Fábrica de recalques: as estruturas patriarcal, neoliberal e racista
A violência contra as mulheres pode ser entendida além de uma questão de segurança e saúde públicas: ao mapeá-la, nos revelou ser uma questão eminentemente territorial. Por se tratar de um tema tão paradoxal e interdisciplinar, foi uma oportunidade para repensarmos os instrumentos de investigação urbana. A Convenção de Belém do Pará, na década de 1990, consolidou alguns dos entendimentos internacional e nacionalmente porque ratificou e ampliou a Declaração e o Programa de Ação da Conferência Mundial de Direitos Humanos de Viena, em 1993, que reconheceu que os direitos das mulheres são direitos humanos. O principal avanço foi na direção da compreensão de que a violência contra as mulheres é “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito público ou privado” (Cecília M. SANTOS; Wânia Pasinato IZUMINO, 2005). Antes de apresentarmos o ensaio de mapas, priorizamos escolher aqui um recorte como provocação para reflexão. Partimos da interpretação de que a violência contra as mulheres é a manifestação de um recalque da sociedade brasileira, manifesto espacialmente.
Para elaborar os mapas, foram solicitados dados de 2018 das ocorrências da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SSP-SP) e atendimentos nos centros de referência da mulher da Prefeitura do Município de São Paulo (PMSP), ambos via Lei de Acesso à Informação (LAI). Com a espacialização dos dados de localização dos cinco tipos de violência definidos pela Lei Maria da Penha (LMP) (BRASIL, 2011), conseguimos traçar uma comparação com os atendimentos nos equipamentos públicos de assistência social via geoprocessamento1.
Entre os indicadores passíveis de mapeamento, esse tipo de violência sobressaiu-se principalmente por duas características espaciais singulares: de um lado, por estar fartamente distribuída no espaço urbano, atinge todo o espectro de classes sociais; por outro, em termos relativos2, apesar da violência contra a mulher estar espalhada em toda mancha urbana do Município de São Paulo, as maiores concentrações estão nos distritos do chamado centro expandido e outros subcentros a leste e oeste, regiões das classes de renda diversificada, com farta oferta de empregos, infraestrutura e comércio/serviços.
Trata-se de um padrão diferente da segregação socioespacial com recorte de classe e raça, na qual há predominância de negros e pobres em áreas periféricas (Danilo FRANÇA, 2015). Nos mapas apresentados a seguir, verificou-se que a violência contra as mulheres, assim como outros crimes de intolerância, racismo, se assemelham por evidenciarem espacialmente os vários tensionamentos no espaço urbano a partir das estruturas patriarcal, neoliberal e racista.
Algumas hipóteses explicariam o recalque espacial. O primeiro conjunto de interpretações explicaria a violência a partir da natureza excludente, hierárquica, autoritária e seletiva da sociedade brasileira. O conceito psicanalítico freudiano nos é útil aqui, na medida em que denomina recalque como repetição de um sintoma neurótico: “O sintoma seria movido pela compulsão à repetição de um trauma e/ou de um gozo interditado, a cumprir duas funções antagônicas, a de promover um retorno em ato do que foi esquecido e permitir, ao mesmo tempo, um simulacro do prazer proibido”3 (Maria KEHL, 2013). O segundo conjunto de interpretações vem da literatura feminista, particularmente, a contribuição do debate de interseccionalidade e decolonialidade.
Para isso, algumas tarefas de análise e suas respectivas literaturas se fizeram necessárias: primeiro, analisar a relação entre essa violência e o espaço urbano como resultado dos choques entre a norma subordinadora sobre o corpo da mulher para manutenção da estrutura patriarcal. Em segundo lugar, explicar a compulsoriedade4 do trabalho reprodutivo não remunerado às mulheres, como perpetuação da estrutura neoliberal no capitalismo periférico. Terceiro, demonstrar que a judicialização como aplicação seletiva das políticas públicas de violência contra a mulher em detrimento da educação, assistência e proteção, tem proveito à estrutura racista. Esses três eixos de análise convergem para as hipóteses acima: não prevaleceu o contrato social5 e sustentamos valores arcaicos recalcados da sociedade colonial patriarcal, oligárquica e racista.
O primeiro conjunto de interpretações nos ajuda entender que a violência no Brasil é um dos resultados do inevitável choque entre a manutenção do arcaico e a modernização seletiva e conservadora, segundo Marilena Chauí (2017) e Roberto Schwarz (2000; 2012). Nas palavras de Schwarz (2000), somos uma ‘fábrica de recalques’: “O universal é falso e o local participaria do universal se não estivesse isolado e posto à parte, um degrau abaixo”. Para Chauí (2017), é um mito a não-violência na sociedade brasileira, porque este é um dos seus principais recursos para bloquear, por excelência, a concretização de sujeitos éticos e políticos. Nas palavras da autora, é a supressão da existência do outro e da cidadania na íntegra. Dentro dessa lógica, as mulheres no Brasil, sobretudo as negras, “não são constituintes do campo ético, ou seja, devem ser cerceadas de qualquer subjetividade, para não serem dotadas de vontade e capacidade de controlarem e orientarem seus desejos”. Não são sujeitas políticas porque não haveria suficiente democracia que abrangesse seus direitos, suas demandas, falas e respectivas reivindicações.
A estrutura patriarcal, portanto, está inserida nesse contexto de manutenção do arcaico, porque raça e gênero estão contidos nessa hierarquia de subordinação que se estende até os dias de hoje. Lia Machado (2000) apresenta essa continuidade ao mostrar a atualização dos diversos significados de patriarcalismo, para além da conceitualização weberiana na direção das formas contemporâneas de: “dominação e exploração”; “sistemas de opressão da mulher”; ou ainda, “relações sociais de reprodução organizadas na família que designam à mulher o trabalho reprodutivo”. Roberta Viegas, Roberta Gregoli e Henrique Marques (2017) também comprovam essa perpetuidade quando a violência é justificada através de culpabilização da vítima demonstrada na fala de um agressor: “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”. São narrativas que impõem lugares e comportamentos pré-definidos e aceitáveis às mulheres e qualquer transgressão dessa norma é passível de punição pelos homens. É justamente a autonomia que incrimina as mulheres: “autonomias reprodutiva e migratória são ambas assumidas implicando em liberdade autônoma, uma reivindicação sobre o próprio futuro, em última instância, ilegítima e culpável para meninas e mulheres” (Gail PHETERSON, 2009).
Para os autores acima, estes fatores explicariam a seletividade na aplicação de alguns aspectos da legislação. Não se trata, portanto, de ausência de leis, uma vez que a LMP está entre as mais progressistas de combate a esse tipo de violência no mundo. Pelo contrário, somos o 5º país que mais mata mulheres (Júlio WALSELFISZ, 2015) e prevalece a aplicação nuançada das leis como expressão do recalque dessas estruturas (Vera BATISTA, 2018).
Outros dois conjuntos de interpretações são também necessários para entender a persistência de um número muito expressivo das ocorrências (82.314 em 2018, segundo SSP-SP), bem como a presença massiva na mancha urbana. Não se trata, portanto, de ato impulsivo e isolado interpessoal: a violência contra as mulheres é, portanto, outra camada de vulnerabilidade socioespacial, ou seja, sua manifestação precisa ser compreendida no espaço, somada aos recortes de classe e raça como elementos fundamentais para compreensão. Nessa linha de raciocínio, o conceito de interseccionalidade é central para nossa argumentação, uma vez que as mulheres vivenciariam as violências sobrepostas a outras precariedades e vulnerabilidades urbanas6, dependendo da localização em que se encontram.
O debate sobre interseccionalidade, ou seja, a compreensão que a desigualdade e discriminação por gênero teria que incluir as demais opressões e vulnerabilidades, não por acaso, foi provocado inicialmente pelas feministas negras ainda no início da segunda metade do século XX. Segundo as autoras a seguir, preconceitos e discriminações por raça e classe muitas vezes são sentidos como acúmulo, articulados e não somente como diferenciação separadamente. Para Carla Akotirene (2019), não é uma narrativa teórica dos excluídos, é um sistema de opressão interligado. O feminismo negro, portanto, demonstra que a história da luta feminista manteve como pontos cegos de análise as nuances de opressão, a lógica punitivista, o controle dos corpos, a divisão racial do trabalho e a desumanização da mulher negra (Angela DAVIS, 2016; Lélia GONZALEZ 1982; Patricia H. COLLINS, 2019). Recentemente, teríamos uma nova geração do feminismo negro que denuncia a ausência da raça na literatura e no debate feminista brasileiro. A terceirização do trabalho reprodutivo das mulheres brancas às negras seria uma das razões da ausência desse debate na primeira onda do feminismo branco. Para as autoras negras, ao desconhecerem as realidades vividas e excluírem referências da literatura negra, manteriam à margem esta população da construção das suas próprias narrativas (Djamila RIBEIRO, 2017; Sueli CARNEIRO, 2011; Marielle FRANCO; Monica FRANCISCO; Rossana TAVARES, 2017).
Outra importante reflexão deste debate vem da perspectiva latino-americana e africana. O chamado feminismo decolonial propõe o deslocamento do eixo do debate para o Atlântico Sul por pelo menos três razões: 1) persistência da lógica colonial nas relações e sistemas dominantes ao identificar que desenvolvimento e crescimento dos países do centro do capitalismo têm base na exploração e expropriação dos países periféricos; 2) continuidade das opressões como herança colonial de um sistema hierárquico de valores que menospreza culturas e povos nativos e/ou escravizados; 3) consequentemente, desvaloriza suas práticas comunitárias com respeito e reverência às mulheres por seu papel central nos sistemas alimentares e ecológicos (Grada KILOMBA, 2019). Para Lugones (2014): [...] A transformação civilizatória justificava a colonização da memória e, consequentemente, das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual, com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização social, ecológica e cosmológica (LUGONES, 2014, p. 938).
Para Karina Bidaseca (2014), é fundamental visualizar este lado oculto proposto por Lugones porque a colônia “destruiu a constituição de cada pessoa, de cada comunidade, de práticas e saberes interconectados e com eles, as formas de compreender o mundo se tornaram inacessíveis”. A chave interpretativa de Lugones sobre colonialidade de gênero é decisiva aqui porque desmascara não só a falsa universalização, como também demonstra que a colonialidade do poder se constituiu sobretudo na subordinação das mulheres.
A literatura brasileira com o recorte de gênero e raça na cidade tem como importante marco referencial Carolina Maria de Jesus (1958) e sua clareza sobre os impactos dessas hierarquias coloniais herdadas, para uma mulher negra, pobre e chefe de família7. Ainda no final da ditadura, Gonzalez (1982) demonstraria que o negro e, especificamente, a mulher negra, não se beneficiaram do crescimento econômico na década de 1970 e permaneceram em trabalhos precarizados. Nas décadas seguintes, a recente literatura sobre direito à cidade com recorte de gênero e raça identificou diversas nuances: o ônus da acumulação do trabalho reprodutivo e produtivo com prejuízo sobre o tempo livre devido aos deslocamentos nas grandes cidades brasileiras; a baixa representatividade e tutela sobre a voz feminina nos processos participativos urbanos.8 (Irene MAESTRO, 2017). Uma recente literatura que cruza os estudos urbanos e de gênero tem problematizado as inúmeras restrições, repressões e interdições às mulheres em espaços públicos e privados, enquanto corpos generificados, racializados e sexualizados. Isso significa que a violência contra as mulheres precisa ser entendida do ponto de vista espacial porque é no espaço (casa, rua, trabalho etc.) que os papeis femininos acima discutidos estão em disputa (TAVARES; BONADIO, 2021; Diana RAMOS, 2015).
Essa literatura destaca que, de um lado, a performance urbana atual do corpo feminino é, por excelência, o exercício da autonomia, liberdade e livre-arbítrio; por outro, ainda é alvo de controle através da posse, subordinação, tutela e cerceamento (Flávia BIROLLI, 2013). Os dados de três importantes pesquisas nacionais analisadas a seguir confirmam que existe o aniquilamento simbólico da vontade e da voz feminina, incluindo a liberdade do seu corpo e, por extensão, a fruição e o direito à cidade.
Nesse sentido, como a violência contra as mulheres pode ser interpretada como recalque espacial? Pode estar relacionada, na medida em que pode ser considerada a manutenção das formas de dominação que causam constrangimento e apagamento da existência, deslocamento e usufruto do espaço urbano pelas mulheres. As três pesquisas9 caracterizaram as especificidades da violência contra as mulheres, a partir de dados agregados nos municípios, nos estados e no país, em gráficos e tabelas. Nosso trabalho quis entender o fenômeno através de mapas, porém, do ponto de vista intraurbano no município de São Paulo.
Entre as características levantadas pelas pesquisas, todas as estatísticas revelaram aumento nos índices na última década. Walselfisz (2015) mostra que o número de mortes violentas de mulheres no Brasil entre 1980 e 2013 pelo Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) quase dobrou, em um ritmo crescente ao longo do tempo10. Esta mesma pesquisa mostra também que este aumento é particularmente expressivo nos municípios menores, revelando uma interiorização da violência, em um processo que se desloca dos municípios de grande porte para os de porte médio11. Outro aspecto apresentado por Walselfisz (2015) e confirmado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP, 2017, 2019b), diz respeito à raça: são as mulheres negras as maiores vítimas de violência, sobretudo o feminicídio. Em relação aos agressores, todas as pesquisas apontam que conhecidos, sobretudo parceiros das vítimas, estão em maior número12.
Para o FBSP (2017), apenas menos da metade das mulheres13 relatou ter retornado para registrar a violência em um órgão oficial relacionado ao sistema de segurança. Além disso, os tipos, a recorrência, a perversidade e o lugar da violência também demonstram que a violência contra as mulheres, além de subnotificada, é um crime de ódio, sistemático14.
Não é possível aferir se o aumento dos números indica que as mulheres estão mais conscientes e por isso estão registrando mais ocorrências ou, de fato, a violência cresceu. De qualquer forma, ainda não parece crível que esses números alarmantes se revertam15. As duas interpretações a seguir tentam elaborar outros argumentos que explicariam a manutenção sistemática da violência.
Da literatura internacional, os feminismos materialista e marxista têm colocado no centro, além do problema secular da diferença de rendimentos entre homens e mulheres, a persistência da divisão sexual do trabalho produtivo e reprodutivo devido à permanência da construção social da afetividade no trabalho feminino. Para a perspectiva marxista, a reprodução da força de trabalho estaria apoiada sobre o trabalho reprodutivo feminino não remunerado, sem o qual o produtivo capitalista não existiria (Silvia FEDERICI, 2019; OXFAM, 2019 16). O feminismo materialista entende que a apropriação material das mulheres pelos homens não se limita a sexualidade e reprodução da força de trabalho. Eles agem na raiz da própria integridade do corpo feminino, limitando seu movimento e pleno uso dos seus corpos, por meio da correção, degradação, mutilação, interdição das viagens, confinamento etc. (Paola TABET, 2014; Donna HARAWAY, 1991) Para Tabet (2014), historicamente, detendo o monopólio de determinadas atividades-chave, sobretudo dos instrumentos mais sofisticados e restringindo o uso às mulheres, os homens permitiam que elas atuassem em tarefas limitadas ao próprio corpo, Trata-se, portanto, de uma dupla dominação sobre as mulheres baseada: na violência (monopólio das armas) e na restrição aos recursos (monopólio dos instrumentos). Haraway (1991), por sua vez, argumenta que as antigas opressões, subordinações e explorações muitas vezes estão camufladas hoje por meio de uma variedade de novas tecnologias de inferiorização e intimidação das mulheres.
Concomitantemente à farta literatura nacional contemporânea, está a contribuição dos estudos de gênero, sobretudo no nível da divisão internacional do trabalho que submeteria mulheres das periferias do centro capitalista à precarização e à informalidade. Esse modelo socioeconômico imposto pelo neoliberalismo estaria baseado nas terceirizações, no deslocamento e rearranjo das plantas industriais em busca de territórios onde trabalhadores não estejam organizados. Dentro dessa estrutura neoliberal, mulheres dos países do Sul Global17 seriam as mais precarizadas (Doreen MASSEY, 1994).
A reprodução da força de trabalho incompleta nos países periféricos, ou seja, a não universalização dos direitos sociais, fez do acesso à terra formal e às infraestruturas urbanas, artefato seletivo (Ermínia MARICATO, 1996). Enquanto o trabalho produtivo não garantia a todos os direitos sociais e o direito à cidade, o trabalho reprodutivo continuou como ocupação compulsória às mulheres. O trabalho não remunerado doméstico, como parte da reprodução de trabalho não contabilizada, é a naturalização da tomada do corpo da mulher, reforçada pelo capitalismo periférico (Heleieth SAFFIOTI, 1981). Sem creche ou hospital suficientes para cuidado dos familiares, sem renda para pagar trabalho doméstico remunerado que a liberasse parcial ou totalmente para o trabalho produtivo, as mulheres brasileiras atravessaram o século XX associadas ao trabalho doméstico e, sobretudo, como parte da esfera patriarcal. A estrutura neoliberal, como rolo compressor sobre os direitos dos trabalhadores, aprofundou e agregou a precarização no trabalho produtivo feminino.
São três as principais leis que tratam da violência contra a mulher: A LMP, a Lei do Feminicídio (BRASIL, 2015) e a Lei de Importunação Sexual18 (BRASIL, 2018). De diferentes formas, as três pretendem enfrentar esses flagelos que ameaçam a integridade, a liberdade, os afetos e respectivas escolhas femininas sobre seu corpo, sua relação com a moradia e seu comportamento na cidade. Uma breve análise das leis, a partir da forma como têm sido implementadas, estão a seguir.
A precursora, LMP, inaugurou a compreensão que a violência contra a mulher não só abrange outros tipos além da física - psicológica, moral, sexual e patrimonial, quanto aperfeiçoou os mecanismos de denúncia, proteção da mulher e punição do agressor. Entretanto, entre os aspectos mais progressistas da lei está a adoção de políticas públicas para prevenção e erradicação da violência contra a mulher. A Lei do Feminicídio, sancionada em 2015, é complementar à LMP ao classificar o homicídio pela razão de gênero como crime hediondo, com agravante quando acontece em situações específicas de vulnerabilidade19. A Lei de Importunação Sexual, por sua vez, caracteriza como crime a realização de ato libidinoso na presença de alguém, sem sua anuência e pune a divulgação de cenas de estupro. Entretanto, a literatura aponta que a centralidade na mulher tem sido substituída pela lógica do sistema de justiça penal tradicional, na medida em que a ênfase tem sido nos avanços institucionais e arcabouços jurídicos, em detrimento das medidas de proteção e assistência à mulher (Carmen H. CAMPOS, 2017; IZUMINO, 2013).
A ênfase na judicialização desperta uma dúvida se seriam os negros os maiores alvos da punição na condição de agressores. O debate sobre segurança pública tem identificado o encarceramento e a defesa do armamentismo, como controle social dos jovens negros, pobres e periféricos20. Passados mais de 20 anos do retorno à democracia, há uma importante literatura que identifica a excessiva judicialização como silenciamento da política (BATISTA, 2018). Ou ainda: a judicialização é justamente a nova ordem política que converge com o recalque da estrutura racista. Não são todos os agressores que são presos: o encarceramento seletivo tendo negros como principal alvo é uma ameaça à democracia21.
Até há pouco tempo, ainda no século XXI, as violências contra as mulheres eram identificadas como crimes passionais e de legítima defesa da honra masculina. A maior demonstração desse abismo entre legislação e costumes é aquilo que os operadores do direito destacam como extrema crueldade das violências contra as mulheres22 (FBSP, 2017; IZUMINO, 2013).
As três leis mencionadas não estão isoladas, uma vez que compõem um marco regulatório de políticas nacionais. Apesar de termos avançado no reconhecimento em lei das demais violências além da física, nas medidas protetivas à mulher, no julgamento e no encarceramento dos agressores, ainda permanecem contradições. Educação, conscientização ampla da sociedade e universalização na proteção e assistência à mulher vítima da violência parecem determinantes para enfrentar as complexidades desse fenômeno que a judicialização isoladamente não dá conta. Apoio psicológico, assistência jurídica, medidas protetivas, abrigamento e encaminhamento penal poderiam ter direcionamento mais imediato, se estivessem planejados intersetorialmente. Sem essas ações, conviveremos com a ambiguidade de uma das legislações mais progressistas do mundo e um dos piores índices de violência contra as mulheres. Veremos nos mapas a falta de articulação e distanciamento entre os estabelecimentos do judiciário, segurança pública, saúde e assistência social. Ainda assim, a política pública de ampliação da conscientização, da provisão de equipamentos de assistência social e do fortalecimento do sistema de justiça esbarrariam nos limites do patriarcalismo, neoliberalismo e racismo estruturais.
Para Schwarz (2012), é uma ideia paradoxal de progresso, porque mantém um lastro que não progride. A sociedade brasileira quer participar do progresso mundial, porém, com a condição de que seja assentada sobre uma base sem direitos universalizados. Embora houvesse a máscara do liberalismo moderno, há a manutenção de dependência e servidão dos subordinados, calcadas nas antigas relações de mando racista, oligárquico e patriarcal. Para o autor, ascender, ter acesso a oportunidades ou autonomia, paga-se o preço da “submissão à violência e à humilhação, ou à manobra abjeta da sujeição bajuladora e parasitismo”, que apenas desvia ao dissimular a ausência de hierarquia entre gêneros, classes e raças.
Recalque espacial: violência contra a mulher em São Paulo
Metodologia
Em 2019, solicitamos a base de dados sobre violência contra as mulheres à via LAI para o ano de 2018. Esta pesquisa documental23 utilizou microdados da Secretaria de Segurança do Estado de São Paulo (SSP-SP) sobre os cinco tipos de violência definidos pela LMP. Paralelamente, pedimos à Prefeitura do Município de São Paulo microdados com a quantidade dos atendimentos às mulheres vítimas de violência nos Centros de Referência da Mulher (CRMs), Centros de Cidadania da Mulher (CCMs)24 e os Centros de Defesa e Convivência da Mulher (CDCMs)25. Os dados de atendimento nesses centros são individuais e podem ser recorrentes, caso a mulher sofra violência sistemática26.
Embora a espacialização das violências não seja inédita, mapas de violência contra a mulher no Brasil e no mundo têm despertado recente interesse na literatura. A metodologia é a geolocalização dos microdados dos órgãos de segurança pública e assistência social. Os dados de violência e atendimento individualizados por mulher vêm em planilhas, com informações espaciais do local do crime e do atendimento para serem situados no espaço urbano e transformados em mapas por meio de programa de geoprocessamento27 (ALDEA, 2020; GÊNERO E NÚMERO, 2019). Recortes de idade e relação com agressor foram identificados e possuem enfoque convergente com esta pesquisa.
Apesar de ambas as bases de dados conterem quantidade considerável de informações que qualificam a violência, nesta análise focamos nos aspectos quantitativos, tipos de violência e respectivas localizações que problematizam a ausência de uma política pública pensada a partir das relações entre violência x Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (SPM, 2011).
Para poder entender como as violências contra as mulheres estão relacionadas com as características populacionais na escala intraurbana, foi escolhida como variável a população em cada setor censitário, que são os menores perímetros onde os indicadores socioeconômicos estão agregados. A única fonte de informação nessa menor escala é o Censo Universo do IBGE atualizados decenalmente28. Os números relativos expressos nos mapas a seguir são: o total do tipo de violência contra as mulheres ou o total de atendimentos nos centros de referência da mulher dividido pela população total dentro de cada setor censitário.
Análise dos resultados
Na base de dados de violências contra as mulheres que recebemos da SSP-SP, do ponto de vista quantitativo, passamos de 54.386 violências, dos cinco tipos de violência da LMP, em 2017, para 82.314, em 2018, ou seja, um aumento de 51,20%. Em um ano, essa taxa de crescimento é bastante expressiva, porém, seria necessário verificar cada tipo de violência para saber qual dos cinco tipos teria o aumento mais significativo29. A única forma de desagregação dos cinco tipos de violência expressa aqui neste artigo está nos mapas da figura 3 e na distribuição da participação de cada uma delas em relação ao total no ano de 2018 adiante.
Na base da SSP-SP, confirmando as estatísticas de Walselfisz (2015) e por FBSP (2017; 2019a), 64,8% dos feminicídios são praticados na residência, contra 21% na via pública e 14,2% em estabelecimentos/instituições. Entretanto, de forma diferente daquilo levantado por Walselfisz (2015), a maior participação entre os cinco tipos de violências na base da SSP em 2018 é, em primeiro lugar, a psicológica (36%), seguido da física (29%), moral (28%), patrimonial (4%) e sexual (3%).
Para entender brevemente como os padrões de segregação socioespaciais do Município de São Paulo influenciam no entendimento da violência contra as mulheres no espaço urbano, é preciso considerar ao menos dois aspectos: 1) formação de novas centralidades no centro expandido e subcentros comerciais próximos; 2) persistência da lógica centro-periferia de segregação residencial por raça e classe. Os estudos sobre segregação socioespacial no Município de São Paulo têm evoluído muito na superação da lógica dualista entre centro e periferia; ou gradativa, marcada pelos modelos dos anéis consecutivos até o final da década de 1990 (Lúcia BOGUS; Suzana PASTERNAK, 2015; Raquel ROLNIK, 2017). Estes estudos evidenciam a descentralização em novos centros de comércio/serviço e oportunidades de emprego, porém não na direção das periferias (Marcelo NERY; Altay A. L. SOUZA; Sérgio ADORNO, 2019). Entretanto, quando consideramos os locais de residência por raça e classe, existe uma alta densidade demográfica das classes de menor renda, de pretos e pardos nas periferias, ainda que existam alguns assentamentos precários no centro expandido (FRANÇA, 2015). Isso significa que essa segregação a partir do local de residência produz deslocamentos das pessoas pretas e pardas das periferias na direção dos novos centros comerciais, resultando em uma população flutuante durante o dia.
Ao longo do processo de espacialização das violências, três questões chamaram atenção: em primeiro lugar, as violências pouco ou nada tinham relação com os marcadores comuns de segregação residencial centro-periferia. Em segundo, manifestam um padrão de concentração/dispersão, porém, não em função da relação direta com os vetores de valorização imobiliária.
Em terceiro, os equipamentos urbanos que compõem a Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres - aqui representados pelas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, pelos núcleos especializados da Promotoria e Defensoria Pública do Estado de São Paulo e pelos centros de referência da mulher (CCMs, CRMs, CDCMs), não estão estrategicamente implantados segundo a distribuição das violências, conforme demonstramos nos mapas da Figura 2. A luta pela ampliação dos equipamentos que compõem esta rede no espaço urbano não é apenas quantitativa, mas sobretudo qualitativa. Isso significa que se até 2003 essa rede era apenas composta pelas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e casas-abrigo, com a criação da Secretaria de Políticas para as Mulheres, avançamos nas ações de prevenção, de garantia de direitos e de responsabilização de agressores (SPM, 2011). Este artigo quer propor avançar mais um passo na direção da definição da localização, quantidades desses equipamentos e a articulação entre eles em função da manifestação das violências no espaço urbano, conforme demonstraremos na tabela 1 e figura 5.
Fonte: SSP-SP, 2018
#PraTodoMundoVer: A Figura 1 contém 3 mapas comparativos do Município de São Paulo: no Mapa 1a, a espacialização individual dos 5 tipos de violência contra as mulheres evidencia que ocupam toda a mancha urbana; no Mapa 1b, a agregação das violências por distrito mostra a concentração na periferia; e no Mapa 1c, a agregação das violências dividida pela população total existente em cada distrito mostra que há concentração nos distritos do centro expandido
Apesar de não haver distinção neste mapa entre os 5 tipos de violência, é possível perceber como está presente em todo espaço habitável30. Este padrão de ocupação das violências demonstra uma especificidade contrária aos demais crimes contra o patrimônio e contra a pessoa no Município de São Paulo (NERY; SOUZA; ADORNO, 2019): são violências de ódio, que foram explicadas acima pela literatura feminista negra e decolonial: 1) as mulheres não corresponderam às expectativas da subordinação, obediência e virtude, como disciplinamento do corpo feminino, sobretudo nos espaços domésticos; 2) saíram desse disciplinamento e devem estar à disposição para o gozo sexual, seja na casa, na rua ou até mesmo no espaço virtual.
Apesar da presença maciça das violências em todo o perímetro da mancha urbana (Mapa 1a), é possível termos outra leitura sobre o padrão de ocupação territorial: notamos que em termos quantitativos, são os distritos da periferia que possuem as maiores quantidades em números absolutos dos 5 tipos de violência contra a mulher. A hipótese que explicaria a concentração de violências em alguns distritos da periferia é que estes são os distritos mais populosos, conforme mencionamos acima. Por outro lado, apesar de termos identificado, em n.º absolutos, maiores quantidades em distritos periféricos (Mapa 1b), ao cruzarmos com a população residente por distrito, a situação se inverte. A densidade das violências passa a registrar um maior índice nos distritos do centro expandido (Mapa 1c). Em primeiro lugar está a Sé, seguido dos distritos da Barra Funda, Bom Retiro, Consolação, Bela Vista, República. Os distritos do centro expandido com as maiores densidades de violências são notoriamente aqueles com a maior oferta de empregos formais e com a presença de instituições públicas e privadas. Isto pode nos levar a hipótese da relação entre uso do solo, espaços de sociabilidade x violências contra as mulheres. Isto não necessariamente parece ter sido levado em conta na distribuição dos equipamentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher (figura 2). A concentração nestes espaços, portanto, seria resultado da somatória entre as violências praticadas nas residências, nos logradouros públicos e nos estabelecimentos públicos e privados (comércio/serviços), escritórios etc.
Fonte: SSP-SP, 2018
#PraTodoMundoVer: A Figura 2 contém dois mapas comparativos: o Mapa 2a mostra só a localização dos feminicídios, espalhados no território; o Mapa 2b mostra a relação entre os casos de feminicídio e os equipamentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Neste mapa é possível avaliar que estão não só mal distribuídos como ausentes em várias regiões
Apesar dos números de feminicídios (259) representarem uma menor participação dentro do total dos cinco tipos de violência (82.314), não causam menor perplexidade por ocuparem, igualmente, toda a mancha urbana do município (Mapa 2a). No Mapa 2b, confrontamos a localização das violências de feminicídio (pontos pretos) x renda (polígonos dos setores censitários preenchidos em gradações de cinza) x Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres composta de equipamentos públicos de segurança - Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (círculos cinzas com contorno preto), assistência social/direitos humanos - CCMs, CRMs, CDCMs (círculos cinza sem contorno), e justiça - GEVID/ MPE-SP e NUDEM/ DP31 (estrelas e quadrado). Podemos observar uma distribuição desigual desses equipamentos pelo território, descolados dos critérios renda32 e distribuição de feminicídios. Apesar da rede estar distribuída nas principais regiões da cidade, alguns distritos no extremo leste possuem um maior número desses equipamentos. Por outro lado, há total ou parcial ausência nos distritos com renda per capita maior e em alguns do meio da zona leste e sul, revelando apagões (falta desses equipamentos) e redundâncias (concentrações destes) no território.
Fonte: SSP-SP, 2018
#PraTodoMundoVer: A Figura 3 contém 4 mapas comparativos. Apesar dos mapas apresentarem separadamente os tipos de violência contra a mulher (Mapa 3a: violências patrimoniais. Mapa 3b: violências físicas. Mapa 3c: violências sexuais. Mapa 3d: violências psicológicas e morais), evidenciam que, em maior ou menor quantidade, estão distribuídos por toda a mancha urbana
Quando separamos por tipo de violência, verificamos nos mapas acima que podemos desmistificar alguns estereótipos de classe. É um mito que a violência patrimonial atingiria somente mulheres de classe alta33, ou que a violência física (lesão corporal) atingiria somente vítimas de classe baixa ou com menor grau de escolaridade. Apesar da violência sexual representar apenas 3% do total, contabilizou 2.401 casos no ano de 2018. Além disso, estão distribuídas em todo o território, contrariando a crença que apenas territórios periféricos, com pouca ou nenhuma oferta de infraestrutura urbana, sobretudo iluminação pública, sejam os únicos fatores para as violências sexuais34. Somadas, violência psicológica e moral têm maior participação entre todas os 5 tipos (64%) e, também, estão em toda a mancha urbana.
Considerando que os cinco tipos de violências são manifestações do controle e subordinação das mulheres, a espacialização destas demonstra a extensão gravíssima que implica no cerceamento do seu direito à cidade. Os zoneamentos e as demais políticas de uso do solo, manifestam atualmente a institucionalização do controle sobre os corpos femininos e seus pares desviantes, ou seja, outras identidades de gênero e orientação sexual. (RAMOS, 2015) Espaços de sociabilidade para além do doméstico seriam expressão da contravenção da determinação patriarcal sobre o lugar adequado e aceitável da mulher. Por isso, seriam corpos a serem punidos, consumidos, controlados ou até aniquilados.
Fonte: Censo Universo IBGE, 2010. Fonte: SSP-SP, 2018
#PraTodoMundoVer: A Figura 4 contém três mapas comparativos. Enquanto os Mapas 4a e 4b mostram os domicílios de pretos e pardos em alguns distritos do centro expandido e nas periferias em n.º absolutos e relativos; o Mapa 4c mostra que a concentração dos casos de racismo está nos distritos com pouquíssimos domicílios de pretos e pardos a oeste, sul e leste próximos
Em se tratando de raça, grosso modo, o Censo Universo do IBGE confirma que em 2010 os domicílios de pretos e pardos estão nos distritos periféricos, semiperiféricos e em alguns na região central, tanto em números absolutos, quanto relativos (divididos pela população total residente). Isto se deve, segundo a literatura, à segmentação da inserção no mercado de trabalho, quando cruzada com renda familiar, conjugado à discriminação racial (FRANÇA, 2015). Mesmo aparentemente atingindo todas as mulheres, em nº. absolutos, as maiores quantidades de violências contra as mulheres estão nos domicílios de pretos e pardos. Nesse sentido, conceitos como imagens de controle definido por Collins (2019) e desvalorização continuada de bell hooks (2014) apontariam que são as mulheres negras as maiores vítimas da construção de narrativas do branco de naturalização das conformidades e legitimidades sobre o que é belo, permitido e aceitável. A subjugação ou apagamento permanentes é a manifestação desses recalques de gênero e raça que extravasam para o espaço. Considerando que as mulheres negras têm maior crescimento e participação entre o n.º de vítimas de violência contra a mulher35, bem como são vulneráveis também ao racismo são, portanto, mais suscetíveis à sobreposição de violências.
Os crimes de racismo e as violências e injúria racial de 2018, por sua vez, segundo a SSP-SP, estão concentrados em alguns distritos de alta renda e concentração de infraestrutura urbana: centro expandido, sobretudo do quadrante sudoeste, leste e alguns do oeste e sul próximos. Como a concentração das oportunidades de emprego formal e estabelecimentos públicos e privados estão em alguns desses distritos, as violências podem estar relacionadas aos tensionamentos de gênero e raça nestes territórios. A concentração em distritos do centro expandido em alguns subcentros próximos é um padrão semelhante à violência contra as mulheres. Isto corrobora para a tese central do recalque espacial por gênero, raça e classe, uma vez que demonstra um padrão semelhante entre as concentrações de números relativos de violência contra a mulher e de violência de racismo.
Quantidade violências | Violências/atendimentos | |||
distrito | n.º | distrito | n.º | |
Campo Limpo | 7825 | Itaquera | 5,42 | |
Guaianases | 6809 | Capão Redondo | 3,42 | |
Cid. Tiradentes | 6256 | Santo Amaro | 2,61 | |
São Lucas | 5001 | Perus | 0,94 | |
Bela Vista | 4813 | Parelheiros | 0,92 | |
Lajeado | 4541 | Jardim Ângela | 0,87 | |
Itaim Paulista | 4366 | Brasilândia | 0,56 | |
Vila Maria | 3898 | José Bonifácio | 0,53 | |
Brasilândia | 3621 | Cidade Ademar | 0,48 | |
Vila Mariana | 3570 | Socorro | 0,42 | |
Casa Verde | 3555 | Butantã | 0,39 | |
Cidade Ademar | 3476 | São Mateus | 0,37 | |
São Mateus | 2699 | Itaim Paulista | 0,36 | |
Sé | 2574 | Ipiranga | 0,33 | |
Ipiranga | 2034 | Lajeado | 0,29 | |
Jardim Ângela | 1868 | Sé | 0,26 | |
José Bonifácio | 1703 | Cid. Tiradentes | 0,22 | |
Parelheiros | 1385 | Vila Mariana | 0,22 | |
Butantã | 1238 | Casa Verde | 0,20 | |
Socorro | 853 | Vila Maria | 0,19 | |
Perus | 821 | Campo Limpo | 0,18 | |
Capão Redondo | 537 | São Lucas | 0,16 | |
Itaquera | 427 | Bela Vista | 0,14 | |
Santo Amaro | 306 | Guaianases | 0,13 |
Fontes: SSP-SP e SMDHC e SMADS-PMSP, 2018
Fontes: SSP-SP e SMDHC e SMADS-PMSP, 2018
#PraTodoMundoVer: A figura 5 e a tabela 1 são complementares. Enquanto a tabela mostra 2 colunas: a 1ª à esquerda, o ranking dos 24 de 96 distritos com maior n.º de violências contra a mulher; a 2ª coluna à direita mostra a relação entre a quantidade de violências dividida pelo nº. de atendimentos nos centros de referência da mulher. Ambas mostram que os distritos de Itaquera (leste), Capão Redondo (sul) e Santo Amaro (sudoeste) são os mais desfavoráveis nessa relação
No Mapa 5 (figura 5), os distritos que estão em preto são aqueles que não possuem nenhum centro de referência da mulher. Os demais, que estão preenchidos em gradações de cinza, são aqueles com 24 centros implantados pela Prefeitura de São Paulo. Quanto mais escuro for o cinza, maior o índice que mede a relação entre quantidade de violências dividida pelo nº. de atendimentos nos centros de referência da mulher. Isso significa que quanto mais escuro o cinza, maior o número de violências em relação aos atendimentos e, portanto, menor a capacidade do Estado em enfrentar a demanda das mulheres em busca de apoio. Tanto na tabela 1 quanto na figura 5, se fizermos o recorte por distrito, entre os 96, os cinco primeiros com a maior quantidade de violências em números absolutos estão na periferia: Grajaú (sul), Itaquera (leste), Brasilândia (noroeste), Capão Redondo, Jardim Ângela (sul). Entretanto, se fizermos o recorte com o total de habitantes em cada distrito, o retrato é outro: ao contrário de estarem no topo os distritos periféricos, os cinco primeiros estão no centro expandido, em números relativos (violências/população): Barra Funda (oeste), Brás (leste), Sé República e Pari (centro). Estes distritos no centro expandido comprovam que há um abismo entre o número de violências e a oferta de atendimentos nos três tipos de centros da mulher da PMSP. No entanto, entre os distritos que os possuem os centros de referência (em gradações de cinza), a quantidade de atendimento em Capão Redondo (537), Itaquera (427) e Santo Amaro (306) é muito baixo, se compararmos com a quantidade de violências. Por esse motivo, estão entre os três com os maiores índices violências/ atendimentos, ou seja, os atendimentos são insuficientes para a demanda de violências que existe no território. Em 1º lugar, com déficit dessa relação, está Itaquera, com quase 5,5 vezes o número de violências a mais que os atendimentos; em 2º, Capão Redondo com quase 3,5 vezes; em 3º, Santo Amaro, com pouco mais de 2,5 vezes36. Por esse motivo, parece urgente identificar essa desigualdade da presença e capacidade do Estado expressa na oferta de equipamentos da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres entre os distritos e estabelecer estratégias para combater os déficits.
Considerações Finais
Os mapas acima procuraram comprovar que existem espaços de concentração e dispersão de violências, sugerindo que não são distribuídas de forma homogênea no território. Não obstante a diferença na intensidade e distribuição, a presença do Estado não acompanha ou planeja suas ações em funções dessas diferenças territoriais, a partir das informações colhidas dos atendimentos dos órgãos de segurança pública e assistência social.
A compreensão de que a violência contra as mulheres possa ser analisada do ponto de vista espacial, abre a perspectiva de que políticas públicas de segurança, saúde, assistência social e acesso à justiça possam ser planejadas para serem estratégicas em função das demandas que existem no espaço urbano. Por meio das técnicas de geoprocessamento, este mapeamento revelou que a violência contra as mulheres não se situa entre aqueles com menor escolaridade e/ou renda ou na periferia. Os mapas demonstram que estão espalhadas em todo espaço urbano e, pior, concentradas nos distritos centrais, com maior intensidade e mistura de usos, mais empregos, infraestruturas e serviços urbanos. Apesar de ser caracterizada como uma violência cometida, minimamente acima da média de ocorrências, no ambiente doméstico, quando acontece nos logradouros públicos e em espaços de usufruto coletivo, se localizam nos territórios com maior oferta de usos comuns. É uma sociabilidade conflituosa que se manifesta no espaço.
Os números expressivos e sua extensão no espaço não só parecem muito graves quanto invisíveis e subdimensionados. Como explicar que depois de mais de um século, heranças da sociedade colonial, escravagista e autoritária somadas ao neoliberalismo atual, pudessem explicar a violência contra as mulheres no século XXI, malgrado o evidente saldo positivo de conquistas em direitos e participação da mulher no mercado de trabalho? Trata-se de uma sociedade anômala porque incorpora o legado inquestionável e irreversível da mulher na sociedade, sem alterar os papeis arcaicos esperados de hierarquias, conformidades e desconformidades de gênero, raça, sexualidade, família e performance na cidade. Daí a associação com o termo psicanalítico recalque, como conflito não resolvido que, ao final, se estende a partir dos embates interpessoais na direção de choques coletivos, revelando seu caráter estrutural.
Nesse sentido, o risco da judicialização ser a prioridade da política pública é menosprezar os outros elementos da estrutura patriarcal conjugada às estruturas racial e neoliberal. A interceptação da violência, isoladamente, não extinguiria as motivações. Por essa razão, uma política pública que enfrente a complexidade dessa questão, deveria priorizar além daquilo que a própria LMP determina, outros componentes espaciais, interseccionais e multidisciplinares. Gênero, raça e orientação sexual, bem como a adoção de critérios espaciais de análise e gestão, poderiam compor um Sistema Nacional Integrado de Prevenção e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, a partir do aperfeiçoamento e integração das Redes de Enfrentamento. Isso envolveria uma compreensão multidisciplinar sobre esta violência que a considere não só como diretrizes de segurança e saúde públicas, como também vincule a políticas educacionais, urbana, habitacional, trabalho etc. Por esse motivo, a articulação entre os entes federativos - União, Estados e Municípios -, bem como o diálogo e integração do extenso tecido de iniciativas da sociedade civil e de movimentos sociais parecem fundamentais. A recuperação de espaços de controle social também é central em um cenário de desmonte das políticas em termos de orçamento e alcance.
A desigualdade entre os distritos na presença e na oferta de atendimentos demonstram que além de insuficientes, são mal distribuídos, segundo a quantidade de violências no seu entorno. As redes municipais e estaduais de acolhimento e denúncia da violência contra a mulher precisariam ter, portanto, não só integração institucional para efetividade e retorno sobre a denúncia, como também gestão territorial. Integração significa articulação entre denúncia e a rede de atendimentos psicológicos e jurídicos, acesso à orientação sobre a denúncia, bem como informações sobre acolhimento e como proteger-se nos casos mais graves nos locais mais próximos.
O artigo procurou demonstrar também a importância da análise espacial para elaboração de políticas públicas territorialmente justas. Além disso, procurou desmistificar alguns sensos comuns que reproduzem preconceitos que relacionam a violência contra a mulher com periferia/pobreza/baixa escolaridade. Entretanto, o artigo tem algumas limitações: apesar de ter sistematizado os dados oficiais das secretarias municipal e estadual, a literatura admite que a violência contra as mulheres é subnotificada. Tanto as bases de dados carecem de completude integral das informações (raça, escolaridade etc.), quanto o ambiente hostil e muitas vezes misógino das delegacias inibem o registro pelas mulheres. Laços afetivos das vítimas com os agressores (– deles são pessoas próximas à denunciante) são um grande desafio para as políticas educacionais na direção da ressignificação das sociabilidades (FBSP, 2017; 2019a).
A institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres não pode estar baseada na redução deste problema com uma abordagem monotemática (segurança pública) ou uniescalar (só no municípios), porque corre o risco de ser ineficaz. Por este motivo, não parece suficiente apenas um incremento quantitativo do Estado de forma homogênea no território, se não forem enfrentadas as raízes da violência, ainda presentes nas estruturas patriarcal, neoliberal e racial.