Introdução
Wayne Booth (1974), no livro A Rhetoric of Irony, apresenta a seguinte consideração sobre o tratamento da ironia:
Alguns debates sobre leituras irônicas poderiam ser conduzidos de forma mais proveitosa se os críticos deixassem claro para que tipo de contribuição eles se empenham: uma expansão ou redefinição de termos; uma explicação ou iluminação de significados; uma exploração da significância que a obra tem ou teve sobre determinado corpo de leitores; ou uma exibição das sensibilidades privadas do crítico (BOOTH, 1974, p. 21, tradução nossa, grifos do autor)
Seguindo a sugestão da passagem acima, nossa reflexão sobre o romance The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood (1996), tem o propósito de iluminar significados e, simultaneamente, compreender a significância1 da obra para determinado conjunto de leitores - mais propriamente, leitoras. A análise irá contemplar as dimensões de leitura/recepção em jogo no romance para, então, depreender as implicações do reconhecimento da ironia estável2. Para isso, será necessário examinar como certo segmento da crítica compôs sua leitura em relação à potência irônica de The Handmaid’s Tale. Por fim, o objetivo do artigo será estabelecer como a ironia pode dar corpo à nossa leitura de mulher como ponto de chegada de uma perspectiva feminista.
No que concerne aos estudos da ironia, dois textos destacam-se pela identificação de comunidades discursivas vinculadas à expressão irônica: A Rhetoric of Irony, de Wayne Booth (1974), e Irony’s Edge: the theory and politics of irony, de Linda Hutcheon (1994). Segundo a última, a existência de comunidades discursivas viabiliza a compreensão da ironia através de condições ou circunstâncias compartilhadas por indivíduos, tais como “classe, raça, gênero, etnia, escolhas sexuais - sem mencionar a nacionalidade, a religião, a idade, a profissão, e todos os outros agrupamentos micropolíticos em que nos colocamos ou somos colocados por nossa sociedade” (Linda HUTCHEON, 1994, p. 88, tradução nossa).
Na contramão da análise de Hutcheon (1994), não consideramos que a ironia dependa de uma comunidade preexistente, ainda que levemos em conta a dimensão da experiência feminina como central à nossa leitura. Reiteramos o argumento de Wayne Booth (1974): o arranjo de uma comunidade daqueles que “entendem” é o produto último do efeito irônico na obra literária. A hipótese que rege este artigo, portanto, é que a captação da ironia estável possibilita o vínculo de cunho comunitário, não o contrário.
Como critério para a identificação da ironia estável, iremos considerar os seguintes passos (sem a necessidade de indicá-los de forma esquemática): “a solicitada rejeição do significado superficial; uma consideração das alternativas; uma decisão sobre o posicionamento do autor; e uma reconstrução em harmonia com o que inferimos sobre tal posicionamento” (BOOTH, 1974, p. 147, tradução nossa, grifos do autor). Por fim, a atenção a determinados recursos e particularidades da narrativa investidos de efeito irônico é o que incitará a hipótese da formação de uma comunidade de leitoras que entendem.
Níveis de Leitura
A consideração dos níveis de leitura a partir de The Handmaid’s Tale demanda, antes de tudo, um enfoque à divisão do romance em dois segmentos, nos quais ganham voz narradores isolados temporal e espacialmente. No primeiro segmento, uma narradora em primeira pessoa apresenta suas vivências como “aia” no interior da República de Gilead, sistema ditatorial que dá origem ao contexto distópico. Em uma conjuntura de baixa taxa de natalidade da população caucasiana, certo grupo da elite realiza um golpe de estado na região da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos da América, e reorganiza a sociedade de acordo com preceitos conservadores e fundamentalistas. Nesse cenário, as “aias” são uma espécie de casta reprodutiva composta por mulheres férteis a quem é dada a responsabilidade de conceber filhos às famílias dos dirigentes do novo sistema, os Comandantes. Já o segundo segmento, intitulado “Notas Históricas”, apresenta a transcrição de uma conferência ficcional composta aproximadamente dois séculos após a narração da aia. O congresso acadêmico de que a conferência faz parte é dedicado a estudos sobre o período correspondente ao poderio de Gilead e concede voz ao historiador James Pieixoto, cuja pesquisa dedica-se à verificação da história da narradora do relato anterior, a aia Offred (ou June3).
O relato de June encerra-se com a alegação: “E, assim, eu marcho para dentro da escuridão; ou então para a luz” (ATWOOD, 1996, p. 307, tradução nossa). O leitor ou a leitora que enfrentam o remate misterioso precisam lidar com o desconhecimento sobre o destino da personagem e, em especial, com a dúvida sobre ela haver ou não evadido sua condição de prisioneira de Gilead. As “Notas Históricas” preenchem a atmosfera de incerteza através do narrador-personagem James Pieixoto. Por meio de sua conferência acadêmica, o sistema político sobre o qual a narradora anterior havia discorrido pouco é, enfim, iluminado, juntamente com suposições biográficas que a consideram uma figura histórica detida pelo poder gileadiano.
Dentre as informações veiculadas por Pieixoto está o fato de que seu esforço investigativo resultou no material anterior, cujo título é homenagem à obra canônica de Geoffrey Chaucer, The Canterbury Tales, publicada no século XIV. Mas, ao passo que investiga o passado de seu objeto de estudo, Pieixoto também executa uma espécie de recriação narrativa. Segundo revela, ele entrou em contato com a história de June a partir da descoberta de fitas cassetes com seus relatos. A análise do material, que precisou envolver a reconstrução de uma máquina capaz de lidar com o conteúdo das fitas, passou pela transposição do conteúdo oral em texto, sua organização em capítulos, e escolhas formais (como paragrafação, pontuação e pausas) necessárias à transcrição. A conferência, portanto, é a contribuição do personagem à sua comunidade intelectual e será lida como tal, considerando o valor histórico da República de Gilead no universo ficcional.
Através do trabalho de James Pieixoto, estamos diante, portanto, de um primeiro nível de leitura intraficcional, na qual um personagem lê o outro em um jogo de referencialidade que envolve a tentativa interpretativa de cunho historiográfico. O segundo nível de leitura, por sua vez, é localizado também no interior do universo ficcional a partir da difusão do trabalho acadêmico do personagem historiador. No mundo da narrativa, há, afinal, uma comunidade leitora que recebe o material The Handmaid’s Tale - e aqui me refiro aos dois segmentos em conjunto - como verdadeiro. Leitores reais, por outro lado, formando um terceiro nível de leitura, recebem-no como ficção (já que leem um romance) e entendem o regime ditatorial como marca da separação virtual entre nosso mundo e o mundo do texto.
De fato, a ficção especulativa de cunho distópico evoca abertamente uma série de associações com a realidade concreta. Em entrevistas sobre o romance, Atwood comenta:
Histórias sobre o futuro sempre contêm uma premissa ‘e se’, e The Handmaid’s Tale contém várias (...) Coloquei uma regra: não incluiria nada que os seres humanos já não houvessem feito em algum lugar e momento, ou nada a que a tecnologia já não servisse (ATWOOD, 2012, tradução nossa).
Efetivamente, ler a obra de Atwood como uma colcha de retalhos em que se amarram dados factuais sobre o mundo4 complexifica o segundo nível de leitura, no qual uma comunidade de leitores (ficcionais) recebe o trabalho de James Pieixoto como um documento verídico. Complexifica igualmente o terceiro nível, em que leitores e leitoras concretos precisam lidar com múltiplas camadas de autoria e recepção. Atwood ficcionaliza a história em dois sentidos: ao costurar fatos históricos e ao tecer um documento histórico de natureza ficcional. O espelhamento ou embaçamento entre realidade e ficção, portanto, é relevante às considerações sobre as camadas de recepção imbricadas no romance.
Nossa ótica feminista imaginará um quarto nível de leitura, que se atentará aos níveis anteriores e se sustentará na responsabilidade de compreender suas implicações (dentro e fora da ficção) para a narradora do primeiro relato. Consideramos que o pedido de lembrança na voz de June - “Gostaria de acreditar que esta é uma história que estou contando” (ATWOOD, 1996, p. 279, tradução nossa), - incita a formação de um “nós” pautado na tentativa de escutá-la em comunhão com a autora implícita5. Na linha de Booth, para quem “a leitura bem sucedida da ironia depende de provisões de tato, experiência e até mesmo sabedoria” (BOOTH, 1974, p. 44, tradução nossa), nosso argumento caminha no sentido de que a leitura feminista das estratégias irônicas depende de uma intricada capacidade, que é mais que intelectual, pois envolve conhecimento de mundo e, além, uma atenção sensível à experiência da personagem.
A ironia em The Handmaid’s Tale
Em sua reflexão sobre a escrita feminina teórica e literária, Olga Kempinska (2014) interpreta a presença da ironia como manifestação do desejo de apropriação e de subversão do discurso masculino. Interditas por grande parte da história ocidental, as atividades intelectuais e artísticas de mulheres fizeram uso da estratégia irônica como instrumento de afronta (direta ou indireta) aos valores dominantes, como via de participação dissimulada na produção de conhecimento e, em última instância, de desestabilização do poder.
A leitura da ironia estável pela lente feminista precisa, portanto, captar diversas pistas retóricas da autora implícita. De fato, pela explicação de Wayne Booth, a obra literária, ao lançar mão da ironia, apresenta uma espécie de convite a um processo ativo de construção e reconstrução de significados a partir de um material compartilhado entre leitor e autor implícito, mobilizando a experiência com a língua (vocabulário e gramática), a experiência cultural (valores e referências) e a experiência com a própria tradição literária (gêneros). Do ponto de vista da leitora implícita, novas camadas de significado se acrescentam às dinâmicas irônicas, levando em conta a significância vinculada à experiência feminina. Na análise a seguir, a tensão entre os dois segmentos que compõem o romance será central à compressão das ironias possíveis, juntamente com outros elementos discursivos significativos: as dedicatórias, a epígrafe e os gêneros literários mobilizados por Atwood (1996).
Elementos Paratextuais e Contextuais
As epígrafes são elementos relevantes para o que denominamos “terceiro nível de leitura” em The Handmaid’s Tale. Sobre epígrafes, Booth afirma: “podem frequentemente ser a pista mais clara que temos de que o autor não se identifica com um ou mais dos narradores da obra e, assim, que a subversão irônica pode estar a seguir” (BOOTH, 1974, p. 54, tradução nossa). O romance analisado lança mão de três materiais epigráficos: versículos do Gênesis, um Provérbio Sufi e um excerto de A Modest Proposal, de Jonathan Swift. Já nas dedicatórias, dois personagens históricos são mencionados: Perry Miller e Mary Webster. Nossa perspectiva sobre os elementos paratextuais segue a linha de Karen Stein (1996), no artigo Margaret Atwood's Modest Proposal: The Handmaid's Tale, entendendo que “esses textos preliminares interpolados indicam ao leitor que muitos discursos serão justapostos; várias camadas de significado e linguagem estarão sobrepostas e contrapostas para produzir o efeito irônico” (Karen STEIN, 1996, p. 60, tradução nossa).
O famoso panfleto satírico de Jonathan Swift, de 1729, é rapidamente aludido por Atwood. A conexão mais clara entre os dois textos reside no fato de que ambos imaginam um cenário em que circunstâncias sociais caóticas incitam a proposição de soluções ainda mais extremas e polêmicas que os problemas originais. Enquanto a proposta política do narrador de Swift (transformar crianças pobres em alimento) fornece o fundamento crítico a seu texto, notamos que Atwood teria executado algo similar caso tivesse, por exemplo, ofertado voz ao personagem do Comandante Fred. Nas conversas com June, Fred revela: “Você não pode fazer um omelete sem quebrar ovos, é o que dizem. Achamos que podíamos fazer melhor. (...) Melhor nunca significa melhor para todos, ele disse. Sempre significa pior para alguns” (ATWOOD, 1996, p. 222, tradução nossa). A narradora selecionada pela autora implícita, contudo, é uma das vítimas do programa político que, no universo ficcional em questão, teve seu drástico projeto executado. Assim, ao instaurar tal paralelo com o trabalho satírico do escritor irlandês e outorgar voz à aia, Atwood apresenta uma pista significativa em direção a suas intenções críticas no romance.
A interpretação adequada da epígrafe, tal como notamos, é indício da harmonia entre a autora implícita e quem recebe seu texto. O leitor hipotético que se alinhar aos métodos de Gilead ou às propostas do narrador swiftiano não alcançará o fundo irônico das obras mencionadas. Dessa forma, concluímos que a ironia depende, tanto em Swift como em Atwood, não apenas do trabalho interpretativo, mas de certo ajuste de valores entre as duas instâncias - autor e leitor. De maneira similar, os versículos bíblicos na epígrafe antecipam a manipulação das escrituras sagradas pela República de Gilead, mas a decisão sobre como ler tal referência - acreditar na pertinência daquelas medidas ou questionar sua interpretação política6 - pertence à pessoa que lê.
Já na dedicatória, a tensão entre os sujeitos mencionados prevê o paralelo entre os dois personagens principais, tal como explica Sandra Tomc (1993):
O paralelo entre Professor Pieixoto e Offred ao fim de The Handmaid’s Tale espelha o paralelo entre Perry Miller e a antepassada de Atwood, a puritana Mary Webster, no início: e a questão, nos dois casos, é a inadequação do sujeito feminino como objeto de estudo nos parâmetros de investigação colocados por seus examinadores homens (TOMC, 1993, p. 81, tradução nossa).
Ao dedicar o texto a um pesquisador do Puritanismo - de quem a autora inclusive foi aluna - e a uma das mulheres condenadas à morte na perseguição puritana às bruxas - que a autora considera sua antepassada -, vislumbramos mais elementos extratextuais conduzindo nossas conclusões interpretativas. Informações sobre o contexto norte-americano na década de 1980 - já vastamente explorado por autoras feministas, como Susan Faludi (2006), e pela crítica de The Handmaid's Tale, como de Shirley Neuman (2006) - adicionam elementos relevantes à conexão entre obra e realidade, incluindo o retrocesso de conquistas feministas por ondas políticas conservadoras e misóginas.
Assim, a atenção à ironia no terceiro nível de leitura deve levar em conta as referências históricas e os diálogos identificáveis entre o texto e a realidade concreta. Nas palavras de Wayne Booth: “uma reconstrução dos autores implícitos e dos leitores implícitos conta com inferências sobre intenções, e estas frequentemente dependem do conhecimento de fatos fora do poema” (BOOTH, 1974, p. 133, tradução nossa) Atwood, especulando sobre um futuro distópico arraigado no presente e no passado fora da ficção, investe no engajamento de seus leitores e leitoras desde as dedicatórias.
Entre June, Pieixoto e Atwood
Sabemos que, no contexto da República de Gilead, as liberdades individuais estão suprimidas e, por conseguinte, também a liberdade de expressão. Com exceção das chamadas Tias (responsáveis pela adaptação das aias), a quem é permitido ler a Bíblia em ocasiões especiais, mulheres estão proibidas de acessar qualquer material de escrita ou leitura. Em confronto ao interdito, o relato de June rompe o silêncio através da composição discursiva da própria história, processo que a narradora parece considerar artificial e, ao mesmo tempo, a única forma de sentir-se sujeito: “Eu espero. Eu me componho. Meu eu é uma coisa que agora preciso compor como se compõe um discurso. O que preciso apresentar é uma coisa fabricada, não algo nascido” (ATWOOD, 1996, p. 76, tradução nossa).
Como descobrimos nas Notas Históricas, contudo, a produção narrativa de June ocorreu através de fitas cassetes clandestinas produzidas não se sabe em que circunstância. Quando examinamos o primeiro nível de recepção do texto, isto é, a leitura de Pieixoto, encaramos a descoberta de que a espécie de diário íntimo da protagonista havia passado pelo crivo desse personagem tardio. Contudo, enquanto manobra da autora implícita, o uso da técnica epistolar no relato da aia é significativo, assim como o rompimento, na revelação subsequente, das expectativas incitadas pela narradora autodiegética. Estamos diante da ironia dramática, sobre a qual Booth afirma:
Ocorre sempre quando um autor deliberadamente nos pede que comparemos o que dois ou mais personagens dizem um do outro, ou o que um personagem fala ou faz agora com o que fala ou faz mais tarde. Qualquer discrepância é suficiente (BOOTH, 1974, p. 63, tradução nossa).
Ainda que, no caso de The Handmaid’s Tale, não tenhamos um confronto direto entre os dois personagens principais, a discrepância entre suas vozes e o corpo de informações que o segundo revela sobre a primeira são suficientes para a instauração da ironia dramática. Ao considerarmos o monólogo de June à luz dos esclarecimentos e inferências de Pieixoto, somos colocadas em posição de privilégio em relação à aia pela visão panorâmica da conjuntura que a análise histórica nos concede. Mas a própria ironia dramática desse quadro não carregaria complicadores?
Ao outorgar à June a possibilidade tardia de ter sua história veiculada no formato de texto, Pieixoto abre espaço para que suas vivências perdurem em lugar de expirarem na mente ou na voz da aia: “Contar em vez de escrever, porque não tenho nada com que escrever e a escrita é proibida de qualquer forma” (ATWOOD, 1996, p. 49, tradução nossa). Uma das ironias desse ato “heróico” reside no tratamento do mesmo relato pelo historiador, que, por sua vez, ironiza a posição de vítima da narradora. Pieixoto, pesquisador que, entre estudiosos de Gilead, “dificilmente requer uma apresentação” (ATWOOD, 1996, p. 312, tradução nossa) usa o espaço de poder que sua reputação concede para discorrer sobre o “soi-disant manuscrito” (ATWOOD, 1996, p. 312, tradução nossa) de seu objeto de estudo. Sua plateia, composta por aqueles que assistem à sua conferência (ou seja, que ocupam o segundo nível de leitura), reage com risadas e aplausos aos comentários misóginos do historiador e ao seu tratamento hostil do material. Além disso, Pieixoto parece representar a postura de sua comunidade acadêmica: “‘The Underground Femaleroad,’, então apelidado por alguns de nossos piadistas históricos de ‘The Underground Frailroad’. (Risadas, gemidos.)” (ATWOOD, 1996, p. 313, tradução nossa, grifo da autora).
Em profundo contraste com a linguagem empregada pela protagonista, Pieixoto faz uso de recursos lexicais rebuscados, que incluem termos em francês e latim e formações sintáticas excessivamente formais. Enquanto a identificação do pedantismo linguístico não causa estranhamento à leitura ao ser conectado à voz do personagem acadêmico, o tratamento jocoso e, por vezes, vulgar do drama de June indica que estamos diante de uma paródia. Ainda que consideremos esses sinais como indicativos de que o discurso acadêmico de 2195 é, segundo a imaginação especulativa de Atwood, distinto do familiar aos leitores contemporâneos, há um convite oferecido pela autora implícita no sentido do que fala Booth (1974): “Quando uma história, peça, poema ou ensaio revela o que consideramos fato e então o contradiz, temos duas possibilidades. Ou o autor foi descuidado, ou ele nos apresentou um inescapável convite à ironia” (BOOTH, 1974, p. 61, tradução nossa). A violação da compostura exigida a um conferencista na posição de Pieixoto é, segundo nossa leitura, um indício de que Atwood ironiza o discurso academicista.
No universo da narrativa, contudo, graças à sua posição de prestígio e a um momento histórico que imputa distância em relação à censura ditatorial, Pieixoto pôde captar Gilead como um período coeso e “investigável”. Ao encarnar uma postura científica supostamente imparcial, o professor afirma: “A sociedade gileadiana estava sob muitos tipos de pressão, não apenas a demográfica, e estava sujeita a fatores dos quais nós estamos felizmente mais livres. Nosso trabalho não é censurar, mas compreender. (Aplauso.)” (ATWOOD, 1996, 315, tradução nossa, grifo da autora). De fato, a declaração citada demonstra a ausência de censura contra o sistema ditatorial de Gilead, o que não é verdadeiro em relação à mulher subjugada pelo mesmo sistema. Além do mencionado tratamento zombeteiro de suas vivências, Pieixoto julga June por não haver mobilizado “os instintos de uma repórter" para conceder mais e melhores informações à posteridade. Examinando a atitude do personagem, Mary Eagleton (2005) nota
seu relativismo cultural, aplaudido conforme apropriado por sua audiência que, convenientemente, o exonera de qualquer identificação com Offred e de fazer julgamentos políticos ou éticos sobre o que aconteceu com ela (p. 36, tradução nossa).
Chamamos a atenção também para o fato de que o discurso misógino de Pieixoto é bem recebido no cenário de 2195, após Gilead haver sido superada e as mulheres estarem outra vez inseridas em espaços tais como congressos acadêmicos. O próprio título atribuído à história da aia, homônimo do romance, revela a intenção depreciativa do acadêmico pela proximidade sonora intencional entre as palavras inglesas tale e tail. No inglês, tale pode significar “história”, mas também “mentira”; tail significa “cauda” e, especialmente como gíria norte-americana, pode assumir o sentido de “traseiro” ou “genitália feminina”. Dessa forma, enquanto a voz narrativa pertence a June, o título parece apenas ilustrar o conteúdo do texto (a história de uma aia); contudo, quando a voz de Pieixoto impõe sua autoridade, a escolha do título ganha nuances irônicas a partir da polissemia identificada na expressão inglesa.
Há, portanto, diversos indícios de que a vítima da ironia mobilizada pelo discurso acadêmico seja June. Seu relato apenas saiu do registro oral e fixou-se como arquivo distribuível graças a Pieixoto, mas também tornou-se vulnerável e sujeito a seu controle. Mesmo que acreditemos que a postura acadêmica séria não permitiria que ele as alterasse, a forma como organiza o discurso é significativa - como escolhe a distribuição em capítulos, a paragrafação, a pontuação e todos os demais elementos formais. Barrada a escrita, June produz seus relatos oralmente acreditando que um dia sua história terá interlocutores que a compreendam, mas, ironicamente, a transformação de sua história em texto passa por uma interpretação que não escuta seu pedido de fato.
Nossa reflexão traz a ideia de “dívida” da disciplina historiográfica, elaborada pelo filósofo Paul Ricoeur (1997). Segundo Ricoeur, em termos gerais, o historiador, em posição de estabelecer verdades sobre o passado, encara a distância entre viver e narrar, resultando na dívida de discorrer sobre aquilo que não vivenciou. Do ponto de vista feminista, o gesto narrativo do homem que fala sobre as vivências da mulher em seu lugar coloca em xeque outras dimensões da dívida historiográfica e chama a atenção para o apagamento histórico da voz feminina, assim como para a problemática da autoridade da mulher na autoria de sua própria história. Pieixoto está preso à visão do discurso histórico como verdade sem considerar que o mesmo discurso está sujeito a uma configuração narrativa que não é idêntica à verdade vivida. Ironicamente, é June quem reconhece a distância entre a vida e a narrativa, pois reitera o caráter reconstrutivo do seu narrar e a debilidade do gesto linguístico diante da concretude de suas experiências traumáticas:
Isso é uma reconstrução. Tudo isso é uma reconstrução. É impossível dizer uma coisa exatamente como foi, porque o que você diz nunca pode ser exato, você sempre tem que deixar algo de fora, são partes demais, lados, correntes cruzadas, nuances (ATWOOD, 1996, p. 144, tradução nossa).
Pieixoto, porém, está preso na visão do discurso histórico como verdade sem considerar que o mesmo discurso está sujeito a distorcer - e, em algum sentido, violentar - a verdade vivida. Ele precisa interpretar o que encontra, mas seu tratamento objetivo e objetificante do material não permite que entenda a dimensão da experiência, tampouco a dimensão da interpretação. June ilustra bem o problema: “Em circunstâncias reduzidas, você precisa acreditar em todo tipo de coisa” (ATWOOD, 1996, p. 120, tradução nossa). Considerando o trabalho reconstrutivo do pesquisador, ele também precisa do gesto de crença, pois, assim como June, está “em circunstâncias reduzidas”, afastado de seu objeto de estudo. Ironicamente, somente ela própria compreende que seu narrar é frágil; e é frágil pelas poucas chances de concretizar-se como uma história com interlocutores, mas também no sentido da distância em relação à experiência. Pieixoto é cego às ironias que o atingem, pois, como aponta Booth (1974), “todo leitor tem grande dificuldade em detectar a ironia que ridiculariza suas próprias crenças ou características” (BOOTH, 1974, p. 81, tradução nossa).
O protagonismo (irônico) de June
O artigo ‘The Missionary Position’: Feminism and Nationalism in Margaret Atwood’s The Handmaid’s Tale (1993), de Sandra Tomc, apresenta uma compreensão distinta da obra. A pesquisadora argumenta que o romance simboliza, em diversos âmbitos, a relação de Margaret Atwood com seu território natal, Canadá, e que, lido pelo ponto de vista feminista, ganha conotações contraproducentes. Tomc entende certa posição conservadora nas escolhas do enredo e da protagonista, que se justificariam simbolicamente em favor da preocupação nacionalista. Sustentando sua leitura nas posturas da escritora em entrevistas e fontes do tipo, a crítica mostra como o romance mobiliza o paradigma do homem agressor e da mulher vítima. Conclui que, através de estratégias de “romances de farmácia”, o plot confirma, e não contesta, a posição feminina tradicional, uma vez que não há escape para June que não passe pela aliança romântica com um personagem masculino. Enquanto sua fuga de Gilead se dá através do homem por quem June se apaixona (Nick), a solução contra a mudez histórica ocorre a partir do personagem do Professor Pieixoto.
Está claro que, para além da crítica ideológica que condena a falta de engajamento de Atwood à pauta feminista, o artigo reprova certas escolhas propriamente literárias. Tomc comenta o uso de fórmulas populares e soluções românticas, categorizando como “implausível” o sentimento da protagonista pelo personagem de Nick, justificado apenas pela investida da autora em tornar a personagem uma donzela a ser resgatada. Nota, também, que a rebeldia e a coragem axiomáticas encarnadas pela amiga de June, Moira, não são recompensadas na história; assim como Ofglen, aia que participa do círculo de resistência, sofre as consequências de sua insubmissão. A resignação frágil de June, contudo, parece ser o que garante a ela a possibilidade de sobrevivência, resultando numa mensagem antifeminista.
De fato, na já mencionada entrevista Haunted by The Handmaid’s Tale, Margaret Atwood afirma: “The Handmaid's Tale tem sido frequentemente chamado de ‘distopia feminista’, mas não é bem um termo correto. Em uma pura e simples distopia feminista, todos os homens teriam que deter mais direitos que todas as mulheres” (ATWOOD, 2012, tradução nossa). Estamos diante de um problema complexo que poderia conduzir à necessidade de definir com certo rigor o significado de “literatura feminista”. Considerando o escopo do artigo, esquivamos dessa dificuldade pelo fato de que o propósito é pensar como uma leitura de mulher feminista se sustenta a partir da obra, com o privilégio de prescindir da intencionalidade declarada em prol de soluções literárias concretas. A interpretação de Sandra Tomc não assume a mesma postura, uma vez que sua leitura feminista busca no texto, e fora dele, evidências do comprometimento da escritora com a causa.
Certo paradoxo tem espaço neste ponto da reflexão, pois, ainda que nos reportemos à intenção retórica e não à intenção declarada, certa concepção da figura autoral é inescapável (BOOTH, 1974). Compreendendo ironia como um processo de reconstrução de significados que depende do trabalho em conjunto entre autor e leitor (implícitos), deixar de assimilá-la pode deturpar consideravelmente o tratamento global do texto - o que faz com que Booth conclua, a despeito de reconhecer a validade de leituras plurais, que “algumas leituras são melhores que outras” (BOOTH, 1974, p. XI, tradução nossa). O alinhamento com a intenção mobiliza conhecimentos e experiências que precisam rejeitar os significados explícitos, ponderar sobre tal rejeição e, então, assumir a direção coerente com a configuração total da obra.
Nossa leitura, assumidamente atenta às soluções irônicas de The Handmaid’s Tale, recusa que a leitura feminista se resume à tentativa de determinar se um texto alinha-se temática ou estilisticamente à ideologia do movimento político. A protagonista de Atwood é complexa porque não reage às circunstâncias opressivas em que foi colocada simplesmente escolhendo entre coragem e covardia. Suas escolhas não são isoladas de quem ela foi antes de Gilead, tampouco das circunstâncias traumáticas a que foi submetida. Sua história de vida e suas idiossincrasias, que descobrimos através das analepses, também balizam sua ação e suas escolhas discursivas. Nesse ângulo, parece evidente que a leitura feminista que se pauta em um modelo preconcebido de protagonista fecha-se à produtividade das eventuais matizes irônicas da representação.
Reforçando o aprisionamento e a dependência da protagonista, as escolhas formais que Sandra Tomc (1993) entende como problemáticas também marcam desafios à leitura. Há, de fato, uma escolha interpretativa a ser feita, que coloca em movimento os passos da reconstrução irônica mencionados anteriormente: ao rejeitarmos que a estrutura romântica tenha sido uma escolha estética sem propósitos irônicos, somos compelidas a buscar qual intenção se delineia. De fato, os gêneros e tipos textuais variados de que a obra é composta reforçam o dinamismo das reconstruções de significado. Karen Stein caracteriza Tale como “ficção-científica-distópica-diário-epistolar-romance-palimpsesto” (STEIN, 1996, p. 59, tradução nossa), a que acrescentamos “documento histórico ficcionalizado”. O hibridismo resultante é uma marca incisiva de ironia, pois aponta para a instabilidade generalizada das soluções narrativas penetrando inclusive na voz dos narradores: June narra suas memórias com a liberdade de quem ficcionaliza, e Pieixoto produz historiografia sem escapar da própria experiência e visão de mundo.
No artigo crítico denominado Rhetorical Strategies in The Handmaid’s Tale: Dystopia and the Paradoxes of Power, Glenn Deer (1992) nota que a distopia satírica demanda uma narradora capaz de veicular satisfatoriamente os violentos mecanismos de poder que a oprimem. A "heroína" de Atwood, segundo ele, apresenta a inconsistência de não se expressar como uma vítima, mas como uma bem articulada contadora de histórias que marca sua posição pela manipulação artística das palavras: “um léxico abstrato, um léxico contemplativo que enfatiza a sabedoria da narradora, sua superioridade filosófica e emocional sobre aqueles a seu redor” (DEER, 1992, p. 219, tradução nossa). Por fim, a inteligência retórica da narradora é lida por Deer como uma manifestação de um autoritarismo análogo às circunstâncias em que foi colocada por Gilead.
Uma das análises do artigo mencionado leva em conta o poder simbólico da visão no universo de Gilead, uma vez que a república, entendendo as potencialidades subversivas do ato de olhar, obriga as aias a usarem uma espécie de viseira e a caminharem sempre com os olhos voltados ao chão. Tais estratégias pretendem frear tentações carnais, reduzir as possibilidades de contato entre indivíduos e reforçar a autoridade despótica do sistema. A mesma autoridade é garantida pelos chamados Eyes, agentes que representam a vigilância irrestrita de Gilead sobre seus membros. Como exemplo retirado do discurso de June, Deer (1992) traz o episódio em que a aia provoca o olhar de uma dupla de jovens guardas: “Enquanto caminhávamos, eu sabia que eles assistiam. Tocavam com seus olhos enquanto eu movia um pouco os quadris, sentindo a saia vermelha e cheia dançar em torno de mim” (ATWOOD, 1996, p. 32, tradução nossa).
Sobre a questão, Deer (1992) comenta:
Nesses temas visuais, a estrutura de poder consiste em um observador e um objeto vulnerável à visão. Mas essa estrutura de poder é passível de reversão: a fraqueza de ser observado é traduzida no poder do controle observador quando Offred manipula deliberadamente os ‘Guardians’ (DEER, 1992, p. 227, 228, tradução nossa).
O crítico, portanto, tenta demonstrar que a narradora encarna o poder simbólico do olhar opressor, ainda que sua perspectiva intimista reduza o alcance desse poder.
Nossa linha de análise decide, em contraste com a anterior, levar em conta a experiência da protagonista, assim como a desproporção da detenção de poder e controle no universo da narrativa. Se determinadas escolhas lexicais e sintáticas de June reproduzem a tirania entre dominador e dominado, nossa interpretação entende tal dinâmica em sua voz como a reação (ou a mera contraposição), pela memória e pela história, ao poder autoritário que age unilateralmente sobre ela. O enunciado que compara o sujeito observador (guarda) a animais - “como uma ovelha, mas com grandes e cheios olhos de um cão” (ATWOOD, 1996, p. 32, tradução nossa) -, não parece marcar nenhuma tirania na voz narrativa, uma vez que sua linguagem não altera sua posição na estrutura social, marcada pela consciência de que o poder que carrega é apenas o “poder de um osso de cão” (ATWOOD, 1996, p. 32, tradução nossa).
Em consonância com a análise de Deer (1992), por outro lado, notamos certa mudança de tom que coloca em destaque a habilidade da narradora ao longo do relato. É mesmo possível falar em uma atmosfera de “fragilidade” e “inocência” (termos usados pela crítico) em contraste com momentos de beleza retórica e poética no tratamento do universo trivial ocupado pela aia. Sobre a oscilação de tom, vale considerar o percurso que seu discurso cobre na narrativa. Após a captura violenta (separação da família e inserção no novo contexto), sua adaptação àquele mundo inclui a descoberta de suas atrocidades, dos riscos que corre a despeito da suposta proteção que a envolve, dos abusos de poder (em especial pelo Comandante, que encontra furtivamente as aias e as mantém ainda mais reféns de sua vontade) e das atividades subversivas normalizadas no interior do sistema (o mercado negro; o prostíbulo denominado Jezebel’s, onde ela encontra Moira; o grupo de resistência, Mayday). Há, ainda, os choques das descobertas sobre a mãe, a filha e a melhor amiga, das quais lembrar é justificadamente doloroso para June, preenchendo a história de páthos.
Aqui, a ironia outra vez se apresenta como um desafio e também como uma via fértil de acesso às complexidades do romance. Rejeitando a interpretação de Deer (1992) mencionada anteriormente, entendemos que a autora implícita está nos convidando justamente a recusar a aproximação entre a prática narrativa de June e o domínio do sistema político ficcional. Não se trata de enxergar em June a vítima absoluta; existe, de fato, alguma força em sua atividade expressiva, mas tal força, além de não a salvar das circunstâncias violentas de Gilead, não garante que sua história seja ouvida, reconhecida ou legitimada. A maior evidência disso está nas "Notas Históricas", que, estabelecendo o primeiro nível de leitura do relato da aia, apresenta um cenário futuro que desconsidera veementemente o conteúdo traumático de suas vivências. Para o crítico, contudo, as Notas Históricas são parte da estratégia da autora implícita de corroborar a superioridade da protagonista: “essas ‘Notas Históricas’ são um reforço adicional à autoridade da narrativa de Offred: os acadêmicos são satirizados como vulgarizadores da história” (DEER, 1992, p. 226, 227, tradução nossa).
A ótica mencionada entende que June representa uma narradora cujo manejo da linguagem é malicioso, que "finge fragilidade para exercer poder, que repudia arranjos deliberados enquanto arranja as palavras com grande cuidado” (DEER, 1992, p. 279, tradução nossa) e assim “manipula o leitor enquanto conta sua história” (DEER, 1992, p. 215, tradução nossa). Em nossa interpretação, porém, ao censurar artimanhas no que ele chama de um “discurso discretamente estridente” (DEER, 1992, p. 230, tradução nossa), Deer e seus argumentos pautados na desconfiança e na neutralidade reproduzem os mecanismos que o personagem Pieixoto utiliza para distinguir a verdade da “invenção maliciosa” (ATWOOD, 1992, p. 321, tradução nossa) na voz de June. Algo semelhante ocorre na resenha crítica de Tom O’Brien (2019), The Handmaid’s Tale: Siren’s Wail, para quem a ausência de detalhes ofertados pela narradora é evidência de que “o retrato da situação nacional é limitado, o internacional é quase inexistente. Além do mais, há pouca referência à indústria” (Tom O’BRIEN, 2019, tradução nossa). A afinidade entre o comentário de O’Brien e as objeções de Pieixoto é evidente: “Ela poderia haver nos dito muito mais sobre o funcionamento do império de Gilead, caso tivesse os instintos de uma repórter” (ATWOOD, 1996, p. 322, tradução nossa).
Nossa análise argumenta que a postura análoga entre críticos e o personagem historiador aponta para uma armadilha de leitura instaurada pela obra, que aproxima vozes dentro e fora da ficção pela ironia de suas supostas intenções de “não censurar, mas compreender” (ATWOOD, 1996, p. 315, tradução nossa) o relato da aia. O resultado de algumas dinâmicas de leitura é uma nova camada de efeito irônico cuja vítima é o olhar da crítica sobre o romance. Tal conclusão parte da premissa necessária de que a narrativa de Tale ficcionaliza a sobrevivência de uma vítima da tirania ditatorial, o que organiza um espaço para que a linearidade e a homogeneidade no discurso possam ser “dispensados” naturalmente, pois que o campo do trauma e do narrar envolve conflitos próprios e extraordinários.
Vê-se necessário entender que June é alvo tanto do sistema despótico como das ironias do discurso historiográfico (primeiro nível de leitura), que determina como sua história será recebida (segundo nível). Por fim, notamos que a obra dissemina a ironia de forma que as escolhas de seus leitores (terceiro nível) e leitoras (quarto nível) estejam em conflito ou em alinhamento com as intenções delineadas. A presente leitura segue as indicações retóricas da obra e conclui que Tale não se alinha a estruturas misóginas - concretas ou simbólicas -, mas estimula nossa participação ativa em problematizá-las, centralizando questões coletivas e transculturais sobre a experiência das mulheres.
A ironia formadora de comunidade
Ao assumirmos que The Handmaid’s Tale apresenta camadas irônicas a serem detectadas, buscamos uma leitura em sintonia com as intenções da autora implícita, uma vez que a ironia estável tem a capacidade de colocar textos e leitores em consonância. É possível, assim, imaginar a formação de uma comunidade que capta a ironia e, portanto, se diferencia das vítimas do discurso irônico. Sobre o tema, Booth (1974) nota:
a construção de comunidades amigáveis é amiúde mais importante que a exclusão de vítimas inocentes. Frequentemente, a emoção predominante na leitura de ironias estáveis está na junção, na descoberta e na comunhão entre espíritos semelhantes. O autor inferido por mim por trás das falsas palavras é meu tipo de homem, porque gosta de jogar com a ironia, porque assume minha capacidade de lidar com ela e, mais importante, porque me concede sabedoria; ele sabe que não precisa soletrar as verdades compartilhadas e secretas que minha reconstrução irá edificar (BOOTH, 1974, p. 28, tradução nossa, grifo do autor).
O emprego explícito do masculino nos trechos citados é pertinente como contraponto ao olhar veiculado pela reflexão deste artigo. Caminhamos no sentido de delinear uma leitura de mulher feminista a partir da comunhão com o que está configurado pelo romance. Dada a adaptação dos termos de Wayne Booth (1974, 1983), trata-se de entender como Atwood “assume minha capacidade de lidar” com a ironia do ponto de vista feminino e, assim, oferta “uma espécie de sabedoria” a partir das reconstruções que estimula.
A leitura de literatura é uma tarefa que inclui, segundo Wolfgang Iser (1972), o constante preenchimento de lacunas. Iser mostra que é justamente o caráter indecidível e inesgotável do texto o que abre espaço à imaginação, ao mesmo tempo em que impõe escolhas à leitura. Em Tale, vimos que a autora implícita demanda conexões entre as diversas vozes que brotam desde a dedicatória. A imaginação na recepção do texto, estimulada justamente pelos pontos em aberto, conduz a uma formulação virtual da obra, que é resultado do contato entre quem somos e quem o texto pede que sejamos. Por fim, os artifícios estéticos dos textos literários não são desagregáveis dos efeitos práticos, isto é, do impacto que as obras têm na vida daqueles que leem (Iser, 1972). A experiência de leitura é transformadora, pois mantém-se, através do trabalho com a linguagem, em diálogo constante com a realidade extratextual.
A ironia, assim, evidencia-se como via de diálogo e compartilhamento alinhada à potencialidade transformadora da literatura. A apropriação violenta do relato da mulher narradora coloca-a como vítima de uma comunidade discursiva representada pelo segundo narrador, demandando uma resposta à altura por parte da comunidade de leitoras que captam as ironias a partir do universo extraficcional. Nesse sentido, o que está em questão na experiência de leitura são escolhas sobre como ler as questões retóricas e éticas colocadas pela autora implícita. Na mesma linha, Mary Eagleton (2005) afirma que, para que o professor Pieixoto não saia “vitorioso” da “batalha por autoria” que o romance apresenta, é necessário reconhecer que June “merece leitores mais solidários, não acríticos, mas sensíveis à angústia palpável de seus relatos” (EAGLETON, 2005, p. 36, tradução nossa).
Em consonância com a observação anterior, procuramos centralizar, nesta análise, o esforço da narradora em relatar a própria trajetória como prisioneira, imaginando uma comunidade de leitoras que ouvem seu apelo: “Mas eu sigo com essa triste e faminta e sórdida, essa bamba e mutilada história, porque afinal quero que você a ouça assim como eu escutarei a sua se tiver a chance” (ATWOOD, 1996, p. 279, tradução nossa). Sabemos que a posteridade (ficcional) irá lê-la pelos olhos de Pieixoto; entretanto a leitura feminista que entende a ironia incita à formação de um “nós”, figurado pela imaginação de mulher, que recebe a mensagem de June por outro viés. Assim, foi possível vislumbrar uma espécie de quarto nível de leitura marcado pela intenção solidária de dar ouvidos ao sujeito feminino obliterado por outras camadas de recepção. Por fim, o aspecto prático da leitura apresentada, produtivo ao ângulo feminista, é virar ao avesso a figura de June como vítima de apagamentos discursivos e, em conjunção com a narrativa, abrir espaço para a recuperação insurgente de sua voz, análoga a tantas outras vozes femininas ocultas na literatura e na história.