Mulheres, lazer e trabalho: para início de conversa
Ao abordarmos a temática mulheres, não nos referimos a “uma categoria universal, exceto pela projeção de nossas próprias referências culturais. As mulheres tornam-se mulheres em contextos sociais e culturais específicos” (Cynthia SARTI, 2004, p. 35). A sua escolha como sujeitos da pesquisa se constitui em um exercício político de visibilizar a vida e as relações estabelecidas entre o trabalho e o lazer, segmento social que representa, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010), 51,03% da população brasileira. Cada contexto social e cultural produz mulheres com especificidades, imperativos, anseios, histórias, conquistas, preocupações e lutas.
Um dos principais focos das lutas do feminismo é a igualdade, considerando as diferenças intrínsecas à diversidade das relações humanas. “As demandas pela igualdade necessariamente evocam e repudiam as diferenças que num primeiro momento não permitiriam a igualdade” (Joan SCOTT, 2005, p. 20). Embora a autora lembre que a luta pela garantia por direitos iguais é legítima, essa igualdade é uma abstração, pois, na sociedade, as pessoas não são iguais, e a singularidade que as constitui é composta por diferenças presumidas que não são singularmente individualizadas, mas categorizadas. A identidade de grupo é o resultado dessas categorizações por raça, gênero, etnicidade, religião, sexualidade, classe social, faixa etária, entre outras, e varia conforme o momento histórico.
O Brasil tem garantido tardiamente os direitos das mulheres, apesar de ter subscrito a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1974, como a Carta Magna dos Direitos das Mulheres. Diante disso, propomo-nos aqui a refletir acerca da relação delas com dois desses direitos, o trabalho e o lazer, complementares em uma sociedade humanizada, que primasse pelo bem-estar das pessoas.
Elaine Gonçalves (2010) lembra que as questões de gênero1 perpassam e são perpassadas pelas relações de trabalho, nas quais homens e mulheres historicamente ocuparam lugares diferentes e culturalmente determinados. Essa construção cultural produziu uma dicotomia entre os mundos público e privado, nos quais o público representaria um espaço mais masculino, considerado produtivo, criativo e objetivo, em oposição ao mundo privado, associado ao feminino, ao reprodutivo, subjetivo e enfadonho.
A partir da organização das mulheres em movimentos sociais, o conceito de trabalho passou a ser considerado tal como é desempenhado tanto na esfera pública, quanto na privada (Elisabeth SOUZA LOBO, 2011). Para a autora, a divisão sexual do trabalho reflete a divisão das relações sociais entre os sexos, historicamente construída, separando o que é considerado “esperado” para homens e mulheres. Nesse processo, tratado muitas vezes como “natural”, o homem seria responsável pelo provimento, garantido via trabalho remunerado, também tratado como público, enquanto as mulheres estariam destinadas à esfera reprodutiva, privada, via atividades domésticas não remuneradas.
No entanto, estudos dedicados aos modos de vida contemporâneos indicam que os mesmos aspectos culturais que construíram a dicotomia público-privado vêm indicando novas e diferentes perspectivas relacionais, nas quais a construção de identidades sociais das pessoas tenderia a estar mais relacionada aos domínios do trabalho do que às relações de família e de parentesco. Trata-se de uma mudança nas relações sociais, que questiona padrões estabelecidos como o de “homem provedor/mulher cuidadora” e a chamada “família tradicional”, que estruturava a dita família nuclear. Isso “explicaria como o trabalho se tornou fundamental na vida de uma parte considerável das mulheres nas ‘sociedades ocidentais’ na contemporaneidade” (GONÇALVES, 2010, p. 240).
É importante destacar que esses padrões nunca corresponderam ao conjunto das famílias, ainda mais se considerarmos as famílias nucleares, compostas por mulheres negras (pretas e pardas) e da classe trabalhadora, inseridas no trabalho remunerado antes das mulheres burguesas e de classe média. Para esse debate, é necessário levar em conta a interdependência das relações de gênero, de classe e de raça enquanto relações de poder e, por essa razão, não é possível pensar as relações sociais entre os sexos, dissociadas de tais dimensões.
Diante desse cenário, as mudanças nas relações sociais têm ampliado a noção de independência, em decorrência das variadas possibilidades e situações vividas pelas mulheres, no âmbito da sociabilidade, que remetem à luta feminista pela igualdade. Apesar de atual, Gonçalves (2010) lembra que essa já era uma questão presente nas mobilizações de mulheres no século XIX, quando as “novas mulheres” se viam em dificuldade de relacionamento com os “velhos homens”. A conquista da autonomia proporcionada pela realização profissional colide com parte das expectativas sociais. Na vida social, as relações entre homens e mulheres vêm sendo afetadas pelas conquistas da luta feminista e atravessadas pelas relações de poder de sexo, de raça e classe.
Nesse sentido, enfatizamos a importância de utilizar outros parâmetros de análise para as feminilidades, procurando compreender como as opressões se combinam e entrecruzam, gerando outras formas de opressão (Djamila RIBEIRO, 2016). Buscamos, portanto, pensar novas possibilidades de existência a partir de um olhar interseccional.
A persistência da desigualdade para a maior parte das mulheres pode estar relacionada com a segregação ocupacional e a discriminação salarial sofridas por elas no mercado de trabalho. O estudo Estatísticas de Gênero, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018) mostra que as mulheres trabalham em média três horas por semana a mais que os homens, considerando o trabalho remunerado e o não remunerado (afazeres domésticos e cuidados com pessoas da família). Apesar disso, a sua renda média corresponde a 76,5% do rendimento dos homens, ou seja, cerca de 24% a menos. Os mesmos dados mostram que 28,2% trabalham em tempo parcial no mercado (menos de 30 horas semanais), contra 14,1% dos homens. Teresa Vicente (2018) atribui o fato às demandas concernentes ao trabalho chamado de reprodutivo, que envolve os afazeres domésticos e os cuidados para com pessoas da família, em especial os/as filhos/as. Mesmo controlando esse diferencial por horas trabalhadas no mercado, em 2016, elas recebiam proventos que equivaliam a 86,7% dos destinados aos homens, ou seja, 13,3% a menos.
No caso das mulheres negras, essa diferença é ainda maior. Elas recebiam apenas 44,4% em relação aos homens brancos e 58,6%, em comparação com as mulheres brancas (IBGE, 2018). Apontamos que as relações de trabalho expõem com clareza os padrões hierárquicos nas relações entre as mulheres, organizados por outras variáveis, dentre as quais se destacam raça e classe. Sobre a divisão sexual do trabalho, Flávia Biroli (2016) salienta a existência de hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas, que ativam restrições e desvantagens e produzem uma posição desigual para as mulheres; tais hierarquias assumem formas diferenciadas segundo a posição de raça e classe. Ademais, a autora ressalta que a divisão sexual do trabalho não encontra um limite nas vantagens de classe e de raça - impacta as mulheres por serem mulheres, embora isso não signifique padrões resultantes comuns.
Apesar desse cenário ser majoritário e persistente, percebemos que o aumento da escolarização e da profissionalização tem permitido que muitas rompam com esse ciclo e passem a trilhar caminhos negados ou restritos até pouco tempo (GONÇALVES, 2010). As estatísticas de gênero (IBGE, 2018) indicam que as mulheres estudam mais que os homens. Entre a população com 25 anos ou mais de idade, em 2016, 23,5% das mulheres brancas tinham ensino superior completo; entre as pretas ou pardas, o percentual caía para 10,4%. No caso dos homens brancos, 20,7% estão nesse grupo, contra apenas 7% dos pretos e pardos. Feita a ressalva em relação à presença da questão racial no cenário, tínhamos 33,9% das mulheres com ensino superior completo, contra 27,7% dos homens. No entanto, os mesmos dados mostram que as mulheres com nível superior recebiam, em 2016, apenas 63,4% do que os homens com o mesmo nível de formação. Além disso, apenas 39,1% dos cargos gerenciais eram ocupados por elas em 2016.
Biroli (2016) ressalta que, mesmo com todas as transformações ocorridas nas últimas décadas, as mulheres dedicam mais tempo às tarefas domésticas (afazeres domésticos e cuidados com a família). Para Ângela Araújo e Maria Rosa Lombardi (2013), a ampliação do acesso à educação e as transformações no padrão ocupacional não conseguiram garantir a superação das desigualdades entre mulheres e homens nos rendimentos, tampouco da maior precariedade das primeiras nas relações de trabalho.
A essa análise, Cristina Carrasco (2012) acrescenta o fato de que deveria ser acrescentada uma terceira categoria à divisão “trabalho público/privado”: o doméstico. Este último se diferencia do privado, pois os elementos que o compõem não são “próprios” da pessoa, ou seja, retiram da mulher parte da possibilidade de tomar decisões. Se o privado tem um viés positivo - enquanto forma de se distanciar do mundo exterior e encontrar bem-estar em um espaço reservado -, o doméstico seria “próprio”, mas, no caso das mulheres, “desenvolve-se na casa, com a família e as necessidades que esta gera. É exatamente o contrário do ‘estar por si mesmo, consigo mesmo’; ‘é estar para os outros’, é uma situação de serviço, de entrega” (p. 42).
Heloísa Bruhns (2009) indica que essas questões passaram a entrar na agenda feminista após os movimentos sociais de liberação da década de 1960. Segundo a autora, surgiram manifestações de subjetividade vinculadas à expressão do desejo como direito de todos, buscando “não apenas no lazer e nas relações amorosas, mas também no trabalho e em todas as relações sociais” (p. 7). É nesse cenário que um novo tipo de participação social aparece, orientado para objetivos pragmáticos e/ou personalizados, centrados em questões cotidianas, tais quais esportes, feminismo, macrobiótica, sexualidade etc.
Entre essas questões, como já dissemos, nosso foco aqui recai sobre o lazer. Presente de diferentes formas na vida das pessoas ao longo da história, foi com a Revolução Industrial que ele passou a ser considerado em relação ao trabalho, como contraponto ou como complementariedade dos tempos e experiências. Nas últimas décadas, as vivências no âmbito do lazer passaram a ser consideradas e analisadas incluindo outros aspectos do mundo contemporâneo, que vão do poder e da desigualdade políticos e econômicos à construção de identidades, subjetividades e corporeidades. Essa abertura para novas temáticas e olhares incluiu a incorporação da perspectiva de gênero ao pensamento e à pesquisa social.
No caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988, resultado de um processo que envolveu a sociedade civil, diz, no artigo sexto: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados” (BRASIL, 1988); e no caput do art. 5º, afirma: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza […]” (BRASIL, 1988). Desse modo, podemos inferir que o lazer é um direito das brasileiras.
Lazer é um tema muito amplo que é influenciado por vários fatores como sexo, gênero, sexualidade, raça, etnia, cultura, localização geográfica, status social, habilidades físicas, entre muitos outros aspectos e circunstâncias que definem e determinam a realidade de cada um de nós. Não é possível tentar definir lazer sem considerar “lazer para quem” (Carla BARBOSA; Toni LIECHTY; Raquel PEDERCINI, 2013, p. 16).
Em outras palavras, o lazer não é estanque; produz marcas identitárias e subjetivas e é por elas produzido. Ademais, uma mesma pessoa pode experienciá-lo e significá-lo de diversos modos ao longo de sua trajetória de vida. Por se tratar de uma esfera sociocultural, os marcadores de idade, gênero, escolaridade, classe social, entre outros produzirão diferentes maneiras de compreender, apropriar-se e vivenciar o lazer (Fernando GONZÁLEZ; Maria SCHWENGBER; Naira PINHEIRO, 2015).
A fim de contribuir com reflexões acerca desse questionamento, o objetivo do presente estudo é tecer reflexões sobre a relação entre mulheres2, lazer e trabalho, analisando os dados coletados pela pesquisa Lazer no Brasil3.
Percurso Metodológico: a pesquisa Lazer no Brasil como ponto de partida
A pesquisa Lazer no Brasil, realizada por um grupo de pesquisadores de diferentes universidades brasileiras, no período de 2013 a 2017, teve como objetivo coletar dados e informações acerca dos hábitos, interesses, vivências e barreiras relacionados ao lazer da população brasileira, visando a subsidiar políticas públicas e novos estudos (Edmur STOPPA; Hélder ISAYAMA, 2017) e contemplando a diversidade regional, as relações que dialogam com o lazer e os segmentos transversais como as mulheres e o público LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais).
A coleta e a sistematização dos dados do estudo foram realizadas por meio de um questionário estruturado4. Ao todo, contabilizaram-se 2.400 entrevistas individuais - face a face -, com pessoas a partir dos sete anos de idade, residentes nos 26 estados da Federação e no Distrito Federal - nas zonas rurais e urbanas - em cidades de pequeno, médio e grande porte.
A amostra foi construída por cotas representativas da população, tendo em conta as variáveis de região e unidade da federação. Ainda foram previstas, em cada estado, cotas de sexo, idade, escolaridade e renda familiar, conforme dados da população apurados no Censo Demográfico 2010, do IBGE. A distribuição por sexo levou a um percentual de 50,63% de mulheres, com 1.215 respondentes, e de 49,38% de homens, com 1.185 entrevistados.
A pesquisa teve caráter quantitativo e qualitativo e foi realizada pela técnica de survey, por levantamento amostral. Os dados foram coletados por intermédio de entrevistas pessoais presenciais em pontos de grande fluxo, nas cidades previamente sorteadas para compor a amostra. O instrumento de coleta foi composto por 39 perguntas abertas e fechadas. Nossa análise se restringe às respostas dadas às 08 principais perguntas5 - abertas e fechadas - encontradas no estudo de Stoppa e Isayama (2017, p. 17), com relação aos “hábitos relacionados aos usos do tempo livre”. Segundo os autores, a respectiva pesquisa apresenta um erro amostral máximo de 2%, para mais ou para menos, para o país, e nível de confiança de 95%.
Vale ressaltar que o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFMG. Além disso, a pesquisa seguiu os princípios do Código Internacional de Conduta da ICC/ESOMAR (2008), documento que orienta a prática de pesquisa, aceito em âmbito internacional.
Feita a coleta, para garantir a qualidade dos dados, foi realizada a checagem por telefone, obedecendo ao seguinte procedimento: a) confirmação da existência do entrevistado; e b) verificação da aplicação integral do questionário. A checagem telefônica foi realizada em 10% da amostra, aleatoriamente, por entrevistador, totalizando 240 checagens realizadas.
Após a checagem e validação, os dados foram tabulados por profissionais da área de estatística, contratados pelo projeto e inseridos em uma base de dados desenvolvida especificamente para a pesquisa (STOPPA; ISAYAMA, 2017).
Assim, realizamos, neste estudo, uma análise qualitativa, procurando desvelar sobre o que dizem os dados da pesquisa Lazer no Brasil que nos permitem refletir acerca da relação mulheres, trabalho e lazer.
Quem são as mulheres participantes da pesquisa
Conhecer quem são as mulheres participantes da pesquisa é parte do processo de análise quando se busca, mais do que descrever dados encontrados, refletir acerca das forças internas que geraram as situações encontradas.
Isso posto, ressaltamos que os diversos marcadores identitários interferem no modo com que os sujeitos vivenciam tanto o trabalho, quanto o lazer como direitos, daí a necessidade de conhecê-los. Iniciando pela classe social6, a maior parte (85%) das 1.215 mulheres entrevistadas pertence à classe B e C, com rendas individuais variando entre R$ 1.194,53 e R$ 2.012,67.
Em relação à raça, entre as entrevistadas há um predomínio de mulheres autodeclaradas brancas (44%), seguidas das pardas (40%), pretas (14%), amarelas (2%) e indígenas (2%). Tendo em vista esses dados, percebe-se que a maior parte das entrevistadas não é de cor branca, o que reflete a constituição da sociedade brasileira. Reiteramos que a dimensão racial, assim como a classe, impacta as relações de trabalho e lazer, pois expõe os padrões hierárquicos nas relações entre as mulheres.
Heleieth Saffioti (2013, p. 133) enfatiza que “se as mulheres da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua classe, puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada”. Tal afirmação se expressa no recurso das mulheres mais ricas ao trabalho doméstico mal remunerado e precarizado das mais pobres, sendo estas últimas, em sua maioria, negras.
Quando observados os dados acerca da idade, as entrevistadas que têm entre 15 e 44 anos são a maioria, representando 54%. Há 23% com idades entre 45 e 64 anos, 15% de 7 a 14 anos e 8% com 65 anos ou mais. Outro dado diz respeito à escolaridade e indica que ainda há um percentual elevado (45%) de mulheres que não concluíram o ensino fundamental, enquanto 20% delas o fizeram. Entre as entrevistadas, 26% têm ensino médio completo, 7% ensino superior completo e apenas 2% fizeram pós-graduação. Levando em conta as questões relacionadas ao trabalho não remunerado, outro dado importante é o estado civil das entrevistadas: 44% delas são solteiras, e o mesmo percentual, casadas ou em união estável. 6% são separadas ou divorciadas, e as idosas representam 6%. Pouco mais da metade das participantes (52%) não estava trabalhando com remuneração no momento da entrevista.
Apresentado esse panorama das mulheres participantes da pesquisa, passamos a analisar os dados sobre o modo como elas vivenciam a relação trabalho e lazer.
Análise dos dados da pesquisa Lazer no Brasil acerca da relação mulheres, trabalho e lazer
Festa, dança, jogo, brincadeira, esporte; assistir a um filme, a um programa televisivo, a um jogo ou a um espetáculo; ir ao teatro; ouvir música; fazer pintura, desenho, escultura, artesanato; ler; passear; navegar na internet; viajar; vivenciar práticas corporais e diversas outras possibilidades. Tudo isso são manifestações culturais que constituem o lazer. Christianne Gomes (2010) afirma tratar-se de práticas sociais vivenciadas de maneiras diversas e com significados singulares para quem delas usufrui ludicamente, em tempos e espaços sociais determinados. Essas manifestações - histórica, social e culturalmente situadas - representam vivências que integram a cultura de cada povo, assumindo múltiplos significados, a depender do tempo/espaço social/contexto em que se inserem e do papel que representam para os sujeitos, para os grupos sociais, para as instituições e para as sociedades que as vivenciam.
Considerando a necessidade de sistematização das respostas, a equipe coordenadora da pesquisa Lazer no Brasil buscou uma categorização que permitisse organizar os dados. Nesse sentido, retomou Jofree Dumazedier (1979), que identificou, em seus estudos, uma diversidade de interesses culturais pelos quais a pessoa poderia vivenciar o lazer e os dividiu em cinco áreas. Para tanto, baseou-se no que predominaria em cada uma das categorias, ressaltando que as aspirações pela vivência do lazer caracterizam uma manifestação de interesses interligados e não se constituem por partes estanques. Partindo dessa premissa, os interesses podem ser divididos da seguinte maneira: 1. Físicos, nos quais predomina o desejo de exercitar-se fisicamente, de colocar-se em movimento; 2. práticos ou manuais, relacionados à capacidade de manipulação, ligados ao prazer de explorar e transformar materiais e objetos - como o artesanato - ou para lidar com a natureza e/ou o cuidado com os animais; 3. Artísticos, caracterizados pela busca do imaginário e do sonho, o encantamento, o belo e o faz de conta; 4. Intelectuais, representados pela busca do conhecimento, da informação racional e objetiva, da aprendizagem; 5. Sociais, cujo objetivo é a sociabilidade, expressa no contato com as pessoas. A esses, Luís Otávio de Lima Camargo (1986) acrescentou, como sexto conteúdo, o interesse turístico, como uma busca da quebra da rotina temporal ou espacial, do contato com novas paisagens e culturas. Outro acréscimo foi realizado pelos autores da pesquisa, que salientam o ócio como uma opção de nada fazer, de descansar.
Giovani Pires e Scheila Antunes (2007) entendem que a classificação proposta pelo autor precisa ser tratada com ressalvas, pois enfrenta limites, em vista das dificuldades de identificar-se claramente a demarcação das fronteiras entre um interesse e outro. Além disso, esses autores entendem haver um caráter funcionalista na abordagem, pela tentativa de fragmentação do fenômeno do lazer, a despeito da sua complexidade como cultura.
Apesar das considerações anteriores, entendemos que, em relação ao conteúdo, encontraremos diferentes abordagens, algumas mais completas que as outras. Trata-se de tipologias e, como tal, “tão mais artificiais quanto mais abrangente e interligado for o objeto de classificação” (Nelson MARCELLINO, 2008, p. 39). Neste estudo, o interesse é entendido como o “conhecimento que está enraizado na sensibilidade, na cultura vivida” (DUMAZEDIER, 1980, p. 110).
Registradas essas ressalvas, do ponto de vista didático e para fins de elaboração de políticas públicas, a sistematização do lazer em interesses culturais contribuiu para superar a concepção predominante, assinalada por uma visão ativista/recreativa, enfatizando apenas os interesses físicos.
Com relação à complexidade do conceito de lazer, Ruth Russell (2009) salienta que ele tem usos e significados diferentes, a depender da época, das pessoas e dos lugares aos quais se refere, e isso não permite a demarcação de limites claros. A autora indica uma categorização do lazer em três grupos: como sinônimo de tempo livre, como atividade diferente do trabalho e como um estado de espírito. Há aproximações e distanciamentos em relação a cada um deles, mas certo consenso sobre a impossibilidade de tratá-lo como um aspecto isolado na vida das pessoas, pois permeia e é permeado pelo contexto histórico ao qual se liga e pelas variáveis constituintes de cada situação.
Assim, as mulheres participantes da pesquisa Lazer no Brasil, ao responderam à pergunta “O que você entende por lazer?”, responderam abordando funções atribuídas a ele (divertir-se, desenvolver-se), atitudes pessoais diante dele (descansar e desenvolvimento pessoal) e/ou elencando atividades (fazer turismo, ler, passear etc.).
Essas respostas permitiram inferir o conceito de lazer das participantes. Para 77% delas, lazer remete à diversão; 22% entendem que lazer é descansar; 8%, é fazer turismo; 4% não souberam ou não responderam o que seria lazer; 2% mencionaram atividades físicas; e 1%, outras atividades. A opção pelo desenvolvimento pessoal não chegou a meio por cento.
As respostas das mulheres são próximas às dos homens que responderam à pesquisa. Entre eles, 78% priorizaram a diversão, e 21%, o descanso. Apenas o turismo ficou com uma diferença mais significativa, uma vez que apenas 4% dos homens o indicaram como conceito de lazer. As respostas à questão remetem a perspectivas que movimentam a vida das pessoas, suas vivências sociais e às possíveis articulações com o modo de viver e de cuidar de si mesmas. No caso das mulheres, ser solteira, casada, mãe ou não, ser idosa, adulta ou jovem, ser branca, negra ou indígena, ser cis, trans, hétero, lésbica ou bissexual ter ensino fundamental, médio, superior ou pós-graduação são vetores que demarcam o lazer, em especial pela relação com o tempo livre e com o trabalho. Fica a impressão de que, dependendo da condição, elas estão - ou não - autorizadas a usufruir de certas formas de lazer (Sandra BERTOLLO; Mauro BERTOLLO, 2014).
O tempo de lazer é associado ao tempo livre, ao tempo para si mesmas, em contraponto ao dedicado às obrigações relacionadas ao trabalho, seja ele remunerado ou não, e a outros compromissos assumidos pelas pessoas. Assim, ao buscarmos analisar os hábitos, vivências, preferências e barreiras das mulheres do Brasil, direcionamos nosso olhar para o que é considerado obrigação para mulheres e homens.
#PraTodoMundoVer o gráfico em linha mostra o que mulheres - linhas azul e marrom - e homens - linhas laranja e roxa - responderam às questões espontâneas e estimuladas sobre o que fazem por obrigação. Com relação às questões espontâneas, 73% das mulheres citam os afazeres domésticos como principal obrigação, seguidos do trabalho remunerado profissional, com 46%, dos cuidados com a família, com 39%, dos estudos, com 29%, da religião, com 7%, e de outras atividades, com 5%. Entre os homens, predomina o trabalho remunerado profissional, com 61%, seguido dos afazeres domésticos, com 33%, e dos estudos, com 32%. Os cuidados com a família ficam em quarto lugar, com 22%, outras atividades, com 10%, e a religião, com 5%. Nas respostas às questões estimuladas, entre as mulheres (linha marrom), os afazeres domésticos aumentam para 85%, cuidar da família, para 51%, e religião, para 26%. O trabalho e as outras atividades se mantêm na margem de erro. Para os homens (linha roxa), também há um aumento nesses itens, passando os afazeres domésticos a 43%, o cuidado com a família a 35% e a religião a 19%.
Como pode ser observado, nas sociedades modernas, a produção de bens e serviços nos domicílios continua ocupando parte considerável do trabalho social, em especial das mulheres. Essa produção realizada pelo trabalho doméstico não é remunerada e, muitas vezes, sequer reconhecida. Na literatura, tais afazeres são usualmente divididos em dois grupos de atividades: as domésticas gerais e as de cuidados de familiares, em especial de crianças (Lili VARGHA et al., 2017). Ressaltamos que a pesquisa em tela trabalhou com a perspectiva dos trabalhos domésticos a partir desses dois eixos, que estruturaram as perguntas e as respostas estimuladas.
Os trabalhos domésticos são providos pelas dimensões de gênero, classe e raça, destacando também a dimensão histórica de articulação dessas relações sociais no trabalho do cuidado.
No Brasil e nos países de língua espanhola, a palavra "cuidado" é usada para designar a atitude; mas é o verbo "cuidar", designando a ação, que parece traduzir melhor a palavra care. Assim, se é certo que "cuidado", ou "atividade do cuidado", ou mesmo "ocupações relacionadas ao cuidado", como substantivos, foram introduzidos mais recentemente na língua corrente, as noções de "cuidar" ou de "tomar conta" têm vários significados, sendo expressões de uso cotidiano. Elas designam, no Brasil, um espectro de ações plenas de significado nativo, longa e amplamente difundidas, muito embora difusas no seu significado prático. O "cuidar da casa" (ou "tomar conta da casa"), assim como o "cuidar das crianças" (ou "tomar conta das crianças") ou até mesmo o "cuidar do marido", ou "dos pais", têm sido tarefas exercidas por agentes subalternos e femininos, os quais (talvez por isso mesmo) no léxico brasileiro têm estado associados com a submissão, seja dos escravos (inicialmente), seja das mulheres, brancas ou negras (posteriormente) (Nadya Araujo GUIMARÃES; Helena Sumiko HIRATA; Kurumi SUGITA, 2011, p. 154).
Os dados da pesquisa chamam atenção tanto em relação à diferença de quais são as obrigações dos homens e das mulheres entrevistados, quanto ao modo como essa diferença muda entre as respostas espontâneas e as estimuladas. O trabalho remunerado profissional é um compromisso obrigatório, haja vista que a mudança entre a resposta espontânea e estimulada é mínima; já os afazeres domésticos e os cuidados com a família diferem nos dois cenários. A diferença se mantém mesmo se cruzados os dados apenas das/os depoentes que afirmam desempenhar trabalho remunerado profissional. Nesse caso, enquanto 41% das mulheres que estão no mercado de trabalho tinham os afazeres domésticos como obrigação, 24% dos homens declararam tê-los entre as ações obrigatórias.
Este tipo de resultado revela que a produção de bens e serviços nos domicílios continua sendo uma obrigação que ocupa parte considerável do trabalho social, em especial, das mulheres. Apresentando a análise dos resultados da pesquisa Trabalho remunerado e trabalho doméstico - uma tensão permanente, Albertina Costa (2014, p. 8) lembra: “uma jornada que não termina, regulada por obrigações inescapáveis, mulheres divididas entre a aspereza do cotidiano em que os serviços da casa e o serviço de fora disputam sua dedicação e o anseio por tempo livre”.
Para Guimarães, Hirata e Kurumi (2011), o cuidar remete à questão de gênero, na medida em que essa atividade foi sendo naturalizada como inerente a posição e disposição femininas. Entretanto, uma vez que o cuidar se manifesta em troca de uma remuneração, questionam-se a gratuidade do trabalho doméstico e a sua circunscrição ao grupo social das mulheres. Além disso, desafia-se a ideia de “servidão voluntária” inerente a esse serviço quando realizado no espaço doméstico. Ressaltamos que a emergência do cuidar como profissão implica o reconhecimento e a valorização do trabalho doméstico e familiar como “trabalho”, desnaturalizando portanto, a associação do trabalho do cuidado com uma profissão feminina.
Ademais, são necessárias políticas públicas de apoio ao cuidado com as pessoas da família e o desenvolvimento de estratégias de criação e de reprodução da vida, de maneira mais coletiva. Isso porque, enquanto o trabalho doméstico pode ser transferido para o mercado - geralmente para outra mulher, com predominância das negras, que ainda são maioria nessa função -, o trabalho de cuidados tem uma limitação, concernente ao aspecto afetivo (VICENTE, 2018).
Em 2001, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios (PNAD) iniciou a coleta de informação acerca do número de horas semanais habitualmente dedicadas aos afazeres domésticos, na semana de referência no Brasil. Considerando que a PNAD fazia essa única pergunta, Jordana de Jesus (2018) afirma que tal procedimento, além de dificultar o entendimento do dado, pode gerar uma subestimação na resposta, em especial no que diz respeito aos cuidados com crianças, idosos e pessoas doentes ou com deficiência, pois esse tipo de trabalho pode não ser considerado pelos respondentes um afazer doméstico. A autora faz esse apontamento com base nos resultados de pesquisas realizadas em países com características similares às do Brasil, a exemplo da Colômbia.
A equipe coordenadora da pesquisa Lazer no Brasil teve essa preocupação, daí a opção por aplicar a questão “O que faz por obrigação?” duas vezes. Na primeira, a/o entrevistada/o respondia espontaneamente; na segunda, a partir de uma relação do que seria classificado como tal. Os dados do gráfico 1 corroboram a preocupação de De Jesus (2018), uma vez que é possível perceber o aumento das menções aos afazeres domésticos e aos cuidados entre as obrigações na pesquisa estimulada, quando apresentada uma relação na qual eles constavam entre as obrigações.
Com a reformulação da PNAD anual pelo IBGE, em 2012, a pesquisa passou a contar com a PNAD contínua (PNADC), que abrange conteúdos da antiga PNAD e da Pesquisa Mensal de Emprego (PME). Em 2016, a PNADC passou a investigar outras formas de trabalho, incluindo as atividades domésticas e de cuidados, para além do trabalho remunerado. De Jesus (2018) entende que a mudança na metodologia adotada para a PNADC, em relação ao tempo de trabalho doméstico, deixa mais claro quais atividades seriam consideradas no quesito. Enquanto a PNAD abordou o tempo geral dedicado aos afazeres domésticos, a PNADC incluiu a questão explícita acerca do tempo dedicado ao cuidado com moradores do domicílio, mencionando crianças, idosos, enfermos ou pessoas com necessidades especiais, bem como o detalhamento do tipo de atividade realizada. Na sequência, o/a participante deveria responder se realizava outras atividades domésticas e, então, estimar o tempo dedicado ao cuidado de pessoas e/ou afazeres domésticos na semana.
Entre os resultados divulgados pelo IBGE, em relação aos cuidados e ao trabalho doméstico na PNADC, foram estimadas as taxas de realização por tipo de atividade. Sobre os cuidados de crianças, pessoas idosas e com deficiência, a taxa de realização, em 2017, foi de 37,0% entre as mulheres e de 25,6% entre os homens. No que tange às atividades domésticas que não envolvem cuidados, a taxa de participação apurada foi de 91,7% para mulheres e 76,4% para homens (IBGE, 2018). Os dados relacionados aos cuidados ficam próximos aos da pesquisa Lazer no Brasil; já os relacionados aos afazeres domésticos dos homens estão significativamente acima. O fato pode ter relação com os itens sugeridos como obrigação por uma e outra.
Embora os dados confirmem que parte do trabalho, em especial das mulheres, não é remunerado e, muitas vezes, sequer reconhecido, é preciso lembrar que a diferença entre as cargas de trabalho doméstico masculino e feminino têm relação com a classe, a raça e o nível de escolaridade. Hildete Melo e Marta Castilho (2009) apontam que mulheres com menores níveis de escolaridade dedicam, em média, 54% mais tempo com afazeres domésticos do que os homens com a mesma escolaridade. As autoras apontaram, ainda, que as mulheres que trabalham na agricultura, na produção, reparação e manutenção de bens e serviços, vendedoras e prestadoras de serviços são as que mais dedicam tempo às tarefas domésticas.
Em relação à raça, nas respostas estimuladas, para as mulheres negras, 46,2% indicam os afazeres domésticos como parte das tarefas que fazem por obrigação, seguidos de 25,6% para as tarefas de cuidado com a família e filhos. Para as mulheres brancas, esse percentual é de 36,7% e 23,6%, respectivamente.
Se observarmos o quesito renda na pesquisa Lazer no Brasil, veremos que 66% das mulheres que têm obrigações com o trabalho doméstico declaram renda de até três salários-mínimos. Entre as respostas dos homens, 54% são dessa classe econômica. De Jesus (2018) também chama atenção para o fato de o número de horas diárias de trabalho doméstico não remunerado variar significativamente entre os níveis de renda. Analisando os dados da PNADC (2016), a autora concluiu que, aos 20 anos de idade, uma mulher de baixa renda realiza, em média, quatro horas de trabalho doméstico por dia, enquanto outra da mesma idade, porém com renda alta, dedica uma hora a esse tipo de trabalho. Aos 30 anos de idade, a jornada diária média de trabalho doméstico das mulheres mais pobres é de 5,8 horas e a das mulheres mais ricas, de duas horas. A autora atribuiu a diferença à possibilidade de contratação de outra pessoa para realização das atividades. No caso dos homens, a jornada diária é menor em todos os níveis de renda, apresentando leve elevação na idade em que geralmente têm filhos pequenos.
Nas últimas décadas, há uma progressiva e rápida aproximação dos padrões de participação de mulheres e homens no mercado de trabalho; não se pode dizer o mesmo, em termos equivalentes, da participação dos homens no trabalho doméstico e na prestação de cuidados à família. Com isso, o tempo das mulheres para si se esvai em atividades para outros. Considerando que esse tempo para si estaria inserido no tempo livre, o que homens e mulheres estariam fazendo nele?
#PraTodoMundoVer O gráfico mostra o que homens - barra azul - e mulheres - barra verde - afirmaram fazer no tempo. As respostas das mulheres classificadas como “outros” chegaram a 101% das atividades, e as dos homens, 95%. Em segundo lugar para os homens, com 32%, estão as atividades físico-esportivas e, para as mulheres, com 18%, as sociais. Como terceira opção das mulheres, com 16%, aparecem as físico-esportivas e, para os homens, com o mesmo percentual, estão as sociais. Há, ainda, atividades consideradas ócio, turísticas, artísticas e intelectuais que chegaram a 10%, sem diferenças significativas entre homens e mulheres.
Para fins de organização, as respostas foram agrupadas, pela equipe da Pesquisa, nos interesses culturais propostos por Dumazedier (1979) e Camargo (1986), acrescidos, do ócio. A título de ilustração: 1. dormir, descansar, ficar em casa e não fazer nada estão na categoria ócio; 2. acampar, andar de carro, tomar banho de cachoeira, de rio, ir a lugares como chácara, centro da cidade, interior, praia e parque estão entre os interesses turísticos (aqui chama atenção que levar os filhos para brincar ou a passeios foi classificado como turismo); 3. ir à academia, andar a cavalo, praticar esportes, atividades físicas em geral, brincar e dançar foram agrupados na categoria físico-esportiva; 4. ter aulas de música e dança, participar de banda, coral e ensaios, ir a shows, cinema, circo e escutar música são interesses artísticos; 5. fazer artesanato em geral, jardinagem, cuidar de animais e cozinhar estão na categoria de interesses manuais; 6. as respostas ler, ir à biblioteca, escrever e buscar desenvolvimento pessoal estão entre os conteúdos intelectuais; 7. refeições em família, com amigos e fora de casa, comemorações, visitas, conversas, idas a bares, boates, clubes e aniversários são atividades sociais. Aparece na pesquisa, ainda, a categoria qualificação, que agrupou as respostas vinculadas a estudos, cursos, atividades escolares e universitárias.
Vale destacar que não houve diferença significativa nas respostas desse quesito em relação a raça e classe. O que mais nos chama atenção no gráfico é o elevado percentual de respostas classificadas como “outras”, por não terem sido consideradas entre os interesses anteriormente representados. Entendemos que o fato pode estar relacionado à complexidade que envolve a temática do lazer e do tempo livre na sociedade atual, o que dificultaria abarcar, em uma pesquisa, todos os aspectos que podem fazer parte das vivências de lazer das pessoas e uma lacuna em relação ao que poderíamos chamar de interesses digitais. Outra possibilidade seria a dificuldade das pessoas entrevistadas em separar o que seria obrigação daquilo que estaria mais vinculado ao tempo livre, enquanto lazer. Uma breve exploração das respostas que compõem o grupo “outras” permite perceber que as duas suposições fazem sentido. Estão contempladas atividades como assistir a programas televisivos diversos, acessar a internet, utilizar as redes sociais, beber, comer e cuidar de si que, a depender da forma como são vistas e tratadas pelas pessoas que as vivenciam, poderiam ser consideradas lazer. Identificamos um segundo grupo com respostas relacionadas a afazeres domésticos em geral, cuidados para com familiares, vendas, trabalhos sociais e/ou que visam a ganho extra, tomar banho, ir a reuniões e às compras, que, embora ocupem o tempo livre das pessoas, estariam, em geral, na categoria “obrigações”.
Assim, essa predominância da categoria “outras” pode estar ligada à afirmação de Polina Prentou (2016), referente aos conceitos que tratam o lazer em relação ao trabalho remunerado, ou seja, enquanto tempo livre das obrigações desse tipo de trabalho. Isso porque, para as mulheres, muitas vezes, o lazer é mais relacionado à possibilidade de ter um tempo para si mesmas. Essa análise considera o fato de que nem todas as pessoas têm períodos de tempo livre determinados e, por isso, não se encaixam nesse modelo, pois sempre há algo para ser feito. Acessar o lazer demanda delas a decisão de parar com suas atividades em determinado momento e vivenciá-lo.
Entre homens e mulheres chama atenção, ainda, a priorização mais acentuada das atividades físico-esportivas pelos homens. Esse dado fica ainda mais evidente quando a resposta foi para a pergunta “O que faz nos finais de semana”, como pode ser observado no gráfico 3.
#PraTodoMundoVer O gráfico mostra o que 64% dos homens - barra azul - praticam atividades físico-esportivas nos finais de semana, contra 21% das mulheres - barra verde. As atividades sociais foram as mais indicadas por elas, com 71%, aparecendo em 58% no caso dos homens. A opção “outros” teve 59% das menções dos homens e 52% no caso das mulheres, e as atividades turísticas perfizeram 42% delas e 33% deles. As intelectuais e o ócio ficaram com menos de 6% para ambos.
Entendemos que a ênfase maior entre os homens às atividades físico-esportivas está relacionada com os aspectos culturais que envolvem a construção de gênero. Silvana Goellner et al. (2010) identificaram as motivações que envolvem a participação das pessoas nas atividades desenvolvidas em um programa de esporte e lazer investigado. As conclusões indicam haver diferenças significativas entre as formas e as motivações que levam à participação de homens e mulheres em atividades.
Questionados na pesquisa de Goellner et al. (2010) a respeito do que gostam de fazer no tempo livre e o que entendem por lazer, homens e mulheres deram respostas diferenciadas. Os homens se concentraram no viés voltado para o espaço público, com esporte, convivência com amigos, festas e afins; e as mulheres, no âmbito doméstico, com descanso, atividade física, atividades familiares, assistir à televisão e até pequenas atividades domésticas. Desse modo, as mulheres focaram no descanso, na saúde, na casa e na família, e os homens pensam no lazer como diversão, liberdade, relaxamento. “No curso da história, homens e mulheres foram educados praticando exercícios diferentes, o que era aconselhado para os homens não correspondia ao que as mulheres deveriam realizar” (GOELLNER et al. 2010, p. 13). Essa separação, a partir da ótica biologizante, engendrou-se na cultura brasileira. Por conseguinte, o espaço de lazer é generificado e generificador, uma vez que produz e reproduz “comportamentos, ações, discursos e práticas diferenciadas para homens e mulheres, que reafirmam representações hegemônicas de masculinidade e feminilidade” (GOELLNER et al., 2010, p. 18).
Ratificando esses dados, o “Diagnóstico Nacional do Esporte”, divulgado pelo Ministério do Esporte (DIESPORTE), em junho de 2015, concluiu que 45,9% da população brasileira é considerada sedentária. Entre as mulheres, o percentual é de 50,4% das entrevistadas, contra 41,2% dos homens que afirmaram não ter praticado esportes ou atividade física no ano da entrevista (MINISTÉRIO DO ESPORTE, 2015). Na mesma direção, os resultados da pesquisa “Cultura nas Capitais” mostram que mulheres assistem mais à televisão e leem livros; entre os homens, o esporte se sobressai, seguido pela televisão. “O resultado parece ter relação com o papel atribuído às mulheres, o preconceito e a desigualdade de gênero” (João LEIVA; Ricardo MEIRELLES, 2018, p. 57).
Vicente (2018) também afirma que um dos maiores anseios das mulheres participantes do estudo As mulheres e seus tempos: dupla jornada de trabalho, cuidado de si e lazer na promoção da saúde - cujo critério foi estar trabalhando e ter filhos que ainda demandam cuidados - em relação ao tema cuidar de si, seria praticar esportes e atividades físicas. No entanto, a sobrecarga de responsabilidades faz com que esse desejo seja postergado.
Tal anseio, contudo, não foi percebido na pesquisa Lazer no Brasil. Quando perguntadas acerca do que gostariam de fazer no tempo livre, apenas 19% das mulheres mencionaram as atividades físico-esportivas, contra 25% dos homens. Para ambos, o turismo apareceu em primeiro lugar, em especial nas férias, quando alcançou 78% das mulheres e 79% dos homens. Nessas respostas, chama atenção o fato de a opção “outros”, prevalecente entre o que as pessoas fazem, cair para menos de 10% em todos os cenários, indicando tratar-se de atividades que não são feitas enquanto escolhas, e sim por serem a opção disponível ou mesmo uma obrigação.
Sarah Souto Mayor e Hélder Isayama (2017) ressaltam que a escolha pelo turismo pode estar associada ao desejo de realizar algo que as barreiras socioeconômicas e as dificuldades relativas ao tempo disponível tornam mais difícil. Fazer turismo exige maior investimento financeiro e temporal que os demais interesses e é menos acessível que a frequência a festas, reuniões familiares, bares, assistir à televisão, acessar redes sociais e outras. Destacamos, ainda, que, para essa questão, não houve diferença significativa nas respostas em relação a raça e classe.
As respostas à questão “Por que não faz o que gostaria no tempo livre?” ratificam a hipótese de Souto Mayor e Isayama (2017) e dialogam com as relações entre lazer, o público, o privado e o doméstico, conforme mostra o gráfico 4.
#PraTodoMundoVer O gráfico mostra as barras verdes, referentes às mulheres, e as azuis, relacionadas aos homens, maiores no quesito tempo. 36% dos homens e 37% das mulheres alegaram não ter tempo para fazer o que gostariam. As barras que aparecem em segundo lugar dizem respeito à falta de recursos financeiros e correspondem a 35% das mulheres e a 29% dos homens. Em terceiro lugar, foram citados outros motivos por 16% das mulheres e 18% dos homens. A falta de local adequado foi mencionada por 11% dos homens e 8% das mulheres. Apareceram ainda como motivos para não fazer: a saúde, o fato de já fazer e a resposta não sabe, mas nenhum desses três alcançou 10% dos respondentes por sexo.
Os motivos para a não vivência do lazer, na forma como as pessoas gostariam, remetem às duas questões diretamente ligadas ao trabalho, seja ele remunerado ou não: o tempo e os recursos financeiros. Na intersecção entre gênero e raça, os recursos financeiros sobressaem no tocante às mulheres negras com 20%, comparados aos 14,2% das mulheres brancas, em relação ao tempo livre durante a semana. No que tange às férias, o percentual é de 30,1% no caso das mulheres negras e de 24,2% para as mulheres brancas. O tempo é indicado como elemento dificultador das vivências de lazer nas horas livres por 18,5% das mulheres brancas e 18,2% das negras. Para as vivências de lazer em período de férias, a falta de tempo é mencionada como barreira por 8,8% das mulheres brancas e 8,7% das negras.
No caso das mulheres que dedicam tempo significativo ao trabalho doméstico, a indicação de falta de recursos nos remete à reflexão sobre o fato de este trabalho não ser considerado nos modelos macroeconômicos. Com a ressalva de que nem todo o trabalho pode ser monetizado, algumas pesquisas começaram a incorporar o trabalho doméstico e de cuidados aos valores da produção econômica. Há cálculos feitos a partir de pesquisas de uso do tempo, pelos quais o valor da produção doméstica, levando em conta o acumulado das atividades realizadas no âmbito domiciliar, chegaria a representar entre um quarto e metade do Produto Interno Bruto (PIB) dos países (Lili VARGHA; Róbert GÁL; Michelle CROSBY-NAGY, 2017).
No Brasil, De Jesus (2018) desenvolveu métodos a fim de quantificar a contribuição da produção doméstica para a economia e concluiu que a contribuição indireta das mulheres, por meio do trabalho doméstico, “é pelo menos três vezes maior que a contribuição masculina” (p. 96). Ademais, constatou que, utilizando a metodologia de custo de oportunidade, que atribui valor econômico ao trabalho doméstico, a produção anual acumulada por ele seria equivalente a 15,77% do PIB. Desse total, 11,95% são produzidos pelas mulheres e 3,81%, pelos homens.
De Jesus (2018) também pondera que, se considerarmos apenas a produção no mercado de trabalho, a diferença entre homens e mulheres é grande, chegando a uma produção masculina de cerca de 50% a mais que a feminina, ao redor dos 30 anos. O fato é atribuído às “menores taxas de participação, menores jornadas e menores salários entre as mulheres” (p. 99). No entanto, quando a produção doméstica é considerada, de acordo com os valores estimados pela autora, as mulheres passam a produzir para o PIB mais do que homens em todas as idades do ciclo de vida. Em outras palavras, a produção doméstica, além de representar uma parcela significativa, se fosse incluída nos cálculos do PIB, corresponderia a boa parte da produção das mulheres, em especial nas classes mais baixas e de menor nível de escolaridade. “Esses resultados apenas ilustram a já conhecida divisão sexual do trabalho, confirmando que os homens seguem responsáveis pelo trabalho remunerado e as mulheres pela produção doméstica não remunerada” (DE JESUS, 2018, p. 101).
Reflexões Finais
Considerando o contexto histórico, a pesquisa Lazer no Brasil nos permitiu perceber que as obrigações das mulheres estão centradas no trabalho doméstico, no trabalho no mercado e nos cuidados relacionados a familiares. Essas obrigações diferem das dos homens, cuja prioridade é o trabalho no mercado, seguido pelos demais. Quando estimuladas a responder a partir de uma relação de possíveis obrigações, o trabalho doméstico e o de cuidados é ainda maior, indicando que, por questões culturais, além de não serem remunerados, eles não são vistos como obrigação, não só pela sociedade, mas também por parcela das mulheres. No entanto, precisam ser realizados. Esses trabalhos são afetados por questões como classe, raça e escolaridade, colocando as não brancas, de menor renda e baixa escolaridade, com uma jornada de trabalho maior e com menos direitos em relação aos trabalhos desempenhados.
Para a maior parte dessas mulheres, lazer tem relação com o divertir-se, porém muitas opções apontadas pelas entrevistadas para as vivências no tempo livre denotam atividades vinculadas ao trabalho doméstico e de cuidados para com a família. Além destas, que não necessariamente seriam consideradas lazer, de acordo com a fundamentação teórica consultada, as mulheres indicam a vivência de atividades sociais, seguidas pelo turismo, os quais são realizados geralmente em família, e não se configuram necessariamente como uma diversão.
O turismo se sobressai também entre o que elas afirmam que gostariam de vivenciar. Os motivos elencados para a não vivência desse desejo são, majoritariamente, a falta de tempo e de recursos financeiros, reforçando a relação entre mulheres, trabalho e lazer.
Pesquisar as experiências de lazer de mulheres é tarefa complexa, em virtude da amplitude e da multiplicidade de possibilidades de enfocar o tema. Destacamos que as experiências não se dão ao acaso; pelo contrário, têm a ver com o momento social, histórico, cultural no qual estão inseridas. Os dados apresentados neste estudo permitiram a identificação de gargalos, desigualdades, oportunidades e desafios ao campo do lazer, indicando rumos para quem atua nos setores público e privado.
Assim, buscando articulações possíveis, destacamos três contribuições das chamadas políticas públicas de lazer.
Uma primeira questão que poderia ser pensada nas diferentes ações país afora é qualificar os programas e projetos nessa área, de modo que pudessem efetivamente colaborar para o desenvolvimento pessoal e social dos usuários. Destacamos a questão, pois as respostas das mulheres apontam para o entendimento do conceito de lazer prioritariamente como divertimento. Sem descartar a importância da questão, pois é isso que levaria as pessoas à realização das atividades, é importante que as políticas públicas trabalhem na perspectiva da animação cultural. Assim, as ações poderiam colaborar para o processo educativo, a partir da educação para e pelo lazer, na formação crítica, criativa e autônoma das pessoas, a fim de que ele possa ser vivenciado enquanto direito social tal como previsto constitucionalmente.
A diferença da vivência do direito ao lazer no cotidiano aparece inclusive na relação que os gêneros têm com o campo das obrigações, sejam profissionais ou domésticas. Esta segunda possibilidade não é remunerada e, muitas vezes, tampouco é reconhecida. Os dados da pesquisa sinalizam a diferença entre as obrigações das mulheres e dos homens entrevistadas e entrevistados, respectivamente,, tanto nas respostas espontâneas quanto nas estimuladas. Entendemos que essa questão urge ser pensada de forma mais efetiva pelas diferentes políticas sociais. De forma isolada, o lazer de não é a solução, mas ações interseccionais, intersetoriais e transversais teriam maior potencial de efetividade do que o desenvolvimento setorial das políticas. As ações nessa área poderiam enfatizar a valorização das atividades do tempo de não trabalho, estimulando sua vivência, entendendo sua importância e possíveis relações com as demais áreas da vida das pessoas, de modo a gerar valores questionadores da sociedade como um todo.
Outro exemplo da necessidade de políticas interseccionais e intersetoriais são os dados referentes ao nível de escolaridade e suas interferências na realização dos trabalhos domésticos e no lazer. Isso porque os grupos sociais com melhor formação escolar tendem a apresentar melhores rendimentos econômicos, mais possibilidades de socialização dos trabalhos domésticos e de cuidados, bem como consciência sobre a importância do lazer para seu bem viver. As políticas públicas de educação poderiam colaborar mais efetivamente para a chamada educação para o lazer, ou seja, os conteúdos vivenciados na escola, enquanto educação formal, educando crianças e adolescentes para o bem viver, para além do mundo do trabalho.
Por fim, entre tempos, gostos, desejos e a fruição do direito ao lazer das mulheres no Brasil, ser solteira, casada, mãe ou não, ser idosa, adulta ou jovem, ser branca, negra ou indígena, ser cis, trans, ser hétero, lésbica ou bissexual são vetores que demarcam o lazer, em especial pela relação com o tempo livre e com o trabalho.