Há quinze anos, acompanhei moças e mulheres Tukano, Desana, Tuyuka e Yebamahsã1 em uma viagem ao rio Pirá Paraná, na região localizada na Amazônia colombiana, para a realização de um intercâmbio com mulheres de outros grupos Tukano Orientais. Desde o lado brasileiro do rio Tiquié, afluente do rio Uaupés, Terra Indígena Alto Rio Negro, foram três dias de caminhada.2 No segundo dia, ao chegar à maloca de Pacho no Caño Colorado, fiquei menstruada, e sabendo que não conseguiria esconder de minhas companheiras de viagem resolvi contá-las. O xamã [kumu] foi rapidamente avisado e tratou de efetivar encantações xamânicas [bahsese, chamadas regionalmente de benzimento] de proteção sobre veículos que me enviou por meio das mulheres, que me aconselharam [werese] a tragar o cigarro e soprar fumaça no meu peito e nos meus braços e pernas, passar carajuru3 em meu corpo, tomar banho rapidamente no igarapé e ficar o tempo todo na rede, até seguirmos viagem. Dessa forma, tanto eu como minhas companheiras estaríamos protegidas dos ataques dos ‘gente-peixe’ [wai mahsã], uma categoria de seres sobrenaturais que vivem em relação de inveja e hostilidade com a humanidade e podem atacar as pessoas com armas invisíveis, ocasionando doenças e morte (Aloisio CABALZAR, 2005). Tais seres são considerados “donos de ambientes” - responsáveis por cuidar dos lugares -, e podem assumir diferentes nomes e características, de acordo com o local que habitam (João Paulo BARRETO, 2013). Enquanto os xamãs podem se comunicar com estes seres de modo controlado, pessoas comuns tornam-se mais visíveis e vulneráveis aos seus ataques em determinados momentos do ciclo de vida, como a menstruação, nos sonhos, rituais e viagens.
Chegando ao Pirá Paraná, minhas companheiras se identificaram com as investigadoras indígenas que ressaltavam a preocupação com o comportamento das moças menstruadas de hoje que costumam esconder seu estado, impedindo o xamã de fazer os benzimentos e se furtando de cumprir as prescrições e restrições de comportamento [betise], pondo em risco sua saúde e a dos demais.
Durante trabalho de campo de doutorado (2012-13) e pós-doutorado (2017),4 em comunidades Tukano do trecho médio do rio Tiquié, pude identificar que havia uma enorme preocupação com os cuidados na primeira menstruação, que contrastava com o silêncio sobre o elaborado ritual de iniciação masculina feito com flautas jurupari consideradas a própria manifestação dos poderes ancestrais do clã patrilinear, cuja visão era vetada às mulheres e crianças. Na literatura, apesar de a menstruação ter sido descrita etnograficamente e analisada (Christine HUGH-JONES, 2011 [1979]; Dany MAHECHA, 2004; Luisa Elvira BELAUNDE, 2005), é a iniciação masculina que é considerada central quando se trata de caracterizar o sistema Uaupés-Pirá Paraná (Stephen HUGH-JONES, 1979; CABALZAR, 2008; Luis CAYON, 2013).
Com a perseguição ao modo de vida Tukano pelos salesianos, que fundaram missões no rio Uaupés nos anos 20 e no meio do rio Tiquié nos 40, malocas foram destruídas e substituídas por casas familiares em comunidades, cerimônias foram proibidas e caixas de ornamentos e instrumentos rituais confiscados. Flautas jurupari foram associadas pelos padres à figura do demônio e levadas para museus na Europa ou escondidas pelos indígenas em igarapés. Crianças foram retiradas do convívio familiar e do contexto em que os grandes rituais eram realizados e passaram a viver em internatos.
O regime de internato foi abolido no final dos anos 80, época em que o movimento indígena começou a ganhar maior projeção. Apesar da recente valorização dos conhecimentos e práticas indígenas, a iniciação masculina é restrita a alguns grupos de trechos altos de rios e igarapés. Moradores da missão e abaixo dela relatam que os mais velhos não possuem os conhecimentos para manejar as flautas jurupari e os mais jovens não possuem corpos adequados para fazer a abstinência necessária para participar do ritual (Melissa Santana de OLIVEIRA, 2016). Por outro lado, mesmo tendo alguns de seus aspectos abandonados ou transformados, os cuidados na primeira menstruação persistem e reúnem gêneros e gerações em torno do bem-estar da moça menstruada e daqueles que com ela convivem.
Neste artigo coloco em primeiro plano narrativas femininas sobre as transformações dos cuidados na primeira menstruação. Minhas interlocutoras são mulheres Tuyuka do clã Dasiã, Desana do clã Yu nirã, e Tukano Ñahuri porã5 das comunidades Pirarara, Acará Poço e Cunuri do médio rio Tiquié. Seus relatos revelam o modo como experienciaram os cuidados em torno da menarca em seus próprios corpos, como suas mães viveram tal momento e como tais vivencias impactam no modo como cuidam de suas filhas. Complementarmente apresento narrativas de um xamã Tukano Ñahuri porã que demonstra preocupações masculinas em benzer a primeira menstruação de filhas e netas. As narrativas foram contadas em um ambiente intimista de entrevistas que se configuraram como conversas das/com as próprias mulheres. As mulheres formulam as variações em tais práticas de (auto)cuidado em termos de moralidades entendidas em formas de leis, regras, ordens [duhtiro], atreladas a diferentes espacialidades-temporalidades: as leis do tempo das avós e das malocas, dos padres e freiras e internatos; dos pais e das comunidades e escolas indígenas, que podem coexistir de acordo com a configuração de cada família e experiências pessoais. As memórias possuem teor afetivo e moral e falam de vulnerabilidades, responsabilidades e cuidados realizados para proteção de si e dos outros e orbitam ao redor do universo conceitual das encantações xamânicas [bahsese] aconselhamentos [werese] e abstinências [betise].
Moça de maloca, de colégio e de comunidade: sangue, cuidados e transformações
Narrativas femininas sobre experiências de menstruação e suas transformações remetem a diferentes moralidades [duhtiro], relativas a distintas espaço-temporalidades e revelam sensações e emoções vivenciadas pela moça e seus familiares nessa situação, que é formulada pelas mulheres como um momento de cuidado, vigilância, aprisionamento, isolamento e paciência.
Dona Isabel, Tuyuka do clã Dasiã, nasceu no final da década de 40, no Igarapé Onça, acima da Missão de Pari Cachoeira, no alto Tiquié, local menos acessível às investidas dos padres salesianos contra práticas culturais. Morava em uma maloca habitada apenas pelos membros do clã do pai, suas esposas e seus filhos, onde havia dançarinos [bayaroa] e mestres em encantações xamânicas [bahserã/kumua], que realizavam cerimonias rituais. Nas palavras de sua nora, Aparecida Tariana (Arawak), tradutora:
Ela nem sabe com que idade ficou menstruada. Como foi benzida pelo avô desde criança para não ficar menstruada rápido, demorou para menstruar, devia ter em torno de uns 18 anos. Ela nem estava sabendo como/por que estava sangrando, mas sua mãe sabia que ela estava menstruando: ‘acho que tu já estás menstruando mesmo, há muito tempo que tu já estás moça’. Então sua mãe avisou para o pai e para o avô dela, Chico, pajé do igarapé onça. O irmão dela, Sabino, ia fazer a primeira dança na maloca, iam entregar para ele os ornamentos de dança [iniciação masculina]. Antes disso que ela menstruou, foi uma festa. Nesse instante que ela estava em primeira menstruação, o avô benzeu bem mesmo por dois dias. Ele fez direitinho. Mandaram ela não sair nem um pouquinho, mas ficar sentada. No primeiro dia a mãe dela foi procurar o jenipapo [wee] para dar banho nela, no segundo dia ela passou tudinho no corpo dela, deixando tudo preto. E cortou o cabelo dela todinho, careca. Aí ele benzeu, benzendo bem da doença, ‘cercando’ para não adoecer, benzendo tudinho para ela comer. Para ela sair fora. Ela estava em abstinência [betise]. Eles fizeram benzimento de proteção [wetiro]. Eles aconselharam [lit. avisaram] a moça. Ela vivia só numa casa, não tinha nem vizinho. Assim numa maloca mesmo, com o pai e a família. Por isso que ela foi muito bem avisada, falava muito bem, quando a gente tem uma filha tem que fazer isso. (Entrevista com Isabel, comunidade Pirarara Poço, 2017)
Isabel considera que foi ‘bem cuidada’ durante sua primeira menstruação, o que significa, que uma série de procedimentos rituais foram seguidos. A mãe identificou a situação da filha e avisou ao pai e ao avô. Estes a mandaram [de duhti, mandar/orientar] permanecer em reclusão, na língua Tukano, beti duhi, literalmente, ficar sentada em abstinência. O avô se responsabilizou em realizar o benzimento de proteção [wetiro] da neta, no qual o xamã ‘cerca’ a vida da moça com paris - esteiras feitas de talas de paxiúba - invisíveis. Com essa dupla proteção, material e imaterial, homens Tuyuka e mulheres Tukano estavam seguindo à risca os cuidados em relação ao sangue da moça menstruada. Na visão dos Tukano Orientais, através do sangue a moça se torna visível, ou melhor, detectável via olfato, para uma série de seres invisíveis, agregados genericamente sob o nome de gente-peixe [wai mahsã].6 Estes seres, que habitam diferentes lugares - caminhos, rios, lagos, roças, árvores - se sentem atraídos e provocados e podem seduzir as moças para sua camada de existência, causando doenças e até morte. Ao mesmo tempo, podem gerar danos àquelas pessoas que estão em contato com ela ou frequentam os lugares que ela frequenta.
Naquela época, antes de realizar o banho que marcaria o final da reclusão, a mãe era responsável por procurar jenipapo [wee] para produzir tinta preta e pintar o corpo da filha, com esta tinta que se revela ao tomar banho e permanece na pele por alguns dias. Além disso deveria cortar seu cabelo curto, “como de homem”. Com ambos procedimentos estava marcando mais uma camada de proteção, diretamente sobre seu corpo, tornando-a invisível aos seres supracitados.
O avô realizou o ‘benzimento de alimentação’, para que a moça, que havia adotado uma dieta alimentar rígida na reclusão, pudesse pouco a pouco voltar a inserir outros alimentos em sua dieta. Para os grupos Tukano Orientais todos os seres não humanos, mesmo os mais microscópicos, possuem substâncias nocivas que remetem às suas histórias de origem. Os alimentos, compostos por estes seres, devem ser descontaminados via procedimento xamânico, para que as pessoas não fiquem doentes. Cada alimento está classificado em uma escala de acordo com um grau de periculosidade e será reintroduzido à dieta da pessoa, em ordem crescente (Thomas LANGDON, 1975).
A moça foi bem aconselhada [werese] sobre quais seriam as prescrições e restrições [betise] a serem respeitadas para não ser atacada pelos gente-peixe e não ficar doente ou colocar a saúde dos que moram próximos a ela em risco. Estes conselhos que dizem respeito, entre outros pontos, à “etiqueta” de relações dos humanos com diferentes seres não humanos (Rosilene Fonseca PEREIRA WAIKHON, 2021), são uma modalidade fundamental na transmissão de saber intergeracional entre os grupos Tukano (OLIVEIRA, 2016).
No relato sobre o casamento dessa moça de maloca/igarapé com um moço proveniente de uma comunidade situada abaixo da missão, Isabel revela a coexistência entre moralidades relativas à maloca - o tamanho do cabelo como marcador de disponibilidade para o casamento e o casamento mediante negociação entre os pais dos cônjuges, convivendo com moralidades relativas ao internato - interferência do padre e realização de casamento na igreja:
Ela contou que o cabelo foi cortado na menarca e que quando ele já estava nos ombros, o sogro dela, Sabino, que era da comunidade São José, apareceu. De lá eles foram buscar ela em Onça Igarapé para ficar com Aprígio, para cá. Antigamente eles pediam [a noiva aos pais]. O sogro e a sogra dela estavam viajando, lá perto dela, então pediram e [os pais dela] deram para eles trazerem. Dom João estava ali no igarapé, tirando tábua. Ele disse: ‘Oi Sabino, está pegando tábua? Foram pegar mulher? Vem buscar, Miitiya [literalmente, Retire]’. Ele conversou com o seu Sabino, ‘Tu não podes levar ela direto, só depois do casamento seu filho pode ficar com ela’ e disse para eles descerem para a missão de Pari Cachoeira que ele faria uma missa. Aí ele preparou numa tarde, depois teve missa e só depois eles trouxeram ela. (Entrevista com Isabel, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Catarina Pedrosa (in memoriam), mulher Tukano Ñahuri porã, nasceu uma década antes de Isabel, residia em Cunuri, comunidade localizada na beira do trecho médio do rio Tiquié, entre as Missões de Taracuá, na qual foi aluna, e de Pari Cachoeira. Em sua narrativa mostra que em reclusão a moça ficava “cercada” em um ambiente, ou seja, aquilo que é feito imaterialmente através do ‘xamanismo de cercamento’, mencionado por Isabel, é também feito de maneira material. Órfã de pai e de mãe, relata o cuidado das mulheres com sua dieta e a preocupação de seu tio paterno em fazer o benzimento do banho com breu e sabão do mato e de manter alimentação com pimenta. Na ausência da mãe, o tio desempenhou um papel que é geralmente feminino, e conduziu a moça pelo caminho do seu local de reclusão até o porto, esfumaçando o ambiente com o breu, trajeto considerado delicado, porque é onde os gente-peixe costumam atacar as moças.
Na minha menarca foi meu tio Tukano que fez benzimento [bahsese]. Nesta fase eles colocam-nos em reclusão, no local restrito [kamota dupokawa, lit. começaram a cercar]. Naquele local elas que vem nos servir bebida (chibé, mingau). Ele faz benzimento [bahsese] de todos os alimentos para nosso consumo, os peixes e formiga maniuara. Fiquei reclusa uma semana. Depois desta semana de reclusão, fizeram benzimento de ir tomar banho no rio. Raspa-se do caule chamado papoakaro. Depois fez benzimento de proteção com breu, depois com pimenta para acompanhar a refeição. Todo esse ritual levou quase a manha toda. Ao fazer a entrega destes veículos benzidos me levou no porto a fim de dar banho. Na minha frente ele foi defumando com breu e levou junto sabão do mato [papoake]. Daí eu tomei banho no meio da fumaça do breu e depois ele derramou o breu no rio fazendo soar - sõõ. Aproveitei para tomar banho cuidadosamente. Depois do banho a vida cotidiana seguia normal. Nos tempos idos era isso o procedimento normal da primeira menarca. (Entrevista com Catarina, Comunidade Cunuri, 2013)
Tanto Isabel como Catarina entendem a época da chegada dos salesianos como um marcador espaço-temporal de transformação dos cuidados. Isabel atribui à perseguição salesiana o esquecimento e abandono das práticas femininas de pintar o corpo da moça de preto e cortar seu cabelo “que nem de homem”, aspectos mais visíveis dos cuidados da menarca e notadamente não mencionados por Catarina, moça de comunidade e aluna de missão. Segundo Isabel, para os padres realizar os benzimentos “não era normal, não era coisa de deus e eles mandavam [do verbo duhti] não realizar mais, esquecer”. Catarina, afirma que foi nessa época que os Tukano abandonaram os rituais com flautas de jurupari, bem como começou a se formar a “geração daqueles que estudam [buerã kharã] e que fazem outras coisas”.
Margarida, filha de Isabel, Tukano Ñahuri porã, nascida no final dos anos 50, na comunidade de Pirarara, na beira do trecho médio do rio Tiquié e interna na Missão de Pari Cachoeira, já observava, como ‘menina de colégio’ e sob influência das freiras Filhas de Maria Auxiliadora, a mudança da atitude perante o sangue menstrual:
Mamãe contou que quando estava menstruada pegava uma folhinha, não é todo tempo que o sangue escorria, então limpava, ou quando escorria de novo, esfregava pedaço de pau, qualquer coisa, esfregava, limpava para não ficar descendo. Era normal. Não era para colocar [na vagina], só para limpar. Na hora que descia o sangue, se acocorava limpava e pronto. Sabia que estava descendo, corria para limpar. Se não corresse, sujava o vestidinho, sainha, o que tivesse, aí tinha que tomar banho e lavar. Era normal. Quando tinha filho, eu ficava só olhando para ver o que a minha mãe ia fazer. Eu já entendia, eu era menina de colégio. Ela ficava sentada, jogava assim um pouco de areia para ficar pingando. Às vezes, acocorava e ficava sentadinha, horas e horas, para ver o sangue descer. Porque a menstruação desce quando a gente tem filho. Quando sujava ela jogava areia por cima e ficava lá mesmo, quando não ela dobrava o pano velho e colocava e sentava por cima. Quando dava para lavar, lavava, quando não, tocava fogo. Pelo menos eu vi ela fazendo assim. Não tinha calcinha, não tinha pano para forrar. Lá no colégio, as freiras lavavam bem aquela saca de açúcar de antigamente que era pano, de algodão, deixavam de molho na água sanitária, os panos ficavam branquinhos, elas cortavam em quatro pedaços. Faziam bainha para máquina, davam oito panos para cada menina. Aquele pano tinhas que lavar, cuidar bem dele, limpar direitinho e guardar para no outro mês, usar. Era assim. Conforme ia apodrecendo, a gente falava com a assistente, que passava para as freiras, ela repunha os panos. Não podia jogar fora. (Entrevista com Margarida, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Pautadas em uma noção de ‘civilidade’, traduzida em novos discursos sobre o cuidado com o corpo, as freiras, além de fornecer calcinhas e incentivar o uso dos panos de algodão, se colocam no lugar de conselheiras da moça, antecipando as informações sobre a menarca:
Éramos meninas. Todo mundo tinha que ficar no colégio para estudar. Lá com 14 anos, veio minha primeira menstruação. Eu já estava mocinha. Eu nem sabia o que era menstruação. Minha mãe não falou. Quem falava sobre isso eram as freiras, ‘Olha se acontecer, quem estiver assim, venha falar comigo’. Era justamente para dar os paninhos. E davam calcinhas. Eu estava trabalhando do outro lado do rio, pegando estrume de gado, quando eu senti alguma coisa estranha. Fui correr para mijar e fui ver, era sangue. Aí eu disse, ‘Meu deus, eu estou menstruada’. (Entrevista com Margarida, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Margarida optou por não contar às freiras sobre a menarca, compartilhando apenas com uma amiga, que, para sua sorte, tinha cigarros, carajuru e embrulho de sal e pimenta benzidos, enviados por seus pais.7 Há de se destacar nessa inovação estratégica dos pais, a pró-atividade das moças em driblar as freiras e manejar entre pares da mesma geração, a efetivação de procedimentos relacionados às encantações xamânicas [bahsese], conselhos [werese] e abstinências [betise].
Uma colega minha, disse ‘eu tenho um preparado que o meu pai benzeu para mim’, se acontecesse isso, era para eu comer, tudo benzido, não podia comer sal sem benzer, peixe, arroz, pegar sol, chuva, chuvisco, caminhar numa trilha, eles dizem que tudo tem dono, até folha, barro de areia branca, preta, de qualquer cor’, então, se você fosse num caminho, sem ser benzida, alguém, algum espírito iria ‘malinar’ contigo, se você comesse alguma coisa sem benzer, algum bicho iria ‘malinar’ com o seu corpo. Ela pegou o cigarro e partiu, acendeu, me defumou todinha, mandou passar carajuru, passou na minha perna, para não aparecer, passou para trás, passou aqui na palma da minha mão. Passou um pouquinho no rosto para não aparecer nada. Tinha sal, no embrulhinho, tinha pimenta, passava o sal e lambia, o sal e a pimenta, o primeiro alimento nosso. (Entrevista com Margarida, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Porém, Margarida ficou doente. Ao olhar hoje para o passado, justifica a doença pelo esquecimento por parte do pai de sua amiga em benzer certo tipo de peixe, cometendo um erro na fórmula xamânica, em que, conforme vimos acima, todos os tipos de peixe são agrupados em categorias e devem ser meticulosamente mencionados:
Foi um peixinho, que a gente pegava naquele igarapé de Pari Cachoeira, quando era pequena e tomava banho, o acarazinho. Assamos, sem benzer e comemos. Me deu dor de cabeça, zumbido nos ouvidos. Saiu uma coceira na minha perna, fui coçar rápido, ficou todo empipocado, uma ferida grande. Fiquei um mês doente. No hospital, haja tomar Benzetacil. Minha tia trabalhava no colégio, tentaram levar para benzer, o tio delas não deu jeito. Nem remédio. (Entrevista com Margarida, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Mas é a chegada dos pais que resolve a situação. O pai, realiza os benzimentos de cura da ferida; proteção para todos os ambientes em que ela iria andar e tipos de seres não humanos que ela iria encontrar; e descontaminação de todo tipo de alimentação que ela iria consumir no internato. A responsabilidade do pai nos cuidados da moça em menarca, se converte em memórias afetivas da filha:
Minha mãe soube que eu estava doente, eles vieram da comunidade Pirarara a remo, naquela época não existia rabeta [tipo de embarcação com motor]. Dia e noite viajando. Quando eles chegaram eu estava na Santa Casa, com ferida. Ele foi me ver, ficou olhando aquilo cheio de gaze, ensopado e fedendo. Disse: ‘isso aí aconteceu porque você comeu peixe que esqueceram de benzer [...]’ Buscou uma casca de murici, raspou, fez um cone com folhas, ficou benzendo, mandou tirar tudinho aquilo, fomos lá fora do hospital, espremeu aquilo [...]. Na hora aquilo que me incomodava, foi aliviando, quando foi de noite murchou, o inchaço e o vermelhão sumiu, foi acalmando. No quarto dia não estava mais vazando, foi meu pai. Ele disse que tinha trazido peixe, banana, tudo que eu ia comer, tudo que eles davam lá, arroz, feijão. Ele me protegeu da chuva fina, grossa, do sol quente, da lua, das estrelas, da água, da comida, por onde a gente vai passar durante toda a vida da gente, porque como eu acabei de dizer, tudo tem dono [...] (Entrevista com Margarida, Comunidade Pirarara Poço, 2017)
Maria, mulher Desana, do clã Yu nirã, hoje moradora de Acará Poço e que é da mesma geração que Margarida, portanto moça de colégio, ao narrar sua primeira menstruação, que ocorreu em casa, ressalta a autoridade do pai e expressa a sensação de confinamento e imobilidade da moça em reclusão, com as expressões “ser guardada”, “ser/estar presa”, “estar sentada”, “estar cansada”, “paciência”:
No dia da primeira menstruação, eu falei para minha mãe. Ela foi falar com meu pai, que me prendeu logo num quarto separado. Aí ele me deixou parece que quatro dias sem banhar. Depois que foi benzido tudo ele mandou banhar. Entregou para minha mãe esse breu [...]. Foi xamanismo de proteção [wetiro] que ele fez, o meu pai. Aí ele me falou, “olha minha filha tu tens que guardar seu corpo, não pode comer nem assado, peixe assado, cará assado, frito e comida quente, tem que esperar depois que esfriar bem, aí tu comes. Também quando tu for banhar tu não vês em cima para o Sol. Senão tu vais pegar doença. Vai lá cai na água rápido, banha, tem as coisas para lavar, rapidinho tu lava e sai logo. Para casa.” Quando eu fiquei menstruada pela primeira vez não foi assim muito sangue, no primeiro dia, só no segundo. Eu fiquei só sentada, ai, cansada... Eu estava já presa [...] nem podia banhar [...] não tenho paciência, ai minha filha tem que ter paciência. (Entrevista com Maria, Comunidade Acará Poço, 2017).
Maria refere-se ao banho como momento de saída da situação de confinamento e ao mesmo tempo de muito cuidado para a moça e os que convivem com ela:
Minha mãe me conduziu pelo caminho até o porto espalhando breu, com aquele abano. A moça tem que banhar depois de todos os moradores. Depois que as pessoas banharam, que ela nos dá banho. Porque se a pessoa menstruada banhou, e logo depois alguém já vai descendo o porto para banhar, essa pessoa pega doença do chefe [duhtigu, lit. aquele que manda] do gente-peixe. Ele fica esperando bravo, para atirar com a flecha dele. Por isso que o benzedor não deixa banhar na mesma hora. Depois de banho, antes de a gente comer, tem que mastigar pimenta e aí a gente cospe e passa tudinho no corpo da gente. Essa é proteção para não ter aquela ferida braba. Quem causa isso é o peixe que faltou no benzimento, animais, não sei quantos peixes que a gente vai comendo, o conhecedor às vezes esquece de mencionar. (Entrevista com Maria, Comunidade Acará Poço, 2017)
Ao comparar sua menarca com a de mulheres mais antigas, do “tempo das nossas avós,” Maria reforça a memória das mais velhas, ao afirmar que a moça ficava reclusa “em um espaço afastado, na beira do campo tecendo tucum”, sob os cuidados somente de mulheres. Oscarina, sua prima-irmã e cunhada, afirma ter aprendido com sua mãe na reclusão a confeccionar o puçá, artefato de pesca usado pelas mulheres para pegar peixinhos e camarões, e explica que no “tempo das avós”, as moças aprendiam a tessitura de tornozeleiras de tucum utilizadas por dançarinos nas cerimônias.
Essas memórias remetem ao argumento de Hugh-Jones (2009), sobre a relação entre a construção de coisas e a construção de si entre grupos Tukano Orientais. De acordo com o autor, na reclusão masculina e feminina na puberdade, moços/moças, são treinados para confeccionar, respectivamente, cestarias e cerâmica, e esse processo de aprendizagem é “[...] tão moral, intelectual, e espiritual, quanto é técnico, pois sentar-se parado e fazer coisas são formas de meditação” (HUGH-JONES, 2009, p. 48-49).
Na continuidade desse argumento ressalta que os regimes corporais que envolvem a iniciação e a primeira menstruação “são processos de transformação em que o corpo é treinado para fazer coisas bonitas e ele mesmo torna-se um objeto de beleza.” (HUGH-JONES, 2009, p. 49). Para minhas interlocutoras, além da concentração e de habilidades manuais, no “tempo das avós” a menarca era o momento para se iniciar os cuidados com a pele, através da aspiração de pimenta. Na memória de Oscarina, as moças “ficavam restritas a um cercado durante um mês, aspirando pimenta para tornar a pele limpa e bonita”, o que, de acordo com Catarina Pedrosa, garantia que a pele estaria pronta para ser pintada com carajuru durante as festas. (OLIVEIRA; Patrícia MASSA, 2016).
Outro ponto realçado por Maria é que na reclusão a moça estava situada a uma distância necessária do xamã, de modo a não “atrapalhar seus ouvidos e apenas quando o fluxo acabava era permitido à moça retornar para a maloca, onde ficava em um quarto separado, sem comer junto com os demais”. Essa afirmação tem a ver com a noção de que o ouvido é um órgão relacionado ao pensamento (tuoñase, literalmente ouvir/ver) (MAHECHA, 2004; OLIVEIRA, 2016). O cheiro do sangue sentido no olfato afeta diretamente a audição, que por sua vez está relacionada à capacidade de pensar/concentrar/memorizar. No caso de homens xamãs, a proximidade do sangue afeta a memorização e o poder de cura xamânica (para o caso Makuna, ver Kaj ÅRHEM et al., 2004, apudBELAUNDE, 2005, p. 134-135).
Portanto, a atitude de permanecer separada e sentada, revela uma ‘cosmopraxis’ que entrelaça variados significados: a moça deve estar afastada e imóvel porque está desenvolvendo habilidades manuais e concentração; começa a ter noção do cuidado de si; está em um estado de maior vulnerabilidade aos ataques dos gente-peixe, e sua mobilidade poderia colocar a sua saúde e a dos outros moradores em risco; o odor do seu sangue afeta diretamente o poder do pensamento dos xamãs.
Mas, além disso, a separação em um local específico e o ato de permanecer sentada, está relacionado diretamente a uma preocupação em torno do manejo do sangue, ou seja, a um modo específico de lidar com este fluido corporal. Maria articula o contraste entre dois tempos, o “tempo das avós” e o “tempo dos brancos”, com a diferença entre modos de tratamento do fluxo menstrual e a ideia de imobilidade e mobilidade:
A cunhada da minha mãe me contou que antigamente quando as avós não vestiam roupas, nem calcinhas, nem panos, as moças em menarca ficavam sentadas na primeira menstruação, dentro do pari. Peneiravam e jogavam cinzas no chão, colocavam o tecido batido feito de entrecasca de tururi8 sobre estas cinzas e então sentavam. Essas moças não andavam para lá e para cá assim rodeando não [...] Ficavam num só lugar. Mamãe fazia assim [...] agora não, é “tempo dos brancos”, tem algumas que colocam absorvente, tem algumas que colocam pano. Mas ninguém percebe a menstruação de uma mulher. Parece que não está menstruando. (Entrevista com Maria, Comunidade Acará Poço, 2017)
Meus interlocutores e interlocutoras comentam que atualmente moças/mulheres ficam doentes porque “andam por aí como se fossem homens; as pessoas nem ficam sabendo. Não fazem resguardo de três dias, como era feito antes. ‘Vão à roça’; passam por ‘lugares sagrados’; os ‘gente-peixe’ flecham”.
Nesse sentido, é interessante contrastar os relatos de Oscarina, que sublinha o fato de que na sua experiência, assim como na experiência de suas filhas, a separação continuou sendo imprescindível, embora em novos moldes. Em ambos os casos, a mãe é uma ‘vigia’, que está sempre percebendo a aparência das filhas para identificar a chegada da primeira e das demais menstruações. A responsabilidade da filha é contar para a mãe logo que menstrue, mas é comum que a moça demonstre um sentimento de espanto e vergonha e esconda, adiando a condição de ser separada/presa.
Oscarina, moça de colégio, que teve a segunda menstruação na comunidade, enquanto filha, esconde da mãe sua condição de moça menstruada:
Eu tinha ido passear com a mãe em Taracua Igarapé, perto da comadre Hupda (Nadahup). Ao chegar lá, entramos na casa, o caminho foi longo, por um igapó. Quando fui fazer xixi no mato vi que saiu sangue, estava menstruada. Voltei e não contei para ninguém. Eles tinham tinguijado aracu, comi. Pupunha, também comi. Chegando em casa a minha mãe disse para eu tomar banho, eu disse que estava com frio. Me pediu para esquentar quinhampira (caldo de pimenta com peixe), eu disse que ia cuidar do irmão. Dormi, acordei, a minha mãe pediu para eu preparar mingau. Eu não fui e pedi para a minha irmã. A minha irmã perguntou se eu estava doente. Eu disse que fiquei menstruada na madrugada. Pedi para ela contar para a mãe. Na época a mãe sempre chorava porque eles não tinham quem benzer e ela tinha medo dos conhecedores. Então ela contou para o marido e mandou ele preparar cigarro para pedir para um conhecedor benzer. Quem benzeu foi o pai do Jovino (tukano, do clã Ñahuri porã). A minha mãe perguntou quando eu fiquei menstruada, eu menti que foi na madrugada, mas a mãe já sabia. O benzedor disse que na segunda vez não tinha que fazer tanto resguardo, mas me mandou ficar só dentro de casa e nos arredores. Como eu já frequentava a escola, fui depois de três dias. Depois de um mês surgiu uma ferida brava [kamiro buhkuro], por causa do peixe e da pupunha. (Entrevista com Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
Em seguida Oscarina afirma que suas filhas, ainda hoje em dia, são “separadas” na primeira menstruação: “ficam um mês sem comer junto na mesma panela, comendo comida que foi preparada separada e com pratos e talheres separados, para não prejudicar o ouvido”, ou seja, seu pensamento e aprendizagem. Algum tempo após começar a menstruar, Oscarina se casou com um homem Tukano, do clã Ñahuri porã, com o qual teve quatro filhas. Seu esposo, além de realizar procedimentos xamânicos para sua própria família, tem se tornado referência como benzedor de seu clã. Esse ponto influencia no cuidado que o casal dedica à menstruação de suas filhas e o grau de exigência que possuem em relação à atitude delas, pois o odor do sangue feminino menstrual ou do parto, atinge o ouvido do xamã, que, conforme vimos, é fundamental para a memorização e poder das encantações xamânicas.
Ao narrar a primeira menstruação de uma das filhas, que é estudante em uma escola indígena de uma comunidade vizinha, Oscarina se revela, assim como sua mãe, vigilante. Percebeu que a filha estava escondendo a primeira menstruação a partir de uma observação aguçada da aparência e do seu comportamento e do diálogo interrogatório. Mais uma vez aparece a autoridade do pai, cujo fato de ser xamã intensifica a tensão quanto a necessidade da filha menstruada ficar “separada”:
Mas essa aqui, aconteceu assim. Eu vi que ela estava tendo a primeira menstruação. Ela me segredou, mas eu não posso me enganar. Ela estava ali nesse quarto. Aí eu perguntei “Filha, por quê tu não foste comer, por que tu estás triste? Eu estou vendo na tua cara, tu não és assim”. “Não, mãe, eu estou assim, só estudando, só escrevendo”. Não. Ela segredou, segredou. Chegou meio dia. Aí eu cozinhei feijão, arroz, macarrão. Na hora do almoço eu perguntei. “É verdade que tu estás tendo primeira menstruação?”. “Não, mãe”. Então eu disse “Eu não fiz uma coisa dessa para minha mãe. Desde que eu tive a primeira menstruação eu desci da minha rede, eu fui perto da minha mãe, para avisar logo para ela mandar benzer. Se tu não me avisar, tu vais durante toda tua vida sentir dor de cabeça, dor de corpo, dor de braço”, eu falei. Eu já percebi que ela estava assim, eu sempre percebo quem é menstruada, eu já sei, o jeito dela. Eu percebo na cara, ela fica diferente. Fica com medo. Em todas, por isso que eu sempre pergunto, “Você está menstruando?”. Se tu menstruar, tu não podes ficar junto com a gente, tu pode ficar separado. Porque o pai dela, sempre me ralha. “Tu não orientas elas” [...] Ela ficou em cima dessa cama só escrevendo. “Então se tu não me contar, vamos fazer assim” [...] “Mãe, é assim?” ela falou; “eu não sei”. Ela é menor de idade ainda. Eu vi que sangue estava escorrendo. “Olha só, filha, tu já pegaste a praga do sol, do gente-peixe. Ontem tu já estava, pelo que eu vi. Tu que vai sentir dores durante toda a tua vida. Tu vais ver.” Aí ela chorou. “Fica aqui mesmo, tu não podes almoçar com a gente, fica de jejum”. (Entrevista com Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
Este momento envolve grande dedicação dos pais e alto grau de emotividade. Neste caso, o pai/xamã fica nervoso ao saber que a filha menstruou com pouca idade, interpretando como um “mau agouro”. É tomado pela raiva ao saber que a filha não avisou, mas a partir das memórias afetivas dos cuidados da filha para com ele - ela costumava oferecê-lo açaí - o pai aceita realizar os procedimentos xamânicos encomendados pela mãe.
Os cuidados da mãe elencados por Oscarina são complementares e fundamentais: avisa o esposo/xamã que a filha menstruou, prepara cigarro, breu, sabão do mato, pimenta assada para a realização dos benzimentos de proteção, banho e alimentação, “manda benzer”. Prepara alimentos próprios para a dieta da filha, como o mingau frio. Aconselha sobre o tipo de alimento que não poderia consumir e as consequências de tal consumo para sua saúde - a ingestão de carne de caça (paca, cutia) e peixes grandes (tucunaré e piraíba) causaria dor de barriga e diarreia, de frituras e moqueado, dor de cabeça e mais, afetaria a audição, sentido ligado ao aprendizado e memória, causando algo semelhante a um ‘estrago’, encantação xamânica prejudicial. Aconselha a moça a evitar o fogo e a cozinhar, pois sua comida poderia prejudicar a saúde das outras pessoas. Orienta os outros moradores do sítio a tomarem banho antes da moça menstruada. Conduz a moça no caminho da casa ao porto levando breu em uma pá [que hoje pode substituir o abano], junto a folhas para “esfumaçar”, joga breu no porto, orienta sobre a forma correta de banhar - manda mergulhar, pegar o sabão, passar na cabeça e no corpo inteiro e depois “manda” lavar roupas com rapidez e sair sem olhar o sol.
Oscarina afirma que a evitação em olhar o sol está relacionada a noção de que a primeira menstruação seria resultado da relação sexual que a moça manteria em sonho com um dos irmãos Sol/Lua (Umukhori Muhĩpu, astro do dia, Ñamiri Muhῖpu, astro da noite). A frequência mensal da menstruação é considerada incomum e atribuída à realização frequente desses intercursos oníricos:
Mamãe sempre falava assim, esse Rafael também. Esse sol que faz a primeira relação com a mulher, para toda mulher. Não é que estamos menstruando, é o Sol que está ‘descabaçando’ a gente. No sono, no sonho, ele é pessoa invisível. Se a gente sonha tendo relação com homem, não é. É o sol, é a lua. Sol de dia, é o sol maior, irmão dele. Esse sol, lua de noite, é irmão menor. Assim que os conhecedores sempre falavam. São iguais, são dois. O sol do dia é mais forte. Os dois fazem relação com a mulher. A gente mulher fala assim, para mandar benzer: “Minha filha teve primeira menstruação”. Em tukano, os velhos dizem: ‘Muhipu iñaanuwee atikore’. ‘Foi fazer coisas feias com o Sol/Lua’. Os velhos já sabem, se a gente fica menstruada todo mês, “Porque tu gostas de fazer relação com o sol”, ele fala. É o sol que faz isso. Isso para mim não é real. Mas sei que os homens sempre falam para todas as mulheres que o primeiro que “tira cabaço” é o sol e a lua, é assim a nossa vida da mulher. Para os indígenas. Porque ele diz assim, que o Sol faz a praga dele. De noite a mesma coisa. Como Maria diz, ninguém pode ver em cima. Quando vai banhar, não pode olhar nada, a gente vai só caminhando, rapidinho, cai na água, lava as coisas. Aí não acontece nada, quando a gente vai ter menstruação. (Entrevista com Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
De acordo com Oscarina, seu esposo deixou de fazer o benzimento para que suas últimas filhas não menstruem cedo, devido a postura das novas gerações frente às práticas xamânicas:
Quem cuida bem das suas filhas tem que fazer uma proteção para não menstruar muito cedo. Nesses dias essas minhas filhas menstruaram com 13 anos. Sem proteção acontece isso. Quem tem filha tem que cuidar, se sonhar alguma coisa ruim, tem que fazer proteção. Para as primeiras filhas o senhor Rafael fazia proteção. As outras não querem acreditar no senhor Rafael, por isso ele ficou bravo e não fez proteção. Assim que elas foram descabaçadas [pelo Sol/Lua, ou seja menstruaram] cedo, ele falou “Essas que estão padecendo?” Muito. (Entrevista com Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
Minhas interlocutoras consideram comum que haja um longo intervalo entre a primeira menstruação e a segunda, e que a moça tenha um fluxo leve. O casamento possibilita a realização constante de práticas sexuais com um mesmo parceiro, o que seria um regulador da frequência e da intensidade do fluxo menstrual:
Na primeira menstruação e da segunda menstruação, eu comprei absorventes para ela [...] Agora já acabaram. Eu contei para minha filha naquele dia, depois da primeira menstruação, eu nunca menstruei, menstruei só uma vez no mês de junho, na minha calcinha só uma ‘pisadinha’ (fluxo fraco) como mamãe dizia. Quando eu fiquei com o senhor Rafael aí que eu comecei a menstruar normal, três dias só. Mas durava, esse mês, esse mês, esse mês, depois de três meses eu sempre menstruava. Não sei, se o meu útero estava ruim [...]. Essa minha filha não [...] todo mês, suja. Cheiro ruim também. Para quem não menstrua a gente já pensa ‘essa aí está menstruada’. Dá cheiro. Rafael já sente [...] (Entrevista com Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
Maria, conta sobre o cuidado vigilante de seu esposo, tio paterno das filhas de Oscarina, ao observar o comportamento inadequado das sobrinhas, no banho durante a menstruação, que seria a causa de elas menstruarem mensalmente:
Porque é como o tio disse para elas, porque quando fica com menstruação ela vai banhar, fica sentada, aí aquele ‘gente-peixe’ vai chegando perto, rodeia, dá doença. “Porque um pajé falou para mim, que mulheres não podem fazer assim, mulheres quando estão com menstruação no primeiro dia, corre rapidinho, cai na água e sai logo. Elas não, porque eu estou vendo, por isso que elas estão ficando com dor de cabeça, dor de braço”. Porque ele vê o que elas fazem, a mãe fica dizendo que elas ficam menstruadas por mês [...] (Entrevista com Maria, Comunidade Acará Poço, 2017)
Estas últimas narrativas revelam um desinteresse das moças em cumprir abstinências e levar a sério os benzimentos e, ao mesmo tempo, a decisão do benzedor em não realizar mais a proteção, como resposta a esse desinteresse.9 Mesmo com todas estas transformações, há uma preocupação de mulheres e homens com a vida e a saúde das moças. O engajamento destes últimos nos cuidados com a menstruação será objeto do tópico a seguir.
Sangue, diferença e responsabilidade
Oscarina se refere aos cuidados que a moça deve tomar durante a menstruação como uma “lei do pai”. Cabe às mulheres, orientar as filhas, que devem ficar de abstinência na menarca, mas tem autonomia de “obedecer” ou não nas demais menstruações. A não obediência, trará consequências a saúde da própria moça/mulher, como dores no corpo e problemas no parto, relacionados aos ataques dos gente-peixe. Mas o que é visto pelas mulheres como autoridade masculina, é sentido pelos homens como uma grande responsabilidade. Se os pais ou outros homens do clã patrilinear têm o poder de definir as ‘regras do jogo’, ou melhor os cuidados a serem comunicados pelas mulheres e efetivados pelas moças, a eles cabe também a importante tarefa de efetivar as encantações xamânicas na primeira menstruação.
Ao padecer de uma doença diagnosticada pelos médicos como câncer de pulmão, uma grande preocupação do velho Aprígio, reconhecido benzedor, era de não morrer sem antes realizar o benzimento de primeira menstruação de sua neta. Seu Joanico, deixou antes de morrer, cigarros e carajuru benzidos para sua bisneta. Jovino, xamã do clã Tukano Ñahuri porã, afirma que ao perceber que as meninas estavam se tornando púberes as mães costumavam ficar atentas e lhe perguntavam se estavam “naquela situação” ou “envelhecendo”, pedindo-lhes que contassem abertamente para que elas pudessem solicitar a realização do benzimento, pedido que os benzedores atendiam prontamente.
Essa responsabilidade advém da percepção de uma diferença de gênero, que tem a ver com a condição de sangramento involuntário da mulher - na menstruação e no parto - que a coloca numa posição ambígua, de ser criativo e destrutivo, perceptível no modo como meu interlocutor se refere à condição feminina em momentos distintos:
Como dizia meu pai, as mulheres nos dão muito trabalho por não serem como nós homens. Quantos nascem e crescem sem maiores cuidados com benzimentos? Com a primeira menstruação, as mulheres começam a se introduzir nas coisas más da vida.
‘As mulheres são genitoras importantes’, dizia meu pai, escuta bem, ‘elas são boas nunca vai esquecer disso’. Com essa motivação principiei esses conhecimentos. Já dei banho de menarca em várias mulheres e tenho certeza que deu tudo certo, elas vivem bem, crescem bem da vida e moram muitos anos no seio familiar. (Entrevista com Jovino, Comunidade Cunuri, 2013. Tradução Dagoberto Azevedo)
Conforme vimos, na menstruação, o odor de sangue é um fator de vulnerabilidade para a moça/mulher, mas também para aqueles que com ela convivem e em especial aos homens xamãs, devido à vulnerabilidade dos ouvidos, que estão relacionados à aprendizagem e efetivação dos benzimentos.
A diferença entre homens e mulheres gera uma responsabilidade masculina - enquanto a mulher menstrua, o homem benze -, da qual o homem vai tomando consciência na medida em que as suas filhas crescem. Ou ele procura o pai ou outro homem da linhagem paterna, para executar e aprender esses benzimentos, ou ele e sua esposa terão que solicitar que outro homem o faça, o que o fará “passar como mulher”. Esta responsabilidade em relação às moças/mulheres é um importante componente da construção da masculinidade:
Quando a gente passa a ter filhos aparecem muitas coisas para serem feitas com benzimentos, principalmente para as mulheres. Sempre há uma moça na primeira menstruação ou mulheres menstruadas para serem benzidas, protegidas, para realizarem seus trabalhos cotidianos. Quanto aos homens, eles não nos dão tanto trabalho. As mulheres não são como homens, e os homens não são como mulheres. Elas não escutam benzimentos, mas ouvem conselhos. Os benzimentos são apropriados e conhecidos somente pelos homens. Meu pai dizia: ‘você não é mulher, mas é homem para pensar nas benignidades da vida’. Todos os homens se interessam por benzimentos. Quando se tornam velhos são procurados. Benzimentos são bons, para serem vistos e considerados. Quando se é solicitado, não se nega. Temos filhas e, como é que a gente vai benzer caso nossa filha chegue a primeira menstruação sem termos ouvido esses conhecimentos? Somente depois de termos ouvido dá-se conta de fazer benzimento da primeira menstruação. Caso contrário você será alvo de piada. (Entrevista com Jovino, Comunidade Cunuri, 2013. Tradução Dagoberto Azevedo)
A noção de que o sangue menstrual é um fator chave na diferenciação entre homens e mulheres entre os Tukano Orientais e de complementariedade entre a responsabilidade ritual dos benzedores homens e a colaboração ritual de mulheres em idade fértil, é um ponto central do argumento de Belaunde (2005, p. 135), inspirada na etnografia de Mahecha (2004), sobre o grupo Tukano Oriental Makuna. Nas palavras de Jovino, os homens são responsáveis por cuidar de suas filhas, benzendo-as corretamente durante a primeira menstruação. A partir do casamento, quem deve cuidar das mulheres e benzê-las é o sogro e posteriormente o marido. Dessa forma, um homem se sente incomodado ao ter de benzer uma filha que já está casada, se ela tiver sogro vivo, porque dá a entender que seu sogro não tem conhecimentos para benzê-la e que o casamento nem deveria ter sido consumado.
Para Jovino a moça menstruada é tornada, através de benzimento, ser/vida de Amo. Entre os Tukano, a palavra Amo tem duplo sentido: é um verbo que significa ter a primeira menstruação10 (Henri RAMIREZ, 1997, p. 6), e o nome de uma importante mulher da mitologia Tukano, Amo ou Amokoho (RAMIREZ, 1997, p. 7), que é a primeira mulher a ser criada pelo Avô do Universo - Amo ou Yepario - designada para trabalhar em direção ao pôr do sol (ÑAHURI; KUMARÕ, 2003, p. 35). A Maloca de Amo fica na fonte do rio Uaupés, na Colômbia - lugar para onde as aves vão todos os anos no período de junho e julho para visitar sua avó e trocar as folhas de caraná do telhado de sua Maloca. Amo possui animais peçonhentos em seu monte de vênus (ÑAHURI; KUMARÕ, 2003, p. 101-106). Tais imagens remetem à ideia de troca de pele, de renovação e à menstruação (HUGH-JONES, S. 2009, p. 46).
De acordo com Jovino,11 quando a moça está em reclusão em um compartimento feito com paris, o xamã realiza duas ações, uma delas é a já mencionada proteção contra o calor do sol e contra os ataques da gente-peixe. A outra tem a ver com a própria construção/composição do corpo da mulher. Nesse sentido, o xamã compõe o corpo feminino para a criação de manivas (OLIVEIRA, no prelo),12 e para que possa procriar e gerar filhos, esta última através da incorporação da oferta do banco de Amo. A incorporação xamânica de tipos específicos de banco de pensamento (MAHECHA, 2004 para os Makuna), ou, bancos de vida (kahtise kumurõ), de acordo com meus interlocutores, ocorre na nominação e na puberdade e é um procedimento fundamental que diz respeito a constituição do ser, do corpo, dos pensamentos e das disposições que a pessoa terá em sua vida, que são diferenciadas por gênero (MAHECHA, 2004; HUGH-JONES, 2009; OLIVEIRA, 2016, no prelo).
Na menarca, ao atribuir o banco de Amo, o xamã nomeia a moça de ‘Gente Amo’, e atribui a ela os poderes transformativos de Amo, tornando sua vida (ko kahtise), vida de Amo, e incorporando na moça um pensamento sobre e uma disposição [corporal] para gerar filhos:
A moça é chamada no benzimento de Amô mahsõ (gente/feminino Amo) e Amotiro koho (aquela que está na casa de Amo), Amo diro mahsõ (gente/feminino parte da carne de amo), Amomori mahsó (gente/feminino em estado de Amo); Amo kumukari mahsõ, (gente/ feminino assentada nos bancos de pensamento de Amo). O kumu benze com cigarro, protegendo e escondendo a vida dela do sol e do gente-peixe, atrás de vários paris invisíveis e a deixa em resguardo atrás do compartimento de paris de menarca, onde ela fica até o final da menstruação, inalando pimenta e pintada com carajuru benzidos. Arruma [de ahpose] seu ventre. Torna a vida dela [ko kahtise], vida de Gente Amo. A ela é oferecido xamanicamente o banco de Amo. (Entrevista com Jovino, Comunidade Cunuri, 2013. Tradução Dagoberto Azevedo)
Jovino me explicava que existem variações desta fórmula de benzimento mas que ouviu atentamente a versão utilizada por seu pai durante a menarca de sua filha. Tal versão foi “testada”13 - seu pai e ele constataram por experiência -, que as moças assim benzidas desenvolviam uma boa vida, boa saúde, gravidez e partos tranquilos.
A meticulosidade que envolve a transmissão e a execução desse procedimento xamânico se deve ao fato de ele dizer respeito à definição da “vida da mulher”, e se realizado de forma incorreta pode se converter em uma espécie de veneno ou de feitiço e “‘estragar’ a sua vida”. Tal erro de cálculo na gestão de potências xamânicas foi utilizado como explicação por algumas interlocutoras para os comportamentos considerados estranhos de uma mulher Desana que não havia casado e não tinha filhos, nunca se afastava de casa nem se envolvia em atividades comunitárias: realizava apenas trabalhos de cozinha e nos arredores de casa. Seu pai havia benzido na sua primeira menstruação para que ela demorasse para casar, adiando assim seu afastamento da família, de modo que ela pudesse ficar mais tempo auxiliando sua mãe nos afazeres de casa. Esse procedimento é relativamente comum de ser realizado pelo menos em relação a uma das filhas de um casal, porém nesse caso ele havia “errado a mão”, destinando-a uma vida que eu descreveria como autoconfinamento. O contrário também pode ser realizado: mulheres que são benzidas de modo a tornarem-se, andarilhas que, sem companheiros fixos, nunca se assentam em um lar ou comunidade.
As primas-irmãs Maria (M) e Oscarina (O), relacionam o fato da primeira ter menstruado tarde e a longa duração do intervalo entre a sua menarca e a segunda menstruação com o longo tempo que levou para se casar, e atribuem essas ocorrências a um benzimento feito pelo velho tio:
M: Minha primeira menstruação foi só com 16 anos. Não sei se foi o meu tio velho que fez assim [via benzimento]. Antigamente a gente não usava esse absorvente, tinha pano que as freiras preparavam para essas coisas e deram para mim um monte. Fiquei achando graça, “Para que isso?” Aí me respondeu a freira, “Para isso mesmo”. “Mas eu não menstruei”, eu disse. “Mas tu és formada já moça”. Com 14, 15, elas perguntavam. Quando eu voltei em casa, com meu pai, que eu menstruei. Segunda vez eu menstruei lá no colégio, lá que eu avisei para eles, depois de um ano. Os velhos dizem como é para as moças ficarem assim, sentadas, perto da mãe [...] Demorado [..] Ela não se lembra de se casar. O: Quem vai casar cedo, menstrua, depois de uma semana, depois de duas semanas, ela vai casar cedo, rápido [...] Quem vai demorar de casar, demora muito, um ano ou mais [...] M: Depois de três ou quatro meses [...] foi assim para mim [...]Tu nem pensa de casar ainda, fica só namorando, deixa e fica sem marido [...] depois de primeira menstruação, demora para segunda menstruação, isso que estava dando sinal, de que não sei com quantos anos que ela vai casar. Por isso ela ficava sentada perto da mãe, trabalhando, porque tem algumas mulheres que ficam perto da mãe e do pai, de idade maior. Tempo demorado, ela fica cuidando do pai. Vai para roça, ajudando, sentada, trabalhando, fazendo e tomando caxiri. (Entrevista com Maria e Oscarina, Comunidade Acará Poço, 2017)
Nesse caso, a moça se tornou ‘andarilha’. Foi trabalhar com as freiras na Missão e depois seguiu para Manaus, onde trabalhou em um colégio para pobres e órfãos. Nesta época, “não pensava em homem, casamento, nem em voltar para casa”. Retornou apenas quando sua mãe adoeceu, mas ainda pensava em voltar para Manaus. Com a morte da mãe, foi ‘presa’ por seu irmão que, quando ela já tinha 25 anos, negociou com sua sogra o casamento dela com o filho, nove anos mais novo. Maria relata que quando mais jovem não tinha um “pensamento para casar”, e possuía aversão aos homens, porque, conforme explicou seu tio-avô materno, os velhos haviam feito um benzimento que a levou a sentir repulsão pelos homens e se tornar repulsiva a eles. Foi só depois de seu tio realizar benzimentos para cortar esse benzimento e outro para torná-la atrativa que ela começou a ‘brincar’ com os homens e se casou.
Durante e a partir da menarca, as moças são consideradas suscetíveis de serem atingidas por “estragos” intencionais realizados por especialistas xamânicos, encomendados por sogras invejosas. Quando as mães “sovinam” suas filhas para os filhos de outras mulheres, estas procuram algum xamã que faça um “estrago”, mas poucos são aqueles que lidam com tais malefícios. Se as moças não agirem de acordo com os conselhos de suas avós e mães durante a menarca, ou seja, não tomarem os devidos cuidados, podem desenvolver Amotuuase (RAMIREZ, 1997, p. 6), adoecer, e quando casarem, desenvolver problemas na gravidez e no parto.
A importância de se ouvir os conselhos para evitar ser atingida por “estragos” ou por ataques de gente-peixe nos leva de volta a um detalhe na narrativa de Jovino, que reproduzo mais uma vez aqui: “As mulheres não são como homens, e os homens não são como mulheres. Elas não escutam benzimentos, mas ouvem conselhos”.
Tal ponto remete a uma discussão na literatura Tukano Oriental em relação à diferenciação de gênero quanto ao acesso ao poder xamânico e o direito à palavra. Hugh-Jones, (2011 [1979], p. 181-182) explica como na mitologia Barasana, a recuperação por parte dos homens das flautas jurupari roubadas pelas mulheres, estaria relacionada a origem da menstruação e a perda progressiva de poder xamânico da demiurga Romi Kumu, que corresponde, no caso Tukano, a Amo. Janet Chernela (1997, p. 90) afirma que entre os Wanano, antigamente as mulheres tinham inteligência, porém um homem disfarçado de mulher roubou seus ornamentos de cabeça, retirando delas formas de controle e de autoridade, como o direito de falar e de serem ouvidas. Os interlocutores Makuna de Mahecha (2004, apudBELAUNDE, 2005, p. 130-131) apresentam uma elaboração narrativa semelhante à apresentada por Hugh-Jones, C., e a autora acrescenta que os homens costumam afirmar que as mulheres de idade fértil não teriam “pensamento”, ou seja, nem capacidade nem responsabilidade de ‘curar’ (benzer) pessoas com palavras.
Nas narrativas dos interlocutores, percebemos que se as mulheres não efetuam as palavras de ‘benzimento’, parte do sucesso da menarca depende da responsabilidade feminina em proferir e ouvir palavras de aviso/conselho [werese]: a mãe avisa ao xamã a ocorrência da menarca entre mãe e filha, manda fazer o benzimento e prepara as substancias que serão utilizadas pelo xamã, mães/avós aconselham suas filhas/netas, que por sua vez precisam escutar, memorizar e colocar em prática tais conselhos. Os comportamentos que a moça apresentar a partir de agora influenciarão diretamente na sua saúde, gravidez, parto e na saúde do xamã e de outras as pessoas ao seu redor.
Mas assim como homens podem proferir conselhos, alguns tipos de encantações xamânicas são apropriadas pelas mulheres num momento de vida em que suas filhas começam a estar disponíveis para o casamento. Nesse sentido, Oscarina explica seu esforço para aprender com o sogro e o concunhado o benzimento para tornar a filha atrativa - linda como um rouxinol,14 como estratégia para ampliar sua possibilidade de escolha de cônjuge. Tal movimento aponta o agenciamento de mulheres sobre os corpos das filhas, mas também mudanças na forma de casamento - de parceiros negociados pelos pais segundo uma lógica de parentesco, para uma ampliação no espectro de escolha, que não está pautada em uma noção de indivíduo e amor romântico, mas nos conselhos da mãe sobre o perfil desejado, baseado em condições econômicas e sociais do pretendente e dos futuros sogros.
Considerações finais
Agências intergeracionais femininas e masculinas compõem este poderoso complexo xamanístico-reprodutivo (BELAUNDE, 2005) Tukano Oriental, que durante a menarca toma a seguinte forma: xamãs homens definem quais os cuidados devem ser efetivados e realizam benzimentos de proteção e composição do corpo das moças, mulheres mães/avós proferem palavras de conselho [werese] e efetuam procedimentos necessários para garantir a realização dos benzimentos [bahsese], moças devem ouvir/memorizar os conselhos e obedecê-los. Todas essas ações, que diferenciam e unem homens e mulheres em torno de responsabilidades complementares, são fatores essenciais na construção da masculinidade e da feminilidade entre povos Tukano Orientais. “O homem que não benze, anda procurando benzedor por aí, como uma mulher, a mulher fica como homem, quando anda por aí, durante a menstruação”. Em meio a tantas transformações relacionadas à vida escolar, nas comunidades e fora delas, ainda há tensão por parte das moças quando menstruam, por se sentirem responsáveis em avisar e a se submeterem a um certo isolamento social, e mães e xamãs se interessam em efetivar cuidados orientados para proteção das moças, sua fertilidade, bons casamentos, gravidez e partos. Descuidos nessa fase são utilizados como justificativas para quaisquer problemas nestes quesitos e outros danos que as mulheres venham a enfrentar em suas vidas.