Introdução
O artigo analisa as formas de machismo discursivo1 que interferem nos modos de expressão das deputadas federais nas comissões e no Plenário da Câmara dos Deputados. A ideia da pesquisa surgiu após a realização de um grupo focal com assessores/as de deputadas federais em junho de 2017 para analisar os desafios que elas enfrentam para o exercício do mandato. Embora não fosse o foco da pesquisa inicial, chamou atenção a ênfase e a recorrência dos argumentos dos integrantes do grupo focal acerca das formas de interdição discursiva das quais as deputadas são vítimas durante os debates legislativos, tanto nas comissões permanentes quanto no Plenário da Câmara.
A partir dos resultados do grupo focal mencionado, decidimos aprofundar essa questão por meio de entrevistas com assessores/as das parlamentares que acompanham diariamente os debates.2 Assim, foram realizadas 45 entrevistas em agosto e setembro de 2017. Desse total, foram 26 com as equipes de assessoria e de acompanhamento dos debates parlamentares nas comissões e no Plenário.3 Também foram realizadas entrevistas com 19 das 55 deputadas4 em exercício na 55ª Legislatura (2015-2019), a fim de ouvir como elas percebem o machismo discursivo em suas atividades corriqueiras na Câmara. Convém registrar que as mulheres ocupam 10% das cadeiras da Câmara dos Deputados, enquanto os homens ocupam 90%. Essa ampla maioria masculina favorece as interações machistas e dificulta a expressão das mulheres.
A pesquisa com staff parlamentar ainda é pouco usada no Brasil, mas existem estudos internacionais que ressaltam a importância desses atores como informantes para pesquisas científicas, em função da experiência deles, vivências no âmbito das instituições legislativas e proximidade com os/as parlamentares. Apesar de não passarem pelo sufrágio, a atuação dos/as assessores é considerada fundamental para o êxito do mandato parlamentar (Susan HAMMOND, 1984; Peverril SQUIRE, 1998; Thomas WINZEN, 2011, p. 27). As equipes de assessoria constituem a base da “qualidade do trabalho legislativo, seja da representação política realizada, ou a profissionalização do mandato legislativo” (Márcio CARLOMAGNO, 2015, p.3).
Trata-se de uma análise exploratória de natureza qualitativa, baseada nos relatos dos/as informantes, com o intuito de discutir o tema a partir das seguintes questões: (a) Como o machismo discursivo é percebido pelos informantes? (b) Quais as dimensões políticas desse tipo de machismo? (c) Como essa forma de machismo afeta a atuação política das deputadas federais? (d) O que elas próprias dizem sobre isso?
É oportuno justificar a importância de estudar as interferências machistas nos pronunciamentos das deputadas. Talvez a razão mais importante se deve ao caráter essencialmente discursivo da política parlamentar e à relevância do exercício da palavra na democracia representativa. Quase todas as formas de relação dos representantes com os representados ocorrem pela mediação da palavra e do discurso. Logo, se há interdições ao discurso das mulheres no exercício do mandato, significa que elas sofrem mais uma restrição no campo político, além de outras amplamente exploradas pela literatura, como o machismo dos partidos e as dificuldades para lançamento de candidaturas e para acessar espaços de poder como o parlamento. Esses obstáculos já são conhecidos, mas o machismo discursivo ainda não foi explorado. Trata-se, portanto, de uma contribuição original a análise aqui proposta.
Antes da análise dos dados, apresentamos uma breve abordagem sobre machismo discursivo e suas formas de manifestação na política.
Machismo discursivo
Uma das formas de reprodução e perpetuação da dominação masculina é por meio da linguagem. Afinal, a linguagem é portadora do poder de construir representações simbólicas sobre o mundo social. É pela linguagem que apreendemos e incorporamos “sob a forma de esquemas inconscientes de percepção e de apreciação as estruturas históricas da ordem masculina” (Pierre BOURDIEU, 2002, p.6). Um legado histórico poderoso dessas estruturas de dominação diz respeito ao modo diferenciado de socialização das mulheres quanto ao uso da fala. Trata-se, nas palavras do autor, de um “trabalho de socialização que tende a diminuí-las, a negá-las”, com o propósito de levar a uma “aprendizagem das virtudes negativas da abnegação, da resignação e do silêncio” (p. 31).
A imposição cultural do silêncio como norma de “boa conduta” para as mulheres constitui uma forma de violência simbólica, ou seja, aquela que, segundo o autor citado, pode se tornar invisível até mesmo para suas próprias vítimas, pois se trata de uma forma de dominação que se estabelece pelas vias simbólicas da produção de representações e de imagens. No caso das mulheres, imagens de sensibilidade, de delicadeza, de submissas e de sujeitos sem habilidade para o uso público da palavra, devido ao suposto caráter emocional de suas intervenções discursivas. Essa é uma forma sorrateira de dominação que as exclui da esfera pública no âmbito discursivo, significando que, no mundo das trocas argumentativas, as mulheres continuam a ser simbolicamente aniquiladas no plano do mundo público (Gaye TUCHMAN, 1980).
Conforme Céli Pinto (2010, p. 20), “quando uma mulher fala, sua fala tem uma marca: é a fala de uma mulher (...)” A autora complementa que “a recepção destas falas por homens e mulheres tende a ter a mesma característica, é a recepção de uma fala marcada, portanto particular, em oposição à fala masculina/universal”.
Carla Cerqueira et al. (2009, p. 112) explicam que “a palavra, como instrumento de poder e de troca, foi negada durante séculos às mulheres, e elas ainda continuam a não ter acesso ao discurso da mesma forma que os homens”. A marginalização discursiva afeta tanto os modos de expressão das próprias mulheres como os regimes argumentativos usados nos debates sobre a condição feminina, notadamente no campo da política. Para as mulheres, portanto, permanece o desafio para que elas tenham acesso aos espaços de discussão e sejam respeitadas em seus modos de expressão e nos seus discursos (Robin LAKOFF, 2003).
Nessa ordem de ideais, é de grande valor heurístico o conceito de machismo discursivo. Diego Gambetta (2001) define o termo como um conjunto de práticas que tornam a fala autoritária. Entre essas práticas estão declarações assertivas, modos de ridiculizar e desqualificar argumentos oponentes, opiniões excessivamente firmes e inflexíveis, uso de argumentos baseados em convicções e orgulho pessoal. Em suma, esse tipo de machismo constitui um conjunto de manobras retóricas que afirmam e reafirmam políticas autoritárias no que se refere ao debate público, em detrimento de formas discursivas democráticas. Os modos de silenciamentos e de desvalorização do discurso das mulheres na política são uma forma de machismo, portanto, que exercem uma função coercitiva, ao produzir interdições nos modos de expressão das mulheres (Lula GÓMEZ, 2015).
Existem formas mais brandas e mais violentas de machismo discursivo, que são enquadradas na literatura como parte dos micromachismos, ou seja, um conjunto de atitudes e formas de relacionamentos interpessoais que impregnam os comportamentos masculinos na vida cotidiana de valores e perspectivas machistas, nos níveis micro da vida social. Os micromachismos resultam em microviolências contra as mulheres, ao reafirmarem a dominação masculina (Almudena MANSO; Artenira SILVA, 2016, p. 112).
O termo micromachismo se aplica ao campo das microviolências de gênero, naturalizadas no cotidiano de forma sutil, porém enraizadas nas práticas de controle patriarcal (Luis BONINO, 2004). Segundo o autor, essas microviolências são materializadas em atitudes, comportamentos, posturas, gestos e demais micromecanismos de controle das mulheres no dia a dia. Manso e Silva complementam que
Essas pequenas maneiras de manifestar o machismo e a indiferença ou a subestimação das mulheres tem vindo a diminuir a forma como a cultura e a sociedade tem moldado os espaços de poder de gênero, deixando claro que as diferenças de gênero e as desigualdades permanecem em vigor e eles mantêm intactos os espaços tradicionais de poder: o poder público / masculino e a esfera privada e doméstica / feminina. (MANSO; SILVA, 2016, p. 112)
Como argumentam as autoras, na vida cotidiana, “os micromachismos tendem a permanecer invisíveis e invisibilizados, camuflados, escondidos, interiorizados e naturalizados” (p.112). Além disso, os micromecanismos “são legitimados pela sociedade e pela cultura que os rodeia”, fazendo com que sejam tolerados, apesar de constituírem “práticas de dominação masculina que ocorrem no cotidiano, como interromper quando uma mulher fala” (MANSO; SILVA, 2016, p. 112). Como se trata de algo inerente a um sistema cultural de base patriarcal, passa despercebido pela maioria dos homens e até mesmo por determinadas categorias de mulheres, como aquelas habituadas à submissão e à dominação masculina e à consequente exclusão e marginalização da esfera pública e dos demais espaços discursivos de poder.
Todo esse processo de marginalização anteriormente descrito é inerente a um sistema de governo da palavra no campo político (Patrick CHARAUDEAU, 2017). Afinal, uma das noções mais recorrentes no pensamento político sobre poder relaciona diretamente a democracia à palavra e às trocas argumentativas, como mostra Hannah Arendt em diversas obras, especialmente em A Condição Humana (Hannah ARENDT, 2005 [1958]). Para a autora, o poder se estabelece pelos consensos e pactos políticos negociados discursivamente pelos agentes responsáveis pela polis ou a res pública. A lei (lex = ligação) é o principal produto discursivo para o exercício do poder de forma legítima, ou seja, com o consentimento e apoio da comunidade política.
A noção de política que serve de respaldo para o poder baseia-se na pluralidade dos atores humanos, ao organizar e regular o convívio dos diferentes e desiguais. Contudo, a liberdade é uma construção plural entre cidadãos iguais do ponto de vista de direitos políticos, ou seja, a igualdade não anula a diferença, visto que a singularidade humana é exercida em primeiro lugar pela palavra. Como ressalta a autora, “a política organiza, de antemão, as diversidades absolutas de acordo com uma igualdade relativa e em contrapartida às diferenças relativas” (ARENDT, 2005, p.24). Por isso, o exercício da política requer o livre agir em público “e público é o espaço original do político” (p.11).
Para Arendt, a política é o reino da igualdade discursiva, ou seja, da liberdade entre os atores políticos, por serem todos aptos a atuar discursivamente na esfera pública. Isso implica: (a) isonomia - todos têm o mesmo direito à atividade política; (b) isegoria - condições iguais de argumentar e participar (livre expressão e argumentação); (c) isologia - igualdade em termos de conhecimento político; (d) isocracia - igualdade de condições para exercer o poder político. Afinal, “só na liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala em sua objetividade visível de todos os lados” (ARENDT, 2005, p. 60).
Outro legado importante de Hannah Arendt foi desmistificar a visão aristotélica de política, quando o pensador grego afirmou que “o homem é um ser político”. Para Arendt, “ao contrário do que afirmou o pensador grego, o ser humano é antes de um tudo um ser simbólico e a política também é um sistema simbólico, segundo a autora” (Antonio BARROS, 2015, p.189). Para ela, “aceitar a tese aristotélica implicaria acatar a noção de que a política é um atributo inato, ou seja, já nasceríamos seres de natureza política. Ao contrário disso, a autora argumenta que a política é resultante de um aprendizado histórico” (p.189). Com essa visão, Arendt coloca em primeiro plano a socialização política e do sistema cultural, ou seja, homens e mulheres “aprendem as regras e a importância da política ao longo do tempo e esse aprendizado é contínuo e dinâmico, o que implica a assimilação inclusive de novos valores políticos produzidos pelas sociedades” (p.189). A política, portanto,
é um sistema simbólico que implica dominação e exclusão das mulheres, algo que não é inato à natureza humana, mas resultante de uma produção social e histórica e um eficiente sistema simbólico de reprodução cultural dos estereótipos e preconceitos que sustentam a dominação masculina. (BARROS, 2015, p.189)
É central registrar que o pensamento político de Arendt se referia ao modelo grego de democracia, um sistema conduzido e exercido apenas por homens, sem nenhuma participação das mulheres. Mas como analisar essas ideias em modelos pluralistas de democracia com a presença de mulheres?
Nas democracias pluralistas, a política é formada por diferentes espaços discursivos, como aqueles que se destinam à exibição de ideias (visibilidade política), à discussão e debate (discutibilidade), à auscultação da opinião de certos públicos (audibilidade) e à persuasão e convencimento (governo da palavra). Em todos esses espaços o uso da palavra é fundamental:
O governo da palavra não é tudo na política, mas a política não pode agir sem a palavra: a palavra intervém no espaço de discussão para que sejam definidos o ideal dos fins e os meios da ação política; a palavra intervém no espaço de ação que sejam organizadas e coordenadas a distribuição das tarefas e a promulgação das leis, regras e decisões de todas as ordens; a palavra intervém no espaço de persuasão para que a instância política possa convencer a instância cidadã dos fundamentos de seu programa e das decisões que ela toma ao gerir os conflitos em seu proveito. (CHARAUDEAU, 2017, p.21)
O machismo discursivo e sua relação com o governo da palavra das mulheres encontra diferentes denominações na literatura, sendo três as mais conhecidas: manterrupting, bropropriating e mansplaining (Jack BILMES, 1997; Clio FLIKKEMA, 2017; Sophia FRANGOU, 2017; Judith BRIDGES, 2017; Ann WEATHERALL; David EDMONDS, 2017). O termo manterrupting é usado por esses autores como uma típica modalidade de machismo expressivo que consiste no hábito corriqueiro e recorrente dos homens de interromperem a fala das mulheres, seja nas conversas informais seja nas manifestações em espaços públicos. Já o bropropriating consiste em se apropriar das ideias das mulheres que surgem nesses debates e assumir como se fossem de autoria dos homens, sem a preocupação em conceder o crédito às respectivas autoras dessas ideias. O mansplaining consiste em um modo de explicação tipicamente machista, em que os homens costumam explicar algo às mulheres de forma infantilizada, como se elas fossem incapazes de compreendê-los em uma linguagem formal e erudita. É por essas razões que a literatura considera a misoginia a base do machismo, inclusive na sua forma discursiva (Moira SOTÓ, 1981; Marina CASTAÑEDA, 2007).
Essas estratégias misóginas de machismo para interferir no poder de palavra das mulheres adquirem um sentido especialmente expressivo nas arenas parlamentares, visto que os sentidos da política são (re)construídos cotidianamente pelo ato de parlare (Luis Felipe MIGUEL; Fernanda FEITOSA, 2009). O discurso “é um dos meios pelos quais a política se materializa” (Davi MOREIRA, 2016, p.12), contribuindo para a (re)produção ou renovação das visões e representações inerentes ao campo político (Ole WAEVER, 2002). Em razão disso, os atos discursivos e os debates parlamentares são considerados “a alma do processo legislativo” (Cláudia PAIVA, 2006) e o parlamento é considerado “o lugar por excelência do debate político e um palco aberto aos olhos do público” (Éric LANDOWSKI, 1977). Ademais, os espaços discursivos das instituições parlamentares são concebidos como arenas discursivas (Roberto MARAFIOTI, 2007).
Se as mulheres parlamentares são de alguma forma prejudicadas em seu poder de palavra, o machismo discursivo constitui um obstáculo à própria democracia, que tem como um dos pilares a liberdade de expressão, entendida além das relações interindividuais. Afinal, a liberdade de expressão também é mediada no plano institucional, com base em regras formais e informais (Francisco FONSECA, 2004). No caso do parlamento, isso tem reflexo tanto no poder de fala nos espaços institucionais internos como no noticiário político.
Esse debate remete ao conceito de perspectiva social, ou seja, um posicionamento socialmente situado, que reforça a desigualdade entre grupos. Trata-se de uma forma de compreender a realidade a partir de um lugar social determinado pelo gênero, no caso das mulheres, além da classe, raça e etnia (Iris YOUNG, 2006). Para a autora, uma forma de promover a conciliação entre representação e justiça, no caso das mulheres, seria por meio da representação política das perspectivas femininas, o que implica garantir plena liberdade de expressão a elas, sem interferências machistas nas suas falas e pronunciamentos. Nesse contexto, na opinião da autora, a liberdade de expressão está relacionada com o pluralismo de perspectivas sociais no debate público. Assim,
Conforme suas posições sociais, as pessoas estão sintonizadas com determinados tipos de significados e relacionamentos sociais, com os quais outras pessoas estão menos sintonizadas (...) A partir das suas posições sociais as pessoas têm compreensões diferenciadas dos eventos sociais e de suas consequências (...) Assim, as posições sociais estruturais produzem experiências particulares, relativas ao posicionamento, e compreensões específicas dos processos sociais e de suas consequências. (YOUNG, 2006, p.162)
Ao usarem o espaço discursivo das comissões ou das sessões do Plenário, as deputadas teriam a chance de expor suas ideias, apresentar suas ressalvas, ponderações, questionamentos e opiniões a partir da perspectiva social das mulheres. Interferências ocasionadas por essa modalidade de machismo seriam, portanto, mais uma forma de violência contra elas. Um tipo de violência ainda pouco explorado e pouco percebido pelo público, o que justifica seu aprofundamento, conforme será feito na sequência.
Análise dos dados
Com base no grupo focal e nas entrevistas, classificamos as formas de machismo expressivo relatadas pelos informantes, partindo das mais agressivas, como está exposto no Quadro 1, de modo gradativo em termos de nível de violência e agressividade.
Tipos de machismo identificados | |
1 | Desrespeito ostensivo a deputadas que presidem sessões plenárias e de comissões. |
2 | Interrupções agressivas das falas de deputadas em sessões plenárias e de comissões. |
3 | Tratamento depreciativo quanto aos pronunciamentos de mulheres. |
4 | Boicote aos pronunciamentos de deputadas que defendem causas feministas. |
5 | Desprezo e desvalorização da capacidade/competência política das deputadas. |
6 | Pedido de palavra das deputadas ignorado pelos presidentes de comissões, mesmo na condição de líderes de partidos. |
7 | Uso abusivo de apartes por homens nos pronunciamentos de deputadas. |
8 | Uso de reiterações discursivas pelos deputados como forma de ter a “última palavra”. |
9 | Tratamento discriminatório no controle do tempo de fala das mulheres. |
10 | Rotulação de “histéricas, loucas e descontroladas” quando as deputadas reagem discursivamente ao machismo discursivo. |
11 | Adjetivação depreciativa e expressões com conotações de afeto, de condescendência e de falso cavalheirismo. |
12 | Desatenção dos deputados em relação aos pronunciamentos feitos por mulheres. |
13 | Demonstrações de impaciência diante dos pronunciamentos das deputadas. |
14 | Manifestações masculinas coletivas de desqualificação discursiva das deputadas, como vaias nas comissões e no Plenário. |
15 | Machismo discursivo não-verbal (olhares de deboche, gestos e expressões faciais de reprovação ao que é dito pelas mulheres). |
Fonte: Elaboração própria, com base nos relatos dos informantes.
No âmbito das variações mais agressivas, os relatos destacam o desrespeito ostensivo quando mulheres presidem as sessões do Plenário, a exemplo do que ocorreu com a então deputada Rose de Freitas (PMDB-ES), que na época exercia o cargo de primeira-vice-presidente da Mesa Diretora, por ocasião da votação da Medida Provisória 527/2011, durante a sessão do dia 28/06/2011. Ao estabelecer os procedimentos de votação, os líderes da oposição discordaram de sua decisão e começaram um movimento contra a condução da sessão pela deputada. Esse caso foi lembrado tanto no grupo focal quanto nas várias entrevistas.
O assunto adquiriu projeção.5 Um dos entrevistados descreveu o episódio da seguinte forma:
Vários deputados discutiram com a deputada Rose de Freitas em voz alta e exigiram que o presidente da Câmara, Marco Maia, retornasse ao Plenário para decidir a questão, numa clara demonstração de machismo. Queriam um homem presidindo a sessão, pois não aceitavam se submeter aos procedimentos estabelecidos por uma mulher. (E36)
A então deputada Luci Choinacki (PT-SC) se pronunciou a favor de Rose de Freitas:
Nós gostaríamos que o trato fosse igual, independente de ser homem ou mulher na direção. Não é a situação de mérito. É a prática, o método desrespeitoso, dos gritos que são dados quando Rose está à Mesa. Deixo-lhe a minha solidariedade, como Parlamentar e mulher. Não dá para aceitar, o tempo inteiro, que a Oposição, principalmente, faça dos gritos a forma de encaminhamento. Podem ser levantadas questões de ordem. Agora, respeito é bom. (Diário da Câmara dos Deputados, p. 32947)
Alguns homens também se manifestaram:
A bancada do PT está solidária à presidenta Rose de Freitas. Não aceitamos a intolerância da oposição de querer depor a Presidência do comando desta Casa. Isso é um absurdo! Nós não vamos acatar esse tipo de comando aqui nesta Casa. (deputado Sibá Machado, PT-AC, Diário da Câmara dos Deputados, p. 32945)
Não posso deixar de prestar minha solidariedade à vice-presidente Rose e dizer que eu sinto muito que um deputado se dirija à presidente em exercício aos gritos, de forma desrespeitosa, como aqui foi feito. (deputado Rui Costa PT-BA, Diário da Câmara dos Deputados, p. 32947)
A própria deputada Rose de Freitas assim se manifestou:
Se queremos igualdade, precisamos começar com o respeito. Não quero ser vítima de nada, mas também não aceito ser desrespeitada. (Diário da Câmara dos Deputados, p. 32950)
Nesse caso específico, alguns aspectos chamam atenção. Em primeiro lugar, a iniciativa de recusa à condução da sessão por uma mulher partiu de líderes partidários, ou seja, atores de destaque na hierarquia interna da Casa. Em segundo lugar, apenas parlamentares da esquerda se manifestaram em solidariedade e apoio à deputada Rose de Freitas. Em terceiro lugar, as manifestações foram ostensivamente agressivas, incluindo gritos, como foi registrado inclusive no texto jornalístico mencionado. Em quarto lugar, a deputada foi desqualificada pelos seus opositores masculinos como “excessivamente emotiva e sem controle emocional”, por ter chorado em público, em reação aos ataques machistas dos quais foi vítima.
Outro exemplo que serve de emblema do machismo expressivo violento ocorreu quando a deputada Maria do Rosário foi violentamente interrompida pelo também deputado Jair Bolsonaro. A primeira vez aconteceu em 2008, em entrevista a um canal de televisão no corredor das comissões. Enquanto era entrevistada, Bolsonaro interrompeu a deputada e começou a xingá-la, inclusive de “vagabunda”.7 A discussão continuou no Plenário e Bolsonaro continuou as agressões. O segundo episódio ocorreu na sessão do Plenário de 09/12/2014.8 A deputada foi interrompida aos gritos por Bolsonaro, ao afirmar que “falei que não ia estuprar você porque você não merece”. A terceira vez ocorreu em 14/09/2016, quando Maria do Rosário presidia a sessão,9 e ele se postou atrás dela e começou a falar alto, impedindo-a de presidir a sessão. Esses são exemplos típicos do chamado manterrupting, uma forma típica de machismo discursivo, conforme foi tratado anteriormente.
A respeito dessa sequência de episódios, uma das entrevistadas disse que:
Apesar de serem casos amplamente conhecidos, inclusive com repercussão na mídia, mas isso não é exceção. Ao contrário, é regra geral. Dificilmente uma deputada consegue formular e expressar sua opinião sem ser interrompida ou agredida. E isso ocorre tanto no plenário como nas comissões e com muita frequência. (E11)
Essa situação mostra que se trata de uma cultura parlamentar estabelecida nos padrões de dominação masculina. Isso significa que os parlamentares estão habituados à presença de figuras masculinas na presidência das sessões plenárias. É oportuno salientar que a deputada Rose de Freitas foi a primeira mulher a exercer o cargo de primeira-vice-presidente da Mesa Diretora. Esse costume, amparado na dominação masculina, justificou inclusive os argumentos dos agressores de Rose de Freitas, os quais alegaram que não havia nada de machismo, mas apenas um embate político. “Me dirigi à deputada Rose de Freitas como a qualquer parlamentar que estivesse na cadeira de presidente, independentemente de ser homem ou mulher”, argumentou o então deputado ACM Neto na ocasião. Outro deputado complementou: “se bate como homem deve apanhar como homem também”. Em suma, os opositores negaram o machismo discursivo, com base em argumentos igualmente machistas.
Uma das entrevistadas na pesquisa salienta que a agressividade “é a marca principal dos pronunciamentos dos oradores homens, que são bem vistos pelas suas bases e pela mídia como grandes combatentes, quando fazem pronunciamentos inflamados na tribuna” (E30). Nessa mesma perspectiva, outra informante complementa que:
A agressividade rende lucro político aos deputados, pois aumenta a visibilidade pública e reforça sua figura de “cabra macho”, no sentido positivo derivado da nossa cultura machista. Quando um deputado é agressivo com uma deputada, os apoiadores dele vibram, pois são tão machistas quanto o deputado agressivo e pensam que mulher deve voltar para o tanque e o fogão (E43).
Chama atenção como as entrevistadas percebem a agressividade dos deputados em relação às deputadas, especialmente no que diz respeito a uma suposta valorização desse tipo de atitude pelo eleitorado. Ao apontarem essa perspectiva, as entrevistadas jogam luz sobre as dificuldades para se combater a cultura machista, uma vez que uma deputada ser agredida no plenário por um deputado é atitude bem vista e valorizada pelos eleitores e grupos apoiadores do agressor.
Como se observa, as interrupções agressivas às falas das deputadas são usadas de modo recorrente e naturalizadas pelos homens, “acostumados a dar ordens e estabelecer as regras da conversação cotidiana seja na família, nos negócios, no bar e na política”, como expressa uma das entrevistadas. Outros relatos mencionam que:
As deputadas dificilmente conseguem expor seus argumentos tamanhas e frequentes são as interrupções de suas falas. (E7)
As interrupções são muito agressivas e desrespeitosas, mas ninguém se incomoda com isso, a não ser as mulheres que são minorias. (E16)
Eles interrompem a fala das deputadas como forma de excluir o discurso delas. (E4)
Há interrupções grosseiras e agressivas, mas também há interrupções aparentemente gentis. (E21)
Aqui, como mostram os relatos acima transcritos, o machismo na comunicação assume nitidamente a função coercitiva apontada anteriormente por Gómez (2015). Trata-se de uma estratégia de dominação masculina que resulta em interdições nos pronunciamentos das mulheres no parlamento.
O ato de falar gritando é apontado por Gilberto Freyre (1961) como um modo de expressão tipicamente masculino, branco e senhorial. Trata-se de uma atitude que faz parte do repertório de herança cultural do exercício de poder dos senhores sobre os escravos, suas esposas e filhas. As mulheres, ao contrário, foram socializadas para falar baixo, sem exaltação e sem agressividade, como pessoas sensíveis e mansas, dispostas a servir.
Essa perspectiva é ressaltada por Cerqueira et al. (2009), conforme foi demonstrado na primeira parte do texto. A autora salienta que, historicamente, foi negado às mulheres o poder de palavra nas arenas públicas. O caso aqui apresentado mostra que essa estratégia de exclusão permanece, pois os modos de marginalização discursiva permanecem no campo da política parlamentar. Permanecem, portanto, os desafios paras que as deputadas conquistem acesso e respeito aos espaços discursivos de poder (LAKOFF, 2003).
Quanto ao tratamento depreciativo e discriminatório em relação aos pronunciamentos de mulheres, os depoimentos mostram que “é quase uma regra geral tanto nos pronunciamentos feitos nas comissões e nas sessões plenárias”, como relata uma das entrevistadas. Em sua avaliação:
Nos muitos anos de trabalho como assessora de deputadas e deputados, acho que nunca houve um dia em que eu não presenciasse alguma forma de desprezo e discriminação pela fala das deputadas. O descaso ocorre de várias formas, desde os modos mais agressivos e explícitos até formas mais amenas, que até passam despercebidas, mas não deixam de ser machismo. (E17)
Outros/as entrevistados/as complementam que:
Há muitos casos em que as deputadas são proativas e apresentam contribuições muito significativas ao debate, mas parece que há um acordo tácito de cavalheiros para não darem importância ao que elas falam. Os pronunciamentos delas são feitos só porque os homens não podem formalmente impedi-las de falar, mas são boicotadas, sem repercussão alguma entre eles, como se fosse uma fala política de segunda classe. (E24)
Já observei várias vezes que, no caso de uma sequência de pronunciamentos, seja nas comissões ou no Plenário, os oradores masculinos retomam e reforçam discursos de seus colegas homens e ignoram os pronunciamentos delas, como se não tivessem relevância nenhuma. (E31)
Os homens toleram a fala das mulheres, mas se pudessem deletariam o áudio e o texto, pois para eles é apenas um mi-mi-mi de mulheres que não entendem de política e que estão ali só porque não tem mais como evitar que elas sejam eleitas. (E3)
As deputadas não são reconhecidas como pares legítimos dos homens. Parece que elas são um incômodo que eles são obrigados a tolerar e ouvir. Aliás, ouvir não, deixar que elas falem simplesmente. (E29)
Como é possível inferir dos relatos, as formas de depreciação e discriminação dos pronunciamentos das mulheres se manifestam de várias maneiras, como o desprezo pelo que elas dizem, modos velados de ignorar o que elas falam, desqualificação de seus pronunciamentos como sendo falas sentimentais (mi-mi-mi) e como discursos inferiores, sem consistência política.
Os oradores masculinos, na prática, negam reconhecimento e legitimidade à fala das mulheres, fazendo perpetuar a marginalização discursiva apontada acima por Cerqueira et al. (2009) e Lakoff (2003). Na mesma linha argumentativa, Pinto (2010) salienta que os espaços em que as mulheres se manifestam, mesmo que na esfera pública, continuam estigmatizados “falas de mulher”, estigmatizando a recepção dos pronunciamentos. Trata-se de uma forma de diminuir o poder de palavra das deputadas.
O boicote aos pronunciamentos das deputadas de forma mais regular e frequente é relatado pelos/as entrevistados/as quando se trata de deputadas que defendem causas feministas, como a descriminalização do aborto e outros temas da agenda moral progressista:
Há uma sistemática violência discursiva contra as deputadas de esquerda que defendem os direitos das mulheres. Sempre que elas são chamadas à tribuna, antes mesmo de começarem a falar, os homens direitistas passam xingá-las ou dizer em coro palavras de ordem depreciativas contra elas. (E17)
Já vi várias vezes em que as deputadas de esquerda como Erika Kokay (PT-DF), Alice Portugal (PCdoB-BA), Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Maria do Rosário (PT-RS). Toda vez que elas estão na tribuna há um grupo de deputados conservadores que gritam “cala a boca comunista”. Isso tem se repetido várias vezes. (E1)
Toda vez que deputadas mais comprometidas com as causas femininas mais à esquerda tentam falar no Plenário, elas são boicotadas pelos homens da bancada religiosa. (E21)
Essas deputadas são discriminadas em função das causas que defendem. Cabe ressaltar que elas também foram eleitas em razão da defesa dessas causas. Ao se manifestarem, elas se dirigem prioritariamente às suas bases eleitorais. Ao serem discriminadas, na realidade, o machismo expressivo também é exercido contra seus eleitores.
Decorre disso outra questão relevante: esses eleitores também constituem minorias e, como tais, também enfrentam dificuldades de vocalização de suas causas no cotidiano. Como as deputadas alinhadas aos interesses dessas minorias são discriminadas no parlamento, na realidade tanto as representantes como os/as representados/as são diretamente atingidos pelo machismo discursivo, conservadorismo e crenças religiosas que sustentam as visões conservadoras.
Nesse sentido, o machismo no discurso parlamentar é fortalecido pelo conservadorismo e suas posições extremadas de direita, principalmente no caso dos deputados que integram as bancadas religiosas, sob a denominação de Frente Parlamentar Evangélica (FPE). Essa frente conta atualmente com 198 deputados, o que representa 38% da Câmara dos Deputados, e 4 senadores. Os parlamentares que integram a FPE, embora sejam de diferentes denominações religiosas, compartilham e interesses comuns e visões de mundo, principalmente quanto à agenda relacionada a direitos humanos.
O desprezo e desvalorização da capacidade e da competência política das mulheres aparece nos relatos de várias formas
Sou assessor de uma deputada e ela é a única parlamentar do partido. Nas reuniões, diante dos deputados, ela é aparentemente tratada de forma respeitosa e elogiosa, porém no momento das divisões de atribuições de considerável relevância ela sempre é descartada. O mesmo ocorre com as sugestões e os argumentos dela. Eles parecem ouvir e considerar, mas na hora da prática ignoram tudo o que ela disse. (E41)
As deputadas sofrem achincalhamentos quando fazem seus pronunciamentos e são desvalorizadas pelos deputados, de modo geral, mas especialmente no falar. (E23)
A palavra da mulher parece não ter a mesma ‘respeitabilidade’ que a palavra de um homem. Também não é raro deputados fazerem “gracinhas” ou agirem de modo machista, ignorando a fala das mulheres ou mesmo fazendo chacota. (E38)
Os depoimentos chamam atenção para o fato de que o machismo na comunicação é uma forma de expressão da falta de confiança dos oradores masculinos na competência política das deputadas de forma mais ampla. Isso é muito expressivo para o estudo aqui apresentado, pois os pronunciamentos constituem uma parte fundamental na atividade política, como foi demonstrado na primeira parte do texto, inclusive com as ideias de Hannah Arendt sobre como a política se constrói pelo discurso. Segundo essa visão, desconsiderar os argumentos, sofrer achincalhamentos e brincadeiras machistas constituem formas graves de obstrução do trabalho das deputadas.
Os casos em que as deputadas pedem a palavra nas sessões e são ignoradas pelos presidentes é mencionada pelos/as informantes como “uma forma muito recorrente de desrespeito à fala das mulheres”:
A preferência pelos atores masculinos é tão evidente, que quando uma mulher pede palavra, mesmo nos termos regimentais, parece que ela incomoda. Por isso elas são ignoradas. É como se fosse uma forma implícita de dizer a elas: aqui não é lugar de vocês. (E26)
Fico estarrecida de ver mulheres atuando como líderes, que podem pedir a palavra a qualquer momento, segundo o regimento e mesmo assim são ignoradas pelos presidentes. Mas os homens jamais são ignorados. (E12)
Quando há vários oradores inscritos e se instala uma disputa entre eles para ver quem fala primeiro, as mulheres sempre perdem essa disputa. A vez delas, quase sempre é passada para um homem e elas acabam ficando para o final da fila de inscritos, como se fossem parlamentares de segunda classe. (E28)
Já vi várias situações em que as deputadas pedem a palavra no Plenário e elas são sistematicamente ignoradas quando é um homem que preside a sessão. (E7)
Eu já presenciei várias situações em que o presidente concede formalmente a palavra a uma deputada, mas não consegue falar, por que os homens gritam, xingam, dizem palavrões ou fazem boicote à fala das mulheres. (E13)
Toda a sequência de relatos até agora mostra empiricamente como os oradores masculinos se recusam a incluir as deputadas de modo efetivo, equitativo e respeitoso nos debates legislativos. Assim, o machismo na comunicação compromete não só a paridade de gêneros, mas também critérios fundamentais para a igualdade política e a própria democracia, como isonomia, isegoria, isologia e isocracia (ARENDT, 2005).
Outras formas de machismo camuflado apontadas pelos informantes são os apartes, no caso de deputadas, por ocasião do chamado “grande expediente”, momento da sessão plenária, antes da ordem do dia, em que oradores/as previamente inscritos/as usam a tribuna por até 20 minutos para pronunciamentos temáticos:
Como uma forma de demonstração de poder e de ingerência na fala das mulheres, os deputados recorrem ao artifício do aparte, cujo costume na Casa é de se conceder, pois a não concessão é vista como falta de civilidade. Assim, é muito comum, o tempo de uma deputada ser tomado por vários apartes de deputados que usam, de forma machista, o tempo de uma mulher para falar e, assim, evitam que ela tenha tempo regimental integral. (E5)
Os apartes são muito prejudiciais às mulheres, pois a deputada, ao se inscrever, planeja o seu discurso em função do tempo. Sua assessoria redige o discurso com zelo e dedicação, mas na hora de falar, ela é impedida pelos colegas do sexo masculino, que abusam do recurso do aparte. (E24)
Eu sempre fico muito incomodada com os apartes e a deputada também, mas virou costume isso. Aliás um péssimo costume, pois interfere diretamente no tempo de fala das mulheres. (E40)
Os apartes são vistos pelos/as entrevistados/as como uma forma de “colonização” do discurso das mulheres:
Em mais de dez anos assessorando deputadas, observo que há uma inflação de apartes solicitados por homens, toda vez que uma deputada vai fazer um grande expediente. Mas essa mesma prática não ocorre quando o orador é outro homem. Nesse caso, o número de apartes é bem menor e geralmente ocorre ao final do pronunciamento do orador. Ou seja, um homem ouve o outro e espera terminar seu argumento, ao contrário das mulheres, cujos apartes são feitos sem que ela tenha oportunidade sequer de fazer a introdução de seu discurso. O outro cavalheiro que solicita o aparte no grande expediente de outro homem, geralmente é mais conciso, ou seja, há mais respeito. (E32)
O que se observa a partir dos depoimentos é que o recurso regimental do aparte é usado pelos oradores masculinos como apropriação do tempo de fala das mulheres e como meio de inserção das ideias e opiniões deles em um pronunciamento de autoria das deputadas. Consiste, na prática, em tomar a palavra delas para a reafirmação do poder masculino, numa estratégia de governo da palavra das mulheres (CHARAUDEAU, 2017). Trata-se ainda de uma modalidade de bropropriating, conforme foi abordado na primeira parte do texto.
Outra forma identificada na pesquisa são as reiterações discursivas, algumas vezes travestidas de gentileza, condescendência e cavalheirismo:
É muito comum uma deputada fazer um pronunciamento e um deputado usar o que ela disse como forma de reforço e reiteração, usando o velho clichê ‘faço minhas as palavras da deputada fulana’, como se o discurso de uma mulher precisasse ser chancelado por um homem para ter legitimidade política. (E23)
Muitos deputados até tentam ser educados, mas o machismo está tão naturalizado que nem se dão conta que estão sendo machistas ou desvalorizando a fala das mulheres. (E34)
As estratégias de reiteração consistem, na realidade, em modos de reafirmação e reforço do pensamento, das opiniões e da perspectiva deles. Por que o pronunciamento de uma deputada precisaria ser reforçado por um deputado? Se algo carece de reforço, logo o pressuposto é de que se trata de algo fraco, que precisa ser tonificado e revigorado. Como mostram os depoimentos, em alguns casos os oradores masculinos parecem fazer uma gentileza, mas na realidade negam às deputadas o livre e democrático direito de expressão a partir de suas próprias perspectivas, suas opiniões e seu lugar de fala de mulher (YOUNG, 2006). Nesse caso os deputados se utilizam do recurso denominado mansplaining, nos termos discutidos na primeira parte do artigo.
Outra forma de machismo discursivo identificado na pesquisa é o tratamento discriminatório quanto ao controle do tempo dos pronunciamentos de mulheres. Isso porque as disputas pelos espaços discursivos são acirradas, visto que sempre há muitos parlamentares dispostos à manifestação de suas posições, mas, em contrapartida, há limitação de tempo, cujo controle é exercido pelo presidente da sessão, tanto nas comissões como no Plenário. Os/as informantes da pesquisa se referem às táticas de controle do tempo de fala, sempre mais flexível para os homens e mais rigorosa quando se trata das mulheres:
O tempo é fundamental nas sessões das comissões e do Plenário, pois sempre há muitos oradores em um determinado espaço de tempo de uma sessão. Geralmente quem preside as sessões são homens, que costumam ser mais tolerantes e generosos com seus pares masculinos quando se trata da concessão de tempo extra de fala. No caso das mulheres, a situação é diferente: o controle costuma ser mais rigoroso, sem concessão de tempo extra e com o corte imediato do áudio do microfone. Isso é rotina. Não estou falando de algo acontece esporadicamente. (E34)
É cabível acentuar que o tempo constitui um operador de grande relevância na política, tanto em termos materiais como simbólicos. Não é à toa que o Regimento Interno da Câmara dos Deputados dedica-se, em grande medida, à regulação do tempo de fala de seus integrantes nas várias fases do processo legislativo e das próprias sessões plenárias e das comissões.
Todos os processos políticos são regulados pelo tempo, desde a campanha eleitoral, a duração do mandato, a época de recesso parlamentar, o controle do uso da tribuna legislativa pelos/as oradores/as, os dias da semana destinados às sessões ordinárias, extraordinárias, deliberativas, de debates ou de homenagens. O tempo se reveste de sentidos sociais, políticos e culturais. Além disso, constitui-se ele próprio um mecanismo de coerções ou de concessões, ao interligar as estruturas individuais e sociais mais amplas, como no caso do campo político (Norbert ELIAS, 1989).
A rotulação de “histéricas”, “loucas” e “descontroladas” ocorre nos momentos de intensas disputas discursivas, quando as mulheres reagem à opressão dos homens no que se refere ao monopólio da palavra e do poder decisório quanto aos procedimentos de votação no Plenário ou nas comissões, de acordo com os relatos dos/as entrevistados/as:
Os homens estão acostumados com o estilo agressivo de fazer política e isso é até valorizado, pois passa a ideia de um parlamentar combativo e atuante. No caso das mulheres, contudo, quando elas se rebelam contra a opressão e reagem à altura, são rotuladas como “descontroladas”, “loucas” e histéricas. (E8)
A reação das mulheres, na maioria das vezes, é compreensiva, pois é um meio de se fazer ouvir, de se impor e de protestar contra as tiranias masculinas. Mas até esse direito é negado a elas e eles ainda usam uma justa reação para desqualificá-las, como se “ganhar no grito” não fosse a regra geral entre eles. (E5)
Já presenciei em várias situações, em reuniões de comissões, principalmente de CPIs, quando as deputadas tentam se impor ao levantar a voz e são chamadas pelos deputados de loucas, histéricas e descontroladas. (E35)
Os estereótipos depreciativos são usados pelos oradores masculinos como manobra das lutas simbólicas que operam segundo as lógicas da dominação masculina. As estratégias de estereotipização e de estigmatização são apontadas por Erving Goffman e Leonor Guinsberg (1970) como meios de controle social de minorias e como mecanismos de marginalização. São dispositivos já amplamente conhecidos da literatura sociológica que servem a projetos políticos de exclusão da esfera pública de certas identidades, como vimos aqui no caso das deputadas.
Os informantes relatam também casos de adjetivação aparentemente afetuosa ou de diminutivos para se referir às mulheres, “sem perceber o quanto isso é machista”, como revelam nos relatos:
É muito comum ouvirmos os deputados chamarem as deputadas de ‘querida’ e outras formas de tratamento que parecem amáveis, mas na realidade, diminuem a atuação e o protagonismo delas. (E25)
Fico observando como a fala dos deputados revela muito da cultura machista. Enquanto os cavalheiros se tratam por excelência e nobre parlamentar, quando se dirigem às mulheres parecem ter dificuldade de usar o mesmo tratamento. (E16)
Nota-se aqui, mais uma vez, a presença das artimanhas retóricas no machismo, naturalizadas no cotidiano. Dito de outra forma, é a linguagem a serviço da dominação masculina e da cultura patriarcal, como já demonstrou Bourdieu (2002). Isso é muito expressivo quando se trata do parlamento, lugar em que todos/as os/as representantes, em tese, deveriam receber o mesmo tratamento de seus pares.
A desatenção dos deputados em relação aos pronunciamentos das mulheres, na avaliação dos informantes “tornou-se um comportamento incivilizado comum” nas atividades da Câmara:
A desatenção parlamentar é corriqueira aqui. Eles dão mais atenção ao celular e aos seus assessores. Depois a prioridade são os líderes e depois os seus pares de partido ou de bancada. Mas com as mulheres a falta de atenção é chocante. (E7)
O olho no celular é sempre prioridade, mas a gente percebe que eles levantam a cabeça e prestam atenção em alguns pronunciamentos, quando são feitos por outros homens. Quando a palavra é passada para uma mulher, eles aproveitam para “desligar geral” e mergulhar nas redes sociais, ignorando completamente as falas das deputadas. (E3)
As deputadas estão em desvantagem em tudo na Câmara, até na atenção dos demais parlamentares. É uma falta de respeito. Os deputados agem em algumas situações como as deputadas fossem invisíveis. (E12)
O machismo é tanto, que o presidente da sessão, os líderes e os demais deputados agem como se as mulheres não significassem nada no parlamento, como se elas fossem meras figurantes da cena política. (E 38)
As formas de desatenção dos oradores masculinos comprometem o empoderamento das deputadas no ambiente legislativo. Além disso, diminuem o protagonismo delas como agentes proativas no debate político e na formulação das políticas públicas.
As demonstrações de impaciência são classificadas pelos informantes em dois níveis: um muito agressivo, com manifestações que se justificam pela celeridade do andamento dos trabalhos; e um menos agressivo, mas “muito ostensivo com gestos e expressões e mímicas que manifestam pressa”, como relatou uma das entrevistadas. Ela também argumentou que:
Isso ocorre com muita frequência quando são mulheres que estão na tribuna. Quando são oradores masculinos, a pressa é menor ou nem chega a ser manifestada com tanta veemência. É como se ouvir as mulheres fosse perda de tempo. (E9)
Os homens são tão impacientes com as mulheres, que chegam a falar por cima da voz delas, uma forma de interferência rude e machista. Já que não conseguem fazer elas ficarem em silêncio, falam por cima da voz delas, a fim de neutralizar o discurso das deputadas. (E11)
Lembro de uma sessão recente sobre a PEC das coligações, em que a deputada Sheridan, que era relatora da proposta, estava falando e vários deputados pegaram o microfone e começaram a gritar pi pi enquanto ela falava. (E29)
Ao contrário dos casos relatados, os relatores masculinos costumam ser muito respeitados pelos seus pares, com trocas recíprocas de elogios e gentilezas na maioria dos casos. As posturas incivilizadas nos debates são frequentes e incluem as interações entre homens também, quando atuam como adversários políticos. Entretanto, no caso das mulheres, elas não precisam agir como adversárias para serem hostilizadas. Basta a presença delas na tribuna para que isso ocorra, como mostram os depoimentos.
As vaias são entendidas pelos/as informantes como formas coletivas de desqualificação discursiva das deputadas:
Vaiar as mulheres enquanto elas falam na tribuna é mais comum da parte dos deputados conservadores e da direita, mas não é uma regra geral. Se a deputada defende posições de direita, ela também pode ser vaiada pelos deputados de esquerda. Além de uma forma de machismo, tem muita relação com as disputadas entre direita e esquerda. (E38)
Quando vaiam as deputadas, na realidade, os homens estão praticando um atentado à democracia, pois elas são representantes eleitas e merecem respeito, da mesma forma que eles querem ser respeitados. (E 19)
O ato de vaiar é uma clara demonstração de hostilidade com as deputadas quando ocupam a tribuna. O objetivo da vaia é causar constrangimento público, mostrando a desaprovação da presença delas na arena legislativa. Junto com as vaias, a desatenção e a impaciência dos oradores masculinos compõem o código de conduta do machismo expressivo no parlamento brasileiro.
O machismo discursivo não-verbal é entendido pelos/as entrevistados/as como “entreolhares de deboche por parte dos deputados”, além de “gestos e expressões faciais de reprovação ao que às mulheres falam” ou “à sua simples presença na tribuna” (Entrevista 23). Outros depoimentos ressaltam que:
Considero o cúmulo da falta de respeito os deputados virarem as costas para as deputadas que estão na tribuna. (E31)
Deveria ser considerada falta de decoro parlamentar um deputado agir de forma tão negativa em relação ao discurso das mulheres, fazendo sinal negativo com o rosto e outros gestos que mostram descortesia com as deputadas. (E17)
As expressões não verbais são de grande relevância para a política, pois elas também comunicam. Além de atuarem como complementos do processo de interação presencial, as formas não verbais podem assumir significação própria (Eni ORLANDI, 1993). O repertório não verbal é considerado por Goffman (2011 [1956]) um conjunto de dispositivos que assume uma função de primeira grandeza na interação cotidiana e na representação da autoimagem dos sujeitos da conversação. Nos casos de machismo expressivo, o não verbal é usado pelos deputados como reforço das manifestações de descaso em relação aos pronunciamentos das mulheres, complementando as táticas de marginalização e silenciamento delas.
Após a abordagem dos 15 itens do Quadro 1, consideramos oportuno salientar que tanto nas entrevistas como nos grupos focais foram intensas as percepções dos/as informantes quanto às táticas de silenciamentos e obstrução do poder de fala das deputadas em termos mais amplo:
As deputadas não têm a fala respeitada e são interrompidas em todas as comissões e Plenário. É reflexo da nossa cultura machista que cerceia a liberdade de expressão das mulheres em todas as instâncias. (E36)
Apesar da suposta igualdade formal de condições para o exercício do mandato, Marlise Matos (2010) mostra que as instâncias discursivas do parlamento são apropriadas pelos homens mesmo quando as mulheres estão presentes e atuantes. Como salienta a autora, os homens interrompem as mulheres e exercem uma violência simbólica naturalizada, cerceando ou desvalorizando a voz das mulheres. Essa visão foi reforçada de forma enfática tanto pelos integrantes do grupo focal quanto pelas próprias deputadas, durante as entrevistas:
Há muita resistência dos deputados em ouvir nossas ideias. (Deputada Brunny/PR/MG)
Os homens não nos levam a sério. Precisamos provar competência o tempo todo, inclusive na oratória. Mesmo assim eles bloqueiam a fala das mulheres. (Deputada Marcivânia/PCdoB/AP)
Há muitas brincadeiras de mau gosto em relação à fala das mulheres. (Deputada Profa. Dorinha/ DEM/TO)
A outra forma de machismo discursivo é menos agressiva, mas não menos machista. As modalidades camufladas aprecem em vários relatos dos entrevistados:
O machismo discursivo é uma forma de impor as temáticas de maior interesse na defesa das pautas machistas. Desta forma a definição de pautas e de conteúdos do discurso público integram a realidade social de forma a criar e manter relações de dominação. E há também uma forma de sempre controlar a representatividade feminina, configurando assim um obstaculador nas defesas dos direitos femininos. As mulheres ficam com menos “vez e voz” no parlamento. (E39)
Considerações finais
O objetivo do texto foi analisar as diferentes formas de machismo discursivo na atuação das deputadas federais. O estudo permitiu o mapeamento de 15 modalidades dessa forma de machismo, revelando a amplitude e a dimensão desse modo de dominação no governo da palavra das mulheres no parlamento brasileiro.
É importante salientar que as 15 categorias surgiram dos relatos dos/as informantes, principalmente os/as assessores das deputadas, especialmente as mulheres. Os homens que atuam como assessores das parlamentares apresentam percepções menos expressivas e em menor escala. Isso reforça a relevância heurística do conceito de perspectiva social, conforme foi abordado na primeira parte do artigo.
Chama atenção ainda que as percepções das deputadas são mais voltadas para o machismo político no sentido mais amplo, sem muita ênfase para o machismo discursivo. Das 19 entrevistas com deputadas, apenas três mencionaram explicitamente o machismo na comunicação entre os parlamentares. Como elas estão no palco, talvez a preocupação seja mais com o jogo político no sentido mais amplo. Nesse aspecto, é oportuno retomar os argumentos das próprias deputadas durante as entrevistas, no que se refere especialmente às barreiras existentes no âmbito partidário, as dificuldades para a atuação cotidiana na Câmara e as condições de desigualdade que permeiam todo o mandato. Em suma, as deputadas parecem mais preocupadas com os obstáculos para o exercício do mandato em termos mais amplos.
Por outro lado, é oportuno ressaltar que o machismo na retórica parlamentar foi uma questão muito presente na avaliação dos integrantes do grupo focal. O mesmo ocorreu com as assessoras, que ficam mais distantes dos holofotes e com uma perspectiva mais focada nos bastidores. Talvez isso as leve a perceber o machismo discursivo com mais ênfase, além de comungarem da perspectiva e do lugar social de mulher.
Por fim vale uma observação em relação ao modo como a literatura trata o assunto. Como vimos na primeira parte do texto, o machismo discursivo é enquadrado no âmbito dos chamados micromachismos (GAMBETTA, 2001; GOMEZ, 2015; MANSO; SILVA, 2016). Essa forma de machismo aparece na literatura associado diretamente à misoginia, a partir de três modos de expressão dos homens que interferem diretamente no poder de fala das mulheres: manterrupting, bropropriating e mansplaining (BILMES, 1997; FLIKKEMA, 2017; FRANGOU, 2017; BRIDGES, 2017; WEATHERALL; EDMONDS, 2017).
Na arena parlamentar, a relevância do machismo discursivo aparece de forma tão intensa, agressiva e autoritária que se torna difícil entendê-lo e reconhecê-lo como micro. Cabe salientar que os estudos sobre micromachismos se referem a contextos comunicativos do cotidiano, em interações rotineiras, que diferem muito do âmbito parlamentar.
A pesquisa aqui apresentada nos permite questionar essa denominação de micromachismo. Diante do vigor dos relatos, consideramos inadequada a classificação para o contexto discursivo do parlamento. Pelo visto, trata-se de uma forma de machismo que compromete a qualidade da democracia e a qualidade da representação política das mulheres eleitas para o cargo de deputadas. Caberiam, contudo, estudos mais detalhados, envolvendo outras instituições como o Senado, as assembleias legislativas estaduais e as câmaras municipais de vereadores para que pudéssemos chegar a conclusões mais categóricas.