Atualmente, as desigualdades raciais, de gênero e de classe, tanto no acesso aos serviços de saúde quanto na distribuição social do trabalho doméstico e do cuidado de crianças têm sido o foco de importantes pesquisas nos países latino-americanos, no Caribe e nos Estados Unidos. No Brasil, pesquisas importantes sobre o racismo na atenção pré-natal e na assistência ao parto complementam estudos similares nos Estados Unidos (Kelly HOFFMAN et al., 2016; Maria do Carmo LEAL et al., 2017). Tais estudos sinalizam que raça, gênero e classe definem como pessoas são atendidas no campo médico, em instituições públicas e privadas. No cenário do parto, pesquisas demonstraram que mulheres negras frequentam menos consultas de pré-natal, tendo maiores chances de nascimentos pós-termo, sofrendo formas de violência obstétrica, como ausência de acompanhante, manejos agressivos e menos anestesia durante os partos, além de peregrinação em busca de hospitais e maternidades. Por outro lado, nas regiões ribeirinhas e rurais, no Brasil contemporâneo, a atuação das parteiras faz-se fundamental nos cuidados das mulheres durante as gestações e nos partos, seja pela ausência e dificuldade de acesso aos serviços de saúde ofertados pelas instituições hospitalares, seja pelas práticas culturais tradicionais.
Este enfoque dos estudos contemporâneos envolvendo maternidade, partos e vidas reprodutivas, abordando diferenças de raça, gênero e classe nas experiências da gestação e do parto, tem uma longa história nas Américas, que está enraizada na instituição da escravidão. Embora nos estudos das sociedades caribenhas e estadunidenses haja agora um conjunto substancial de trabalhos sobre mulheres escravizadas, libertas e sobre gênero na escravidão, no Brasil, e mais amplamente na América Latina, pesquisadoras/es têm integrado aspectos relacionados ao corpo, à saúde, às vidas reprodutivas e à maternidade das mulheres africanas e descendentes mais recentemente (Renilda BARRETO, 2008; Camillia COWLING; Maria Helena MACHADO; Diana PATON; Emily WEST, 2017; Tânia PIMENTA, 2017; Cassia ROTH, 2020; Lorena TELLES, 2022; Marília ARIZA; Karoline Carula, 2022). Estudos pioneiros acerca das colônias inglesas no Caribe e nos Estados Unidos demonstraram que, desde o século XVII, as representações de viajantes europeus e de médicos contrastaram os corpos das mulheres africanas como supostamente vigorosas e insensíveis à dor no parto com a fragilidade da branca europeia. Essas representações estruturaram ideias acerca da pretensa habilidade de mulheres negras em realizar trabalhos pesados, também durante a gestação e após o parto, o que conduziu ao sistema dual de exploração das mulheres negras tanto como trabalhadoras e produtoras de riquezas quanto como mães e reprodutoras (Jeniffer MORGAN, 2004; Katherine PAUGH, 2017; Marie SCHWARTZ, 2006; Sasha TURNER, 2017). Apesar dessa conexão importante, poucos estudos historiográficos têm se dedicado ao entrecruzamento de raça, gênero, saúde e maternidade na história da escravidão e das sociedades no pós-abolição no mundo atlântico, quanto às conexões entre sociedades escravistas diferentes nas Américas e no Caribe.
Os artigos deste Dossiê consideram a relação das mulheres africanas e de suas descendentes com a saúde, a reprodução e a maternidade, tanto do ponto de vista das experiências de gravidez, parto, amamentação e cuidado infantil, quanto da perspectiva das políticas senhoriais e dos governos coloniais que tinham por objetivo administrar a população cativa nas sociedades escravistas, por meio da regulação dos corpos das mulheres escravizadas e de seu potencial reprodutivo. Assim, o Dossiê traz investigações acerca das conexões entre saúde, trabalho compulsório e torturas físicas na escravidão, gravidez, partos e criação de filhos nas sociedades escravistas nas Américas e no Caribe, formas de nascer e práticas de parteiras entre os séculos XVIII e XX. Desse modo, o Dossiê propõe fomentar o debate e a divulgação de estudos historiográficos inéditos sobre este campo de pesquisas, contribuindo para a compreensão dos discursos e práticas que mobilizaram e impactaram vivências do corpo, da saúde e das vidas reprodutivas de mulheres africanas e descendentes nas sociedades escravistas do mundo atlântico e nos períodos do pós-abolição, reconstituindo saberes e conexões socioculturais. Ao colocar em diálogo historiadores que trabalham com saúde, raça, gênero e maternidade no mundo atlântico, esse Dossiê oferece um painel ampliado das pesquisas e reflexões em curso acerca das mulheres africanas e descendentes cujas vidas foram atravessadas pela escravidão e por seu legado.
Os dois primeiros artigos desenvolvem reflexões sobre escravidão e gênero no Chile e na Argentina, contribuindo para a compreensão das condições de vida de mulheres negras escravizadas em relação às possibilidades de construção de laços maternos e às doenças que mais atingiam esse grupo. O artigo de Tamara Araya Fuentes aborda a escravidão urbana e doméstica em Santiago do Chile entre finais do século XVIII e início do século XIX. A partir da análise de um processo judicial, a autora aponta para a importância da construção de laços familiares entre mães e filhas escravizadas, por um lado, e para a valorização das mulheres escravizadas naquele contexto para a produção e reprodução da escravidão, por outro lado.
Claudia García, em seu texto, utiliza diferentes fontes documentais com o objetivo de analisar os fatores que colocavam a saúde de mulheres escravizadas em risco em Córdoba, Argentina, durante finais do Setecentos e começo do Oitocentos. A valorização das mulheres escravizadas por seu serviço doméstico não diminuía a exploração de seu trabalho, o que as exporia, junto com as condições de habitação e vestimentas e alimentação inadequadas, às doenças infectocontagiosas. A autora atenta, também, ao impacto das condições de saúde das mães escravizadas com respeito ao desenvolvimento de enfermidades de seus próprios filhos, demonstrando que levar a gravidez a termo compreendia um grande risco para as mulheres cativas, mais expostas a sofrerem problemas no parto, debilitadas por trabalhos esgotantes, maus-tratos, carências nutricionais e doenças infecciosas.
O artigo de Lorena Telles e Tânia Pimenta analisa as experiências e práticas do parto entre mulheres escravizadas, libertas e livres, africanas e descendentes, no contexto da escravidão urbana no Rio de Janeiro na primeira metade do século XIX. A partir de documentos da Fisicatura-mor, de anúncios de fuga publicados pela imprensa diária, teses de conclusão do curso de medicina, casos clínicos publicados em periódicos médicos e da literatura de viajantes europeus, as autoras identificam o perfil das parteiras tradicionais e analisam as experiências de escravizadas darem à luz, atentando para as sociabilidades entre as mulheres africanas e descendentes. No artigo, somos conduzidas/os aos mundos dos saberes e práticas de mulheres africanas nos partos, entre comadres, tias, mães e vizinhas, entre rituais e cultos aos espíritos dos ancestrais, uso de amuletos e cuidados dos bebês recém-nascidos.
Já o artigo de Maria Renilda Barreto e Walmir Pimentel nos conduz à história do parto e do partejar no litoral da Bahia, ao longo do século XX. Por meio da história oral, os autores analisam as memórias do parto da ilha de Matarandiba, sob uma perspectiva decolonial, atentando para as peculiaridades do nascimento, os atravessamentos de gênero e raça, o apagamento das tradições do parto e do partejar. Na Ilha, as parteiras eram pretas e aprendiam com pretas mais velhas que transmitiam os ritos de geração em geração. Contudo, a medicalização do parto e a expansão do neopentecostalismo, que negam as práticas de matrizes africanas e indígenas, são identificadas como movimentos que contribuem para esse apagamento. Entretanto, a preservação de uma cultura eminentemente feminina e afrodescendente do nascimento subsiste, enraizada em redes de solidariedade protagonizadas por vizinhas, mães, madrinhas, tias e pela parteira de confiança.
Apresentamos, portanto, um Dossiê que, ao abranger contextos culturais diversos e larga periodização, pretende divulgar estudos sobre o tema da escravidão, gênero, maternidade e saúde, além de instigar novas pesquisas, ampliando os debates sobre o tema. Boa leitura!