Introdução
Esta pesquisa aborda a quarta onda feminista, por vezes considerada como uma nova etapa na luta em prol dos direitos para as mulheres. Argumentamos que os feminismos contemporâneos fazem parte de uma quarta onda porque têm adotado, dentre outras características, a mobilização via meios de comunicação digitais, a interseccionalidade e a organização na forma de coletivos.
No Brasil e em outros países, a história dos movimentos feministas é relatada como se fosse estruturada por ondas (cf. Céli PINTO, 2003; Marlise MATOS, 2010). A divisão dos feminismos em ondas é uma forma de definir características e ênfases de um momento específico, conforme uma separação cronológica dos acontecimentos (Daniela Rocha DRUMMOND, 2020). No caso brasileiro, a primeira onda teria como marco a conquista do sufrágio feminino em 1932; a segunda reivindicaria mais direitos, inclusive políticos, no contexto da ditadura militar; já a terceira teria sido marcada pela institucionalização da participação do movimento feminista.
Seja qual for a onda em que estejam localizados, entretanto, trabalhos mais recentes têm apontado uma série de características próprias aos feminismos contemporâneos, tais como: o fato de criarem múltiplas alianças com outros setores sociais, o que se traduz no chamado feminismo interseccional (MATOS, 2010), a internacionalização (DRUMMOND, 2020) o retorno às ruas e a autonomia organizacional (Sonia ALVAREZ, 2014) e a organização em forma de coletivos (Flávia RIOS; Olivia Cristina PEREZ; Arlene RICOLDI, 2018). Tais características devem ser compreendidas em um contexto de ampliação do uso da internet (Heloisa BUARQUE DE HOLLANDA, 2018; DRUMMOND, 2020). Autoras como Matos (2010), Buarque de Hollanda (2018) e Drummond (2020) utilizam o termo quarta onda para nomear as mudanças nos feminismos contemporâneos.
O termo quarta onda não vem sendo adotado apenas na academia, mas também por ativistas e jornalistas (DRUMMOND, 2020). E o seu uso não é exclusivo do Brasil: a denominação também é utilizada por diversos veículos de comunicação de fora do país e ativistas feministas ao redor do mundo para entender uma nova fase do feminismo (DRUMMOND, 2020).1 Em que pese a presença dessa discussão fora do Brasil, o presente texto se concentra na reflexão sobre a quarta onda do feminismo conforme textos acadêmicos e organizações feministas brasileiras.
O conceito de ondas é utilizado como um meio para se analisar os possíveis padrões de desenvolvimento de um dado movimento social (Colin BARKER, 2014). Embora seja amplamente utilizada e tomada como autoevidente, não se pode negar a similitude desse conceito com o de ciclos de protesto. Segundo Sidney Tarrow (1994), o ciclo de protestos equivale a uma fase de intensificação dos conflitos na qual o protesto público ganha força, o que permite ao movimento difundir-se amplamente em vários setores da sociedade, inclusive nos menos mobilizados. Mas, para os críticos dessa noção, Barker (2014), por exemplo, o termo ciclo pode ser inapropriado na medida em que as chamadas ondas de protesto parecem não seguir um padrão cíclico ou uma trajetória econômica.
No entanto, a ideia de ondas muitas vezes acaba encobrindo sob uma única camada homogeneizante a diversidade inerente aos campos discursivos feministas de ação (ALVAREZ, 2019). A literatura inclusive adverte para a fluidez das ondas, ou seja, para o fato de que elas não se encerram exatamente de um ano para o outro, além de divergirem conforme os países analisados (DRUMMOND, 2020).
Em diálogo com esse campo de estudos, o presente artigo é guiado pela seguinte questão: quais são algumas das características da quarta onda feminista brasileira, segundo estudos sobre o tema e conforme a análise de organizações que carregam essa bandeira em uma rede social digital?
Guiada por essa questão, a presente pesquisa teve como primeiro objetivo realizar uma revisão da literatura sobre a quarta onda feminista. Nessa etapa da pesquisa foram retomadas autoras brasileiras referências nos estudos sobre as ondas dos feminismos (PINTO, 2003; MATOS, 2010; ALVAREZ, 2014; BUARQUE DE HOLLANDA, 2018; RIOS, PEREZ; RICOLDI, 2018; DRUMMOND, 2020).
Com base nos apontamentos dessa literatura, o segundo objetivo da pesquisa foi sistematizar algumas características das mobilizações feministas contemporâneas, a saber: 1) a utilização dos meios de comunicação digitais, especificamente se elas estão presentes apenas na rede social ou se fazem atividades presenciais; 2) a presença da interseccionalidade, ou seja, a defesa de mais de uma pauta de forma interligada; 3) a tendência da organização em forma de coletivos, considerados organizações mais horizontais.
Considerando a crescente utilização das redes sociais pelos movimentos feministas contemporâneos (BUARQUE DE HOLLANDA, 2018; DRUMMOND, 2020), a pesquisa empírica aqui apresentada também foi feita com base em informações coletadas nesse ambiente virtual.
Realizamos uma pesquisa qualitativa que verificou todas as páginas que se caracterizam como feministas em uma importante rede social: o Facebook. No mês de junho de 2021, iniciamos a investigação procurando no campo de buscas do Facebook páginas de “empresa, organização ou instituição'' que contivessem a palavra feminismo ou feminista em suas descrições. Verificamos cada uma dessas páginas atentando para sua descrição. Essa etapa da pesquisa teve a intenção de verificar se as páginas cadastradas eram organizações feministas. Frente à profusão de páginas que carregavam o termo feminista, excluímos as páginas que não defendiam os feminismos (porque eram contra ou nomeavam como feminista algum produto ou loja).
Feita essa seleção inicial, seguimos com a análise das 114 páginas. Nessa segunda etapa sistematizamos a descrição das organizações (na página “sobre” de cada organização, espaço em que elas se descrevem). Posteriormente, analisamos suas dez últimas postagens. Escolhemos analisar as dez últimas postagens porque percebemos que aproximadamente a partir da sétima postagem os conteúdos se repetiam.
Com essa técnica foi possível coletar dados sobre as três categorias escolhidas como foco da análise, a saber: a presença de organizações feministas no meio digital, a defesa de mais de uma pauta e a forma como estão se organizando. Mais especificamente, o uso das redes sociais como forma de mobilização apenas virtual foi verificado na descrição e nas últimas postagens das organizações, em que elas mencionavam ou não encontros presenciais, assim como sua localização. A adoção da ideia da interseccionalidade foi verificada por meio das descrições das organizações e postagens mais recentes, em que era possível perceber a defesa de mais de uma pauta além dos feminismos. Por fim, para verificar como os feminismos estão se organizando, atentamos para a autonomeação das organizações como coletivos, movimentos ou grupos.
A técnica utilizada na pesquisa - análise de organizações cadastradas em uma rede social digital - tem seus limites e vantagens. O limite mais evidente é o fato de esse método permitir acessar apenas as páginas de organizações políticas que estão cadastradas no Facebook, mantendo fora de escopo muitas outras organizações do campo - diga-se de passagem, essa é uma das razões porque também na questão da abordagem problematizamos a novidade e o excesso das apostas no universo digital. Por outro lado, a adoção desse meio também propiciou algumas vantagens, como a fácil obtenção dos dados e a possibilidade de se conhecer um amplo universo de organizações contemporâneas.
Além de abordar características dos movimentos feministas da quarta onda, problematizamos a ideia de novidade e de ruptura que pode estar presente na apresentação dessas lutas. Também indicamos vantagens e problemas do uso do conceito de quarta onda, que serve para organizar a realidade, mas não deve limitar sua análise, nem deve permitir desconsiderar as trajetórias, continuidades, contradições e diversidades do campo social.
Essas distinções são importantes especialmente quando consideramos que a periodização das ondas estadunidenses, por vezes, é tomada como referência para outras regiões. Por isso o presente trabalho aborda o conceito de ondas, mas contextualiza as mobilizações políticas brasileiras com base em suas próprias características.
O texto encontra-se organizado em duas partes, além das considerações finais e desta introdução. A primeira parte procura fazer um histórico das ondas do movimento feminista brasileiro, separá-lo e diferenciá-lo da historicização que se faz em outros países (em especial na literatura que versa sobre as ondas nos Estados Unidos). Na segunda parte, abordamos as organizações feministas brasileiras cadastradas em uma rede social digital.
1. As ondas do movimento feminista brasileiro
De maneira geral, a primeira onda do feminismo está associada à conquista do sufrágio. Entre meados do século XIX e início do XX, mulheres bem instruídas, de alta classe, levantaram-se em defesa de direitos políticos, em diversos países. Mas a conquista legal do sufrágio se deu em um intervalo extremamente distendido de tempo. Nos Estados Unidos, o sufrágio feminino foi conquistado em 1920; no Reino Unido, por um processo que se arrastou de 1918 a 1928. No Brasil, em 1932; mas um exame da América Latina como um todo faz o período de lutas se estender de 1927 (Uruguai) até 1961 (Paraguai).
Esses dados nos levam à nossa primeira ressalva em relação à periodização dos movimentos feministas em forma de ondas. Embora o conceito de ondas possa dar a entender que há uma certa homogeneidade entre os processos políticos, é necessário ressaltar que as características gerais de cada onda variam conforme os diversos países e regiões. Também é necessário destacar que a luta pela igualdade entre homens e mulheres não se inicia na primeira onda, mas sim acompanha toda a trajetória política das mulheres.
A segunda onda é comumente associada às lutas políticas da década de 1960, na esteira dos movimentos dos direitos civis e da contracultura. A influência teórica remonta à apropriação d’O Segundo sexo de Beauvoir por interlocutoras como Betty Friedan, Kate Millet e Germaine Greer (Magda Guadalupe SANTOS, 2016). Nessa onda também se deu a inauguração dos Women’s Studies e a escrita dos primeiros ensaios sobre gênero, como o clássico de Gayle Rubin publicado em 1975.
Já a terceira onda é marcada pela emergência do conceito de interseccionalidade, especialmente nos Estados Unidos. A autora mais conhecida sobre o tema da interseccionalidade é a estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002), que explica que, assim como é verdadeiro o fato de que todas as mulheres estão, de algum modo, sujeitas ao peso da discriminação de gênero, também é verdade que outros fatores relacionados às suas identidades sociais, como raça-cor e etnia, produzem diferenças na forma como cada grupo de mulheres vivencia a discriminação.
Outro traço importante da terceira onda nos Estados Unidos é a abordagem pós-estruturalista da sexualidade e a ampla incorporação desses estudos pelo campo de gênero (SANTOS, 2016; Maria Luiza HEILBORN, 2016).
Sobre esse ponto, cabe uma ressalva importante: em que pese uma impressão de que as ondas dos feminismos estadunidenses são idênticas às do brasileiro, neste trabalho o conceito de interseccionalidade que caracteriza a terceira onda nos Estados Unidos foi considerado como parte da quarta onda brasileira.
Ainda com o foco no caso brasileiro, embora se pudesse fazer uma periodização apoiada em autoras que são referências em cada período, é mais comum se encontrar uma historicização baseada em dinâmicas sociais.
A primeira onda feminista no Brasil, como em outros países, está associada à luta pelo sufrágio feminino (PINTO, 2003), que aqui teve lugar na década de 1930. É no início do século XX, porém, que se pode falar em uma mobilização com certo grau de organização e em escala coletiva considerável, acompanhando inclusive a fundação de um Partido Republicano Feminino. Destaca-se nesse período a atuação de Bertha Lutz e da Federação Brasileira para o Progresso Feminino e a edição de um número considerável de periódicos femininos que, para além do voto, discutiam outras questões relativas à condição feminina, como a educação igualitária e o direito ao divórcio. Ao lado desse feminismo de mulheres educadas e de elite, surgia também um feminismo anarquista, na efervescência do movimento trazido em grande parte por imigrantes italianos (PINTO, 2003)
Esse primeiro momento da luta feminista é considerado de cunho mais conservador, pois admitia menos questionamento da divisão sexual dos papéis de gênero (Ana Alice Alcantara COSTA, 2005, p. 13). O feminismo provinha das elites, mas dirigia-se a uma crescente classe média urbana feminina que se educava e já ocupava alguns postos de trabalho nas cidades. Nesse sentido, com a exceção do feminismo anarquista e operário (PINTO, 2003), o feminismo da época era formado por um grupo mais ou menos homogêneo de mulheres educadas, ligadas às elites, muitas vezes funcionárias públicas e/ou professoras (June HAHNER, 2003).
Já a segunda onda, que em países como os Estados Unidos e a França ganhou força num contexto de contestação política e cultural, ocorreu no Brasil no período da ditadura militar iniciada em 1964, e especialmente a partir de meados de 1970. Uma oportunidade política foi aberta pela proclamação do Ano Internacional da Mulher em 1975, que propiciou discussões públicas quando toda forma de conglomeração era, via de regra, proibida: as questões das mulheres não eram vistas como assuntos políticos ou potencialmente subversivos, o que deu espaço para que sua presença política se desenvolvesse, segundo Alvarez (1990). Com isso, além de já serem expressivos nos espaços acadêmicos, movimentos formados por mulheres (como o de reivindicação de creches) começaram a ganhar força, e até mesmo nos movimentos populares urbanos (contra a carestia, por moradia) a presença da mulher já era grande. A segunda onda ainda contava com feministas exiladas, militantes de partidos políticos, estudantes universitárias e acadêmicas (PINTO, 2003).
A terceira onda, no caso do Brasil, foi impulsionada pela crescente importância da atuação de Organizações Não Governamentais (ONGs), favorecidas por um contexto internacional mais amplo, de financiamentos internacionais e de discussões nesse âmbito (como as Conferências de Direitos Humanos da década de 1990 e, nesse conjunto, a 4ª. Conferência Mundial sobre a Mulher, em Beijing, 1995). No Brasil, a Eco 1992 e a tenda Planeta Fêmea marcaram o início da eclosão de Organizações Não-Governamentais feministas, que teve como características a profissionalização e a tecnificação de suas ações, afinadas com as agendas internacionais do gênero (momento em que o termo ganha impulso no Brasil). Essa onda é o momento de formação de ONGs que discutiam questões como raça e diversidade sexual e que, ao fazerem esse trabalho importante, determinaram como a onda seguinte viria a ser.
No entanto, há outras interpretações que associam a terceira onda com a entrada dos feminismos no Estado em um processo que por vezes foi chamado de institucionalização do movimento (ALVAREZ, 2014). Conforme essa interpretação o período da terceira onda foi marcado pela relação do Estado com os movimentos - seja via financiamento, seja pela participação dos mesmos na formulação e na execução de políticas públicas.
Para algumas estudiosas hoje, no Brasil, os movimentos feministas estariam em uma quarta onda. Conforme Matos (2010), a quarta onda do feminismo brasileiro e latino-americano tem como características a institucionalização das demandas das mulheres e do feminismo, o processo de institucionalização das ONGs e das redes feministas e a possibilidade da luta trans ou pós-nacional. Além desses traços, em um trabalho posterior da mesma autora (MATOS, 2014) as seguintes características são atribuídas à quarta onda: 1. o alargamento da concepção de direitos humanos, abarcando sexo, gênero, cor, raça, sexualidade, idade, geração, classe social, etc.; 2. a ampliação e diversificação da base das mobilizações sociais e políticas; 3. o foco no sidestreaming feminista, ou seja, na perspectiva que reforça a discriminação de gênero, mas vai além dela; 4. o foco no mainstreaming feminista, pelo qual ganham visibilidade e destaque as novas formas de relação com o Estado e com suas muitas instituições; 5. A nova forma teórica - transversal e interseccional; 6. uma retomada e uma aproximação entre o pensamento, a teoria e os movimentos feministas (MATOS, 2014).
Neste trabalho, situamos na terceira onda algumas características que Matos (2010) afirma serem pertencentes à quarta onda - como a aproximação entre os movimentos feministas e o Estado. Por outro lado, concordamos com o trabalho da autora (MATOS, 2014) em seu alargamento da concepção de direitos humanos, que a leva a inserir esse traço como fator que caracteriza a quarta onda. É importante ressaltar que os trabalhos de Matos (2010, 2014) datam de alguns anos e, portanto, não poderiam situar as características que apontamos no presente trabalho. Mas o trabalho dela consegue, bem antes de outras autoras, perceber mudanças nos feminismos contemporâneos que seriam trabalhados anos depois - como, por exemplo, a interseccionalidade.
Buarque de Hollanda (2018) também utiliza o termo quarta onda para nomear a expansão dos feminismos contemporâneos impulsionados pelo uso da internet. No entanto, ao contrário da autora, consideramos que o marco para a quarta onda são as Jornadas de Junho de 2013 responsáveis por socializar politicamente os jovens que passam a se organizar em coletivos (Olivia Cristina PEREZ, 2019).
Em um texto de 2014, Alvarez prefere utilizar a noção de “terceiro momento” para caracterizar as trajetórias dos feminismos no sul das Américas: o terceiro momento do feminismo teria tido suas expressões mais concretas nas manifestações alter-mundistas e no Fórum Social Mundial, e continuaria se remodelando após as Jornadas de Junho de 2013. Concordamos com a autora especialmente ao destacarmos a organização em forma de coletivos impulsionada pelas Jornadas de Junho, mas situamos esse traço como parte da quarta onda.
Outros trabalhos chamam de “momentos” o que parte das referências chama de “ondas” e há distintos modos de situá-los. Por exemplo, Rayza Sarmento (2017) utiliza o termo “terceiro momento” para se referir ao período de 1990 a 2016, que agregaria a terceira e a quarta ondas. Conforme a autora, nesse período o feminismo avança no Estado e surgem outras formas de ativismos como os eventos transnacionais da Marcha Mundial das Mulheres da Marcha das Vadias, assim como formas de atuação intermediadas pelas novas tecnologias.
Na própria literatura, a periodização dos movimentos feministas por ondas já foi alvo de críticas e ressalvas. Conforme Alvarez (2019), a ideia de ondas esconde a heterogeneidade das expressões feministas que de fato coexistem. A autora propõe que a interpretação dos movimentos deve procurar mapear e compreender melhor os feminismos, acompanhando sua evolução, em vez de diagnosticar o sucesso ou o fracasso dos movimentos. Respondendo a essa crítica, consideramos importante apontar que, embora o conceito de ondas ajude a compreender os ciclos dos movimentos sociais feministas, é preciso ressaltar seus potenciais, significados e limites.
Primeiramente, as ondas de mobilização política não ocorrem por ciclos homogêneos: em todos os períodos estão presentes características de ondas anteriores ou posteriores. A imagem das ondas carrega justamente o sentido de que os fenômenos coexistem, embora fiquem mais evidentes em determinados períodos. Em segundo lugar, uma nova onda não representa uma ruptura em relação às mobilizações políticas anteriores. Pautas de períodos anteriores, como a própria participação das mulheres na política, continuam a ser tema de debates e de mobilizações políticas, assim como as ruas não foram substituídas pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Nesse sentido, uma nova onda não significa que o campo dos movimentos sociais esteja assumindo características novas e absolutamente estranhas em relação aos ciclos anteriores.
Outra crítica à periodização dos movimentos feministas por ondas se deve ao fato de que a referência para as ondas geralmente são os países do Norte, como os Estados Unidos, mas defendemos aqui o uso do conceito no Brasil pelos seguintes motivos. Ele já é utilizado na literatura sobre movimentos sociais feministas brasileiros e serve como referência para o debate (PINTO, 2003; MATOS, 2010) e por isso não é preciso abandoná-lo completamente. Em segundo lugar, a periodização estadunidense não precisa e não deve ser sempre tomada como referência para a compreensão de outros países. Nos casos em que o conceito ajuda a compreender a realidade local, é necessário adequar a periodização e suas características. Por exemplo, no presente trabalho propomos que a quarta onda brasileira é caracterizada pela interseccionalidade, ao passo que na periodização estadunidense, esse era um traço da terceira onda.
Além de levar em conta as diferenças nas periodizações, defendemos uma caracterização das ondas que parta da práxis feminista local. A periodização deve estar amparada em um processo de pesquisa indutivo, baseado na pesquisa empírica, não em um dedutivo, guiado pelas referências estadunidenses.
2. Características da nova onda de mobilizações feministas
2.1 As redes sociais digitais
Com base na literatura que enfatiza a crescente utilização das redes sociais digitais pelos feminismos da quarta onda (BUARQUE DE HOLLANDA, 2018; DRUMMOND, 2020), um dos pontos verificados na presente pesquisa foi a presença de organizações feministas que apenas utilizam o espaço virtual sem promover atividades presenciais. Para verificar esse ponto procuramos nas páginas das organizações feministas no Facebook informações sobre suas atividades e localização. Constatamos que a maioria delas (77 de um total de 114 organizações cadastradas no Facebook) não promoviam atividades presenciais, mas se dedicavam à divulgação e debates a respeito dos campos feministas no ambiente virtual. Esses dados revelam a importância da internet e das redes sociais na construção dos feminismos contemporâneos.
A página de discussão feminista mais famosa no Facebook é a “Feminismo Sem Demagogia - Original” com 1.079.919 seguidores, acessada em 20/06/2021.2 Conforme a descrição da própria página, “Feminismo sem Demagogia é um espaço destinado ao debate a respeito do feminismo pelo viés marxista e opressão machista/capitalista sobre as mulheres”. A página se declara como um espaço de debate e compartilha conteúdos de outras páginas, assim como conteúdos próprios, geralmente denunciando casos de machismo e o projeto político representado pelo Presidente da República à época da pesquisa, Jair Bolsonaro, eleito em 2018. Uma de suas postagens a respeito de sexo entre pais na frente dos filhos tinha um alcance de oitocentos compartilhamentos em 20/06/2021.
Além de servir para promover debates feministas, as páginas do Facebook também comportam organizações políticas que utilizam o espaço virtual para debater e organizar politicamente suas seguidoras. É o caso do Coletivo Lélia Gonzalez,3 da cidade de Campinas (SP), que se define como feminista negro interseccional e debate esses temas, além de fazer trabalhos como a arrecadação de produtos para mulheres encarceradas.
Esses dois exemplos demonstram algumas formas de como os feminismos estão presentes na internet. A rede social é um espaço para promover debates sobre feminismo e para agir em prol das mulheres. Nesse processo, as mulheres são socializadas politicamente, o que contribui para a difusão dos vários feminismos.
De modo geral, o campo de estudos sobre participação e internet tem verificado o grande potencial dos avanços tecnológicos para a ampliação da participação popular nas matérias políticas (Jorge MACHADO, 2007, 2015). Machado (2007), por exemplo, defende que a internet seria o principal meio de articulação e comunicação das organizações da sociedade civil, pois ela implementou uma forma de comunicação rápida, de grande alcance, aumentou seu grau de influência e tornou possível o desenvolvimento de estratégias de mobilização social mais eficazes. Em outro trabalho, o autor explica que: “a internet não apenas possibilitou novas formas de comunicação mais eficazes, de baixo custo e de grande alcance, como também constituiu em si um novo espaço público para o debate político” (MACHADO, 2015, p. 7).
Os efeitos práticos da nova relação entre Estado e sociedade civil propiciada pelas redes já se fazem sentir há alguns anos. Estudos mostram que a internet potencializou os grandes protestos que eclodiram depois de 2010 em diversas partes do mundo (Manuel CASTELLS, 2013). No Brasil, a internet foi central para o maior protesto de mulheres conhecido pelo símbolo disseminado nas redes sociais #EleNão (PEREZ, 2019b). Tais protestos aconteceram em meados do fim do mês de setembro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais, e seu principal objetivo era derrotar a candidatura de Bolsonaro para a presidência. Dezenas de cidades brasileiras tiveram manifestações contrárias a Bolsonaro e elas reuniram ao todo mais de 100 mil mulheres nas ruas. Também houve atos em diferentes cidades do mundo como Nova York, Lisboa, Paris e Londres (PEREZ, 2019b).
A convocação para esses protestos aconteceu por iniciativa de ativistas digitais. A hashtag #EleNão foi criada por uma publicitária após conversas com suas amigas sobre o que seria possível fazer diante do crescimento das intenções de voto para o então candidato Jair Bolsonaro. Em entrevista ao jornal El País (Joana OLIVEIRA, 2018) a publicitária Ludimilla Teixeira declarou que: “percebia nas minhas próprias redes muitas amigas comentando e criticando essas posturas [do Bolsonaro], então decidimos unir todas essas mulheres e criar um fato político para mostrar que grande parte da população não é favorável a essa candidatura”. Com o crescente uso da hashtag #EleNão como forma de protesto virtual, as ativistas criaram um grupo na rede social Facebook chamado “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”. O grupo conseguiu reunir 3,8 milhões de mulheres (Renata CAFARDO, 2018). A preparação dos protestos contra a candidatura de Jair Bolsonaro aconteceu dentro dessa página. Esse exemplo demonstra como as redes sociais favorecem a criação dos novos repertórios de mobilização. Outro aspecto importante a se mencionar é que a internet permite que os movimentos feministas entrem em contato com ideias desenvolvidas em outros países, possibilitando uma atuação transnacional.
A importância da internet também é destacada nos estudos que consideram as mobilizações políticas contemporâneas como parte da quarta onda do feminismo. A associação da quarta com a expansão do uso da internet é tão comum que autoras como Ana Claudia Felgueiras (2017, p. 119) nomeiam a quarta onda do feminismo como um ciberfeminismo, já que seria formado por “jovens militantes que foram criadas na era digital e compreendem o alcance desta ferramenta de comunicação e sabem muito bem como utilizá-la”. No mesmo sentido, para Buarque de Hollanda (2018), a internet teria relação com a expansão dos feminismos e consequentemente com a sua quarta onda.
A mobilização na internet, inclusive, pauta os jornais mainstream, como mostra Drummond (2020) na análise das coberturas jornalísticas da quarta onda do movimento feminista em grandes jornais no Brasil e em Portugal. Conforme a autora, as grandes manifestações feministas recentes (nas ruas e na internet) levaram a um aumento de notícias e reportagens sobre os feminismos. Complementando essa análise, Carla Cerqueira e Rosa Cabecinhas (2015, p. 39) explicam que os discursos jornalísticos podem ser entendidos “como representações da ‘realidade’ e com papel preponderante na formação da opinião pública”. A autora explica que, muitas vezes, a informação veiculada pelas mídias é a forma com que o público mais geral tem acesso a determinados acontecimentos, como no caso das discussões sobre gênero e feminismos. Nesse sentido, a cobertura jornalística sobre os feminismos deve ser um ponto central na discussão sobre o que se pensa deles e como se pensa - daí o tema se constituir como um campo específico e importante de reflexão, rendendo trabalhos com os de Cerqueira e Cabecinhas (2015), Drummond (2020) e Sarmento (2017).
No entanto, a constatação de que a internet transforma o feminismo não pode desconsiderar as limitações da rede. O limite mais evidente está relacionado ao fato de que muitos brasileiros não têm acesso à web. Segundo a pesquisa sobre o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domicílios brasileiros em 2021 (Cetic.br, 2022), o percentual de residências aptas a acessar a rede mundial de computadores subiu de 71% para 82% no período de dois anos. Apesar disso, o país ainda contabiliza 35,5 milhões de pessoas sem acesso à internet.
Além disso, o uso da internet é desigual entre as classes sociais e regiões. Enquanto 100% dos domicílios da classe A possuíam acesso à internet em 2021, apenas 61% dos das classes D/E dispunham do serviço (Cetic.br, 2022). Ainda conforme a mesma pesquisa (Cetic.br, 2022), no Sudeste (84%), no Sul (83%) e no Centro-Oeste (83%), as proporções de domicílios com acesso à internet superaram a casa dos 80%, enquanto no Norte esse percentual foi de 79% e, no Nordeste, 77%. Esses dados são importantes para se pensar o público que acessa e divulga o feminismo na internet, assim como para se ressaltar que a luta feminista também é feita fora do mundo digital.
Em última instância, o desenvolvimento dos meios eletrônicos não equivale por si só a uma participação social emancipadora. “O conteúdo, a diversidade e o impacto da discussão política precisam ser analisados com cautela antes de se considerar que o discurso online fortalece a democracia” (Zizi PAPACHARISSI, 2002, p. 18). Um estudo recente (Marisa VON BÜLOW, 2018) mostra que as assimetrias de poder dentro de um movimento social podem não apenas ser reproduzidas, mas também reforçadas através do uso de mídias sociais.
Por fim, ressaltamos que o uso das redes sociais digitais, embora seja uma estratégia importante dos feminismos na quarta onda, não implica abandono de outras estratégias. Prova disso é que os protestos #EleNão foram convocados pela internet, mas utilizaram as ruas como forma de manifestação (PEREZ, 2019b).
2.2 O feminismo interseccional
Para saber as pautas das organizações feministas contemporâneas, analisamos as dez últimas postagens das 114 páginas cadastradas no Facebook. Encontramos 56 organizações políticas e páginas de discussão no Facebook que ressaltam a importância da defesa de mais de um ideal: em geral o feminismo atrelado ao antirracismo e por vezes ao combate à discriminação dirigida ao público lésbico, gay, bissexual, travesti e transgênero.
O Coletivo Salto4 - Anhembi Morumbi, por exemplo, formado por mulheres de uma universidade particular, define-se como “um coletivo interseccional esquerdista de feministas autônomas estudantes da Universidade Anhembi Morumbi”. No mesmo sentido, o Coletivo de Mulheres Filósofas do Cariri5 combate “todas as formas de opressão que atingem, de maneira interseccional, as mulheres”.
Contemporaneamente, a importância da atenção para as diversas desigualdades que se intercruzam está presente na ideia de interseccionalidade. A ideia e a importância da interseccionalidade como modo de conceber as injustiças socais foi construída pelos movimentos sociais, em especial pelos feminismos negros. A própria luta desses movimentos contribuiu para que pesquisadoras/ativistas adentrassem no universo acadêmico, ajudando a construir e a difundir o conceito como lente analítica para a compreensão das desigualdades sociais, em especial àquelas envolvidas na vivência de mulheres negras
Por conta da relação entre militância e universidade a interseccionalidade hoje também é um conceito acadêmico, presente principalmente nos estudos sobre gênero e feminismos. A autora feminista negra mais importante para a disseminação do termo interseccionalidade é Crenshaw (2002). Ela ensina que as desigualdades relacionadas a classe, gênero ou raça simplesmente não são passíveis de hierarquização: é a interação dessas categorias que atua na produção e na manutenção das desigualdades. Na academia, a interseccionalidade é uma ferramenta analítica para se apreender a maneira como as desigualdades se articulam. Essa categoria é utilizada especialmente nos escritos sobre gêneros e feminismos e foi amplamente difundida no Brasil dos anos 2000 em diante (Adriana PISCITELLI, 2008).
Os escritos de Crenshaw são muito conhecidos nos Estados Unidos desde meados da década de 1990. No Brasil, alguns dos trabalhos da autora foram traduzidos somente por volta dos anos 2000. De modo geral há uma estreita conexão da discussão brasileira com os referenciais teóricos dos Estados Unidos. Uma das feministas negras mais famosas de hoje, Djamila Ribeiro, difunde a interseccionalidade de matriz americana nas redes sociais, em cursos acadêmicos e em programas de televisão. Ela é um exemplo de feminista com grande presença na internet que foi chamada para a televisão (Programa Amor & Sexo, da rede Globo, e Saia Justa, do GNT), contribuindo assim para a ampliação da compreensão acerca das clivagens relacionadas à opressão social.
Mas é importante ressaltar que o debate sobre a interseccionalidade não é feito apenas pelas feministas negras norte-americanas. No Brasil em meados dos anos de 1980 a professora e ativista Lélia Gonzalez já discutia o entrelaçamento de diferentes clivagens sociais (como gênero e raça).
Ademais, como já pontuamos, a interseccionalidade não é apenas um debate acadêmico, ela foi construída e está presente nas pautas de movimentos sociais, como os diversos feminismos. Conforme explica Buarque de Hollanda (2018), enquanto nos anos 1980 o discurso hegemônico do feminismo no Brasil era restrito à defesa da mulher e da autonomia, os movimentos da quarta onda rechaçam uma condição feminina universal, defendendo justamente sua pluralidade, combinando eixos como gênero, classe, raça, etnia, orientação sexual, deficiência e religião.
Um exemplo do que é a interseccionalidade para os coletivos está expresso na página do Coletivo Bendita Geni - UEMG, de Frutal.6
O Coletivo Feminista - UEMG/Frutal adota a vertente interseccional, que consiste na abrangência dos aspectos sociais de classe, cor e gênero e na demonstração dos privilégios de determinados setores da sociedade que se sobrepõem a outros grupos menos privilegiados. É de suma importância a ligação do movimento com a questão social de cor, gênero e classe. Em face do contexto atual, no qual se pretende manter uma cultura de superioridade do homem, cisgênero, branco e com melhor condição financeira, é preciso provocar uma insurgência da necessidade de se rever tais conceitos.
Com a leitura das páginas das 114 organizações feministas cadastradas no Facebook, percebe-se que os movimentos feministas vêm adotando a perspectiva da interseccionalidade para dar conta da importância de diversas desigualdades sociais atreladas ao gênero. As organizações políticas feministas que ressaltam a interseccionalidade, por exemplo, entendem que grupos com mais dificuldade de acesso a direitos e mais sujeitos a opressões sociais, tais como mulheres, negras(os) e LGBTs, não são discriminados apenas devido a uma clivagem social. Além das dificuldades relacionadas à vivência das mulheres, pesam sobre elas opressões sociais relacionadas ao fato de serem pretas, lésbicas e pobres. Nesse sentido a ideia de interseccionalidade amplia a compreensão sobre os fatores e clivagens sociais envolvidas nas várias desigualdades sociais.
Para tais organizações e páginas de discussão a abordagem interseccional serve como um parâmetro de justiça, na medida em que elas exigem que o intercruzamento das desigualdades seja considerado para a garantia de direitos. As intersecções entre o movimento feminista, negro e LGBTs são bastante presentes nos trabalhos que citam a quarta onda. Um exemplo é o seguinte trecho de Rebbeca Corrêa Silva e Joana Maria Pedro (2016, p. 194): “diferentemente das ondas que a antecederam, a proposta mais ousada de uma quarta onda do feminismo [...] é reconhecida pela incorporação dos diversos feminismos de correntes horizontais, como o negro, lésbico e o masculino e os LGBT”.
Matos (2014) também ressalta como característico da quarta onda o alargamento da concepção de direitos humanos abarcando sexo, gênero, cor, raça, sexualidade, idade, geração, classe social. No mesmo sentido, conforme Rios, Perez e Ricoldi (2018), estaríamos diante de uma nova geração de feministas que articula as desigualdades relacionadas especialmente ao gênero e à raça e com isso problematiza as múltiplas formas de opressão social.
A adoção de lutas interseccionais também tem relação com a internet, na medida em que os estudos sobre a interseccionalidade, assim como as reflexões acerca da importância do combate ao racismo e à homofobia (agora estendido também à lesbofobia e à LGBTfobia), são divulgados no mundo digital. Buarque de Hollanda (2018) atribui à internet a possibilidade de ampliação dos movimentos feministas.
2.3 Os coletivos feministas
Parte das organizações políticas localizadas nas páginas do Facebook (12 de um total de 37) se definiram como coletivos, enquanto a maioria das outras carregavam apenas o nome da organização. Logo, a maioria das organizações que utilizavam um nome para definir o modo como se organizavam se autodenominavam coletivos.
Ainda que não seja possível estabelecer uma definição abarcando todos os tipos de organizações políticas que se definem como coletivos, o discurso dos coletivos têm em comum apontarem para práticas e nomenclaturas que demarcam sua distância tanto das instituições parlamentares quanto do modo de articulação política dos partidos e de outras organizações formais, consideradas hierárquicas (PEREZ, 2019). Os trabalhos sobre os coletivos destacam algumas de suas características como pautas múltiplas, horizontalidade, fluidez e presença nas mídias digitais (Greta Leite MAIA, 2013; Maria da Glória GOHN, 2017).
Os coletivos não teriam uma única pauta, tampouco um compromisso de duração ao longo do tempo e seriam facilmente formados, bastando a reunião dos interessados em um tema. Esse é o caso, por exemplo, do coletivo feminista universitário que se descreve da seguinte maneira:7 “o Coletivo Feminista do IESP é um coletivo de mulheres pós-graduandas que tem como objetivo provocar reflexões e práticas feministas”. Essa informalidade favorece a formação de pequenos grupos.
Eles são formados em geral por jovens universitárias que se juntam com outras colegas para discutir e organizar ações de defesa dos direitos das mulheres e de outros grupos mais sujeitos a opressões sociais. Por isso é importante destacar a característica geracional da quarta onda do feminismo.
O caráter geracional dos feminismos de hoje foi observado em estudos como o de Flávia Rios e Regimeire Maciel (2018), que dissertam sobre distinções no ativismo político contemporâneo, especialmente por envolverem raça e gênero enquanto categorias políticas contenciosas. Isso não significa que as organizações mais antigas tenham saído de cena, pois: “... as bases organizacionais, a institucionalização e as redes centralizadas também marcam simultaneamente a contemporaneidade e a historicidade da mobilização das mulheres negras no país” (RIOS; MACIEL, 2018, p. 4). Ou seja, as organizações tradicionais, como os partidos políticos, continuam presentes e fundamentais para a construção dos feminismos da quarta onda. Assim também é no caso das discussões feministas que predominavam nas ondas anteriores e que continuam a existir - tal como a necessidade de direitos básicos (civis, políticos e sociais) para as mulheres.
Os jovens se identificariam com os coletivos por serem diferentes das formas de organização política que repudiam: partidárias, centralizadas, hierárquicas e burocráticas (GOHN, 2017). Os coletivos reivindicam certa autonomia justamente para expressar seu distanciamento das organizações estatais. Conforme Alvarez (2014), a organização de forma horizontal e mais autônoma é característica de um terceiro momento dos feminismos contemporâneos. Um exemplo típico de coletivo universitário em que tais características se destacam é descrito no Facebook da seguinte forma.
O Coletivo feminista surgiu em 2012 através da iniciativa de estudantes da Universidade Federal que, percebendo a falta de espaço e de debate sobre a situação das mulheres na instituição e as tantas situações sexistas às quais somos expostas diariamente, iniciaram um grupo de conversa/debate para discutir a condição das mulheres na universidade (e todas as questões que aqui se encaixam) sob a perspectiva feminista. Nos organizamos de forma horizontal e autogerida, ou seja, sem hierarquias e divisão de cargos, apenas divisão de tarefas. Autônomo, o Coletivo não tem vínculo com outras organizações partidárias, o que não exclui que pessoas organizadas em outras esferas ajudem a construí-lo e, portanto, promovam um diálogo aberto com quaisquer ideologias. Entendemos que a luta feminista é interseccional e necessária para desnaturalizar, combater e superar as relações sexistas existentes na sociedade. Por isso, pautamos também discussões transversais de classe e raça.
Destaca-se nesse trecho a ideia de horizontalidade e inclusão presente em organizações enquanto coletivos. Ainda que tais organizações não consigam ser tão horizontais ou inclusivas quanto pretendem, há nelas uma tentativa por vezes prática e ao menos discursiva de incluir de fato as mulheres em suas decisões. Esses traços distanciariam os coletivos das organizações que eles repudiam.
Embora não sejam novidades, os coletivos vêm crescendo, especialmente depois dos grandes protestos que expressam o descontentamento em relação às instituições políticas tradicionais, como aqueles conhecidos no Brasil como Jornadas de Junho de 2013 (PEREZ, 2021).
As Jornadas de Junho de 2013 são o marco utilizado no presente trabalho como o início da quarta onda. Não a entendemos como um único protesto, mas sim como um ciclo que tem como marco os protestos iniciados pelo Movimento Passe Livre em junho de 2013 na cidade de São Paulo, embora os mesmos não tenham ficado restritos a essa região ou data.
Embora com pautas diversas, os protestos daquele ciclo expressavam um descontentamento com a forma como a política era exercida nas arenas parlamentares, especialmente por meio de partidos políticos. Esses últimos eram alvo de críticas em virtude de sua ineficiência e excesso de hierarquias e burocracias (PEREZ, 2019a). Como contraponto, os jovens clamavam por participações políticas mais inclusivas e conectadas com seus anseios. A organização em forma de coletivos possibilitaria essa atuação direta, daí o crescimento desse tipo de organização depois das mobilizações - a maioria dos coletivos criados depois desse ciclo, tinham, aliás, os feminismos como bandeira (PEREZ, 2019a).
Interpretações semelhantes têm as autoras retomadas para o debate sobre a quarta onda. Buarque de Hollanda (2018) situa 2013 como marco para a quarta onda, embora acredite que foi somente em 2015, com a reação contra o projeto de lei do deputado Eduardo Cunha para dificultar o aborto legal em caso de estupro, que houve de fato um crescimento significativo das lutas feministas. Já Alvarez (2014), ainda que não compartilhe da definição de quarta onda, situa em um terceiro momento os feminismos que vêm se remodelando após as Jornadas de Junho de 2013.
Conclusão
O primeiro objetivo da pesquisa foi verificar as principais características da chamada quarta onda do feminismo segundo estudos acadêmicos brasileiros que abordam o tema. No trabalho, mostramos que a quarta onda está relacionada com a ampliação do uso da internet, sendo inclusive chamada de ciberfeminismo. A quarta onda também seria fruto de movimentos sociais anteriores responsáveis por construir e difundir a importância da análise interseccional. Uma outra característica da quarta onda seria o retorno às ruas em grandes protestos e uma certa ênfase na autonomia.
Para examinar essas características, analisamos todas as 114 páginas de organizações que se entendem como feministas no Facebook. Como resultado dessa investigação, constatamos que: 1) 77 das 114 páginas dedicadas aos ideais feministas no Facebook (ou seja, a maioria delas) eram para divulgação do tema de forma digital sem atividades presenciais - o que mostra o intenso uso das redes sociais para divulgar os feminismos; 2) conforme a análise das dez últimas postagens das 114 páginas cadastradas no Facebook, 56 organizações ressaltavam a importância da defesa de mais de um ideal, em geral o feminismo atrelado ao antirracismo - o que sinaliza para a importância do debate sobre a interseccionalidade; 3) parte das organizações políticas localizadas nas páginas do Facebook (12 de um total de 37) se definiram como coletivos - demonstrando a importância da organização mais horizontal entre os feminismos.
Essas características convivem com outras já desenvolvidas pelos movimentos feministas, mas elas têm estado mais evidentes - daí porque as entendemos como partes de uma quarta onda. O uso das ondas confere destaque às características predominantes em determinados períodos, em estreita relação com o contexto político, social e econômico.
No entanto, problematizamos no texto essa forma de conceituação, chamando atenção para o fato de que a quarta onda não é homogênea ou revolucionária. Mobilizações tradicionais convivem com aquelas criadas recentemente e suas pautas e estratégias se intercruzam.
Nesse sentido, o texto contribui para a literatura do campo ao problematizar alguns sentidos conferidos ao conceito de onda em sua análise da quarta onda feminista. Acreditamos que o fato de algumas leituras trazerem apenas referências externas à nossa região, assim como passarem a ideia de homogeneidade e novidade, não deve ser motivo para se abandonar essa forma de periodização.
Como caminhos de pesquisa, alertamos para o crescimento das organizações políticas e para a difusão de ideias contrárias à discussão sobre gênero e feminismos. Ao longo da pesquisa realizada, também encontramos ao menos uma dezena de páginas no Facebook que eram contra as ideias feministas e que menosprezam exatamente essa tentativa de criação de um feminismo plural e inclusivo. Ao mesmo tempo em que as discussões feministas de cunho progressista crescem, também vêm crescendo os movimentos conservadores e reacionários. Esse é um campo que ainda merece ser investigado e pensado, inclusive em diálogo com o conceito de quarta onda, porque mostra a heterogeneidade e disputas em torno do tema