Considerações iniciais: narrativas que experimentam
Do encontro entre o feminismo e o ambientalismo, materializados na prática jornalística, me configuro como docente pesquisadora e mulher jornalista. As tentativas de articular conceitualmente dois movimentos sociais reivindicatórios dentro do campo da comunicação me são caras em um espaço acadêmico usualmente estratificado, que isola as subjetividades e os ativismos do exercício da docência e da pesquisa. Meu desafio, neste artigo de experiências, é debater a potência e as possibilidades do ecofeminismo no âmbito do jornalismo com perspectiva de gênero - que explico ao longo desta proposta -, a partir de determinados aprendizados de orientação na Graduação do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Trata-se de uma análise elaborada a posteriori, do efeito para a causa: pela revelação de atributos, ideias, epifanias comuns nas narrativas produzidas pelas graduandas, que se aproximam do ecofeminismo crítico que perseguíamos na articulação conceitual, mas já alcançávamos nas experiências de produção.
Esta produção jornalística ecofeminista aconteceu, em partes, intuitivamente - sensibilidade também importante para a pesquisa e que evidencia a relação ciência-senso comum (Rubem ALVES, 1991) na esteira do movimento de pensar ensino-graduação como fonte para pesquisa-pós-graduação, depurando as vivências e conhecimentos em diferentes estágios. Assim como Maria Cecília Minayo (2011) lembra que a pesquisa alimenta e atualiza a atividade de ensino, o contrário também se mostra possível, confirmando a vinculação entre pensamento e ação; no devir de uma construção científica feminista ou, mesmo, arriscando de forma ambiciosa, conforme coloca María Lugones (2020), um pensamento marginal feminista.
Adiantando as colocações da ecofeminista Maria Mies (MIES; SHIVA, 2014, p. 97), ela sugere, por exemplo, que as investigações repensem seus modelos, com uma visão “desde abajo”, e que as necessidades e interesses das mulheres devem ser critério de investigação, substituindo o conhecimento espectador, contemplativo e não participativo por uma ação científica ativa. “La concienciación colectiva de las mujeres a traves de una metodologia de formulación de problema deve ir acompanhada del estudio de su historia individual y social” (MIES, In MIES; SHIVA, 2014, p. 101).
Não se trata, necessariamente, de pesquisa aplicada, mas da articulação de saberes comprometidos com as urgências do tempo presente, subvertendo lógicas científicas hierarquizadas. Já em 2006, a professora Cremilda Medina (2006) sugeriu rupturas na universidade e composições de narrativas de escrita solidária dentro dos cursos de graduação em Jornalismo, o que me forneceu um horizonte para sistematizar esta escrita.
A pesquisa do diálogo social entre grupos de saberes distintos que não combinam mais com a velha e autoritária grade científica, é preciso experimentar atos epistemológicos em que o cientista senta ao lado do homem (sic) comum, e nesse laboratório, afloram respostas aos problemas que afetam a ambos. Transitaríamos, então, de uma ciência que conforma para uma ciência que transforma (MEDINA, 2006, p. 14).
A mesma autora fala da necessidade de uma ação comunicativa para reportar o presente “valendo-se de uma inquieta e criativa metodologia de investigação, e ensaiar uma das várias redes de significados” (MEDINA, 2006, p. 62). Justamente o que vislumbro como trajeto metodológico neste ensaio: pesquisa bibliográfica pertinente, que dê vazão à crítica feminista e a novas epistemes, em um formato mais dialógico, que debata os conceitos e os ressignifique no empirismo, ou seja, nos indícios materiais localizados nas narrativas experimentais aqui apresentadas. Para o aporte conceitual, recortamos quatro autoras ecofeministas: Vandana Shiva, Maria Mies, Alicia Puelo e Graciela Rodriguez, e arriscamos uma aproximação com o segmento de noções da interseccionalidade, como parte do escopo decolonial, que distende a ideia da estrutura social e denuncia a colonialidade de gêneros (LUGONES, 2019). Debato, então, a proposta do jornalismo com perspectiva de gênero, suas principais características, constelando com outros estudos, revendo Sandra Chaher e Sonia Santoro (2007) e atualizando com Jéssica Gustafson (2019).
Emparelho os conceitos com quatro produções jornalísticas da graduação em Jornalismo, selecionadas justamente por se aproximarem do debate ecofeminista e de um laboratório criativo para o exercício de um jornalismo engajado, com formatos multimidiáticos diferenciados: duas reportagens longform/multimídia/multilinguagem,1 uma narrativa multimídia no formato de Jornalismo em Histórias em Quadrinhos (JHQ) e um podcast.2 Além disso, as datas de produção e publicação apresentam uma temporalidade diluída para a reflexão pretendida: 2016, 2017, 2020 e 2021 e são trabalhos premiados3 na área. Todas as narrativas, discriminadas no quadro da sequência com subtítulos autoexplicativos, foram construídas a partir de atividades procedimentais do jornalismo como pesquisa, elaboração de pautas, entrevistas semiestruturadas4 e gravadas, com utilização de celulares e câmeras fotográficas para registros audiovisuais, e visitas in loco às comunidades reportadas para acompanhamento das rotinas e técnicas de imersão na realidade. Uma das produções, desenvolvida durante a pandemia da Covid-19, em 2020, foi realizada a distância, com uso de recursos de videochamada.
Fonte: Elaborado pela autora para as finalidades do artigo
#PraTodoMundoVer O quadro elenca as narrativas estudadas no artigo por título, subtítulo, autoras, ano de produção, entrevistadas e citadas diretamente nas análises e link para acessar o conteúdo na internet
No arremate, a partir dos principais achados, ensaio pistas para um jornalismo ecofeminista, como parte da perspectiva de gênero, tendo como horizonte o pensamento de Graciela Rodriguez (1992, p. 4) sobre “a necessidade de renovar as reflexões de modo a permitir a compreensão da essência de tais lutas das mulheres pela conservação ambiental”. Nesta perspectiva, Jorge Salhani, Heloisa dos Santos e Raquel Cabral (2020, p. 9) reconhecem a necessidade de essas mulheres - em consonância com a natureza, silenciadas pelo patriarcado e pelo sistema de capital - difundirem suas vozes, “já que a luta das mulheres também é a luta da natureza, dos excluídos e dos mais pobres”.
Todos os trabalhos jornalísticos aqui analisados foram produzidos exclusivamente por estudantes mulheres, no âmbito da disciplina de Projeto Experimental, lugar de desenvolvimento do trabalho de conclusão de curso, e orientados por mim, dentro de uma opção política de priorizar o acompanhamento de produtos e pesquisas de mulheres acadêmicas sobre, para e com mulheres de diferentes localidades sociais. Fazemos uso do escandaloso privilégio acadêmico para agir socialmente, alinhavando tantas histórias que o jornalismo convencional não dá conta, indo da artesania das palavras à visibilidade social. “Esse vaso comunicante não é um difusor que conforma o grande público, mas um artesão criativo do diálogo transformador da ciência e do saber cotidiano” (MEDINA, 2006, p. 15).
Assino este artigo como única autora porque realmente concebi sozinha esta organização de ideias. Ademais, as normativas da produção acadêmica impedem que graduandas já se insiram no sistema de publicações. Mas ele só foi possível pelo trabalho das mãos e mentes habilidosas das alunas da graduação, dos relatos de tantas mulheres entrevistadas e da atuação do Grupo de Pesquisa “Comunicação e Mobilização dos Movimentos Sociais em Rede” (CNPq/UFMS), que me ajudaram a pensar em diferentes planos e deslocar o processo de ensino-aprendizagem da professora para uma troca de experiências e conhecimentos. Portanto, para evidenciar esta construção coletiva, deixo aqui o pronome singular e assumo o nós. E os nós.
Notas sobre ecofeminismo, feminismo decolonial e as narrativas nessas bordas
Partimos do entendimento do feminismo e ambientalismo enquanto movimentos sociais reivindicatórios contemporâneos e campos teórico-conceituais com larga trajetória histórica que resultaram em transformações sociais, formulação de políticas públicas, para além de construção intelectual em torno das pautas da igualdade de gênero e da preservação ambiental. Para Mies e Shiva (2014), o ecofeminismo é um termo que designa saberes disputados a partir de diversos movimentos pacifistas, para além do ecologista e feminista, cunhado pela primeira vez em meados da década de 1970 por Françoise dÉaubonne. A primeira conferência, em meio aos desastres naturais e às contestações em torno da energia nuclear, “Mujeres y vida en la Tierra: conferência sobre el ecofeminismo en los ochenta”, populariza as ideias (MIES; SHIVA, 2014, p. 60). As autoras abordam o ecofeminismo em uma angulagem de subsistência, focada nas histórias subalternas de etnias não hegemônicas (SALHANI; SANTOS; CABRAL, 2020). São estas mulheres que precisam de holofotes porque sofrem mais diretamente com os impactos da destruição ambiental; ainda que todas as mulheres e homens tenham um corpo que é parte da devastação do meio ambiente.
O foco, pela dimensão do artigo, está em situar o ecofeminismo que nos interessa: uma corrente do feminismo que assume a problemática ambiental a partir da chave de gênero, conforme coloca Alicia Puleo (2015; 2019). Ela endossa um ecofeminismo crítico ou ilustrado, com base também construtivista,5 como um convite à consciência ambiental que parte da crítica ao sexismo e ao androcentrismo, arraigados em uma sociedade patriarcal.
Shiva e Mies são precursoras dessa junção entre ambientalismo e feminismo e a organizaram como conceito e prática, no livro Ecofeminismo: teoria, critica e perspectivas, datado de 1993, um ano depois da Eco-92,6 marco ambientalista internacional, quando também se criou o grupo Diverse Women for Diversity para enfrentar, principalmente, corporações e monoculturas (SHIVA, InMIES; SHIVA, 2014). “Éramos eruditas em ativismo”, afirma Mies (In MIES; SHIVA, 2014, p. 31) na reedição da obra, colocando a experiência como parte indissociável da conceituação teórica. Rodriguez (1992, p. 2) revisita as autoras e situa justamente que as conferências internacionais sobre meio ambiente iniciaram o debate público sobre o “papel das mulheres em relação ao cuidado com os recursos naturais e, com isso, a necessidade de aproximar a reflexão feminista do pensamento ecologista”. Mas não em bases essencialistas ou biologizantes, combatidas pelas autoras que pavimentam nossa ideia ecofeminista. O ecofeminismo de Puleo, por exemplo, reafirma liberdade, igualdade e sustentabilidade e é alheio a qualquer essencialismo bipolarizador dos sexos.
Forjar a relação natural-feminino-feminismo é uma tarefa espinhosa e que não tem lugar nos caminhos metodológicos e ativistas que assumimos, onde natureza e cultura não são entidades isoladas. Na visão de Shiva (2014), a cultura toma parte da luta pela subsistência e pela vida e o trabalho produtivo está em cooperação com a natureza. Rodriguez (1992, p. 8) reitera que a dicotomia natureza/cultura evidencia relações de opressão: “as mesmas que as mulheres sofrem em relação ao sistema patriarcal”. Desafiar a violência do patriarcado passa a ser, conforme a autora, um ato de lealdade para com as gerações futuras e com o próprio planeta.
O ecofeminismo, desde Shiva e Mies (2014), passando por Rodriguez (1992) e Puleo (2015), traça um paralelo da dominação masculina sobre a natureza com o próprio controle dos corpos femininos. Esta dinâmica de regulação e subserviência atravessa o pensamento patriarcal e revela a base das discriminações no sistema capitalista hierarquizado. “Justamente esse formato de dominação do homem sobre a Natureza tem muita semelhança com a subordinação que o patriarcado impôs às mulheres, ao naturalizar seu papel e confinar sua atuação ao âmbito doméstico” (RODRIGUEZ, 1992, p. 9). O reconhecimento de um sistema opressor permitiu a crítica e o rechaço ao destino dado às mulheres, por exemplo, ao mundo privado, à maternidade e ao casamento, e engatilhou a liberação feminina, em processo mais intenso nas últimas décadas, necessária até mesmo para as lutas socioambientais.
O fato é que as crises ambientais, a saturação de um modelo exploratório e patriarcal, em consonância à problematização da necessidade do cuidado, provocam, cada vez mais, a urgência de pensar o lugar das mulheres nesta práxis, sobretudo, a liderança feminina na preservação ambiental, uma realidade constatada nas narrativas aqui apresentadas. Uma delas, em específico, Figuras Femininas, traz justamente esta pauta no criativo formato das histórias em quadrinhos: mulheres que atuam na conservação e defesa do Pantanal e Cerrado sul-mato-grossense, a partir da organização política, econômica e social próprias. Para tanto, a então acadêmica Raquel Oliveira (2020) entrevistou três diferentes lideranças: a indígena Catarina Guató, que já presidiu a Associação das Mulheres Artesãs da Barra de São Lourenço (MS), a 1a presidenta da Associação de Mulheres Ribeirinhas do Porto Esperança (MS), Natalina Mendes, e Natália Ziolkowski, pesquisadora de uma Organização Não Governamental ambientalista e responsável pela Secretaria da Rede de Mulheres do Cerrado e Pantanal.
Outra história, Mulheres da Manga, busca compreender o cotidiano da comunidade ribeirinha em Porto da Manga (MS) a partir da visão de 13 mulheres. O que salta aos olhos é justamente a organização social a partir da Associação de Mulheres Extrativistas, que produz alimentos com derivados de frutos do Pantanal para serem comercializados como alternativa de renda. Já em Kaiowá: mulheres sem medo, quatro indígenas são perfiladas como arquétipos de liderança e resistência nas retomadas de terra em Mato Grosso do Sul: Damiana Cavanha, liderança de Apyka’í, que vive em assentamento indígena às margens da BR-463; Helena Gonçalves, também liderança, mas no tekoha7 Mbarakay, e Adelaide Sanabriá, liderança do território Tayassu-Ygua, localizado em Douradina (MS). O último capítulo traz Clara Barbosa na luta pela demarcação de Laranjeira Ñanderu. A narrativa tem início justamente com o relato das acadêmicas sobre a Kuñangue Aty Guasu - a Assembleia das Mulheres Guarani e Kaiowá, espaço de debates e propostas políticas. Por fim, o produto radiofônico E nós aqui embaixo? traz o chamado “desde abaixo” (MIES, In MIES; SHIVA, 2014) do subalterno, mas também do enraizado; o deslocamento para o sul em forma de questionamento. O podcast quer entender as alternativas de subsistência das comunidades pantaneiras, mas o protagonismo feminino vai se revelando ao longo do movimento de ouvir, ver e narrar. Em um certo momento, a narradora se coloca e reconhece: “Eu pude perceber que existe um forte protagonismo feminino nas comunidades que eu visitei. Elas são lideranças fundamentais para defesa do território e do meio ambiente. Além disso, assumem a busca por soluções mesmo diante de cenários difíceis” (ARISTIDES, 2021).
Puleo (2019) constata que o ativismo de base do movimento ambiental mundial é majoritariamente feminino. Existe uma forte organização das mulheres nas lutas locais e territoriais para preservação dos recursos, contra uso de agrotóxicos, em defesa da agroecologia e da agricultura familiar, buscando alternativas de resistência e sobrevivência: “são mostra de lutas novas, que o cuidado cotidiano da vida foi impondo às mulheres” (RODRIGUEZ, 1992, p. 4). Mas é preciso cuidado com este lugar. A visão feminizada e desvalorizada que impõe a tarefa do cuidado às mulheres exige políticas para subverter os papéis tradicionais e não invocar ainda mais responsabilidade às mulheres pela conservação. “Por eso me parece esencial que existan proyectos medioambientales que no pidan sacrificios a las mujeres, sino que, por el contrario, favorezcan su empoderamiento” (PULEO, 2019, p. 19). Neste sentido, o exercício, ao longo das nossas produções jornalísticas, foi justamente evitar vitimizar e supervalorizar os sofrimentos como caminhos de emancipação para estas mulheres. Neste caso, tensionamos a todo momento o próprio questionamento de Puleo (2019) se estas mulheres são vítimas ou protagonistas políticas.
No contexto das aspirantes a jornalistas, tomadas pela necessidade de enaltecer os esforços pela sobrevivência, foi difícil fugir totalmente dos qualificativos de “guerreiras”, “lutadoras”, “resistentes”, até porque as próprias entrevistadas se colocavam nesta posição, como na fala de Damiana à Nayla Brisoti e Mylena Rocha: “Para ficar mulher líder, tem que ter coragem. Tem que ter coragem e encarar mesmo qualquer coisa. Eu não tenho medo não. Líder mulher é pra perder a vida por causa da terra. Não tenho medo mesmo” (BRISOTI; ROCHA, 2017). Buscamos focar nos aprendizados das histórias compartilhadas e nas possibilidades de subversão, sempre assumindo a versão das personagens (ou fontes de informação).8 Tanto que Figuras Femininas trouxe a interpretação desse empoderamento - coletivo e ecossocial -, na voz das mulheres lideranças. Natalina diz à acadêmica Raquel:
É importante, eu quero ver todas elas trabalhando, todas elas ter o seu dinheirinho. E elas terem esse poderio de se igualar aos homens, de se empoderar e não achar que só os homens que fazem as coisas e elas servem só para ficar dentro de casa. Então é isso aí, meu intuito, eu não quero assumir uma associação para achar que eu sou dona do local, muito pelo contrário, quero ser conhecida como uma representante que quer ajudar a comunidade (OLIVEIRA, 2020).
O movimento de mulheres se confunde com o movimento ambiental em muitos desses espaços, e, como verificamos nas narrativas, a tarefa de evidenciar os impactos do modelo de desenvolvimento predador e buscar soluções cotidianas fica concentrada nelas, que se organizam em associações, atividades extrativistas de baixo impacto, no caso das ribeirinhas, e mobilizações para garantia de direitos territoriais como a demarcação das terras originárias.
Puleo (2019) sugere visibilizar as mulheres tanto em suas atuações ecológicas cotidianas e anônimas como nas científicas e humanistas. Tarefa que as nossas narrativas experimentais conseguem cumprir. Ainda que conhecidas em suas localidades pela liderança que assumem, as mulheres reportadas são anáforas e fazem o trabalho de base e as práticas de cuidado historicamente femininas que hoje se revelam indispensáveis para o equilíbrio ambiental, mas esta divisão de trabalho é reveladora das assimetrias de gênero também para o ecofeminismo. Em Mulheres da Manga, por exemplo, Iasmim Amiden relata as longas jornadas de trabalho das catadoras de iscas por mais de 10 horas diárias, além de serem produtoras na Associação e cuidadoras dos lares sob suas responsabilidades. Neste ponto, recorremos a Shiva (2014), que alerta para a desvalorização do trabalho doméstico e mercantilização da natureza e das próprias mulheres. “Cuando las economias se reducen al mercado, la autosuficiencia econômica se percebe como deficiência. La subvaloración del trabajo de las mujeres y del trabajo en las economias de subsistência del Sur, es la consecuencia natural de un límite de produccion creado por el patriarcado capitalista” (SHIVA, 2014, p. 20).
As ecofeministas compartilham das críticas contra o paradigma ocidental de desenvolvimento e rechaçam os processos de homogeneização gerados pela economia mundial e pela produção capitalista, sustentados também por uma ideia de ciência moderna que quer conhecer para controlar e dominar a natureza e suas instâncias. Na contramão desse ideal de hierarquização, a acadêmica Alíria Aristides (2021) reflete, ainda que de forma preliminar, a partir de suas percepções em uma comunidade tradicional em Área de Preservação Ambiental (APA): “nas conversas que tive na APA, eu percebi como é próxima a relação que as pessoas dali têm com o Pantanal. A natureza parece ser interpretada de forma diferente. Não como algo inferior, algo a ser explorado. A natureza é tida como algo do qual também fazemos parte” (ARISTIDES, 2021).
A crítica à ciência moderna é a pulsão do jornalismo com perspectiva de gênero e da epistemologia feminista que nos interessa, que traz a possibilidade de construção de saberes contemplando as correntes feministas e a pluralidade das experiências de gênero e suas afetações. Isso se reflete nas narrativas que valorizam os diferentes conhecimentos compartilhados, como temos em Mulheres da Manga, que aborda “os saberes tradicionais adquiridos sobre medicações, técnicas de trabalho, entre outros elementos, que têm sua correlação com a natureza” (AMIDEN, 2016). Além da proposta de entender os modos de vida e a conexão profunda com o bioma Pantanal em tempos de extremos climáticos, feita pelo podcast E nós aqui embaixo?.
Tanto o feminismo como o ambientalismo trazem uma visão menos hierarquizada e alienada na produtividade de corpos e na acumulação de bens de consumo; e mais voltada para um projeto crítico, reflexivo e coletivo que questiona as distinções dualistas arraigadas.
Se trata de preguntarnos si nuestra mirada sobre la Naturaleza tiene género ¿Existen conexiones entre la instrumentalización extrema de la Naturaleza y la bipolarización de las identidades de género-sexo? ¿En qué medida la construcción patriarcal de las subjetividades condiciona la capacidad de sentir empatía y respeto hacia el mundo natural? Para avanzar en la conciencia ética de la humanidad, debemos integrar críticamente la visión que ha sido feminizada y desvalorizada (PULEO, 2019, p. 18).
Para Mies e Shiva (2014), o ecofeminismo se coloca como um marco político que consegue relacionar capitalismo, militarismo, alienação dos trabalhadores, violência doméstica e sexual de diferentes ordens, extrativismo, agronegócio, engenharia genética, mudanças climáticas. Além disso, exige debater grandes temas, como a noção de progresso, a supremacia do humano, regulação dos corpos, sexualidades, direitos reprodutivos, e traz neste bojo a questão interseccional, ao reconhecer que a destruição ambiental pode afetar de forma universal, mas os danos dependem dos marcadores territoriais, de classe, gênero, idade, e outros que desembocam no racismo ambiental. Mies (InMIES; SHIVA, 2014, p. 103) pensa essas desigualdades como inerentes às estruturas mundiais que possibilitam o domínio do Norte sobre o Sul. “As mulheres, a natureza e os povos e países do sul são as ‘colônias do homem branco’”.
Neste trajeto ecofeminista, percebemos atravessamentos com os segmentos de noções da interseccionalidade e, sobretudo, da decolonialidade. A interseccionalidade, impressa por Kimberlé Crenshaw (2002), visualizamos como ferramenta analítica (Patricia H. COLLINS; Sirma BILGE, 2020) para expor injustiças “representacionais e discursivas” (Fernanda CARRERA, 2021, p. 10), que estimulam a reflexão sobre um sistema de opressão interligado e os diversos marcadores sociais, que espelham a colonização, inclusive. “Reconhecer diferenças é uma das etapas do processo analítico, mas esse reconhecimento se torna a base para o enfrentamento de injustiças e opressões estruturais” (CARRERA, 2021, p. 5).
Se a interseccionalidade nos interessa, haja vista a preocupação das teóricas supracitadas com o reconhecimento da diferença dentro das diferenças e a nossa com a diversidade de mulheres com quem dialogamos e que representamos, a visão exige assumir a própria corporificação do lócus da pesquisadora (ou das jornalistas, no nosso caso). Ainda que, como coloca Fernanda Carrera (2021), a mobilização desses conceitos não esteja restrita a perspectivas “identitárias”, existem os limites interpretativos decorrentes da própria experiência para resultados de pesquisa. Neste sentido, a observação, o diálogo e o acompanhamento nas comunidades contribuíram para a narração das distintas realidades reportadas. Com exceção de um trabalho, que se restringiu às entrevistas, pesquisas e apurações por meios tecnológicos - no caso, Figuras Femininas, realizado no epicentro da pandemia da Covid-19, em 2020, os outros três, ou seja, quatro graduandas, tiveram o contato e a vivência, ainda que limitados, com as sujeitas-personagens. Para além disso, vale ressaltar que não foi uma relação isolada, considerando que as estudantes estavam envolvidas com as lutas relacionadas; atuavam em ONGs de caráter socioambiental e alargaram a atuação jornalística no antes e depois do trabalho de conclusão de curso. O reconhecimento das diferenças foi alicerçado também pelas balizas de uma construção intelectual, empática e engajada.
Contudo, admitimos que superar o universalismo e se apropriar do comunitário é um desafio para acadêmicas prioritariamente brancas, urbanas e privilegiadas, para além da dificuldade em perceber os pontos de contato entre sua própria liberação e a da natureza. O patriarcado capitalista, já avisaram Mies e Shiva (2014), se baseia em uma cosmologia ou antropologia que dicotomiza estruturalmente a realidade e hierarquiza superior e subalterno. Neste sentido, o ecofeminismo radicaliza a ideia da cooperação, do cuidado mútuo e dos afetos para respeitar as diferentes formas de vida. Com isso, a atividade jornalística deve ser inundada pelas expressões metafóricas “retejer el mundo”, “sanar las heridas”, “reconectar e interconectar la red” (SHIVA; MIES, 2014).
Neste entendimento de como as práticas de domínio e controle da natureza e da mulher se assemelham, e abarcando o escopo da interseccionalidade, recorremos aos escritos de Lugones (2019; 2020) sobre um feminismo decolonial que evidencia a preocupação com a intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade, especialmente nos entendimentos das violências, firmando a (auto)denominação “mulheres de cor”, não como “equivalente aos termos raciais impostos pelo Estado racista, e sim proposta em grande tensão com eles” (LUGONES, 2020, p. 12). A proposta dos saberes locais e de sociabilidades alternativas e criativas, pautada também pela autora, combatendo a ideia unilateral das opressões, se aproxima do jornalismo que nos interessa. Buscamos enredar essas questões na versão das sujeitas e na aposta da pluralidade ecofeminista. Como neste trecho da reportagem Mulheres da Manga, em que Amiden relata suas impressões sobre a ribeirinha negra Maria do Carmo de Souza.
Cercada pela rotina das águas, e pela sobrevivência condicionada ao meio ambiente, não teve tempo, nem a oportunidade, de frequentar uma escola, mas aprendeu os verbos como um sabiá aprende a cantar. Hoje entende a língua mais difícil de todas, a da natureza. Lê o céu, os ventos, a água, e o gorjeio dos pássaros (...) inserida no ciclo da vida pantaneira muito jovem, é detentora de saberes tradicionais, que foram repassados para além de seus filhos e netos. A pescadora, benzedora e parteira, é o embrião da luta pela sobrevivência que está presente no cotidiano das mulheres ribeirinhas do Porto da Manga (AMIDEN, 2016).
É preciso entender que a colonialidade é mais que classificação racial, vista como um dos (ou principal) eixos do sistema de poder, que atravessa desde o controle ao sexo, ao trabalho, às relações intersubjetivas e à produção de conhecimento (LUGONES, 2020). Estar no Brasil, em Mato Grosso do Sul, no bioma Pantanal e dentro de comunidades e identidades geográficas naturalizadas nas desigualdades e opressões sistêmicas, exige identificar a colonialidade do poder; o sistema de gênero moderno/colonial, colocado pela autora, que suplanta a organização social, e que achamos por bem problematizar para complexificar as concepções ecofeministas, sem receio das contradições.
Isso porque a imposição colonial dos gêneros atravessa questões ecológicas, econômicas, governamentais, atravessa relações com o mundo dos espíritos, o conhecimento, bem como as práticas diárias que nos ensinam ou a cuidar do mundo ou a destruí-lo. Proponho esse quadro não como uma abstração da experiência vivida, mas como os óculos que nos permitem enxergar o que está escondido dos nossos entendimentos sobre raça e gênero e a relação de ambos com a heteronormatividade (LUGONES, 2019, p. 369).
Assim, conhecimentos, relações, valores, condutas ecológicas, econômicas e espirituais não hegemônicas são formados em uma constante tensão com a lógica dicotômica, hierárquica e categorizante que desumaniza o “colonizado”, avalia Lugones, que propõe entender resistências íntimas e diárias à diferença colonial. “Estou pensando no entrelaçado da vida social que acontece entre pessoas que não estão assumindo papéis representativos ou oficiais” (LUGONES, 2019, p. 371). Aqui visualizamos novamente o encaixe das nossas narrativas. Brisoti e Rocha, por exemplo, apresentam a reportagem sobre as mulheres Guarani Kaiowá na luta pelos territórios de origem por meio de afetos linguísticos que revelam a maneira infrapolítica com que atuam os grupos alheios ao poder institucionalizados, como coloca Lugones (2019).
Guarani Kaiowá, filhas órfãs da mãe terra. Motivadas pela esperança de voltarem às suas origens e de possuírem o que sempre lhes pertenceu, os caminhos de Adelaide, Clara, Damiana e Helena se cruzam nesta narrativa. Quatro mulheres, quatro histórias: resistência, reza, conhecimento e estratégia. Uma força (BRISOTI; ROCHA, 2017).
As lutas reivindicatórias se fazem, então, na vida cotidiana e nos esforços teóricos que reconheçam uma nova perspectiva epistemológica que abarque a intersecção das formas de ser e estar no mundo. A colonização também é epistêmica, inferimos de Lugones.
Gênero: jornalístico, feminista e ambientalista
Diante da filosofia e práxis feminista, se faz importante situar as experiências jornalísticas dentro desta ótica subversiva. Gustafson (2019), com apoio de Márcia Veiga da Silva (2014), problematiza que o jornalismo tem gênero, é masculino, é homem universal, é heteronormativo; fator deflagrado pelas normas e valores vigentes, nas abordagens das temáticas, nas relações entre as fontes e entre os próprios jornalistas, nas rotinas produtivas - ainda calcadas na ilusão da objetividade, imparcialidade e neutralidade, que também afetam a concepção da ciência moderna ocidental.
Entendemos o jornalismo, enquanto técnica, ética e estética, com diferentes papéis e instâncias de socialização; como narrativa, prática discursiva para produção de sentido e de conhecimento; como produto cultural que gera valores e compõe o imaginário social. Está em transformação, reivindicamos a vanguarda na universidade, mas reconhecemos que historicamente é exercido de maneira sexista, desvalorizando os temas das relações de poder, construindo identidades fragmentadas e estereotipadas a partir de modelos hegemônicos (CHAHER; SANTORO, 2007). Precisa assumir a reparação e incorporar a justiça de gênero no âmbito da comunicação também como um direito humano. Chaher e Santoro (2007) lembram que já em 1995 a Conferência Mundial de Mulheres em Beijing incluiu os meios de comunicação como área de interesse para alcançar o objetivo de igualdade, estimulando a capacitação em questões de gênero para as profissionais, a partir da difusão de conteúdos não discriminatórios e da investigação da temática.
O jornalismo com perspectiva de gênero se manifesta como um ofício e opção política a partir do esforço em reconhecer e pautar de forma transversal as desigualdades de poder vinculadas aos papéis de gênero prescritos. A proposta, na esteira do jornalismo feminista, gera angústias classificatórias: trata-se de uma forma de ativismo, um tipo de jornalismo segmentado, uma metodologia de trabalho ou até uma modificação de paradigmas profissionais e deontológicos? (SALHANI; SANTOS; CABRAL, 2020). As mesmas autoras (2020, p. 5) reivindicam uma ética feminista “que normalize a inclusão da perspectiva de gênero em práticas jornalísticas, podendo ser adotada como metodologia para o jornalismo”. Unimo-nos às tentativas conceituais e entendemos como um jornalismo que entrega possibilidades ao buscar soluções e transformações que objetivam a igualdade de gênero no cotidiano, enfatizando e reivindicando outros pontos de vista e identidades, deslocando perspectivas hegemônicas para outras maneiras de entender e explicar as localidades sociais. Neste sentido, não pode estar alheio à perspectiva decolonial que envolve a questão interseccional.
A proposta da transversalidade é central, neste sentido, para evitar compartimentação e dar uma visão mais plural, levando em conta, por exemplo, a questão racial, territorial, as diferentes afetações e condições, ademais da diversidade das versões e fontes. Aqui nos atentamos às críticas de Rita Segato (2012), em outras esferas, sobre a transversalização forjar a universalização, que inferioriza as mulheres fora da organização ocidental, e relativiza a crítica à colonização. Queremos ir além. Gustafson (2019, p. 243), nesta linha, defende uma objetividade feminista que tenha como proposta “a visibilidade das relações de poder em que gênero, raça e classe e sexualidade estão imbricadas e que são reafirmadas cotidianamente pelas instituições e suas normativas”. A missão de combater a objetividade em seu lato sensu, que só interessa aos dominantes, indica ir além da cobertura focada no movimento feminista, e insistir em temas invisibilizados ou negligenciados.
Nas mídias convencionais as temáticas sociais são tratadas a partir de um prisma masculinista, mantendo os homens no estatuto do sujeito universal. A perspectiva de gênero, então, pode ser contemplada em qualquer notícia no intuito de superar essa tendência (GUSTAFSON, 2019, p. 174).
A fragilidade do ideal da perspectiva de gênero está em se concentrar exclusivamente em temas que envolvem mulheres, ainda que pautas prioritárias do movimento feminista, e recortes estereotipados do feminino relacionado ao âmbito privado e assuntos de saúde, beleza e comportamento, por exemplo. Ou então, considerar exclusivamente que mulheres sejam as fontes de informação prioritárias, sem estabelecer as relações entre os gêneros e sexos, inclusive. Não se trata somente de dar visibilidade às mulheres e seus interesses, muitas vezes concebidos dentro de uma ótica binarista e heteronormativa, mas produzir uma agenda que revolucione a estrutura patriarcal e as opressões decorrentes do sistema (CHAHER, 2007; GUSTAFSON, 2019). As autoras reconhecem que a estratégia da visibilização, em especial o espaço de fala e opinião concedido às mulheres, não deve ser abandonada porque, historicamente, de forma quanti e qualitativa, as mulheres ocuparam poucos espaços e de maneira equivocada. Ou seja, a perspectiva de gênero é uma filosofia e envolve “asumir un compromiso político con la visibilidad y reconocimiento de las mujeres, que han estado históricamente ocultadas o sub-representadas por los medios de comunicación” (Omar RÍNCON, 2009, p. 8). Neste caso, vale retomar também Vandana Shiva (1995), que fala do silenciamento dos vencidos em uma pretensa história oficial em que mulher e natureza são consideradas objetos, portanto, emudecidas pelo patriarcado (SALHANI; SANTOS; CABRAL, 2020).
Para a produção das quatro narrativas que problematizamos aqui, foram entrevistadas, observadas e acompanhadas mais de 30 fontes de informação, sobretudo fontes pessoais, que denominamos como personagens das suas histórias. Apenas um homem foi ouvido e consta no podcast E nós aqui Embaixo?, justamente a produção que não tinha a perspectiva prévia de gênero, mas o trabalho de campo revelou o protagonismo das mulheres. As fontes especialistas, ouvidas na fase da pesquisa, também foram predominantemente femininas, ainda que não tenham sido explicitadas na redação pela opção narrativa de entender os legítimos anseios comunitários, se libertando da ideia da tutela e do discurso oficial competente.
A prioridade de ouvir pessoas comuns, em detrimento de representantes oficiais, pode esbarrar no preceito jornalístico do amplo contraditório, ou seja, o ouvir o “outro lado” ou os vários lados de um tema, muitas vezes “para atender o que se convencionou como um dever do jornalismo” (GUSTAFSON, 2019, p. 195). Mas assumimos a própria narrativa como o contraditório e o posicionamento em primeiro plano, no entendimento das diferentes realidades não presentes na mídia convencional.
A autora incentiva, também, na linha do que exercitamos e do que prega o ecofeminismo, a valorização das vozes das mulheres anônimas na cobertura com perspectiva de gênero para interpretar e ressignificar as situações que as afetam e são ocultadas em outras esferas.
Grande parte das mulheres contatadas, inclusive, não dialogava diretamente com os ideais feministas, mas seus posicionamentos e intenções foram indicando certa proximidade. Neste mesmo sentido, Maria das Graças Costa (2020) lembrou que, nas entrevistas que fez com mulheres camponesas durante a Marcha das Margaridas, em 2015, elas tampouco se consideravam feministas. “Muitas mulheres ainda não se reconhecem naquilo que elas entendem como movimento feminista, lido como uma luta historicamente associada à classe média branca, urbana e acadêmica” (COSTA, 2020, p. 336).
Identificamos, a partir dos diálogos, pontos de vista não moldados dentro de uma concepção acadêmica e intencional, que revelam manifestações interessantes, como neste trecho de Natalina, em Figuras Femininas.
Para quebrar um pouco desse machismo dentro da nossa comunidade, sabe? Os homens aqui ainda têm na cabeça que só o homem pode mandar. A gente sofre muito com isso aqui, ainda existe esse preconceito de que mulher é para estar no tanque de roupa, no fogão (OLIVEIRA, 2020).
Os temas abordados são complexos e não condescendentes com as pautas hegemônicas; trazem a atuação das mulheres indígenas na recuperação dos territórios originários, o papel político e social das mulheres na organização comunitária, revelam os cotidianos das ribeirinhas, o impacto das mudanças climáticas e os conflitos ambientais em terras disputadas. A profundidade em uma das temáticas se dá em ares de denúncia, feita por Aristides (2021):
A situação de Porto Esperança está documentada no mapa de conflitos ambientais feito pela Fiocruz. De acordo com relatos de moradores com quem conversei, eram ofertadas quantias de dez, vinte mil reais para que os ribeirinhos saíssem dali. Depois, as ofertas viraram ameaças e violências diretas. Homens armados passaram a circular pela região. Ainda em 2013, em momentos mais tensos do conflito, casas foram queimadas, plantações derrubadas e cercas foram colocadas ao redor da comunidade, o que impedia a passagem. Na época, moradores registraram diversas queixas na polícia civil.
As técnicas jornalísticas que supostamente garantem objetividade da informação: pauta formatada, perguntas previamente estabelecidas, levantamento de dados, números, versões oficiais, remetem a um ideal positivista que não necessariamente reflete os dramas humanos, mas espelha a racionalidade e os efeitos de verdade (GUSTAFSON, 2019). Para as acadêmicas em processo de formação, este investimento técnico foi necessário, e elas, em certa medida, apoiaram-se em entrevistas com especialistas, fontes documentais oficiais, dados e números que forjam a ideia do bom jornalismo. Não dispensamos, mas problematizamos. Em Figuras Femininas, um infográfico indica a porcentagem de mulheres em cargos de representação política, por exemplo. Em Kaiowá: mulheres sem medo, estão colocados recursos como mapas para localização das áreas em litígio, quadro sobre as etapas legais para demarcação das terras indígenas e informações oficiais sobre o contexto, a exemplo:
Existem mais de 70 mil indígenas no estado de Mato Grosso do Sul de acordo com censo de 2010 do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar da população expressiva, eles muitas vezes não têm seus direitos reconhecidos. Segundo relatório de 2016, divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no Brasil 40% das terras indígenas reivindicadas permanecem sem providências. Dos 1.296 territórios, apenas 21 são de propriedade das comunidades (BRISOTI; ROCHA, 2017).
Os mesmos recursos que transferem veracidade à narrativa podem ser usados de forma complementar e com oportunidade de imersão, sobretudo, nas duas reportagens multimídias -
Mulheres da Manga e Kaiowá: mulheres sem medo, que complexificam as histórias com áudios (das vozes e dos ambientes visitados), vídeos, hiperlinks, referências de localização, caixas explicativas, além de investimentos fotográficos bastante detalhados que demarcamos aqui como apostas significativas para compor as tantas visualidades das mulheres e cenários.
Neste horizonte de tensionar a técnica na forma e no conteúdo, retomamos Medina e os eixos da razão complexa, sensibilidade afetuosa e ação transformadora nas experiências jornalísticas ecofeministas, multimídias, sonorizadas e desenhadas. Sobretudo, pontuamos o desafio da produção de Figuras Femininas, que teve que driblar o distanciamento social imposto pela pandemia e usar as chamadas de vídeos, mensagens instantâneas, imagens e vídeos de arquivos pessoais para possibilitar a feitura dos desenhos, realizados à mão pela própria aluna, no esforço de contar a trajetória de liderança das mulheres na conservação ambiental do Cerrado e Pantanal.
Essa intuição criativa, também colocada por Medina, que une a experimentação, o diálogo dos afetos, à necessidade de propor novas narrativas vem novamente ao encontro do ecofeminismo e do jornalismo com perspectiva de gênero. Em Mulheres da Manga, os capítulos são nomeados com trechos das obras de Manoel de Barros (2010), poeta que viveu o Pantanal, e reflete as problemáticas: “Água que corre entre pedras”, “Independência tem algemas” “O mundo meu é pequeno” e “Ontem choveu no futuro”. Já em Kaiowá: mulheres sem medo, a proposta foi representar, ainda que de forma tímida, uma outra cosmologia, com uma estrutura narrativa, contada por meio do relato das mulheres, de forma não hierarquizada e independentes. O menu da tela principal, por exemplo, é apresentado de forma circular, no sentido da rotatividade, e fica desordenado para sinalizar outra temporalidade.
A questão da linguagem, entendendo que ela reflete as relações de gênero e a posição da mulher, também foi pensada para além das flexões de masculino e feminino, numa ideia da autenticidade e interseccionalidade, evidenciando o idioma nativo, ao titular os capítulos em Guarani, no caso da narrativa sobre as mulheres indígenas, e reproduzindo as particularidades das falas, como neste depoimento de Clara:
Por mais que nós não temos mais árvores, não temos nada nada na terra, é onde a gente fomos um dia feliz, que pertenceu nossos ancestrais, a nossa história está lá enterrada, não importa se é apenas campo, apenas braquiária, tem coisas que não são nossas. Tudo o que a gente reivindica hoje é a demarcação, ou diria também, não é a demarcação, é devolver as nossas terras que um dia foi tirado de nós (BRISOTI; ROCHA, 2017).
A observação e a escuta ativa, a percepção sensorial, mais atenta aos lugares, objetos e pessoas foram mais produtivas do que os roteiros preestabelecidos, ainda que existisse certa insegurança pelo ineditismo do trabalho e falta de experiência profissional que exigiram um método. Mas foi o corpo, as emoções, as impressões das acadêmicas que atuaram como potência narrativa e formas de entender os acontecimentos, a partir de seus lugares e conhecimentos, em uma objetividade feminista ou corporificada (Donna HARAWAY, 1995; GUSTAFSON, 2019) que gerou descrições como as feitas por Amiden, no “Diário da Repórter”, e por Aristides, em um trecho do seu áudio.
Assim que chegamos à região ribeirinha, tive meus primeiros impactos e percepções: homens no bar, bebendo com turistas e, enquanto isso, mulheres coletando iscas, pescando, e crianças saindo de uma pousada, provavelmente da aula, em direção a um campo de areia, improvisado, para jogar futebol (AMIDEN, 2016).
Algo que me chamou muita atenção nela foram os olhos, que parecem já ter visto muita coisa. Julinha é daquelas que quando você fala, ela presta atenção absoluta e parece te ler por inteiro. Dona Júlia mora na APA há mais de 20 anos e é uma das lideranças na comunidade ribeirinha. Assim como seus vizinhos, ela retira seu sustento da natureza ao redor: é pescadora, artesã e extrativista. No tempo livre, também é quase uma atleta: antes da seca, dona Júlia me contou que gostava de sair cedo para remar. Onde ela ia de barco, hoje dá para atravessar a pé (ARISTIDES, 2021).
Para organizar o entendimento do jornalismo com perspectiva de gênero, Ríncon (2009) propõe um decálogo, que entendemos no plano das possibilidades e como exercício reflexivo, jamais como prescrição. Assim, ele coloca a necessidade de uma outra agenda, outra esfera pública - concentrada em entender os impactos específicos e diferenciais dos problemas na vida das mulheres. Além disso, este tipo de jornalismo deve atuar como um radar para descobrir modos instalados de discriminação; trazer consigo uma estética vivencial e uma narrativa testemunhal, com linguagem cuidadosa e expressiva, privilegiando fontes que compreendam mais do que opinem; o deixar narrar também é importante nesta concepção da perspectiva de gênero e foi a tônica das produções aqui apresentadas, sintetizada neste trecho singelo em que Maria do Carmo relata o ofício à Iasmim:
Prá pegar tuvira, a gente sai à noite e fica no escurão, com luz apagada. Daí joga o cupim dentro d’agua e tampa com lona preta. Quando elas tão comendo ali dentro, faz um barulhinho como “tchic, tchic, tchic”. Quando faz bastante, você sabe que é hora de puxar a corda da tela. Chega a sair de umas oitenta, por aí (AMIDEN, 2016).
Com isso, indicamos as conexões do jornalismo com a perspectiva de gênero, o ecofeminismo e o pensamento decolonial, nesta esteira da resistência e das potências, demarcada por Lugones (2019, p. 375): “Estou interessada no movimento de libertação subjetivo/intersubjetivo, que é adaptativo e criativamente opositivo”. Estamos.
Arremate: no horizonte do jornalismo ecofeminista
Obviamente que a experiência desta escrita não tem a intenção de colocar as narrativas apresentadas aqui, em um determinado tempo e espaço, como grandes ou únicos exemplos de jornalismo ecofeminista, mas debater possibilidades; engendrar o espaço da graduação à pesquisa como laboratórios criativos e engajados para indicar resistências e alternativas na universidade, além de tensionar os padrões hegemônicos de um jornalismo masculinista, patriarcal e desigual. Para tanto, aproximamos o ecofeminismo da decolonialidade, em especial, no combate à cisão binária e hierárquica entre natureza e cultura, que reflete em outras opressões e é decorrência das reminiscências da colonialidade, como coloca Lugones. A crítica à colonialidade, sustentada pela exploração da natureza, e a necessidade de descolonizar o jornalismo, também estão em consonância com os pressupostos do Jornalismo Ambiental, como já evidenciamos em entrevista que fizemos com Eloisa Loose e Ilza Girardi (2022). As autoras apontam a subjugação do meio ambiente e a necessidade de assumir visão complexa e sistêmica dos fatos, diversidade e pluralismo de vozes, assimilação do saber ambiental, responsabilidade com a mudança de pensamento e com a justiça ambiental (LOOSE; GIRARDI, 2022); fatores que, inevitavelmente, levam ao dilema jornalista-ativista.
Entendemos, como Puleo (2019), que o ecofeminismo, como um projeto ético e político, pode ajudar a construir novas narrativas e, estas, por sua vez, orientam novas epistemologias para recompor o mundo (COSTA, 2020).
Reconhecemos o ecofeminismo em marcha, no esforço da defesa dos bens comuns, das diferentes práticas sociais, dos saberes tradicionais e no horizonte de uma cultura ecológica e feminista que as mulheres - das narradoras, contadoras, às participantes, protagonistas e coadjuvantes - nos ajudam a enxergar. Retomamos Mies (InMIES; SHIVA, 2014) quando propõe acompanhamento dos movimentos e diálogo com as diferentes mulheres para não tratar os resultados de pesquisa como isolados ou privados, mas como informações a compartilhar.
Ainda que a posteriori, as narrativas exemplificadas, articuladas aos conceitos teóricos, provocaram a identificação de certos indícios deste jornalismo ecofeminista, que sintetizamos em cinco pontos que podem e devem ser repensados, no exercício da constante reflexão que é conduta da perspectiva de gênero que buscamos. 1) Priorização de relatos e vivências de mulheres da terra, anônimas, plurais, dos diferentes marcadores sociais, nem vítimas e nem protagonistas, como bem espelhou a reportagem multimídia Mulheres da Manga. 2) Movimento do deixar narrar, sobretudo as mulheres, reproduzindo suas experiências, alternativas e resistências aos paradigmas ocidentais que enxergam natureza e cultura de forma isolada; como foi manifestado no podcast E nós aqui embaixo?. 3) Deslocamento de lugares geográficos e sociais hegemônicos, entendendo a centralidade do território; nas nossas reportagens, é muito forte o vínculo com as terras originárias, no caso o tekoha, além do bioma Pantanal e das comunidades ribeirinhas; fator muito revelado na narrativa multimídia Kaiowá: mulheres sem medo. 4) Construção de narrativas complexas, que reconheçam as opressões de gênero e a problemática das questões ambientais, pautem a defesa dos bens comuns, tensionando as abordagens saturadas da mídia convencional, como intentou a JHQ Figuras Femininas. 5) Produção criativa, empática, coletiva que parta dos saberes localizados para evidenciar as problemáticas, no preceito da objetividade feminista.
Trata-se, portanto, de uma transformação cultural que deve ser assumida coletivamente, como colocam as autoras. “Los medios pueden producir, con su poder, una subversión semiótica y transformarse en herramientas de emancipación. Las aliento a hacerlo” (CHAHER; SANTORO, 2007, p. 33). Nós também.