Introdução
O esporte enquanto fenômeno sociocultural mobiliza a construção de múltiplos significados e sentidos que são compartilhados e negociados pelos sujeitos. Nesse campo político de disputas são produzidos corpos generificados atravessados por relações de poder nas suas múltiplas práticas, discursos e saberes (Silvana GOELLNER, 2007b).
Neste estudo, consideramos o esporte enquanto um lugar de resistência e transformação das relações de gênero, evidenciando sua importância nas construções de empoderamento vivenciadas pelas mulheres nas diversas práticas corporais (Pierre BOURDIEU, 2002; GOELLNER; Paula BOTELHO-GOMES; Paula SILVA, 2012). Deste modo, contribuímos para fomentar este debate, destacando as contribuições dos estudos de gênero para o campo das práticas esportivas e de lazer.
A história de participação das mulheres no esporte foi marcada pela desigualdade de oportunidades e visibilidades (GOELLNER, 2005). No ciclismo, segundo Victor Andrade Melo e André Schetino (2009), as conquistas dos movimentos sociais, na luta pela superação das imposições a que as mulheres eram submetidas, foram determinantes para o crescente aumento da presença feminina nos espaços públicos. Entretanto, somente na segunda metade do século XIX foram encontrados registros, no cenário europeu, de mulheres ocupando os espaços públicos fazendo uso da bicicleta com fins de passeio e diversão. Inicialmente, o acesso era restrito às classes economicamente mais abastadas, por constituir um artefato de alto custo. Entretanto, à medida que o acesso foi ampliado, foram surgindo as primeiras competições femininas.
Melo e Schetino (2009) apontam que, no final do século XIX, o ciclismo se tornava muito popular na França e que tanto as provas de estrada quanto as de velódromos deixaram de ser uma prática apenas das classes, passando a ser praticadas por todas as camadas sociais. Os autores apontam que nos anos finais do século XIX houve até mesmo pioneiras atletas tentando construir uma carreira esportiva nos velódromos e estradas na França, Inglaterra, Itália e Alemanha. E que tais iniciativas foram retaliadas com a proibição da organização de competições femininas.
O hábito do ciclismo impactou positivamente as lutas femininas de diferentes formas. Este foi um dos responsáveis pelo fim do uso do espartilho, pois esta peça impossibilitava o ato de pedalar. Assim, conforme a prática foi se tornando mais usual, as mulheres não só o abandonaram como também passaram a utilizar outros tipos de vestimentas (MELO; SCHETINO, 2009).
Todavia, esta prática não foi admitida de forma consensual. Alguns médicos condenavam a prática por acreditar que esta causaria prejuízos físicos que atrapalhariam a gravidez e o parto e formas de excitação sexual devido ao atrito do selim das bicicletas, que poderia ser associado a uma forma de masturbação feminina (MELO; SCHETINO, 2009).
Podemos ver que o ciclismo dividiu opiniões. E que neste debate havia um reforço das construções simbólicas ao redor do pudor e da maternidade. Não surpreende que a importância do ciclismo tenha sido reconhecida por Maria Pognon, presidenta da Liga Francesa de Direitos da Mulher, que apontou que o ciclismo ajudava a “libertar o nosso sexo”.
No contexto brasileiro, os centros urbanos do país, principalmente o Rio de Janeiro e São Paulo, constituíram os primeiros locais de envolvimento das mulheres com o ciclismo. Assim como no cenário internacional, no Brasil havia poucas mulheres participando de competições, predominavam as práticas voltadas para o lazer. Este período foi marcado por diversas tensões e conflitos decorrentes das mudanças sociais mobilizadas pelas vestimentas utilizadas na prática da modalidade, bem como nos questionamentos aos padrões de feminilidade reproduzidos nos discursos de elegância e delicadeza (MELO; SCHETINO, 2009).
A partir dos anos 2000, influenciados por estas conquistas e mudanças sociais, surgiram os grupos de ciclismo formados por mulheres. Estes grupos se multiplicaram pelas cidades brasileiras, se organizando em diversas modalidades, desde o cicloturismo até as corridas.1 Dados reunidos pelo Grupo de Trabalho de Gênero2 a partir de uma pesquisa quantitativa sobre a situação das mulheres ciclistas revelaram as dificuldades vivenciadas no uso da bicicleta como transporte. A sensação de insegurança e o medo de compartilhar as vias, bem como o risco de colisão, queda ou atropelamento, figuraram como os principais desafios enfrentados pelas ciclistas.
Neste cenário de disputas e relações de poder3 vivenciado pelas mulheres na prática do ciclismo urbano, analisamos a construção do empoderamento em um grupo de ciclismo organizado por mulheres no Sertão Pernambucano. Neste sentido, o objetivo deste artigo foi investigar as diversas formas de significação do empoderamento operadas por mulheres em um grupo de ciclismo. Destacamos a ausência de estudos sobre o empoderamento de mulheres em atividades esportivas e de lazer nas bases de dados nacionais. Mesmo que o termo empoderamento seja frequentemente utilizado nos discursos dos movimentos e mídias sociais, este ainda não se configura como objeto de análise no âmbito acadêmico (Tássia de Souza CAVALCANTI, 2017).
Cavalcanti (2017) analisou a utilização do termo empoderamento na produção sobre as práticas esportivas e de lazer de mulheres e apontou que este termo não possui consenso sobre suas características e seus limites. Desta forma, é preciso compreendermos o empoderamento de maneira dinâmica, na medida em o poder circula. Logo, empoderar ou desempoderar é fruto de uma negociação no processo interativo.
Assim, a partir desta pesquisa, construímos algumas reflexões sobre os processos de empoderamento mobilizados pelas mulheres na prática do ciclismo urbano. Realizamos uma etnografia durante um ano por meio de observação participante, de entrevistas em profundidade e no acompanhamento diário das atividades, eventos e mídias sociais de um grupo de ciclismo liderado por mulheres, denominado Pedal Pink. Utilizamos como marco teórico para fundamentar nossas análises as perspectivas relacional e performática dos estudos de gênero (Joan SCOTT, 1995; Judith BUTLER, 2003; Berenice BENTO, 2011). E, considerando que as experiências de empoderamento são construídas nas/pelas relações, incluímos neste grupo os homens que participavam ativamente das atividades e eventos realizados.
Este texto foi organizado da seguinte maneira: Iniciamos descrevendo brevemente como foi realizada a etnografia neste grupo de ciclismo, nomeado aqui como Pedal Pink. Em seguida, apresentamos sua história a partir dos relatos das interlocutoras, destacando as dinâmicas próprias e recorrentes que serão analisadas nos demais tópicos: Agenciamentos nos espaços urbanos: pedais; Anjos e a performatividade de gênero, e, posteriormente, reunimos estes aspectos tecendo reflexões sobre as construções de empoderamento operadas no grupo e suas implicações na participação e permanência nesta prática corporal. Por último, apresentamos as considerações finais acerca dos processos de empoderamento vivenciados pelas mulheres na prática do ciclismo em grupo.
Etnografia no ciclismo urbano
Este trabalho é de natureza qualitativa. Utilizamos o método etnográfico que busca construir um conhecimento aprofundado da cultura investigada. Para Clifford Geertz (1989), a cultura é semiótica, ou seja, é constituída por significados compartilhados, e a partir da etnografia busca-se construir uma “ciência interpretativa à procura de significados” (GEERTZ, 1989, p. 15).
Assim, buscamos investigar as dinâmicas de empoderamento vivenciadas pelas integrantes de um grupo de ciclismo urbano organizado por mulheres, na região do Vale do São Francisco, especificamente na cidade de Petrolina. Analisamos as interações dos/as participantes do grupo na prática do ciclismo, bem como entre os demais grupos de ciclismo e em outras instâncias sociais (comerciantes, motoristas, pedestres, autoridades políticas) que compõem o cenário do ciclismo urbano na região.
A pesquisa de campo foi realizada ao longo de um ano, no período de janeiro a dezembro de 2016, no qual a primeira autora se inseriu no grupo e acompanhou a rotina diária dos/as participantes nas mídias sociais, nos pedais e eventos realizados pelo grupo. Foram utilizadas como técnicas de coleta de dados o diário de campo para registrar as observações, entrevistas semiestruturadas e um questionário sociodemográfico.
No grupo Pedal Pink havia grande rotatividade em relação ao número de participantes. O quantitativo sofria alterações diárias, devido ao fato de ocorrerem no espaço público e ser aberto a qualquer praticante. No grupo de WhatsApp criado desde o surgimento do Pedal Pink foram estabelecidos alguns critérios para a inclusão das participantes. Somente era permitida a entrada de mulheres que tivessem participado de pelo menos um pedal organizado pelo grupo. Nesse grupo virtual havia cerca de 90 mulheres no período de realização da pesquisa, ainda que esse número também fosse modificado constantemente pelas inclusões, remoções e saídas diárias. Apesar desse quantitativo, as participantes compareciam em menor número nos pedais e nos eventos organizados pelo grupo, variando em torno de 40 a 50 mulheres. Durante o acompanhamento, observamos que aproximadamente 20 homens participavam ativamente dos pedais e dos eventos organizados, ainda que não compartilhassem desse ambiente virtual.
Os dados obtidos a partir do questionário sociodemográfico on-line respondido por 47 das participantes do grupo no WhatsApp indicaram que a maioria das mulheres residia em Petrolina, ainda que frequentassem o grupo em menor número ciclistas da cidade vizinha de Juazeiro, na Bahia. A faixa etária das participantes transitou entre 18 a 55 anos. Da mesma forma, revelou-se o marcador social de escolaridade, no qual as praticantes se distribuíam entre as que possuíam desde o fundamental completo até aquelas com formação superior, nos níveis de especialização e mestrado. Entre as participantes, havia profissionais de diversas áreas e classes sociais, como administradora, operadora de caixa, médica e dona de casa. Havia ciclistas com renda acima de 10 salários mínimos e aquelas que possuíam renda familiar total de até um salário mínimo, ainda que as faixas de renda mais frequentes fossem as entre um a cinco salários mínimos.
Quanto à cor/raça, a maioria das ciclistas se autodeclarou como parda, seguida das brancas, pretas e amarelas. A orientação sexual recorrentemente mais informada pelas participantes foi a heterossexual, seguida em menor número de participantes que se declararam homossexuais e bissexuais. Em relação ao estado civil, as casadas apresentaram maior recorrência, seguidas das solteiras em união estável e, por último, aquelas que estavam divorciadas. Destas, a maior parte informou possuir filhos.
Em relação às experiências no grupo Pedal Pink, a maioria das mulheres informou frequentar o grupo entre seis meses há mais de um ano, seguida das que frequentavam de três meses a seis meses. Em menor número estavam as ciclistas que ingressaram no grupo há menos de três meses. Quanto à frequência nos pedais, as praticantes se distribuíram entre as que pedalavam entre dois a três dias por semana, seguidas das que pedalavam apenas um dia e quatro dias por semana e, por último, as que pedalavam mais de quatro dias. Destas, a maior parte informou pedalar mais frequentemente nos dias de semana e no turno da noite, vindo em seguida aquelas que praticam o ciclismo nos finais de semana e no período da manhã. Havia ainda um grupo que informou apenas pedalar nos eventos realizados pelo grupo Pedal Pink.
Dentre os/as integrantes do Pedal Pink, dezesseis interlocutores/as foram considerados informantes-chave para os objetivos deste estudo: a líder do grupo, dez mulheres e cinco homens que participavam ativamente dos pedais e eventos organizados pelo grupo.
Entre os interlocutores entrevistados, quatro residiam em Petrolina e um em Juazeiro. A faixa etária variou de 28 a 46 anos de idade. Quanto à cor, os participantes se distribuíram entre pardos, seguidos dos que se declararam negro e branco. O estado civil variou entre os que se declararam casados, seguidos dos solteiros e em união estável. Quanto à orientação sexual, todos se declararam heterossexuais. Apenas um dos participantes declarou não possuir filhos. A renda familiar mais recorrente foi entre um e três salários mínimos, seguida daquelas entre três e dez salários.
Em relação à prática de ciclismo, apenas uma participante relatou ter se inserido na modalidade há oito anos; os demais praticavam há mais de um ano. A maior parte costumava pedalar pelo menos três dias na semana, seguida dos que pedalavam quatro e somente um dia na semana. Os que frequentavam o grupo Pedal Pink há mais de um ano eram maioria, seguidos de um dos participantes que informou participar do grupo desde sua formação inicial. Os participantes pedalavam geralmente à noite, em dias da semana; outros informaram pedalar neste horário, bem como pela manhã. Todos os participantes frequentavam outros grupos de ciclismo da cidade.
Realizamos uma análise temática das categorias, que foram construídas a partir da triangulação das anotações do diário de campo, das entrevistas, nas informações do questionário sociodemográfico e dos registros audiovisuais disponíveis nas mídias.
Segundo Geertz (1989), a etnografia não pode ser definida pelas técnicas que emprega, mas, sobretudo, pelo esforço intelectual exigido como uma descrição densa. Assim, uma etnografia no ciclismo demanda a tarefa de compreender os territórios existentes, assim como conhecer os significados compartilhados. Na tentativa de conhecer um pouco desses espaços, buscamos participar das diversas atividades realizadas pelo grupo, em especial, dos pedais organizados pelo Pedal Pink e seus personagens.
No que se refere aos aspectos éticos, foi garantido o anonimato e confidencialidade do grupo e dos/as interlocutores/as, sendo adotados pseudônimos. As observações se deram em espaços públicos e foram adotados nomes fictícios aos locais de maior concentração de ciclistas e de circulação do grupo. A pesquisa seguiu todos os procedimentos éticos, tendo sido aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Vale do São Francisco inscrita no CAAE: 55593116.3.0000.5196 sob parecer Nº 1.598.922.
A inserção no grupo Pedal Pink relatada por uma das autoras
Tomei conhecimento do Pedal Pink a partir de conversas informais entre colegas na universidade que me disponibilizaram o contato com a líder do grupo. Conversamos brevemente ao celular, sinalizando meu interesse em frequentar o grupo para realização da pesquisa. A líder foi receptiva e me informou sobre os dias, locais e horários dos ‘pedais’ organizados pelo grupo. Os ‘pedais’ era um termo nativo usado para designar os deslocamentos realizados de bicicleta pelos/as ciclistas nas zonas urbana e rural do município de Petrolina e cidades circunvizinhas. Eram realizados tanto individualmente como em grupos. Os pontos de maior concentração de ciclistas na zona urbana eram os postos de gasolina, tanto pela localização como pela infraestrutura disponível de água, segurança e compressores de ar.
Meu primeiro pedal no grupo foi também a primeira experiência de pedalar em grupos; ainda que tivesse o hábito de usar a bicicleta para me deslocar por alguns locais da cidade próximos à minha residência. Dirigi-me ao local de encontro dos/as ciclistas do grupo mais acessível para mim com uma antecedência de uns 20 minutos. Observei a intensa movimentação de vários grupos de ciclismo neste local, a partir do uso de uniformes com a identificação e cores adotadas por cada grupo, bem como pelos agrupamentos formados entre os/as integrantes, conforme se aproximava o horário de saída destes. Da mesma forma, notei a pouca participação de mulheres nestes grupos, a maior parte dos/as praticantes era homens.
Os/As integrantes do Pedal Pink chegavam e ocupavam os diversos espaços no posto, principalmente as margens da via, na direção da rota que seria tomada no pedal. Em alguns momentos, pela quantidade de ciclistas no grupo, as vias eram bloqueadas, dificultando a saída dos/as motoristas que frequentavam o posto. Após conversar com algumas participantes, inclusive algumas novatas como eu, a líder e outros/as integrantes vindos/as de outro local da cidade chegaram. Novamente, me apresentei e, depois de tiradas as fotos, partimos para mais um pedal.
Logo que fui inserida no grupo, adquiri o uniforme. Participava ativamente das atividades realizadas pelo Pedal Pink, eventos de ciclismo na cidade, comemorações, assim como interagia diariamente com as participantes no WhatsApp. Assim, gradativamente, fui sendo reconhecida por estes/as como mais uma das rosinhas.
Pedal Pink: um grupo de ciclismo liderado por mulheres
De acordo com Simone, líder do Pedal Pink, a história do grupo teve início no ano de 2015, a partir do encontro de cinco mulheres que praticavam corrida de aventura. Foi neste momento que surgiu a ideia de criar um espaço somente para mulheres com o intuito de realizar treinos, mas que culminou na criação do primeiro grupo de ciclismo liderado por mulheres da cidade. A primeira decisão foi a de criar o grupo no aplicativo WhatsApp.
Camila explicou que, conforme o grupo no WhatsApp aumentava e as integrantes se conheciam, foi sendo planejado o primeiro pedal. Combinado o percurso, pela manhã, partiram da zona urbana da cidade, mais especificamente do Posto Bis, com destino à comunidade da Limeira, localizada a 10km do local de partida. Cada participante levaria um lanche que seria compartilhado após o término do percurso. Segundo Camila, no dia marcado, compareceram cerca de 15 a 20 mulheres.
Para maioria das meninas, tinham umas obesas, uma de certa idade, então a gente fez um grupo assim bem diversificado de mulheres que tiveram essa oportunidade, desde a adolescente mais novinha, até uma de mais idade que nunca tinha pedalado dessa forma, então nesse final de pedal, todas concluíram o pedal.
As ciclistas originárias da corrida de aventura que possuíam um condicionamento físico melhor, como a líder e Camila, ficaram responsáveis por guiar o grupo durante todo o percurso. Para Simone, a líder do grupo, esse primeiro pedal mostrou a superação das participantes e ocorreu nos moldes das trilhas que são organizadas atualmente.
Três horas pedalando. Esse foi o tempo necessário para que as integrantes concluíssem o percurso de aproximadamente 20km. Depois desse início ousado e desafiador, Simone comentou que, das cinco ciclistas precursoras, apenas ela continuou no grupo; as demais foram se dispersando e algumas chegaram a abandonar a prática.
Simone recorda que foi a partir de uma conversa com amigos de um outro grupo de ciclismo que surgiu a ideia de fazer um pedal mais organizado. A data escolhida para o lançamento oficial do Pedal Pink foi 08 de março, Dia Internacional da Mulher. Taís recordou bem desse dia, pois foi um pedal bem diferente do primeiro - tanto na quantidade de participantes quanto no percurso realizado, que ocorreu nas zonas urbanas das cidades vizinhas de Petrolina, em Pernambuco, e Juazeiro, na Bahia.
Foi muita gente nesse dia e foi muito bom... não tinha só mulheres, tinha muito homem, muita gente, tinha mais de 100 pessoas. Saiu de Juazeiro, lá no Farol, atravessou a ponte, fez um percurso, um tour pela cidade e encerrou com um café da manhã.
Depois do lançamento do grupo pelas ruas das cidades vizinhas, o Pedal Pink organizou outros pedais mais longos, geralmente realizados nos finais de semana. Desde os primeiros pedais estavam presentes ciclistas de outros grupos da cidade e amigos da líder.
É, tinha um pessoal de Michel Bike que andava com a gente, os próprios meninos do Pedal do Vinho ou então amigos mesmo, assim sem grupo definido, a gente fazia assim, Páscoa, por exemplo, a gente fez pedal da Páscoa.
E assim, segundo a líder do Pedal Pink, surgiram os pedais temáticos, com o intuito de diversificar e atrair mais praticantes para a modalidade. Logo que os/as ciclistas começaram a ter uma adesão maior aos pedais temáticos, aumentando a quantidade e frequência de participantes, foi criado o Pedal Oficial do grupo. Este é realizado na zona urbana da cidade e no horário noturno e buscava:
Ter mais opções, para não ficar só o pedal esporádico, no final de semana ou de 15 em 15 dias. Esse Pedal Oficial também tinha um intuito que é os iniciantes começarem na semana que é uma coisa mais leve, pegando resistência para depois participar das trilhas.
A princípio o local de partida escolhido foi o centro da cidade, considerado mais acessível, mas devido aos locais de residência das ciclistas mais assíduas, estes pontos de encontro foram sendo modificados.
O planejamento dos pedais no Pedal Pink não se resumia à definição dos percursos, mas envolvia também o agenciamento da visibilidade do grupo nas mídias sociais, no acompanhamento diário das publicações de fotos, vídeos e reportagens produzidas em torno dos pedais e eventos organizados pelo grupo.
A experiência de liderar um grupo de mulheres ciclistas exigia de Simone o cumprimento de diversas responsabilidades e um intenso envolvimento. Entretanto, a mesma reconheceu que a liderança do Pedal Pink era compartilhada com aquelas participantes que, como ela, se mobilizaram na definição das ações realizadas pelo grupo e na resolução das demandas que surgiam. Segundo a líder: “São pessoas que não querem deixar o grupo acabar e que se doam também”.
O Pedal Pink, como qualquer outro grupo de ciclismo urbano da região, é gratuito e aberto para participação de membros externos. A entrada de novos participantes se dava através de um contato prévio com a líder, principalmente por meio das redes sociais que o grupo utilizava de maneira intensa. Neste contato, Simone explicava um pouco da história do grupo e da rotina dos pedais. Se a entrada no grupo era mediada pela líder, o abandono se dava geralmente pelo não comparecimento nos pedais. Esse era um dos motivos que dificultava saber o número exato de participantes.
Agenciamentos nos espaços urbanos: pedais
Roberto DAMATTA (1997) observa que os espaços sociais são construídos a partir de uma lógica relacional, “um espaço é demarcado quando se estabelece fronteiras que são construídas e legitimadas socialmente” (DAMATTA, 1997, p. 29). Estes espaços são organizados pelas relações entre grupos que se combinam e se reformulam numa complexa lógica que cada sociedade ordena para si e para seus membros. O autor assinala que espaços são esferas de significação social no qual os sujeitos compartilham éticas particulares.
Os pedais realizados pelo Pedal Pink eram organizados a partir das relações vivenciadas nas diversas esferas de significação social, em especial, as práticas esportivas e de lazer. Nos pedais eram produzidas e reproduzidas dinâmicas e éticas próprias, ainda que estas fossem compartilhadas sobretudo por constituírem espaços relacionais construídos socialmente pelos/as integrantes do grupo.
Entre os pedais realizados pelo Pedal Pink, o mais frequentado pelas ciclistas era o Pedal Oficial, realizado comumente no mesmo dia da semana, na zona urbana da cidade, em horário noturno. Privilegiamos os pedais oficiais nas análises, pois estes constituíam espaços nos quais eram operadas as dinâmicas particulares e recorrentemente vivenciadas pelos/as ciclistas do Pedal Pink. Este pedal era representado pelo grupo como o Pedal Oficial, operando enquanto o pedal hegemônico do grupo, o que atraía mais participantes e no qual geralmente ocorriam as iniciações das novatas na prática do ciclismo. Entretanto, ao mesmo tempo, buscamos destacar as diversas posições de sujeito experimentadas pelos/as participantes do Pedal Pink nestes espaços demarcados socialmente, bem como suas implicações nas contruções de empoderamento operadas pelas ciclistas.
Com o objetivo de atrair novos/as integrantes para a modalidade, assim como propocionar aos/às iniciantes a oportunidade de melhorarem o condicionamento para as trilhas, o Pedal Oficial possibilitava momentos de integração entre os/as ciclistas e de renovação do Pedal Pink, uma vez que a entrada das novatas no grupo somente ocorria após vivência desse pedal.
Antes de ser realizado, era amplamente divulgado nas mídias do grupo, e, no WhatsApp, era organizada pela líder uma lista de quem iria participar. Assim, as participantes adicionavam seus nomes e combinavam, a partir da localização de residência de cada uma, quem iria junto com quem. Havia dois pontos de encontro, de onde partiam os/as ciclistas; um destes era o posto Sertão, ponto de partida dos/as que residiam próximos/as daquela localidade, entre estes/as, a líder do grupo, Simone. Os/As ciclistas que partiam desse local saíam meia hora antes do horário estabelecido e divulgado nas mídias sociais do grupo, que era o tempo necessário para concluir o deslocamento deste grupo até o segundo ponto de encontro do Pedal Oficial, o posto Bis. Neste espaço, havia uma infraestrutura de comércio, bares, restaurantes, com bastante movimentação de carros e consumidores desses serviços, além da grande circulação de ciclistas de vários grupos da cidade. A maioria dos/as praticantes se encontrava no posto Bis e ficava aguardando a chegada dos/as ciclistas vindos/as do posto Sertão. Enquanto isso, conversávamos sobre acontecimentos pessoais, sobre novas aquisições de equipamentos e bikes, pedais realizados no final de semana, planejamento de eventos e pedais do grupo etc.
Os/As integrantes do Pedal Pink chegavam à medida que se aproximava o horário de partida, às 20h. A maioria usava acessórios típicos de quem pratica o ciclismo, o capacete, as luvas, às vezes, óculos de lentes transparentes, e as vestimentas caraterísticas. No caso do Pedal Pink, as integrantes adotavam a camisa oficial do grupo, o uniforme, de cor predominantemente rosa com a logomarca estampada. Ainda que este fosse destinado às ciclistas, havia alguns ciclistas que usavam o uniforme do grupo, geralmente amigos mais próximos da líder. As ciclistas que ainda não o haviam adquirido usavam geralmente roupas com a cor rosa, a marca do grupo.
Assim que os/as ciclistas vindos do Posto Sertão chegavam, geralmente Simone e os/as integrantes do grupo de ciclismo liderado por Lucas, como Francisco, bem como de outros locais da cidade, se reuniam próximo ao local de saída do posto Bis, a fim de que fossem tiradas as fotos do grupo. Feito isto, com as bikes munidas de lanternas, acessórios imprescindíveis quando se pedala à noite, saíamos pelas avenidas da cidade em direção ao Porto.
Os/As mais adiantados/as do grupo eram ciclistas que definiam o ritmo do pedal. No meio do grupo, estavam os/as ciclistas que tentavam acompanhar o ritmo do pelotão de frente, mas que nem sempre conseguiam, ainda que não quisessem permanecer para trás. Por último, estavam geralmente os/as ciclistas novatos/as. Estes/as eram acompanhados/as de perto pela líder do grupo, bem como os/as praticantes que preferiam conversar e fazer o percurso num ritmo mais lento, considerado de ‘passeio’.
A primera parada para o agrupamento dos/as integrantes era realizada após aproximadamente 2km do local de partida, na Avenida Freitas. Assim, os/as que chegavam primeiro aguardavam os/as demais para saírem em direção à segunda parada. Nesses intervalos, aproveitávamos para beber água e conversar, mas não demorava muito até chegarem os/as mais atrasados/as do grupo. Como não havia ciclovias ou ciclofaixas durante todo o percurso, pedalávamos nos acostamentos das avenidas, obedecendo ao sentido das vias, ainda que em alguns trechos fosse necessário disputar os espaços com outros/as usuários/as. Como nos contam Taís e Jonas: “A gente não tem faixas para ciclistas, é você disputando espaço com o pedestre, com carro, com moto, com tudo” (Taís). “Na cidade, infelizmente, é um trecho que o pessoal costuma fazer muito, mas eu ainda acho muito perigoso, infelizmente o pessoal ainda não tem muita consciência do ciclista” (Jonas).
A vulnerabilidade vivenciada pelos/as ciclistas do Pedal Pink nestes espaços públicos, especificamente no percurso do Porto, adotado por vários grupos da cidade, era ampliada principalmente quando estes/as pedalavam sozinhos/as ou em pequenos grupos, gerando acidentes, envolvendo frequentemente condutores/as de veículos motorizados. “Um dia que eu fui pro Porto e o micro-ônibus me fechou e eu caí. O micro-ônibus fechou e eu caí, vinha eu e Claudia” (Joana). “Aconteceu de um ônibus me fechar aqui na Freitas, um carro me pressionar e eu parar praticamente na porta do motorista” (Marcos). “Nesse trecho aí do Porto, na Freitas, os carros me fecharam, se não fossem os freios a disco da bike, eu acho que eu não tinha parado” (Jonas).
Na passagem desses trechos considerados perigosos, geralmente nos deslocamentos em rotatórias, nas mudanças de direção em vias movimentadas, atuavam os/as ciclistas como Isabel, Laura, Marcos e Lucas, que geralmente definiam os momentos de passagem do grupo, fazendo uso de apitos, sirenes ou, ainda, aumentavam o tom da voz em direção aos/às motoristas. Deste modo, estes/as paravam seus veículos para o grupo atravessar, ainda que a quantidade de ciclistas no grupo influenciasse nas decisões tomadas pelos/as condutores/as.
Antes da terceira e última parada para alguns/as, aproximadamente a uns 10km do Posto Bis, chegávamos na pista do Porto. Este local, bastante frequentado por muitos/as ciclistas, constituía o percurso mais aguardado pelos/as ciclistas do Pedal Pink. Neste espaço havia geralmente grupos de speed, modalidade profissional do ciclismo no qual as bicicletas eram construídas para alcançar velocidades maiores. Neste ponto, eram percorridos aproximadamente uns 6km entre ida e volta e em muitos trechos a iluminação era precária. Por isso, formavam-se pequenos grupos - a depender de quem contasse com as lanternas mais potentes. Durante o percurso, as/os ciclistas faziam contato visual e verbal, dando incentivos e também fazendo provocações entre aqueles/as que estavam iniciando a via e os/as que estavam retornando na via oposta.
A pista de acesso ao Porto era formada por duas via duplas, bem amplas, sem contar com o acostamento. Estes espaços eram geralmente utilizados pelo Pedal Pink e por vários grupos de ciclismo da cidade para ‘treino’. Maria e Silvia eram as que frequentemente convidavam os/as demais integrantes do grupo para realizar dois giros, ou seja, aumentavam o percurso e o ritmo do pedal. Neste trecho, as novatas geralmente não participavam, passando direto ao posto Sertão, destino final de parte do grupo. A chegada no posto era bastante comemorada pelos/as ciclistas, uma vez que as/os participantes já haviam completado um percurso de aproximadamente 16km, uma marca considerável para quem estava iniciando no ciclismo.
Mas, para uma parte dos/as integrantes, ainda faltava completar o percurso final até o Posto Bis, local de partida deste grupo que ficava a aproximadamente uns 5km. O posto Sertão estava localizado nas margens da BR e havia pouca movimentação no entorno. Era ponto de encontro de grande parte dos grupos de ciclismo que frequentavam a pista do Porto. Após a chegada de todos/as os/as integrantes do Pedal Pink, estes/as se organizavam para o momento das fotos com os/as que haviam completado este percurso. Simone frequentemente solicitava que fossem tiradas fotos apenas com as ciclistas, mesmo que a maioria dos/as participantes do grupo também tivesse o hábito de registrar esses momentos que eram compartilhados no WhatsApp e postados posteriormente nas mídias sociais do Pedal Pink.
O horário avançava e, por volta de 21h20min, os/as integrantes do grupo combinavam o retorno, zelando para que nenhuma ciclista retornasse sozinha até em casa ou pelo menos nas suas proximidades. Decorridos entre 10 a 20 minutos entre conversas e registros, o grupo partia em direção ao centro da cidade. Pedalávamos por vias isoladas dos ambientes residenciais, onde havia poucos estabelecimentos comerciais abertos nesses horários, com exceção dos postos de gasolina. Atravessavámos trechos mal iluminados, sem movimentação de pedestres ou agentes de segurança pública.
Conforme o Pedal Pink se deslocava pela avenida principal do centro da cidade, os/as ciclistas como Laura se despediam dos/as demais que seguiam em direção ao posto Bis. A sensação de insegurança aumentava à medida que a quantidade de participantes do grupo diminuía, principalmente nas vias de pouca movimentação e iluminação que davam acesso ao posto Bis.
Nestes pedais, observamos que estes espaços urbanos eram ambientes hostis aos corpos dos/as ciclistas, mas, sobretudo, aos corpos femininos que ainda praticavam em menor número a modalidade. A violência urbana era corporificada pelos/as ciclistas na insegurança produzida pelas reações agressivas advindas comumente dos/as condutores/as de veículos, bem como pela ausência de ciclovias, ciclofaixas e sinalização na maior parte das vias da cidade. Assim, e como forma de resistência e sobrevivência, os/as ciclistas eram mobilizados/as a buscarem proteção e segurança. O capacete, as luvas, os óculos e, especialmente, as lanternas, que atuavam para legitimar espaços no qual estes corpos poderiam existir. Assim, a produção destes corpos operava na cultura, “no[a] qual resistimos, negociamos e transgredimos, num campo político de disputas que se reproduz no corpo enquanto unidade biopolítica” (GOELLNER, 2007a, p. 34).
Nesse sentido, ocorria o horário do Pedal Oficial e de preferência dos/as interlocutores/as, pois este amenizava o confronto com os veículos e o risco de acidentes, uma vez que havia menos fluxo de condutores de motocicletas, carros, ônibus e caminhões nas vias. Por outro lado, à noite, intensificava-se a condição de vulnerabilidade pela falta de infraestrutura de segurança pública e mobilidade por bicicleta na cidade. O trajeto do Pedal Oficial era utilizado por outros grupos de ciclismo e tais situações eram também verificadas. Todavia, tais adversidades eram potencializadas por se tratar de um grupo predominantemente feminino.
Entretanto, as vivências de proteção e segurança construídas pelos/as integrantes eram potencializadas quando operavam conjuntamente, no grupo, numa articulação entre múltiplas diferenças e desigualdades (Adriana PISCITELLI, 2008). Deste modo, para algumas ciclistas do Pedal Pink o grupo atuava como um condicionante para a participação nos pedais. Vejamos algumas falas: “Não, sem o grupo eu não vou. Assim, eu não vou pedalar só, só vou com o grupo” (Joana); “Eu pedalo sempre em grupo eu nunca pedalo sozinha, não gosto. Trechos assim que a gente tem certeza, tem consciência do perigo, mas assim, se tiver com o grupo, se tiver com os anjos do pedal” (Silvia); “Além de proporcionar tudo isso que são as amizades, agora já é como se fosse uma família o grupo” (Laura) e; “O que mais me chama atenção nos pedais é o companheirismo, é a turma” (Francisco).
Os sentidos de pertencimento e união experimentados na prática do ciclismo em grupo operavam nos pedais a partir das relações de amizade e companheirismo vivenciadas entre os/as integrantes. Assim, nas ocasiões adversas vividas nos pedais (pneus furados, quedas, algum/a ciclista ter se dispersado do grupo) havia intensa mobilização dos/as integrantes que retornavam, acompanhavam a movimentação, e até suspendiam o percurso previsto para que fosse viabilizado o auxílio, mesmo quando o problema envolvia ciclistas de outros grupos.
Anjos e a performatividade de gênero
Butler (2003), ao refletir sobre a construção das identidades de gênero, assinala que os sujeitos são constituídos a partir dos discursos, nos atos reiterados que são executados pela linguagem, ou seja, as identidades são, sobretudo, performativas. Deste modo, gênero seria um processo sem início e fim definidos, uma vez que este seria constantemente construído e reconstruído na/pela ação.
Nesse sentido, Goellner (2007a; 2007b) observa que os discursos se acomodam nos corpos e os generificam nos processos culturais e, ainda que sejam provisórios, ou seja, históricos, estes discursos marcam “a nossa pele, nossos gestos, nossos músculos, nossa sensibilidade e nossa movimentação” (p. 183).
Observamos que os participantes do Pedal Pink designados como anjos eram, à primeira vista, os homens que compareciam aos pedais realizados pelo grupo. Entretanto, nem todos os homens que participavam dos pedais com o grupo eram considerados pelas integrantes como anjos; era necessário, sobretudo, auxiliar na proteção e segurança do grupo. Alguns/as dos/as interlocutores/as relataram como geralmente se dava a mobilização dos anjos no Pedal Pink. “Os meninos também sempre tá auxiliando a gente, tá de olho, vai, volta, vê quem tá atrás, é um grupo assim que eu acho que tem uma união muito grande” (Anna).
A gente se preocupa mais com quem tá muito atrás, daí a gente toma aquela responsabilidade de tentar não pedalar forte e tentar dar um gás com o grupo para chegar ao final do percurso com mais segurança (Marcos).
Além disso, os anjos atuavam na resolução de dificuldades vivenciadas nos pedais como trocar pneus, remendar uma câmara de ar ou em decorrência de problemas mecânicos. As relações de amizade e companheirismo vivenciadas nos pedais do grupo eram fundamentais para o ingresso e a frequência destes participantes.
No decorrer da pesquisa de campo, observamos que as agências atribuídas aos anjos no Pedal Pink operavam a partir da reprodução de discursos de espiritualidade, religiosidade, assim como de cuidado e dedicação, secundarizando nestas relações a sexualidade destes participantes.
Assim, para algumas ciclistas do grupo, as relações vivenciadas com os anjos eram consideradas distintas daquelas experimentadas em outros contextos sociais. “Eu sempre falo do cavalheirismo dos homens no pedal, é diferente nas outras relações que a gente tem, os meninos são muito cavalheiros” (Anna). “Porque às vezes o fato de estar somente mulheres tem sempre um engraçadinho para tirar ousadia, querer fazer alguma coisa e tendo um homem já evita de alguma forma” (Francisco). “São muito respeitadas, nós respeitamos todas, não gosto que tirem ousadia. Eu prefiro ter a confiança, ter a amizade do que vê-las com o olhar torto pra mim” (Eduardo). “É um clima muito bom porque a gente pedala, homens e mulheres e durante esse tempo todo que eu estou no grupo, nesses grupos, os meninos respeitam muito” (Silvia).
A partir destes relatos percebemos que as experiências de masculinidade e feminilidade vivenciadas pelos/as participantes do Pedal Pink eram construídas reciprocamente nos pedais do grupo. Assim, não existia uma essência a priori que determinasse as identidades de gênero (Guacira LOURO, 2008; GOELLNER, 2007a, SCOTT, 1995).
Segundo Butler (2014), as normas sociais operam “conferindo inteligibilidades, ou seja, autorizando que determinadas práticas e ações sejam definidas a partir de parâmetros do que pode ou não ser reconhecido socialmente”. Para a autora, “qualquer oposição à norma já está contida na própria norma, e é crucial para seu próprio funcionamento” (BUTLER, 2014, p. 265). Deste modo, as normas de gênero expressariam seu poder regulatório, buscando naturalizar as concepções de masculino e feminino nos diversos campos de saberes, entre estes, o médico, psiquiátrico, legal e religioso.
Nesse sentido, ancorados nos discursos religiosos hegemônicos, operavam as vivências de segurança e proteção que recorrentemente eram relacionadas pelas integrantes do Pedal Pink aos corpos masculinos. A participação dos anjos para algumas das integrantes era mais do que necessária, pois agiam como um condicionante na definição dos percursos ou, ainda, enquanto critério determinante para avaliar a viabilidade dos pedais em determinados horários e locais da cidade considerados arriscados e passíveis de violência urbana. As falas de Isabel e Bianca exemplificam este fato: “quando não tem [anjos], a gente evita ir, por exemplo, até o final do Porto” (Isabel). “Não, a gente sempre leva um anjo para pedalar com a gente porque a questão do horário porque 5h da manhã” (Bianca).
Entretanto, mesmo sem a participação destes anjos, eram realizados pedais tanto na zona urbana da cidade quanto na zona rural, nas trilhas. Nestes momentos, a segurança, proteção e conserto das bicicletas do grupo eram operadas pelas mulheres do grupo, ou seja, estas praticantes atuavam como anjos, ainda que o conceito nativo comumente utilizado para designá-las fossem as ‘batedoras’. “Se não for os anjos a gente vai só a gente mesmo, se não for um pedal assim, sempre, claro, sempre pensando na segurança” (Silvia). “Também as meninas, também são legais, não teve anjo, mas teve as meninas que já ajudaram bastante, não senti diferença nenhuma” (Joana).
As normas de gênero mediavam as experimentações destas participantes reproduzindo posições de sujeito autorizadas por sua ação regulatória. Nos pedais, assim como os anjos, as batedoras estavam geralmente no final do grupo, acompanhando os/as participantes mais lentos, os/as novatos/as, ou seja, os/as mais vulneráveis, recém-iniciados/as na prática do ciclismo. Eram também responsáveis por manter a coesão do grupo.
Podemos perceber que, embora o grupo tivesse intitulado o termo anjos para designar os homens que atuavam na “proteção” e na resolução dos consertos, na falta destes havia mulheres, as batedoras, que exerciam as mesmas atividades. Se, por um lado, havia a utilização de nomes distintos às mesmas funções que homens e mulheres desempenhavam, por outro lado, os termos “anjos” para os homens e “batedoras” para as mulheres parecem atuar de forma a subverter algumas questões de gênero. O termo anjo remete ao cuidado e proteção, enquanto o de batedor está relacionado aos soldados destemidos que vão à frente da tropa para abrir caminho.
Nem todos os homens eram anjos, assim como nem todas as mulheres eram batedoras. Esta função era assumida pelos/as participantes que possuíam habilidades e características para fazê-la. Portanto, a diferença dos nomes, mais do que estabelecer binarismo que separa funções e papéis, acabava por reivindicar a legitimidade das atividades de proteção e apoio.
As construções de empoderamento
As participantes do Pedal Pink eram designadas como rosinhas a partir da iniciação no grupo que estava condicionada ao cumprimento de alguns requisitos. Somente era permitida a entrada no grupo de WhatsApp para as mulheres que já tivessem participado de pelo menos um pedal com o grupo. A inclusão no grupo virtual, espaço exclusivo para as mulheres, operava enquanto um marco inicial da inserção das praticantes neste contexto específico de interações sociais.
E assim ocorreu quando uma das autoras entrou em contato com a líder Simone e comunicou o interesse em participar do grupo, ainda que o ingresso no Pedal Pink fosse motivado para fins de realização desta pesquisa. Assim, após o primeiro pedal com o grupo, foi inserida no WhatsApp. Na ocasião, a líder comentou sobre os objetivos da pesquisa, deixando aberto para que as rosinhas fizessem os questionamentos ou esclarecimentos que porventura surgissem. Naquele momento, nenhuma das integrantes demonstrou interesse ou desconfiança acerca dos objetivos da pesquisa, pelo contrário, as mesmas foram bastante receptivas à sua entrada.
As integrantes do Pedal Pink estavam reunidas e eram reconhecidas socialmente por reproduzirem posições de sujeito ou identidades de gênero construídas em torno do signo rosa e da prática do ciclismo, ou seja, eram mulheres e ciclistas. Rosinha operava enquanto uma identidade de gênero produzida a partir da experimentação no ciclismo, ou seja, atuava enquanto uma construção de empoderamento vivenciada nos pedais do grupo. Entretanto, observamos que havia diferentes posições de rosinhas experimentadas pelas praticantes nos pedais do grupo.
As rosinhas eram geralmente as ciclistas que estavam mais presentes nos pedais realizados pela cidade, nos pedais temáticos como o Cicle chic e Dia da Mulher, Outubro Rosa, no qual eram realizados tours ou ‘passeios’ pelas ruas da cidade, com várias paradas para fotos, nas quais era construída a visibilidade social por ser um grupo de “mulheres pedalando deixando a cidade mais bonita”, tema utilizado pelo Pedal Pink nos primeiros pedais, assim como na participação do grupo no desfile da cidade que teve como tema: “Começo da Vida, Petrolina, a Luz, o Verbo e a Fertilidade da Cidade-Mãe”.
Estes discursos hegemônicos de feminilidade, ancorados na beleza e na maternidade, eram reproduzidos nestes pedais pelas integrantes, no uso da maquiagem, no uniforme de cor predominantemente rosa e nas vestimentas utilizadas na ocasião do pedal Cicle chic (saltos altos, vestidos, saias). Estes artefatos operavam como tecnologias do corpo que produziam gênero (Beatriz PRECIADO, 2011; BENTO, 2011).
À medida que aumentava a frequência nos pedais do grupo, as rosinhas tornavam-se mais experientes, mais condicionadas fisicamente, alcançando melhores desempenhos. Principalmente nos pedais mais longos, nas trilhas, eram frequentemente designadas como brutas. As brutas também eram as ciclistas mais indicadas pela líder do grupo para participarem de competições realizadas na cidade.
No pedal é como se fosse um elogio, é um reconhecimento, é porque a pessoa tá fazendo bem a coisa, por exemplo, eu pedalo muito na marcha três, que é a marcha de força, por conta disso o pessoal me chama de bruta também (Maria).
No pedal a gente fica avaliando aquelas que têm mais disposição, a gente sente aquelas que estão mais aptas a participar e outras a gente sabe que têm potencial e também não quer, a gente sabe que tem pessoas que não querem participar de competição, querem mais é fazer o passeio (Simone).
O empoderamento das integrantes do Pedal Pink era construído conforme a prática do ciclismo se transformava de ‘passeio’ para ‘treino’. Melo e Schetino (2009) assinalam que estas dimensões estiveram presentes desde as primeiras iniciações das mulheres no ciclismo. Assim, na prática destinada ao passeio, os valores de fragilidade, elegância e delicadeza eram exaltados, em contraste com as práticas de competição, que estavam mais relacionadas à força, agilidade e velocidade.
Quando você começa a treinar, inicialmente você só quer passeio, depois quer pedais mais longos, aí fica em busca de condicionamento, depois que começa a pedalar, você sofre mais, não aguenta, é bem mais interessante, você vê como se supera (Vilma).
Nesse sentido, observamos que as experiências de fisicalidade, ou seja, as vivências de atividades físicas e agressivas, destacadas nos relatos das participantes do Pedal Pink, operadas nos pedais do grupo (tanto nos pedais de passeio quanto nos pedais oficiais e nas trilhas) eram determinantes nas construções de empoderamento das rosinhas e brutas. Nesta direção se inserem os estudos com atletas profissionais (Tood A. Migliaccio; Ellen C. Berg, 2007; Malcolm Mierzwinski; Phillipa Velija; Dominic Malcolm, 2014) nos quais os processos de empoderamento das praticantes foram mobilizados pelas experimentações de fisicalidade das mesmas.
Estas experiências, operadas nos pedais do Pedal Pink e destacadas nas dinâmicas de empoderamento das rosinhas e brutas, também eram reproduzidas nos processos de empoderamento das batedoras. As batedoras eram as participantes que, assim como os anjos, performatizavam a segurança e proteção no grupo, possibilitando que fossem realizados pedais somente com a participação das mulheres. Eram as ciclistas consideradas mais experientes, advindas de outros esportes como a corrida, assim como eram aquelas que, como a líder, abdicavam da fisicalidade em alguns pedais, ou seja, transitavam da posição de brutas às batedoras em função da proteção e segurança dos/as novatos/as e do grupo. “Eu mesma, eu termino ficando pra trás porque eu quero ter certeza que tá todo mundo pra frente, para não ficar ninguém pra trás” (Isabel). “Simone, ela foi nesse dia, ela foi o tempo todinho me auxiliando. No próximo que eu fui, já fui o percurso todo” (Anna).
Como para Barra foi eu, Vilma, Daniele, Bruna, só mulheres, fomos até Matinhos, a gente estava até treinando para competição, supertranquilo, não teve insegurança não, sempre é bom ter os anjos, mas quando não tem, nós somos rosinhas e somos brutas (Maria).
Nos estudos realizados por Mierzwinski, Velija e Malcolm (2014), bem como nos de Migliaccio e Berg (2007) e de Catherine Roster (2007), o empoderamento estaria vinculado ao conceito de resistência, sendo considerado uma forma de desafiar os estereótipos de gênero vivenciados pelas mulheres em modalidades como futebol americano, lutas e motociclismo, ou seja, em práticas consideradas hegemonicamente masculinas. Ao mesmo tempo, estas experiências de fisicalidade mobilizavam nas praticantes conflitos de inteligibilidade social por meio das vivências de feminilidade e sexualidade. Nesta compreensão se insere o estudo realizado por Mark Bhatti e Jayne Raisborough (2007) numa prática de lazer, entretanto, os autores concluíram que a experiência de fisicalidade operada na jardinagem era vivenciada sem prejuízos à inteligibilidade social da praticante.
Butler (2014) assinala que a coerência de gênero é efeito de um jogo de forças, de práticas sobretudo discursivas, mas não apenas discursivas, que regulam tanto a formação de gênero, bem como as normas de inteligibilidade social nas quais estas assumem visibilidade e significado.
No Pedal Pink, as participantes eram visibilizadas socialmente a partir da identidade de gênero ‘rosinha’, que operava enquanto posição hegemônica e dispositivo regulador da inteligibilidade social reproduzida pelas integrantes nos pedais e nas mídias sociais do grupo. Entretanto, observamos que nos pedais havia várias expressões rosinhas, intensificando a percepção de que não existia uma essência que determinasse a identidade, mas, sobretudo, posições de sujeito experimentadas pelas praticantes. As participantes do Pedal Pink não vivenciavam conflitos de inteligibilidade social, uma vez que se reconheciam comumente como rosinhas.
Segundo Butler (2014), as normas de gênero seriam transformadas a partir de práticas corporais que teriam a capacidade de alterar as normas durante sua citação. Deste modo, a identidade de rosinha foi sendo ressignificada e ampliada pela inclusão das diferentes expressões de gênero performatizadas nesta matriz hegemônica de inteligibilidade social.
Nesse sentido, destacamos que a emergência destas construções de empoderamento operadas pelas participantes nos pedais esteve vinculada diretamente às relações de companheirismo e solidariedade vivenciadas no Pedal Pink entre os/as integrantes, a partir da interseccionalidade de diferenças e desigualdades. Assim, se inserem os estudos realizados por Caitlin Fisher e Jane Dennehy (2015) no contexto brasileiro, bem como o de Lindsey J. MEAN e Jayne W. KASSING (2008), nos quais as autoras observaram que os processos de empoderamento de atletas profissionais no futebol eram mobilizados pelas relações de solidariedade e companheirismo vivenciadas nestas práticas.
Considerações finais
O estudo permite uma reflexão sobre os processos de empoderamento mobilizados na prática do ciclismo urbano. Observamos que as construções de empoderamento operadas nos pedais pelas mulheres estiveram ancoradas nas vivências de fisicalidade, bem como nas relações de solidariedade e companheirismo experimentadas pelos/as participantes na prática da modalidade em grupo que permeia os âmbitos esportivos e de lazer.
Buscamos evidenciar o caráter provisório e relacional das construções identitárias hegemônicas reproduzidas pelas integrantes do grupo e suas implicações nos processos de empoderamento.
Nesse sentido, destacamos as disputas, tensões e relações de poder vivenciadas pelas ciclistas nesta prática corporal, reproduzidas na precariedade dos espaços e políticas públicas voltadas para a mobilidade por bicicleta nos centros urbanos que tiveram efeitos concretos nos índices de participação e permanência destas praticantes.