Histórias de morte matada contadas feito morte morrida são comuns na imprensa contemporânea ao compartilhar narrativas de feminicídios brasileiros. Isso é o que defende as autoras e jornalistas Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues no livro homônimo publicado no ano de 2021 pela Drops Editora. Ao lamentarem a pertinência e atualidade do tema, as autoras evidenciam a cada capítulo o avanço das leis de proteção e a criação das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, em oposição ao atardo da cobertura midiática que continua responsabilizando as vítimas pela violência sofrida. A existência de feminicídios afetivos introduz as discussões do livro e justifica o interesse das autoras na temática. As experiências femininas são atravessadas pela lembrança de narrativas e imagens de feminicídios, que permanecem impregnadas em nossa memória. As informações em circulação sobre os crimes se tornam lembretes da violência misógina, estrutural e cotidiana seguida pela inquisição moralista no julgamento das vítimas. Quem não se lembra da primeira notícia vista na TV ou lida nas manchetes garrafais de jornais e revistas, protagonizada por uma mulher assassinada?
O livro parte de análises críticas acerca das práticas jornalísticas no noticiário criminal, caminhando em direção a casos em que o gênero se apresentou como fator determinante na forma como o crime foi narrado. A violência contra mulheres não se encerra nas agressões sofridas, sendo reiterada pela maneira como as vítimas são tratadas pela imprensa. Sob alegação de resguardo jurídico, redações e jornalistas preservam o direito à presunção de inocência do acusado restando à vítima o protagonismo na descrição de ações criminosas. Ainda sobre a vítima é atribuída a responsabilidade pelo próprio crime e pela manutenção de uma narrativa que entretenha o público leitor. Casos como os de Ângela Diniz, assassinada por Doca Street em 1976 ou de Eliza Samudio, assassinada por Bruno Fernandes em 2010, foram exemplos utilizados pelas autoras em que as vítimas foram julgadas e apontadas como causadoras, mesmo que involuntariamente, de seus próprios assassinatos. Imagens de corpos femininos vitimados, intimidade familiar invadida, a descrição de perfis que simplificam experiências e silenciam subjetividades em troca de um reforço dos estereótipos de gênero estimulam, segundo Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues, o julgamento da vítima e a absolvição moral do assassino.
É comum que o primeiro, e na maioria das vezes o único, contato com as notícias de feminicídio na imprensa brasileira, ocorra através da leitura rápida de manchetes e subtítulos, cuja estrutura gramatical já sinaliza a misoginia presente nas escolhas da cobertura jornalística. A começar pelo recorrente uso da voz passiva que direciona as mulheres, objeto direto das orações, para o lugar de sujeitos da ação. Em matéria publicada no Estadão sobre o assassinato de Ana Carolina Vieira, no dia quatro de novembro de 2015, lê-se no título e na linha fina “Mulher é encontrada morta em apartamento da Zona Sul de SP. Corpo tinha sinais de violência; ex-namorado admitiu tê-la estrangulado e, após, tentou se matar com veneno de rato” (Niara OLIVEIRA; Vanessa RODRIGUES, 2021, p. 60). A vítima, “encontrada morta”, continua sendo sujeito da ação apesar do crime ter um executor confesso, Anderson Rodrigues Leitão, detido e preso pela polícia. A ele não foi imputado o ato, que deveria estar presente no verbo matar. Além das poucas referências em texto que relacionam o assassino ao crime cometido, uma grande ênfase se deu à profissão da vítima, como dançarina e bailarina do Faustão, obliterando sua identidade.
De acordo com as autoras de Histórias de morte matada... tanto o uso da voz passiva quanto a descrição do perfil das vítimas é feita para estimular especulações e ampliar o suspense, mantendo a atenção e o interesse do público leitor1. Ao passo que retiram da vítima sua individualidade, essas escolhas narrativas sugerem juízos de valor sobre a personalidade e o caráter de mulheres por meio da descrição da profissão, dos hábitos e da utilização de fotos descontraídas obtidas de redes sociais. Apesar dos usos recentes dessas estruturas narrativas pela mídia hegemônica, suas origens remontam tempos mais antigos, reportando aos primórdios da imprensa sensacionalista brasileira.
Desde o nascimento da cultura midiática, a morte de mulheres foi um recurso amplamente mobilizado na espetacularização jornalística e na estetização da violência. Como resultado de uma dinamização mundial dos meios de comunicação em curso no final do século XIX, emergiu no Brasil um novo gênero narrativo marcado pela espetacularização diária do cotidiano. Com a expansão dos centros urbanos e a ampliação do público leitor cresceu também uma demanda por divertimentos e espetáculos. A cultura popular e o universo de impressos em circulação no Oitocentos se dedicaram, então, a alimentar esse anseio pelo sensacional, promovendo novas estéticas e narrativas para os suicídios misteriosos, os acidentes de grandes proporções e os mais diversos assassinatos. Para Machado de Assis, já reconhecido e aclamado escritor daquele tempo, as narrativas sensacionalistas surgiram para amenizar o tédio da sociedade. Isso porque, de acordo com ele, “o homem gosta dos grandes crimes” (Machado de ASSIS, 1994 [1892], p. 1).
Permanências e descontinuidades marcam a história do sensacionalismo oitocentista ao noticiário criminal dos nossos dias. Para Norval Boitello Junior, docente em comunicação e semiótica na PUC-SP, persiste uma romantização da violência pela cultura midiática, assistida por uma audiência ainda ávida pelas narrativas sensacionais2. A espetacularização dessas histórias e experiências de violência, de acordo com o professor, vendem mais do que as próprias notícias (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2021).
Após um panorama mais teórico sobre as narrativas de feminicídio e uma seção de breves estudos de casos de reconhecida repercussão, o livro dá seguimento aos capítulos relacionados ao transfeminicídio3, ao feminicídio indígena4 e ao feminicídio político. Apesar de não se aprofundarem na interseccionalidade como um conceito alinhado à teoria crítica feminista, as autoras mantêm uma escrita atenta aos marcadores sociais e processos de intersecção na análise discursiva das narrativas de violência cometida contra mulheres. Apresentada como uma ferramenta teórica e metodológica que articula relações de poder e categorias como gênero, raça e classe, a interseccionalidade é aprofundada na obra de Kimberlé Crenshaw, advogada, professora e defensora dos direitos civis estadunidenses. Partindo do reconhecimento de que, mesmo através da inclusão de políticas identitárias, muitas diferenças intragrupais são silenciadas, a autora defende o uso do conceito na análise de contextos de violência contra mulheres não-brancas (Kimberlé CRENSHAW, 1991).
No capítulo dedicado ao feminicídio político, Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues destacam que, apesar de todo feminicídio ser político, é importante traçar essa caracterização reconhecendo os inúmeros e crescentes assassinatos de lideranças femininas na política ou em espaços institucionais, comumente ocupados por homens brancos5. O conceito tem sido elaborado a partir das pesquisas da jornalista e doutora Renata Souza, ex-assessora de Marielle Franco e deputada estadual no Rio de Janeiro. Segundo Renata, a categorização da expressão é fundamental para o reconhecimento de um fenômeno ainda pouco visibilizado e problematizado na mídia:
O patriarcado deixou o legado de invisibilização das mulheres em vida e em morte. E não seria diferente com aquelas que ousaram, e ousam, estarem na linha de frente da política, seja essa institucional ou não. O feminicídio político traz consigo uma das faces mais cruéis da vulnerabilidade da mulher na vida política. (Renata SOUZA, 2020, p. 127)
As autoras esclarecem que a escrita e o método adotado por elas “não se trata de uma pesquisa acadêmica, mas é fruto de uma profunda e cuidadosa pesquisa e reflexão” (OLIVEIRA; RODRIGUES, 2021, p. 52). Em tempos em que o feminicídio é ainda narrado de maneira equivocada, sendo a morte de mulheres categorizada como gênero de entretenimento em serviços de streaming de vídeos e podcasts, o livro apresenta uma reflexão crítica e propositiva que, não só alcança os debates acadêmicos, mas se faz necessária nos mais diversos espaços do cotidiano. A indicação ao prêmio Jabuti de 2022 revela a triste atualidade do tema e a competência das autoras6, que não se limitam a analisar criticamente as narrativas de violência, mas desenvolvem um trabalho que denuncia a misoginia ainda presente nos discursos da imprensa brasileira.
Histórias de morte matada contadas feito morte morrida possui a capacidade de, não somente gerar reflexões sobre quais mensagens as narrativas de feminicídio emitem a respeito das mulheres vítimas de violência, mas qual o efeito concreto para as mulheres que permanecem vivas. Como lembra Margareth Rago, a “importância do discurso como prática discursiva, como materialidade que constitui os objetos e sujeitos de que fala” (Margareth RAGO, 2014, p. 7), é uma dimensão fundamental para os feminismos e para a construção de um mundo menos violento e mais filógino.