhas Angélica e Carmen, junto à avó, se ocupam da casa. E temos os Salazar, Dámaso, Nemesio e Benito são salineiros do dia, Petra, a mãe, é empacotadora de sal ao pé das pirâmides, e a filha, Nelita. (BARRENHA, 2014, p. 234).

As pessoas que ali vivem nunca tiveram a opção de estar em outro lugar. Benito, ao olhar o barco que vem buscar o sal, pode pensar em partir. Mas para onde? A violência do colonialismo sequestrou culturas e subjetividades e condenou-as a repetir ad infinitum uma rotina de trabalho imposta pelas lógicas da colonialidade. As desigualdades sociais aprofundadas a partir do desenvolvimento das sociedades modernas/coloniais/capitalistas, mas construídas como naturais, são limitadoras de mudanças e, de um modo geral, definem os destinos de todas as gerações daquelas famílias. A dominação colonial permanece em Araya por meio da repetição do gesto de extrair o que vem do mar para sobreviver, que atinge do mais velho ao mais novo. Nada muda. Tudo só pode permanecer exatamente igual.

Na narrativa de Araya, os habitantes daquele vilarejo são reféns da eterna repetição do gesto violento, duro, rústico, árido e suado, de extrair do mar a vida, o alimento e a sobrevivência. Sem opções, homens, mulheres e crianças estão condenados aos golpes do sol, aos cortes do sal, à exaustão do suor. Como as ondas do mar que vêm e vão; como a maré, que sobe e desce. A repetição do gesto é a marca da colonialidade entranhada em Araya, uma colonialidade do viver. E a repetida narração não nos deixa esquecer, “nada cresce naquela terra”: nem flores para os mortos, nem sonhos para os vivos. Não há futuro. Não há o que sonhar. As promessas do Deus do colonizador não se cumprem para aqueles que estão do lado de cá da diferença colonial e as sementes e árvores não dão frutos em Araya.

Acompanhamos com o passar das horas, os movimentos dos corpos que dialogam com uma trilha sonora composta principalmente pela narração e por sons ritmados, que sincronizam o intenso trabalho em Araya: pegar, quebrar, lavar, carregar, derrubar, vender o sal. As pessoas que vivem em Araya não têm outra opção senão repetir o que as levou até aquele lugar. Os homens de Araya não falam. De pai a filho, ser pescador ou salineiro. Afinal, naquele sol, é possível escolher? Como diz Lugones (2019), a colonialidade perpetua-se no apagamento de subjetividades, vivências e crenças, e, podemos acrescentar, da história, que passa a (re)produzir apenas um ponto de vista, que, com certeza, não é o dos colonizados.

A colonialidade do gênero se mostra na realidade das mulheres de Araya, que têm suas trajetórias atravessadas pelas lógicas construídas na experiência (e existência) colonial. Ao acompanharmos as suas vivências naquelas 24 horas, compreendemos os motivos pelos quais os feminismos contra-hegemônicos questionaram a universalidade de reflexões dos movimentos de mulheres do Norte e reivindicaram a reformulação das propostas para que a teoria feminista pudesse dar conta das especificidades locais das diferentes regiões, que são marcadas por diversas intersecções, como raça, etnia, classe e trabalho.

O gesto repetido das mulheres de Araya tem a ver com o sal, com o mar, mas também com os cuidados, tanto da casa como dos filhos. Em uma rotina de escassez, na qual as relações familiares não são privilegiadas, vemos por exemplo, Isabel buscar, limpar e vender os peixes e, depois da longa jornada, se dedicar a cuidar: amamentar seu filho e cortar a lenha para cozinhar. Sua filha Angélica ajuda nos afazeres de casa que, em breve, serão também de responsabilidade da filha mais nova, Carmen, que aguarda o seu momento brincando com as conchas que o mar também lhe deu. A avó, com o rosto marcado de sal e sol, prepara o milho. São mulheres que ‘não conhecem a fadiga’. São ‘braços que não conhecem o cansaço’. Em volta da fogueira, junto ao som e força do vento, ouvimos mulheres cantar. Elas também resistem.

Nesse sentido, Araya se impõe como cinema de resistência e crítica ao colonialismo e à sua manutenção contemporânea. O trecho final - que intercala imagens de pedreiras sendo implodidas e de maquinário carregando pedras e produzindo cimento, de veículos que ciclicamente fazem o trabalho pelo homem -, insinua a destruição do modo de vida e das relações sociais de Araya, mas sem nenhuma perspectiva de melhorias, e evoca os ideais de modernidade que sustentam as marcas da colonialidade. Modernidade ausente no horizonte dos habitantes de Araya. Como nos lembra o narrador, “tudo se renova há séculos, sem que nada verdadeiramente tenha mudado”. São novas formas para velhas práticas.

Com Araya, como mulher e latino-americana, Margot Benacerraf também se inscreve como registro de resistência à hegemonia masculina na produção cinematográfica da América Latina, em especial da produção política produzida nos anos 1960 e 1970. Mais do que isso, a obra de Benacerraf é um registro de existência, provocação, insurgência e transgressão feminina na história do cinema latino e mundial.

Em diversos níveis, Araya convoca uma decolonização do ver (e do gesto) ao nos colocar frente a frente com outros modos de enxergar o corpo e o movimento do indivíduo resultante dessa marca colonial. Somos provocadas a ver a beleza do suor, do sal, e da repetição do gesto do trabalhador ‘assalariado’ da frágil e limitada economia de Araya. Somos confrontadas com um olhar desafiador, revelador, sedutor sobre a beleza daqueles corpos, em contraste com a aridez da salina e a dureza de suas rotinas repetidas à exaustão. Um convite à decolonização do olhar.

De cierta manera (1974) e a (de)colonialidade do gênero

A Revolução Cubana, iniciada em 1959, é um processo em construção. Com os objetivos iniciais de derrubar a ditadura de Fulgencio Batista, libertar o país do domínio social, político e econômico da Espanha e dos Estados Unidos e valorizar a autonomia nacional, o grupo liderado por Fidel Castro, Camilo Cienfuegos e Che Guevara começou um movimento que mais tarde se tornaria socialista e que até hoje é o principal exemplo de resistência colonial e imperial da contemporaneidade. Desde o princípio, a revolução cubana colocou a educação e a cultura como eixos centrais para a libertação individual e coletiva. E é nesse contexto que nasce o ICAIC, em março de 1959, criado menos de três meses após o triunfo revolucionário, momento em que se inicia o desenvolvimento da linguagem do documentário cubano pós-revolução, “uma linguagem irônica e sarcástica e que se utilizava de fontes diversas para produzir um discurso militante homogêneo” (TEDESCO, 2019, p. 89).

Porém, como é de se esperar, um processo revolucionário não é capaz de resolver todos os problemas da noite para o dia. Necessita tempo, reflexão, práticas críticas e constante transformação. Sara Gómez, em De cierta manera, busca cumprir esse papel. Trata-se de um discurso crítico, sem deixar de ser revolucionário. Nesse documentário híbrido, que tensiona de forma ousada as fronteiras entre real e ficcional, e questiona, de forma ainda mais ousada, as idiossincrasias do interior da revolução, vemos por diversos ângulos o grau de complexidade e enraizamento cultural da herança colonial na sociedade, que ora se quer revolucionária.

Diferente de prédios que podem ser derrubados e reconstruídos facilmente, como as imagens ‘reais’ que vemos no começo do filme, os seres humanos - seres culturais - são mais difíceis de transformar. Mudam-se as casas, mas como mudar as pessoas? Uma cartela informa: “Após o triunfo da Revolução, não existem mais setores marginais em Cuba”. Porém, o narrador complementa: “mas a cultura que vive nas profundezas da consciência em forma de hábitos, costumes, crenças, normas, valores podem manter uma forte resistência às mudanças sociais”. Desse modo, busca-se explicar alguns comportamentos ‘antissociais’ existentes na sociedade cubana remetendo ao passado, principalmente, daqueles que habitavam os antigos ‘setores marginais’ do país. Aqui mais uma vez vemos a educação e a cultura entendidos como eixos principais da mudança.

Nesse sentido, dirigido por uma mulher negra, de certa maneira (trocadilho intencional), a obra de Sara Gómez também se coloca como uma atitude metalinguística revolucionária e de resistência. De um lado, 15 anos após o começo da revolução, Sara busca discutir sobre as lacunas que ainda precisam ser preenchidas nas subjetividades dos sujeitos, que têm a ver com as raízes machistas, patriarcais e racistas do passado colonial. Do outro, ela própria é resistência: mulher, negra, jovem, latina, cineasta, que existe e resiste em um mundo de homens.

De diversas formas, a colonialidade está presente na formação latino-americana. Isso significa dizer que também os movimentos de esquerda precisam estar atentos a esse aspecto, em uma incessante reflexão crítica. Os movimentos do cinema latino-americano engajado dessa época, também padeceram dos resquícios do colonialismo, especialmente no que concerne ao apagamento do debate sobre gênero e raça, que pouco entrava em pauta nas discussões. Naquele período, não era de interesse debater o machismo ou o racismo, pois se acreditava que tais temas poderiam fragmentar e desmobilizar o debate.

Ao resistir a isso provocando um novo olhar, a narrativa principal em De cierta manera, que acompanha os personagens Mario e Yolanda, parece tentar dar conta de possíveis formas de resistência decolonial. Mario, um revolucionário, tem sua ideologia posta à prova quando se vê como testemunha de uma mentira do companheiro que se ausenta do trabalho para encontrar uma mulher. Na assembleia dos trabalhadores, que abre e fecha o filme, Mario protagoniza um embate que tem na ética sua principal pauta. Há em Mario um movimento de resistência à corrupção, um medo da traição ao ideal revolucionário, que o coloca em conflito com um marcador de masculinidade que lhe diz que os homens devem ser fiéis uns aos outros. O trabalho passa a ganhar uma conotação coletiva entre aqueles homens.

Por sua vez, Yolanda é uma mulher branca de classe média que abandonou um casamento para priorizar sua carreira profissional - algo que por si só já é extremamente inovador para a sociedade latino-americana do período. Ela é uma personagem complexa e paradoxal: ao mesmo tempo que se impõe como mulher empoderada e independente, demonstra uma falta de consciência de classe em relação à situação de abandono afetivo e material em que vivem as mães das alunas e alunos da escola onde trabalha. Ela é algoz e vítima da colonialidade. E, com essa personagem, vemos que a transformação precisa atingir a todos os setores e o comportamento ‘antissocial’, relatado anteriormente, não existe apenas entre as pessoas que tiveram menos acesso à educação formal.

O patriarcado é a todo momento questionado. Não apenas o ocidental, mas também o encontro de sistemas machistas e sexistas distintos que constituíram a colonialidade do gênero em Cuba. Por um lado, apesar de apresentar um discurso e imagens de modo estigmatizado, o filme mostra os resquícios da sociedade africana Abakuá, uma das culturas que chegaram da África Ocidental durante o processo de escravização: uma sociedade patriarcal na qual as mulheres foram excluídas devido a um mito de que elas são traidoras. Do outro, estão os homens espanhóis, que chegaram em Cuba “com todo o seu código de violência, machismo, o uso da faca e o culto à fêmea”, segundo o próprio filme. Para o filme, é desse encontro de diferentes mitos e comportamentos que nasce o pensamento tradicional da sociedade cubana que culmina no processo de submissão e inferiorização da mulher, o qual o filme quer denunciar e combater.

Em seu texto Colonialidad y Género, Lugones (2008, p. 75, tradução nossa) questiona justamente a intersecção entre raça, classe e gênero na busca por entender a “preocupante indiferença dos homens com relação às violências que, sistematicamente, as mulheres de cor sofrem: mulheres não-brancas; mulheres vítimas da colonialidade do poder e, inseparavelmente, da colonialidade do gênero”. Para a autora, um dos caminhos para tentar compreender essa indiferença diante da violência sofrida pelas mulheres nas comunidades latino-americanas é entendê-la “como uma indiferença diante das transformações sociais profundas em nossas estruturas comunais, e por isso totalmente relevantes à recusa da imposição colonial” (LUGONES, 2008, p. 76, tradução nossa).

De cierta manera fala justamente sobre isso. Podemos pensar na indiferença de Mario, mas, principalmente, na resistência de Yolanda. Ainda que suas reações demonstrem falta de consciência de classe, a postura de mulher empoderada e independente é uma característica que aponta para a tentativa de decolonizar o gênero. Diante do tratamento violento de Mario por ela tê-lo feito esperar mais de uma hora em frente ao cinema, Yolanda vira as costas e vai embora. É ele que tem que ir atrás dela. É ele que precisa mudar. Com suas incoerências e contradições, Yolanda e Mario representam os desafios e as dificuldades de se implementar um movimento de resistência à colonialidade, ainda que o próprio filme represente uma dessas saídas possíveis, estética e eticamente.

A propósito de la mujer (1975) e a colonialidade do ser (mulher)

A obra de Kitico Moreno, A propósito de la mujer, se insere dentro de um contexto de desenvolvimento de realização cinematográfica nomeadamente feminista, que começa a se intensificar no início dos anos 1970 em diversos lugares do mundo. Nesse média-metragem acompanhamos os depoimentos de diversas mulheres, de diferentes classes sociais e etnias, entrecortados por três momentos ficcionais ensaísticos que sugerem metáforas sobre a situação de opressão e subalternidade às quais estão submetidas as mulheres colonizadas.

Nos primeiros minutos do filme, vemos uma mulher crucificada, em agonia, que caminha claudicante pelo deserto, amarrada pelos pulsos em sua cruz, enquanto ouvimos uma narração de voz masculina dizer: “Não existe uma besta selvagem tão prejudicial como a mulher”. A besta selvagem crucificada é a própria Kitico Moreno que nos solavanca com uma performance poderosa. É um susto que nos prepara para a série de relatos duros e diretos sobre a experiência de ser mulher na sociedade, que testemunharemos a seguir.

Nessa primeira parte ‘ficcional’, a performance de Moreno evoca a condenação ao casamento e à maternidade compulsória instituídos pelo dogma cristão. Em nome da moral católica, a mulher está condenada ao destino da virgem Maria. É uma marca da colonialidade perversa que atua na manutenção da submissão e da subserviência feminina, “porque o homem não vem da mulher, mas a mulher do homem”, conforme narrado no filme. Enquanto a mulher carrega a sua cruz, uma voz, como se fosse do próprio Deus, anuncia o futuro ao qual ela está destinada: silêncio e submissão. Sua salvação depende de não desagradar ao ‘criador’.

Os mitos construídos pelo cristianismo foram métodos eficazes de apagamento de subjetividades e colonização do ser. No caso específico das mulheres, suas existências vinculadas à costela de Adão e a culpa que carregam pelo ‘pecado original’ as tornam natural e consequentemente seres incapazes e inferiores, que precisam ser controlados e domesticados. “A confissão cristã, o pecado e a divisão maniqueísta entre o bem e o mal serviram para marcar a sexualidade feminina como má - fêmeas colonizadas eram relacionadas ao diabo” (LUGONES, 2019, p. 360). Para Lugones (2019, p. 359):

A missão civilizatória, incluindo a conversão ao cristianismo, estava presente na concepção ideológica da conquista e da colonização. Julgar os povos colonizados como deficientes do ponto de vista da civilização justificava crueldades sem tamanho. Quando pensamos no macho colonizado não humano, precisamos lembrar da perspectiva civilizatória, de um entendimento normativo do “homem” como ser humano por excelência; fêmeas eram vistas de acordo com o entendimento normativo de “mulher” como a inversão dos homens. Desse ponto de vista, as pessoas colonizadas se tornaram machos e fêmeas; machos se tornaram não-humanos-como-não-homens, e fêmeas colonizadas se tornaram não-humanas-como-não-mulheres.

O preâmbulo segue com o depoimento de um padre franciscano sobre a função da mulher na família perante a Bíblia, interpretada de forma universalizante a partir da sua compreensão da história da humanidade e da tradição, não apenas de povos cristãos, mas de ‘todos os povos em geral’. Investido do poder religioso, o padre afirma que “a missão primordial da mulher nesse mundo é a de ser esposa e mãe”. Em meio ao som de sinos e imagens de estátuas de santas, o sacerdote continua: “deve estar presente para cumprir perfeitamente essa missão de ser esposa e mãe no que costumamos chamar de lar”. Podemos discernir um tom sádico em sua declaração.

Porém, em contraponto a esse destino, o que interessa a Kitico é apresentar um ponto de vista que dificilmente encontrava espaço naquele momento. Uma cartela aparece em cena e questiona: “...e o que opina a mulher?”. A partir daí passamos a assistir os depoimentos de cerca de dez mulheres - dançarinas, camponesas, operárias - de diferentes idades, classes e etnias, as quais refletem ou são indagadas sobre suas situações como mulheres trabalhadoras e mães. Suas falas são intercaladas por uma pesquisadora da ‘realidade social feminina’, que busca explicar a opressão sofrida pelas mulheres desde uma perspectiva científica. Cada uma em seu universo, todas elas refletem e problematizam sobre suas existências e possibilidades no mundo a partir da experiência da maternidade, do casamento e do trabalho.

A primeira entrevistada inicia sua fala alegando que ser mulher é muito difícil, pois, de modo geral, se apresentam apenas duas opções. A primeira, mais fácil, cômoda e que é a dominante na sociedade, é que a mulher construa seu horizonte no âmbito da família, primeiro do pai, depois do marido. A segunda opção, mais complicada por exigir romper com o padrão da normalidade imposto socialmente, “é simplesmente ser um ser humano mais ou menos livre que quer se realizar”, “ser uma pessoa que vive sua vida”. Em outras palavras, é ser reconhecida como um ser humano, e um ser humano digno. Entretanto, sabemos que essa opção carrega, implícita e explicitamente, diversas tensões e dificuldades: estudar, trabalhar e decidir se, quando e com quem quer se relacionar não eram (são) escolhas tão acessíveis às mulheres. Esse ponto se confirma cada vez mais conforme vamos tendo contato com os demais depoimentos que compõem o filme.

Ao final de sua participação, questionada se as mulheres com suas (novas) atitudes não estão se afastando dos homens cada vez mais, ela responde que não está de acordo com os movimentos feministas europeus, pois na sua visão não se trata de dominar o homem, mas, ao contrário, em suas palavras, “é uma questão de colaboração”. A partir de sua fala podemos refletir que não se trata de reverter a opressão, mas construir novas lógicas que possibilitem a igualdade (não apenas formal, mas que se realize na prática), ao mesmo tempo que promovam o respeito às diferenças.

O argumento que rapidamente fica explícito é o de que o casamento e a instituição da maternidade configuram-se como um aparato patriarcal, colonial, religioso, capitalista, racista e perverso que perpetua um estado de controle e submissão das mulheres no sistema-mundo moderno/colonial em nome de um dogma religioso importado da colonização. Um exemplo disso são os depoimentos colhidos em uma maternidade, onde vemos uma mãe de primeira viagem e outra que aguarda o parto de seu 15º filho. Sobra à mulher no mundo ‘moderno’, procriar e cuidar.

O trabalho é outro marcador social examinado. A modernidade traz àquelas mulheres o sonho da libertação pelo trabalho de modo paradoxal. O papel fundamental da mulher no desenvolvimento econômico dos países subdesenvolvidos não lhes garantiu a chance de mudar seus destinos, mas a empurraram para intensas rotinas que, na imensa maioria das vezes, não são valorizadas social e economicamente. O corpo das mulheres, como nos mostra a fala de uma dançarina, também é transformado em produto das sociedades ocidentais capitalistas e muitas vezes é a única forma que encontram para se sustentar. A mulher não tem o direito de controlar seu próprio corpo - como também ouvimos no depoimento de uma mãe e trabalhadora que não pôde decidir quantos filhos queria ter: a possibilidade de deliberar sobre o seu útero lhe foi negada tanto pelo marido quanto pelo Estado.

Nesse sentido, a liberdade que todas procuram com o trabalho - limitado a poucas opções - mas que quase nenhuma encontra, revela-se como mais uma falácia da modernidade. A colonialidade se aprofunda nas entranhas das mulheres, pois o máximo que alcançam é uma jornada triplicada, já que o trabalho do lar e o cuidado das crianças continuam sob sua responsabilidade. Assim como na repetição dos gestos em Araya, o destino divino não lhes permite sonhar com algo diferente. A mulher besta selvagem crucificada é a mãe e esposa condenada. Colonialidade do ser mulher. Uma imagem enigmática também ressurge intermitentemente entre os depoimentos. Um fotograma ampliado, no qual se vê numa imagem em preto e branco ‘estourada’, a silhueta do que parece ser uma mulher saindo de dentro de um buraco no chão. Ela nos olha. Nesse contexto, será seguro sair?

Passando um pouco mais da metade do filme, temos a inserção de uma segunda parte ficcional. Aos sons de gritos e gemidos distorcidos, a câmera corre por um longo corredor branco, cheio de portas fechadas, e vai ao encontro de uma mulher que se contorce contra as paredes e as portas. A mulher tenta fugir, mas a câmera e os passos que começamos a ouvir, a perseguem. Uma voz de uma mulher ‘em off’ reflete sobre a opressão vivenciada pelas mulheres e novamente se repete o argumento: em invés de trancar os homens num calabouço, a mulher deseja se libertar. Porém, sabemos que as oportunidades da vida moderna não possibilitam sua libertação mas, ao contrário, lhes escravizam ainda mais. Ela tenta correr, mas as grades são fechadas antes que possa finalmente fugir.

A última entrevista traz uma reflexão da pesquisadora que fala sobre os mitos que rodeiam as possibilidades apresentadas socialmente às mulheres. Podemos aqui criar uma conexão com as análises da primeira entrevistada. A pesquisadora pondera que por estarem presas às balizas construídas pelo outro, que não levam em consideração seus próprios desejos como seres humanos, as mulheres não podem se realizar totalmente e, dessa forma, estão fadadas à desilusão. Vale ressaltar que o filme foi realizado para o Ano Internacional da Mulher na ONU, apesar de várias das entrevistadas não saberem o que isso significa. Pode ser considerado, como sugere Lugones (2019), como a possibilidade de um acontecimento, o início de uma mudança. No epílogo, vem a performance final, que também é resistência. A mulher transforma-se em pássaro e voa para a liberdade. É a realização do sonho da mulher livre que lhe foi usurpado pela colonialidade do gênero.

Considerações finais

Este trabalho buscou cumprir com dois objetivos principais. De um lado, se unir aos diversos esforços de pesquisadoras, pesquisadores e profissionais em visibilizar o cinema realizado por mulheres e apresentar novos pontos de vista para a construção da história do audiovisual latino-americano. Do outro, perceber como a crítica ao passado colonial e à colonialidade está presente nas narrativas do cinema feminista latino-americano realizado entre o final da década de 1950 e meados dos anos 1970. Destacamos que tanto as temáticas como a linguagem dos filmes estavam em completo diálogo com a proposta de construção de um cinema com função social e crítica que se desenvolvia - tanto na construção de teorias quanto de filmes - naquele momento, na América Latina. Sobre isso, ainda podemos afirmar que os filmes aqui analisados foram além e provocaram reflexões - como de gênero e raça - que ainda encontravam pouco espaço nas obras que eram realizadas na região.

Os três filmes escolhidos exibem um leque de possibilidades de análise, seja por serem obras que apresentam uma densidade técnica, estética e artística, seja pelo pioneirismo de suas diretoras e pelos contextos sociais e políticos nos quais foram realizados. Nesse sentido, são filmes que nos ajudam a construir a memória cinematográfica e histórica da América Latina. As análises que apresentamos ao longo deste artigo destacam apenas algumas possibilidades de leitura das obras. A opção de utilizar a colonialidade e o gênero como ferramentas de análise, em diálogo com o pensamento de María Lugones, foi uma tentativa de perceber como as marcas do colonialismo se imprimem de diferentes formas no continente e, em especial, nas mulheres latino-americanas - que são atravessadas por diversas hierarquias interseccionais.

Gostaríamos de destacar que o paradigma decolonial não procura produzir um efeito oposto em relação às teorias, às imagens e ao conhecimento construídos sob uma visão hegemônica, dentro do marco da colonialidade do saber, do ser e do ver. Pelo contrário, busca visibilizar e apresentar perspectivas outras, além de permitir a produção horizontal do conhecimento e da própria história, que reconheça como válidas diferentes epistemologias e experiências, independentemente de sua origem.

A compreensão da relação intrínseca entre modernidade e colonialidade nos ajuda a construir um entendimento histórico e contextual sobre passado e presente. Como nos lembra Lugones (2019, p. 361), o “projeto de transformação civilizatória justificou a colonização da memória e, junto dela, a do entendimento das pessoas sobre si mesmas”. Nesse sentido, em diálogo com os filmes e com a colonialidade de gêneros, buscamos refletir sobre as bases da opressão racializada, capitalista e de gênero, suas consequências práticas nas subjetividades e vivências daquelas e daqueles que estão do lado de cá da diferença colonial, ao mesmo tempo em que buscamos apontar as formas encontradas para resistir - entendendo as próprias obras cinematográficas analisadas como parte desse movimento de resistência e ressignificação.

Como dito, Lugones (2019, p. 362) pensa na resistência como um início, uma possibilidade de acontecimento, de mudança. Para ela, “a resistência é a tensão entre a subjetivação (a informação/formação do sujeito) e a subjetividade ativa, o senso mínimo de agência para que a relação oprimir-resistir seja ativa”. Araya, De cierta manera e A propósito de la mujer são exemplos de resistência individual e coletiva às lógicas do sistema-mundo moderno/colonial/capitalista/racista/patriarcal. São exemplos de olhares opositivos (bell HOOKS, 1992). Sigamos resistindo na construção de práticas e imaginários com mais imagens, sons e palavras.

Agradecimentos

Agradecemos às professoras Nina Tedesco e Karla Holanda pelas leituras e contribuições ao artigo.

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1Segundo Luciana Ballestrin (2013, p. 97), “O Grupo Modernidade/Colonialidade foi sendo paulatinamente estruturado por vários seminários, diálogos paralelos e publicações”. Nesse artigo, a autora apresenta um panorama sobre o início e desenvolvimento do grupo.

2O vínculo inseparável entre modernidade e colonialidade é entendido como um elemento central para a construção das diferenças coloniais e a consolidação de imaginários gerenciados através de um padrão de manutenção das relações de poder, não só no que diz respeito ao econômico e político, mas, também, às subjetividades, conhecimentos, relações simbólicas e questões culturais, entendidas como primordiais para o exercício da dominação do outro, que é operado a partir de uma perspectiva coletiva e individual ao mesmo tempo (Danielle DE NORONHA, 2019).

3A ideia de heterarquia, conceito desenvolvido por Kyriakos Kontopoulos, refere-se à possível coexistência de diferentes hierarquias, sucessivas e simultâneas, no funcionamento de um determinado sistema. Tal conceito surge do encontro com a complexidade de relações que temos no mundo de hoje, construída a partir de tensões e diferentes pontos de vista.

4Sobre a diferença colonial, ver Mignolo (2013).

5Entendemos que a consolidação do grupo Modernidade/Colonialidade, e do próprio conceito de colonialidade, foi resultado de um processo anterior mais amplo, em que distintos movimentos (incluindo o cinema, como os exemplos apresentados neste trabalho), artistas e pesquisadoras e pesquisadores, como Aimé Césaire, Frantz Fanon e Lélia Gonzalez, já discutiam sobre os resquícios e consequências do colonialismo em diferentes aspectos da realidade latino-americana.

6Compreendemos que naquele período as discussões relacionadas a gênero, tinham como eixo central a questão da diferença sexual, em grande parte pautada por uma perspectiva binária, branca e heteronormativa, que posteriormente foi compreendida como limitações do pensamento feminista ‘hegemônico’ das décadas de 1960 e 1970. Nos anos seguintes, novas propostas foram formuladas para dar conta da pluralidade de gênero (em intersecção com outras categorias), vivências e pontos de vista. Tal discussão inclui a teoria feminista do cinema e pode ser refletida desde a relação das hierarquias coloniais. Entretanto, apesar de concordar com a crítica, defendemos o caráter revolucionário das diretoras que atuaram na produção cinematográfica latino-americana do período pelas questões destacadas no texto.

Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista: DE NORONHA, Danielle Parfentieff; EZEQUIEL, Maíra. “A presença da colonialidade no cinema feminista latino-americano”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 30, n. 1, e80240, 2022

Financiamento: Não se aplica

Consentimento de uso de imagem: Não se aplica

Aprovação de comitê de ética em pesquisa: Não se aplica

Recebido: 25 de Março de 2021; Revisado: 22 de Novembro de 2021; Aceito: 01 de Dezembro de 2021

danielledenoronha@gmail.com

mairaezequiel@academico.ufs.br; mairaezequiel@id.uff.br

Danielle Parfentieff de Noronha (danielledenoronha@gmail.com) é pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Cinema e Audiovisual da Universidade Federal Fluminense - UFF. Doutora em Mídia, Comunicação e Cultura pela Universitat Autònoma de Barcelona - UAB, mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Sergipe - UFS e graduada em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo - UMESP.

Maíra Ezequiel (mairaezequiel@academico.ufs.br; mairaezequiel@id.uff.br) é doutoranda em Cinema pela Universidade Federal Fluminense - UFF, mestra em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP e graduada em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. É professora efetiva do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Contribuição de autoria: As autoras contribuíram igualmente

Conflito de interesses: Não se aplica

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