Introdução
Este artigo busca apresentar a perspectiva da interseccionalidade a partir de documentos extraídos de dois processos judiciais indicados por Kimberlé Crenshaw como motivadores do desenvolvimento da referida perspectiva. E, assim, debater introdutoriamente quatro questões dirigidas à interseccionalidade de Crenshaw, construídas no seio de estudos feministas que utilizam o materialismo histórico dialético como método de análise da realidade, em especial, as obras da socióloga Heleieth Saffioti.
Em um primeiro momento, apresentamos a professora e advogada Crenshaw e os antecedentes teóricos da interseccionalidade, que remontam ao século XIX. Pesquisamos os notórios casos norte-americanos DeGraffenreid vs. General Motors e Anita Hill vs. Clarence Thomas por meio de documentos oficiais (decisões judiciais e transcrições de depoimentos em sabatina no Senado dos Estados Unidos). E, finalmente, traduzimos e analisamos os trechos mais relevantes para a compreensão dos dois casos citados e sua relação com a invisibilidade das mulheres negras nas leis antidiscriminação dos EUA.
Em seguida, reconhecendo a relevância que a perspectiva da interseccionalidade tem assumido para os estudos feministas latino-americanos (em especial os estudos decoloniais e do feminismo negro), pontuamos, com base nos ensinamentos de Saffioti, os princípios do método de análise materialista. Logo, nos colocamos a refletir de forma introdutória com base nos apontamentos trazidos pelas autoras Heleieth Saffioti, Mirla Cisne, Helena Hirata e Danièle Kergoat, sobre quatro questões elaboradas a partir da observação do desenvolvimento da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw.
Kimberlé Crenshaw e o desenvolvimento da perspectiva da interseccionalidade
Kimberlé Crenshaw é renomada professora da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia1 e da Universidade de Columbia, é histórica militante do movimento feminista negro norte-americano, foi advogada de casos emblemáticos no tocante ao debate e reconhecimento de direitos de mulheres negras nos EUA e é diretora executiva do African American Policy Forum (AAPF, 2021).2 Em suas palavras: “Eu sou uma advogada, uma acadêmica, uma afro-americana, uma feminista, uma estruturalista e uma pós-modernista e creio que o direito está em toda parte e ao mesmo tempo está incompleto” (Kimberlé CRENSHAW, 1997, p. 18). À intelectual norte-americana é atribuído o desenvolvimento da perspectiva da interseccionalidade (CRENSHAW, 1989, 1991) que, não obstante seu precursionismo, encontra suas origens nos estudos sobre construções feministas e antirracistas norte-americanas, que remontam ao século XIX.
Ange-Marie Hancock explica que a ideia de articular simultaneamente as opressões de raça e de gênero é atribuída, por parte das estudiosas do tema, à publicação de Anna Julia Cooper, de 1982, intitulada A voz do Sul. Hancock aponta ainda que um grupo menor de pesquisadoras reconhecem os gérmens da interseccionalidade nas obras de Harriet Jacobs, autora da narrativa dos escravos de 1860, Incidentes na vida de uma menina escravizada, ou de Maria Miller Stewart, Religião e os princípios puros da moralidade, de 1830, que, nas palavras de Hancock, é “uma coleção de escritos sobre os desafios ‘únicos’ de analisar o tema das mulheres negras” (HANCOCK, 2013, p. 263, tradução nossa).
Dessa forma, cabe reconhecer que Anna Julia Cooper, Maria Stewart e Harriet Jacobs já desenvolviam as ideias de autodeterminação, busca pela libertação e valorização do conhecimento e das experiências das mulheres negras - características do que Patricia Hill Collins (2000) chama de epistemologia feminista negra, e utilizavam termos como “interconectividade” e “identidades multiplicativas”, inspiradores (ou gérmens) do conceito de interseccionalidade, formulado e difundido por Crenshaw (1989) a partir do final da década de 1980.3
Ao analisar as obras de Crenshaw, observa-se que o desenvolvimento da interseccionalidade está intrinsecamente relacionado à busca por resolução de casos concretos debatidos no sistema de Justiça dos EUA. A advogada Kimberlé afirma que na lei antidiscriminação norte-americana foram invisibilizadas as experiências das mulheres negras e que “foi pensando sobre o porquê desta ‘grande ausência’ ter acontecido dentro da complexa estrutura da lei antidiscriminação que o termo ‘interseccionalidade’ nasceu”; ela completa explicando suas razões para a criação do termo: “como uma jovem professora de Direito, eu queria definir esta profunda invisibilidade em relação à lei” (CRENSHAW, 2015, online, tradução nossa).
Levando em conta a compreensão da autora de que uma das maneiras de se abordar a interseccionalidade é examinar como os tribunais enquadram e interpretam as histórias de mulheres negras demandantes do sistema de Justiça (CRENSHAW, 1989), analisaremos dois casos judiciais aos quais Kimberlé atribui o desenvolvimento da referida perspectiva.
Iniciaremos o estudo dos processos pelo conhecido caso DeGraffenreid v. General Motors. Em 1976, Emma DeGraffenreid e mais quatro mulheres negras4 processaram a empresa multinacional General Motors por discriminação racial e de gênero, alegando que a empresa possuía um sistema de antiguidade que perpetuava discriminações. Conforme o modelo de contratações e demissões da empresa, as últimas pessoas contratadas seriam sempre as primeiras a serem despedidas em eventual necessidade de demissão. Ocorre que até o ano 1964 nenhuma mulher negra havia sido contratada pela empresa, de modo que em 1970, quando houve uma demissão em massa causada por uma recessão econômica, todas as mulheres negras da empresa perderam seus empregos (CRENSHAW, 1989). Em outras palavras, o trecho da decisão da Corte de Apelação no Missouri, de 15 de julho de 1977, nos explica o objeto da causa:
A ação foi trazida por cinco mulheres negras contra o ex-empregador, alegando que o sistema de antiguidade e a política de demissão “última contratada-primeira despedida”, definida pelo acordo de negociação coletiva, promovem a perpetuação de uma antiga discriminação de raça e sexo pelo empregador. (DEGRAFFENREID V. GENERAL MOTORS, 1977, tradução nossa).5
As demandantes da Justiça afirmavam que eram discriminadas pela referida empresa, que àquela altura não possuía mais entre seus quadros qualquer pessoa negra do sexo feminino. Contudo, a lei antidiscrimação do país não alcançava a complexidade real do caso, uma vez que os homens negros eram contratados para o ‘chão da fábrica’ - mas não havia mulheres nesse posto de trabalho - e as mulheres eram empregadas como secretárias - mas, nessas vagas, havia apenas pessoas brancas. Assim, apesar de haver emprego para mulheres e também para pessoas negras, as pessoas negras consideradas para os empregos eram apenas os homens, e entre as mulheres, apenas as brancas eram empregadas.
Diante da inovadora demanda das mulheres negras, que buscava articular duas discriminações que a lei tratava de maneira isolada, a Justiça optou por manter seus tradicionais posicionamentos e negar-lhes sua pretensão sob o argumento de que estariam buscando um novo “super-remédio judicial”, uma proteção legal superior à de outras/os cidadãs/cidadãos que nunca havia sido utilizada. Podemos verificar o posicionamento conservador do Judiciário que definiu pela inaplicabilidade da lei antidiscriminação de forma “combinada” entre raça e sexo em um trecho que destacamos do processo judicial, o Memorando assinado por juízes da Corte de Apelação de Missouri em 4 de maio de 1976.
A questão inicial neste processo é se as demandantes [mulheres negras] estão buscando proteção contra a discriminação racial ou discriminação baseada no sexo. As autoras alegam que estão processando em nome de [todas as] mulheres negras e que, portanto, esse processo tenta combinar duas causas judiciais em uma nova subcategoria especial, a saber, uma combinação de discriminação racial e baseada no sexo. O Tribunal observa que os demandantes não conseguiram citar qualquer decisão que declara que as mulheres negras são uma classe especial a serem protegidas contra a discriminação. A própria pesquisa do Tribunal falhou ao tentar apresentar tal decisão. As demandantes têm, obviamente, direito a um remédio se tiverem sido vítimas de discriminação. No entanto, elas não devem ser autorizadas a combinar remédios estatutários para criar um novo “super-remédio” que lhes daria uma proteção para além do que os legisladores pretendiam. Assim, este processo deve ser examinado para ver se ele estabelece uma causa sobre discriminação racial, discriminação sexual ou as duas alternativamente, mas não uma combinação de ambas. (DEGRAFFENREID V. GENERAL MOTORS, 1976, tradução nossa).6
Dessa maneira, a interpretação dos tribunais, em todas as instâncias, foi de que as mulheres negras não poderiam provar a discriminação de gênero, porque nem todas as mulheres foram discriminadas, e também não poderiam provar a discriminação racial, porque nem todas as pessoas negras eram discriminadas. Tampouco a combinação dessas discriminações foi entendida como adequada, assim, a ousadia das demandantes de propor um novo “remédio” legal para o caso também foi rejeitada pelo Judiciário.
O segundo caso emblemático que abordaremos é o de AnitaHill v. Clarence Thomas. O juiz ultraconservador Clarence Thomas, em 1991, foi indicado pelo Presidente dos Estados Unidos George H. W. Bush para compor a Suprema Corte do país, ocupando a cadeira de Thurgood Marshall, o primeiro homem negro a integrar a Corte. Thomas seria então o segundo a conquistar tal posto.
Seguindo o rito constitucional de nomeação para a Suprema Corte, para assumir como 95º Associado de Justiça da Suprema Corte dos EUA o indicado presidencial deveria passar por uma sabatina e confirmação pelo Senado, o que viria a ocorrer de maneira bastante conturbada, pois Clarence Thomas era acusado de utilizar-se de sua posição hierarquicamente superior e, em ambiente de trabalho, assediar sexualmente a procuradora e professora da Universidade de Oklahoma, Anita Hill. Por ocasião da indicação de Thomas por George Bush, Anita Hill foi convocada pelo Senado para prestar depoimento perante o comitê de senadores encarregado da sabatina.
Anita Hill e Clarence Thomas, ambos negros, tiveram suas reivindicações recebidas de diferentes maneiras pelo Senado, pela população e por militantes do movimento negro norte-americano. Anita, em 11 de outubro de 1991, foi ouvida por um comitê do Senado, quando descreveu inúmeras situações de assédio provocadas por Clarence Thomas, seu chefe à época. Vejamos trechos que selecionamos da transcrição da declaração de Anita Hill em audiência oficial do Senado dos EUA:
Suas conversas eram muito vívidas. Ele falava sobre atos que ele via em filmes pornográficos envolvendo mulheres fazendo sexo com animais e filmes mostrando sexo grupal ou cenas de estupro. Ele falava sobre materiais pornográficos que descreviam indivíduos com pênis grandes ou seios grandes envolvidos em vários atos sexuais. Em muitas ocasiões, Thomas me contava vibrantemente suas próprias proezas sexuais […]. Eu falava a ele que eu não queria conversar sobre esses assuntos. […] Meus esforços para mudar o tema raramente eram bem sucedidos. […] Ele comentava o que eu estava vestindo em termos de tornar-me mais ou menos sexualmente atraente. Os incidentes ocorriam em seu escritório interno na EEOC. […] Em outras ocasiões, ele se referia ao tamanho de seu próprio pênis como sendo maior do que o normal, e ele também falava, em algumas ocasiões, dos prazeres que ele havia dado a mulheres com sexo oral. Nesse ponto, no final de 1982, comecei a sentir forte estresse no trabalho. […] Teria sido mais confortável permanecer em silêncio. Não tomei iniciativa alguma para informar ninguém. Mas quando um representante desse comitê pediu para relatar minha experiência, eu senti que precisava dizer a verdade. Eu não podia continuar em silêncio (HILL, 1991, p. 3-5, tradução nossa).7
Anita Hill fez denúncias contundentes, coerentes e objetivas, porém mais da metade do Senado não levou seu depoimento em conta. As consequências de sua denúncia foram revertidas em investigações sobre sua moral e suas práticas sociais e sexuais, foram publicamente atribuídos a ela uma série de estereótipos que comumente são oferecidos a mulheres que enfrentam e publicizam situações de assédio sexual no trabalho, tais como: a “megera ciumenta” que quer acabar com a carreira de um homem, a “mulher perdida” que sofre de patologia sexual, fazendo sexo mais do que deveria fazer, e a “mulher louca” que imagina casos e relacionamentos sexuais (CRENSHAW, 1997, p. 22-23).
Clarence Thomas, em vários momentos dos longos dias em que foi ouvido no Senado (11, 12 e 18 de outubro de 1991), rebateu a denúncia de Anita Hill reforçando estereótipos misóginos e envolvendo o movimento negro norte-americano em uma narrativa de que o depoimento de Anita e as posturas do Senado e da mídia eram condutas racistas semelhantes às que, frequentemente, linchavam homens negros acusando-os injustamente de comportamentos sexuais violentos e imorais. Clarence utilizou em sua argumentação, para desconstruir as declarações de Anita, as tenebrosas e conhecidas cenas racistas em que homens negros eram linchados e pendurados em árvores nos EUA. Vejamos trecho de sua audiência no Senado:
Eu acho que há algo terrivelmente errado com este país, quando qualquer pessoa, qualquer pessoa neste país livre, é submetida a isso. Esta não é uma sala fechada. Houve uma investigação do FBI. Esta não é uma oportunidade para falar sobre assuntos difíceis em particular ou em um ambiente fechado. Isto é um circo. É uma desgraça nacional. E do meu ponto de vista, como um norte-americano negro, no que me diz respeito, é um linchamento de alta tecnologia para negros atrevidos que, de alguma forma, se dignam a pensar por si mesmos, a fazerem por si mesmos, a terem ideias diferentes, e é um recado que, a menos que você acate uma ordem antiga, é o que acontecerá com você, você será linchado, destruído, caricaturado por um comitê do Senado dos EUA, em vez de pendurado em uma árvore. (THOMAS, 1993, p. 157-158, tradução nossa).8
A tática argumentativa da defesa de Thomas, de apresentar à sociedade norte-americana - marcada por histórias de violência e discriminação contra a população negra - uma narrativa de perseguição racista que buscava inviabilizar a confirmação da indicação de um homem negro para assumir uma das cadeiras do mais poderoso órgão da Justiça dos EUA, resultou em uma grande mobilização do movimento negro a favor de sua nomeação, reconhecendo nele seu representante e impulsionando o Senado a confirmar sua indicação por 52 votos a 48.
Kimberlé Crenshaw, em defesa de Anita Hill, apontou na perspectiva da interseccionalidade a explicação para a negativa do movimento negro em apoiar as denúncias de assédio sexual apresentadas por Hill.
A compreensão da discriminação sexual tende a se restringir à experiência das mulheres de elite, a experiência do racismo tende a ser vista apenas em relação às experiências dos homens afro-americanos. Este foi o motivo que deu a Clarence Thomas a oportunidade de galvanizar a comunidade americana em seu favor. Clarence Thomas denunciou as audiências como “linchamento de alta tecnologia”, e isso ressoou profundamente entre os afro-americanos como um símbolo de subordinação racial. Não existe nenhum símbolo de racismo aplicado diretamente às mulheres afro-americanas, como o linchamento. Portanto Anita Hill não tinha uma cartada semelhante à de Clarence Thomas. Tanto política quanto legalmente as mulheres afro-americanas ficam naquela brecha que existe entre o feminismo e o racismo. Você pode ver isto até na lei antidiscriminação. (CRENSHAW, 1997, p. 24).
Os dois casos analisados evidenciam que as experiências das mulheres negras são invisibilizadas pela legislação e, muitas vezes, dentro dos próprios grupos sociais dos quais participam. Observamos que o reconhecimento da discriminação racial é medido a partir das experiências dos homens negros e a discriminação de gênero é descrita a partir da realidade das mulheres brancas, fato que, constantemente, viola e desrespeita os direitos civis das mulheres negras, não reconhecendo as realidades específicas em que estão inseridas. Crenshaw enfatiza que, “sob esse ponto de vista, as mulheres negras são protegidas apenas à medida que suas experiências coincidem com as de qualquer um dos dois grupos. Onde suas experiências são distintas, as mulheres negras podem esperar pouca proteção.”9 (CRENSHAW, 1989, p. 143).
Assim, a partir de processos judiciais de repercussão social e política, verificando inaplicabilidade do feminismo negro em leis antidiscriminação dos Estados Unidos, Crenshaw sistematizou a interseccionalidade como a combinação (sobreposição) de dois (ou mais) tipos diferentes de discriminação, sugerindo que nem sempre lidamos com grupos distintos de pessoas, mas com grupos sobrepostos. Dessa maneira, para a interseccionalidade as discriminações múltiplas (incluindo questões geracionais, das pessoas com deficiências, de intolerância religiosa, entre outras) sobrepõem-se, cruzam-se, somam-se em cada indivíduo. Vejamos como a advogada e professora define interseccionalidade:
Interseccionalidade é uma sensibilidade analítica, uma forma de pensar sobre identidade e sua relação com poder. Originalmente articulada em nome de mulheres negras, o termo trouxe à luz a invisibilidade de muitas cidadãs e cidadãos que se afirmavam membros de grupos que, muitas vezes, não conseguiam representá-los. O apagamento interseccional não é exclusivo das mulheres negras. Pessoas não brancas nos movimentos LGBTQ; meninas não brancas na luta contra o sistema que as conduz da escola para a cadeia; mulheres nos movimentos de imigração; mulheres trans dentro dos movimentos feministas; e pessoas com deficiência lutando contra abusos da polícia - todas enfrentam vulnerabilidades que refletem as interseccionalidades entre racismo, sexismo, opressão de classe, transfobia, capacitismo e outros. A interseccionalidade proporcionou a muitas advogadas uma forma de enquadrar determinadas circunstâncias e lutar pela sua visibilidade e inclusão. (CRENSHAW, 2015, online, tradução nossa).10
Por conseguinte, entendemos a interseccionalidade como importante instrumento político e judicial (em especial, como técnica de argumentação jurídica), e reverenciamos as contribuições teóricas da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw (1989, 1991, 1997, 2002, 2015) para o fortalecimento do feminismo negro, para a afirmação da heterogeneidade entre as mulheres e para a desconstrução das teorias universalistas.
Quatro questões materialistas à perspectiva da interseccionalidade
Reconhecendo o destaque e a possível centralidade que esta perspectiva tem assumido na construção dos feminismos latino-americanos (em especial, os estudos pós e/ou decoloniais e o feminismo negro), colocamo-nos a refletir a partir de quatro questões que se desenvolvem no seio de estudos de feministas que utilizam como método de análise da realidade o materialismo histórico dialético, cuja grande expoente brasileira é Heleieth Saffioti.
Assim, em relação à interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw questionamo-nos sobre: i) a possível noção geométrica /segmentação positivista atribuída à intersecção das opressões; ii) a multiplicidade de ‘pontos de entrada’ da interseccionalidade; iii) a compreensão de todas as ‘opressões’ em um mesmo plano de análise, sem distinção com as relações sociais de exploração sobre o trabalho; e iv) o isolamento de categorias analíticas que estão reflexivamente implicadas na realidade social, tais como, gênero, raça e classe.
Preliminarmente ao desenvolvimento das quatro questões, afirmamos que conhecer sobre método é imprescindível para elaborar, organizar e atuar na desconstrução das relações de exploração e dominação. Assim, com base nos ensinamentos de Saffioti (2013, 2015), apresentamos alguns princípios metodológicos para nossa análise.
Primeiramente, adotamos a perspectiva da totalidade concreta das relações sociais, entendendo-a como processo social, dinâmico e contraditório, dialético e histórico, e identificamos relações sociais que determinam o ser social, a saber: relações de classe social, de raça/etnia e de gênero/sexo.
Cabe destacar que, em Gênero, patriarcado, violência, Heleith Saffioti utiliza o termo gênero de maneira crítica, relacionando-o intrinsecamente às questões de classe e referenciando-o no patriarcado, que é a forma atual (hierárquica e violenta) como se organizam as relações e representações dos sexos, em suas palavras: “Tratar esta realidade exclusivamente em termos de gênero distrai a atenção do poder do patriarca […] ‘neutralizando’ a exploração-dominação masculina” (SAFFIOTI, 2015, p. 136). Outras feministas materialistas como a brasileira Mirla Cisne e a materialista francófona Danièle Kergoat consideram mais adequada a utilização do termo sexo.
Em segundo, adotamos a concepção de que as ideias e a cultura apoiam-se em uma dimensão material, notadamente na divisão do trabalho (modo de produção social da vida) e reconhecemos que a ideologia se corporifica nos agentes sociais que representam os dois polos da dominação-exploração.
Nesse sentido, apontamos que a dominação e a exploração se apresentam como faces de um mesmo processo. De fato, como afirma Heleieth Saffioti (2015), se situássemos a dominação em um campo político e a exploração em um campo econômico, cometeríamos o erro analítico de não compreender sua interação e interdependência na realidade.
Por fim, entendemos a centralidade dos debates sobre poder, pois a libertação plena das mulheres só acontecerá com mudanças estruturais, uma vez que a esfera das relações interpessoais não está descolada do sistema patriarcal-racista-capitalista, constituindo-se como parte das estruturas sociais. Sendo assim, são as práticas sociais coletivas as potências políticas portadoras da capacidade de promoção de transformações nas relações sociais.
Partindo desses princípios orientadores do método materialista, retomamos as questões a partir da análise do artigo “Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais”, em que Danièle Kergoat (2010, p. 98) afirma que o resumo da crítica ao artigo “Mapping the margins”, no qual Crenshaw desenvolve a definição de interseccionalidade, é que “pensar em termos de cartografia nos leva a naturalizar as categorias analíticas”.
Dito de outra forma, a multiplicidade de categorias mascara as relações sociais. Ora, não podemos dissociar as categorias das relações sociais dentro das quais foram construídas. Assim, trabalhar com categorias, mesmo que reformuladas em termos de intersecções, implica correr o risco de tornar invisíveis alguns pontos que podem tanto revelar os aspectos mais fortes da dominação como sugerir estratégias de resistência. A noção de multiposicionalidade apresenta, portanto, um problema, pois [na realidade] não há propriamente “posições” ou, mais especificamente, estas não são fixas; por estarem inseridas em relações dinâmicas, estão em perpétua evolução e renegociação (KERGOAT, 2010, p. 98).
Como levantado por Kergoat, a adoção da interseccionalidade como método de análise pode nos levar à compreensão da realidade a partir de uma noção geométrica, com categorias fixas, em vez de relações dinâmicas e historicizadas. Ela desenvolve também que a multiplicidade de categorias pode dissimular as relações sociais determinantes do ser social e fragmentar/individualizar as formas de resistência das sujeitas/os oprimidas/os, priorizando a concepção de indivíduos como vítimas e relativizando a totalidade concreta das relações do ser social, o que pode retirar do foco de análise e da tática das organizações a construção de sujeitos coletivos efetivamente capazes de reagir e resistir aos processos de dominação-exploração.
No mesmo sentido, Mirla Cisne (2014) aponta que a ideia de relações sobrepostas, somadas, ou ainda em uma intersecção, levaria à compreensão de uma realidade segmentada de forma positivista, em que as relações seriam entendidas e interpretadas de maneira separada.
Partimos do pressuposto de que classe, “raça” e relações sociais de sexo (incluindo a sexualidade) não compõem apenas relações superpostas, tampouco adicionais ou mesmo com “intersecções”, como defende Crenshaw (1995) entre as relações de “gênero” e “raça”. Ao considerar, por exemplo, que elas seriam relações adicionais, ou seja, somáveis, cairíamos na segmentação positivista de entendê-las como relações separadas (CISNE, 2014, p. 67).
Dessa forma, o método materialista não concebe as relações como sobreposições, mas como interdependentes, consubstanciadas, ou ainda, conforme um “nó” em que raça/etnia, sexo/gênero e classe formam a totalidade concreta das relações sociais e são presididas por uma lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado, funcionando como um “nó frouxo” que, dependendo da situação, aperta mais uma subestrutura e afrouxa outra, conforme Saffioti (2015).
Portanto, o debate sobre (a disputa do) poder está intrinsecamente vinculado à adoção (ou não) da multiplicidade de categorias analíticas apontadas pela interseccionalidade - idade, regionalidade, religião, casta, nação, para além de gênero/sexo, raça e classe social. Tal infinidade de ‘pontos de entrada’ potencializa a fragmentação das práticas sociais “que podem dar origem a formas de resistência e que podem, portanto, ser as portadoras de um potencial de mudança no nível das relações sociais.” (KERGOAT, 2010, p. 95). Ou seja, a definição do método de análise da realidade está diretamente vinculada à determinação das táticas e lutas de enfrentamento e resistência às dominações-explorações, assim, compreender o entrelaçamento, a imbricação, a relação entre as dominações tem caráter imprescindível para a construção dos coletivos e movimentos que buscam alterar as relações de poder.
A partir dos apontamentos sobre a interseccionalidade que Kergoat desenvolve em seu livro Se battre, disent-elles, de 2012, Helena Hirata (2014, p. 65) sistematiza que “não é certo que todos esses pontos remetem a relações sociais e talvez não seja o caso de colocá-los todos num mesmo plano”, em continuidade, ratifica que teóricos da interseccionalidade “continuam a raciocinar em termos de categorias e não de relações sociais, privilegiando uma ou outra categoria, como por exemplo a nação, a classe, a religião, o sexo, a casta etc., sem historicizá-las e, por vezes, não levando em conta as dimensões materiais da dominação”.
Helena Hirata aponta ainda que a crítica central de Kergoat à interseccionalidade é que ela não se funda na compreensão das relações sociais determinantes do ser social - sexo, raça e classe - tampouco adere à sua complexidade e dinâmica. No entanto, Hirata defende que “há outra crítica que nem sempre fica explícita: a de que a análise interseccional coloca em jogo, em geral, mais o par gênero-raça, deixando a dimensão classe social em um plano menos visível” (HIRATA, 2014, p. 65-66), apontamento que pudemos observar ao longo do estudo sobre a origem e o desenvolvimento da interseccionalidade.
Considerações finais
Parece necessário compreender a complexidade das relações de raça e gênero também desde uma perspectiva de classe, como faz Heleieth Saffioti, através da metáfora do “nó”, em que a realidade é “formada pelas três subestruturas: gênero, classe social, raça/etnia, [e é] presidida por uma lógica contraditória, distinta das que regem cada contradição em separado”(SAFFIOTI, 2015, p. 133). Logo, com Saffioti tratamos essas contradições na condição de “fundidas ou enoveladas ou enlaçadas em um nó”, um “nó frouxo” que permite certa mobilidade para cada uma de suas subestruturas que “passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó. Ou seja, a dinâmica de cada uma se condiciona à nova realidade, presidida por uma lógica contraditória” (SAFFIOTI, 2015, p. 133).
Também se apresenta como opção metodológica materialista a consubstancialidade das relações sociais de sexo, raça e classe, método de análise do feminismo materialista francófono, que anuncia o patriarcado, o racismo e o capitalismo como relações estruturais integradas e dialeticamente articuladas, uma como substância da outra, uma como o prolongamento da outra, como extensivas e com efeitos sociais conjugados, de tal modo que se parte dessas relações estruturantes para compreender os problemas sociais (Verônica FERREIRA, 2014).
Dessa forma, para o feminismo materialista, a realidade não pode ser observada a partir de uma noção geométrica, de forma positivista e segmentada como propõe Crenshaw; deve-se compreendê-la como relações dinâmicas e historicizadas.
Isto posto, compreendemos a relevância da perspectiva da interseccionalidade de Kimberlé Crenshaw como instrumento político e jurídico, em especial como técnica de argumentação, porém, conforme debatido a partir dos estudos de Mirla Cisne, Helena Hirata, Danièle Kergoat e, em especial, de Heleieth Saffioti, apontamos questionamentos à sua utilização como método de análise da realidade, bem como os seus limites para a construção de uma epistemologia feminista orientada por horizontes de transformação estrutural da realidade social.