A desigualdade estrutural de gênero presente em nossa sociedade tem sido, há décadas, objeto de reflexão em diferentes campos do conhecimento. Mas, apesar de sua relevância, ela permanece marginalizada ou secundarizada nas Ciências Sociais, sendo considerada uma questão menor. Especificamente na Ciência Política, área de concentração da Seção Temática aqui apresentada, não é diferente. Apesar do aumento recente de teses e dissertações envolvendo gênero e sexualidade, a transversalidade do pensamento feminista é ainda incipiente nos temas clássicos e os diálogos, quando existem, não acontecem sem tensões. Nesta Seção Temática, trazemos autoras distintas, com agendas de pesquisas diversas e que têm em comum justamente o olhar através das lentes feministas, demonstrando a pluralidade de abordagens possíveis na Ciência Política, desde a interlocução com os estudos de gênero.
As epistemologias feministas nos ensinam que o ponto de vista situado (Sandra HARDING, 1991) importa para a formulação de ideias, conceitos e proposição de pesquisas. Assim, os artigos aqui apresentados resultam também de interesses oriundos das trajetórias de vida (Patricia Hill COLLINS, 2016) das pesquisadoras enquanto mulheres, homens, cisgêneros, com diferentes orientações sexuais, brancas e negras, do Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste do país. Se o feminismo mudou a ciência (Londa SCHIEBINGER, 2001), corporificando o conhecimento e questionando a neutralidade científica (HARDING, 1996), nossas pesquisas carregam as preocupações de sujeitos-pesquisadoras em posições sociais hierarquicamente inferiorizadas.
Buscando compreender a estruturação e os mecanismos de manutenção das hierarquias sociais (Danièle KERGOAT, 2009), nos propomos a refletir sobre como se constituem e se articulam as relações de poder desde a perspectiva de gênero em distintas esferas: seja na política institucional e na disputa por dentro do Estado e para nele se fazer presente, seja nos movimentos sociais, em suas reivindicações e lutas travadas, seja na produção e difusão do conhecimento, disputando ideias e divulgando uma produção contra-hegemônica. Voltamo-nos, também, para compreender fenômenos recentes: os processos de desdemocratização vividos em diversos países, que culminaram na vitória eleitoral de representantes da extrema-direita, que carregam em seu bojo a mobilização de uma agenda moral pautada pela chamada “ideologia de gênero” e por temas afins - tais como casamento e adoção pela população LGBTQIAP+, e descriminalização do aborto para pessoas com útero. Os poucos avanços vividos geraram reações e retrocessos. Além disso, incorporamos o paradigma interseccional ou a imbricação das relações sociais de gênero, raça e classe para analisar uma miríade de fenômenos políticos.
Entendemos que as disputas nesses distintos espaços de poder impactam as relações sociais tanto de modo estrutural quanto no cotidiano, nas relações interpessoais e nas subjetividades. Assim, analisá-las significa entender as transformações políticas e sociais decorrentes das últimas décadas, fruto das pressões dos movimentos feministas e de mulheres. Como aponta Sylvia Walby (2000, p. 75), ainda que a desigualdade permaneça, sem “vitórias políticas, nem a cidadania civil nem a cidadania social seriam possíveis”. As mulheres, em toda sua pluralidade, são protagonistas dessas análises. Tanto na academia quanto na política, sejam pesquisadoras, lideranças parlamentares ou de movimentos sociais, presença e suas ideias importam para nossas pesquisas.
É nessa direção que a proposição desta Seção Temática se deu, como uma iniciativa da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política. Fundada em 2018, a Rede é hoje uma organização coletiva de pesquisadoras das áreas de feminismos, gênero e política, em uma colaboração nacional, consolidando agendas de pesquisas convergentes e ainda pouco conhecidas ou difundidas. Seu objetivo é dar visibilidade a temáticas e a abordagens teóricas e empíricas dos estudos feministas sobre a política, emergentes no campo das Ciências Sociais, especialmente da Ciência Política. Nossas atividades se articulam considerando cinco eixos temáticos: Feminismos Interseccionais; Feminismos e Comunicação; Feminismos, Instituições e Participação Política; Feminismos e Políticas Públicas; e Teorias Feministas, Epistemologias e Produção do Conhecimento, fomentando reflexões que possam contribuir para o desenvolvimento das agendas nas esferas acadêmica e política.
O primeiro artigo, “Discursos de deputadas federais sobre mulheres: espaço institucional e mídias sociais”, de Rayza Sarmento, Cristiane Brum e Giulia Sbaraini Fontes, busca compreender quais temas, reivindicações, símbolos e termos são enunciados por quatro deputadas federais, provenientes de diferentes espectros políticos, quando o assunto se relaciona às mulheres. Cynthia Mara Miranda e Milena Barroso Fernandes, no artigo “Mulheres na Amazônia: lutas em defesa de seus corpos-territórios”, apresentam que a atuação de mulheres indígenas e quilombolas amazônidas é uma expressão indissociável da defesa do território e de seus próprios corpos, sendo ambos, muitas vezes, vulnerabilizados. Cristiano Rodrigues e Viviane Gonçalves Freitas trazem um panorama da produção acadêmica sobre feminismo negro no Brasil, desde os anos 1990, em “Feminismo Negro e Interseccionalidade em Periódicos Brasileiros (1992-2020)”. A Rede Cegonha e a resposta governamental à epidemia do vírus Zika, a partir de uma perspectiva de atenção integral às mulheres no país, é o foco do artigo “Transnacionalismo, interseccionalidade e ativismo na política de saúde para mulheres”, de Layla Pedreira Carvalho. Maíra Kubík Taveira Mano e Bárbara Araújo Machado propõem, no artigo “Feminismos anticapitalistas contra o neoliberalismo e a precarização da vida”, um encontro entre o feminismo materialista francófono e a teoria marxista da reprodução social, a fim de refletir sobre, no contexto do avanço das políticas neoliberais, como a privatização dos serviços públicos ou a restrição a seu acesso amplia as tarefas não remuneradas de cuidado. Numa linha complementar, Mariana Prandini Assis e Marina Brito Pinheiro fazem um retrospecto de leis, normativas e diretrizes, desde a Constituição de 1988, que tendem a retirar do Estado a responsabilidade pelo bem-estar das pessoas, compulsoriamente recaindo tais atividades para as mulheres; por fim, as autoras apresentam uma proposta que nomeia o artigo: “Pela desfamilização da política de assistência social no Brasil”. Ainda no calor do último pleito presidencial, Denise Mantovani, Rayani Mariano e Thayane Cazallas do Nascimento analisam os discursos das campanhas televisivas de Bolsonaro e Lula, com foco nas “Estratégias neoconservadoras, gênero e família na disputa eleitoral de 2022”. E encerramos os trabalhos com a discussão comparada sobre a politização do direito ao aborto no Brasil e na Argentina, apresentada por Beatriz Rodrigues Sanchez no artigo “Entre as ruas e o parlamento: a legalização do aborto no Brasil e na Argentina”.
Esta Seção Temática é composta por artigos de pesquisadoras integrantes da Rede e de outras colaboradoras. Mas não poderíamos deixar de mencionar que o trabalho aqui apresentado também traz o empenho e a dedicação de outras colegas que participam da Rede e daquelas que atuaram como pareceristas. A vocês, nosso muito obrigada!