O livro de Jota Mombaça (2021a)1, Não Vão nos Matar agora, é uma coletânea que reúne um conjunto de textos de sua autoria que versam sobre uma crítica à cisgeneridade e à branquitude enquanto cistemas2 de poder. Ao trazer diversas questões inaugurais como uma metodologia daquelas e daqueles que pensam na borda, desenvolve reflexões pertinentes sobre a colonialidade do poder e do ser, a partir do conceito de subjetividade sitiada. Antes de tudo, Jota Mombaça tem como referências os trabalhos de Conceição Evaristo, Octavia Butler, Denise Ferreira da Silva, a artista e performer Ana Pi, Castiel Vitorino, Cintia Guedes. Lança mão da ficção como arma de guerra, como possibilidade de imaginar a ruptura desse mundo, como o conhecemos como uma perspectiva anticolonial e faz uma crítica ao pensamento social e do mundo das artes, marcados pelo fundamentalismo cisgênero e a branquitude ao desenvolver uma reflexão sobre a inclusão pela exclusão, pensada desde seu lugar de enunciação, oferecendo mais pistas do que necessariamente críticas para a travessia e para a fuga.
Em “Na quebra Juntas”, Jota Mombaça sugere uma nova forma de pensar a coletividade que escapem da oposição indivíduo e coletividade, no sentido de operacionalizar uma posicionalidade que vá além da individualidade. Desde sua metodologia intuitiva e experimental, ela sugere politizar a ferida (colonial) como forma de encontrar uma coletividade áspera e improvável. Que significa, de modo preliminar, pensar no desconforto de nossas próprias quebras.
Ao escrever sobre “O mundo é meu trauma”, a autora apresenta formas outras de lidar com afetos tais como a ansiedade, como uma possibilidade de entender que tal condição deriva das estruturas de poder que nos cerceiam, da branquitude e da cisgeneridade. Em palavras escritas em letras maiúsculas, nos dá indícios de rotas de fuga, porque como ela mesma diz: “a fuga só acontece porque é impossível” (MOMBAÇA, 2021b, on-line).
Ao elaborar uma crítica ao movimento artístico de Lisboa, que concentra trabalhos de intelectuais brancos que se propõem antirracistas e descoloniais, sem que isso implique uma distribuição de acesso àqueles/àquelas que são excluídos justamente pelo racismo. Aponta que essas assimetrias não são uma falha dos sistemas de poder, ao contrário, são seus sustentáculos. Nesse sentido, o problema da subalternidade não se resolve apenas por uma redistribuição econômica, mas pela abolição do binarismo subalterno/hegemonia. O que a autora menciona em “A coisa tá branca!” de forma dialógica com o trabalho de Grada Kilomba (2019) consiste em demonstrar os limites das alianças entre feminismos negros/decoloniais e feminismos brancos.
A autora elabora em três episódios questões relacionadas ao controle da subjetividade. No primeiro episódio, “Morte lenta e aceleração”, nos apresenta uma crítica à maneira na qual, no mundo das artes, há uma ficção naturalizada feita para quebrar as subjetividades pretas e indígenas como forma de valor roubado. No episódio seguinte, “Ansiedade/Intuição” por meio da personagem Loren Olamina do livro Parábolas de Octavia Butler, elabora uma análise a partir da sua posicionalidade enquanto pessoa dissidente de gênero e racializada. A partir do conceito de subjetividade sitiada, desenvolve a ideia de uma economia da ameaça, determinada pela condição de controle subjetivo, em que “assistir a incêndios (numa forma de prazer) ‘mais excitante que sexo’” (MOMBAÇA, 2021a, p. 55). Ou seja, a autora reflete como a violência ganha espaço na construção do desejo e da subjetividade, e opera na construção de uma erótica da violência. O episódio é uma crítica a patologização da ansiedade, sentimento que também é desdobramento da colonialidade do poder. Mombaça demonstra sua potência, ao perceber que a própria antecipação causada pela ansiedade se torna uma rota de fuga. Em suas palavras: “é inevitável no sentido em que escrever sobre ansiedade com ansiedade é necessariamente uma forma de escrever além da ansiedade e contra o texto” (MOMBAÇA, 2021b, p. 57).
No terceiro episódio “Fim do mundo/Transição” apresenta os limites daquilo que chama autodestruição e invenção. Ela demonstra que esse ciclo nos inscreve na situação problema, o qual também é estrutural. O que ela sugere é uma descrição da cisgeneridade e da branquitude como formas de extorsão ontológicas e de repensar o sistema de integridade da arte contemporânea.
Ao propor uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência”, Mombaça reflete sobre os regimes necropolíticos brasileiros, e considera que o racismo contra pessoas pretas e pobres está sobretudo inscrito nos DNAs das polícias e das redes de extermínio que se articulam em torno delas. Autora desenvolve a ideia de que tanto o Estado, quanto a polícia se movem por esse desejo constituído e constituinte da violência. A partir dessa afirmação, ela faz uma crítica à parte da população LGBTI+ que reivindica a criminalização da homotransfobia, como um movimento assimilacionista, com o argumento de que criminalizar esse tipo de violência é também estar de acordo com essa lógica da violência. Jota Mombaça demonstra que esse movimento representa a falta de imaginação política interseccional desses ativismos, que estão limitados a reivindicar espaço nesses lugares onde somos excluídes. No entanto, esse é um argumento complexo, e que também consiste em muitas contradições, se estamos falando do país que mais mata pessoas trans no mundo, como é o caso do Brasil, é importante que se tenha uma lei antiLGBTfobia. O argumento da autora aponta para uma ordem mais complexa, do plano da subjetividade, que coloca a violência contra as mulheres, e contra pessoas dissidentes de gênero e sexuais, como algo que está enraizado numa política do desejo, que vai além das leis. Desse modo, temos uma perspectiva para além da dimensão institucional da violência organizada pela ordem do desejo impresso na cultura e na organização social brasileiras.
A autora traz também a dimensão do que ela denomina de masculinidade tóxica como projeto de poder que se institui nesta lógica de distribuição social da violência. Essa distribuição desigual da violência se dá pelo medo, ou pânico moral, como base das experiências trans, dissidentes sexuais, femininas e racializadas para com o mundo.
Mombaça apresenta como se inscreve a pura violência como designe global, ao propor a redistribuição da violência enquanto uma demanda prática, enquanto projeto de justiça social em pleno estado de emergência e que deve ser performada por aqueles/as para quem a paz nunca foi uma opção (ALVES, 2020). Como possibilidade de redistribuição da violência ela sugere nomear a norma. Além disso, inscreve outras possibilidades como os treinamentos de autodefesa, como forma de reapropriação subalterna das técnicas de violência.
Além dessas duas propostas, Jota Mombaça defende o fim do mundo como o conhecemos, ou seja, sua aposta política é de uma descolonização total, que consiste na luta pela abolição ou o fim do mundo normalizado pela cisgeneridade como ideal regulatório, atualizado pela colonialidade de gênero e do poder.
Na sequência, em “Notas estratégicas quanto aos usos políticos do conceito de lugar de fala”, desenvolve uma crítica àquilo que chama de política (e polícia) de autorização discursiva anterior aos ativismos do lugar de fala3. Tal dimensão demonstra que nem todos/as/es estamos inseridos/as/es da mesma maneira aos espaços discursivos, questão que dialoga com os debates feitos por Conceição Evaristo (2021).
Ela considera que a maior parte dos ativismos do lugar de fala não discute a questão da identidade, mas de posicionalidade, o que consiste, segundo elabora, em um certo grau de antiessencialização estratégica (bell HOOKS, 2017). Isso se manifesta a partir da interrupção de vozes hegemônicas e a favor da possibilidade de outras vozes historicamente interrompidas e na construção de outros imaginários.
Ao refletir sobre “Escuro e não representação sobre NoirBLUE, de Ana Pi”4, a autora nos descreve a obra artística como uma maneira de fazer pulsar as movimentações de Black Lives Metter, assim como apresenta o trabalho de Ana Pi como uma encruzilhada cronológica, que pode ser considerada um programa ético definitivamente enraizado numa certa futuridade.
Ao descrever que o jogo armadilhado de categorizações implícitas e explícitas na dança da artista, nos mostra que há um jogo também sobre a opacidade e visibilidade que desafia a branquitude como única forma de presença e representação (Denise FERREIRA DA SILVA, 2019; Edouard GLISSANT, 2021), tensionando os debates sobre visibilidade e representatividade. Jota Mombaça sugere que NoirBLUE seja compreendida como instauração performativa de outro mundo, uma espécie de força imaginativa em que a recusa da visibilidade funciona como forma de autopreservação das vidas e dos projetos especulativos negros.
O livro tem mais três importantíssimas seções que versam sobre os afetos e seus atravessamentos políticos no contexto necropolítico brasileiro. Em “Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas” a autora descreve sua própria experiência ficcional afetiva de saber que estamos em um regime protofascista de modo que nossas carnes, corpos, prazeres e desejos estão sob ameaça e também redesenha rotas de fuga e possibilidades imaginativas para uma futuridade próxima. Nas reflexões sobre “Lauren Olamina e eu nos portões do fim do mundo” e “O nascimento de Urana” - a presença dos afetos também é extremamente importante, mas como forma de resistência, o amor trocado em “Cartaz cifradas a Castiel Vitorino Brasileiro” e também sobre as trocas e reciprocidades a partir dos escritos de Cintia Guedes.
Desse modo, podemos considerar que sua obra apresenta possibilidades de, na ficção imaginativa, encontrar possibilidades de resistência e potência, de estratégias de fuga e vida, para além da condição de mortes-vivas que nos é dado no regime necropolítico brasileiro.