Introdução
Um dos principais predicados dos estudos históricos de gênero é que eles permitem chamar a atenção para a maneira como dado fenômeno social foi, concretamente, vivenciado pelas mulheres em seu cotidiano. Trata-se de um enfoque que busca propor um recorte específico, ou melhor, transversal, e que, por consequência, ajuda a gerar novas perspectivas historiográficas (Joana PEDRO, 2011).
Inspirado nessa possibilidade analítica, este trabalho busca compreender o que representou para a mulher carioca a transformação, entre os anos 1920 e 1940, da praia em um espaço-tempo de consumo. E isso porque, no bojo dessa mudança, julgou-se que a mulher do Rio de Janeiro desfrutaria de uma nova vida ao ar livre, emancipada, por exemplo, dos imperativos patriarcais do lar doméstico.
De imediato, ressalva-se que a carioca de que trata a investigação é a mulher de classe média e alta, e não as que pertencem aos segmentos populares da cidade. Afinal, ao contrário destas, eram aquelas que, de fato, consumiam os discursos, as ideias e as tendências associadas ao ‘praiar’, que tanto eram divulgadas nas revistas ilustradas do período.
Ademais, o quadro de referência da pesquisa não é a cidade do Rio de Janeiro como um todo, e sim sua zona sul, ainda que, eventualmente, ocorram citações a outras praias e regiões da cidade. A razão é que foram nas praias de Copacabana e Ipanema que se depreendeu de forma mais explícita e central a nova condição social da praia. E, consequentemente, a própria ideia de que ali é que estaria sendo forjado um novo ethos, liberal, democrático, moderno, em contraposição ao centro urbano histórico, patriarcal e conservador.
Contudo, longe de se limitar a uma localização física e geográfica, essa porção territorial deve ser vista em seu sentido histórico e sociológico, posto que, em âmbito local, a zona sul nada mais do que expressava mudanças mais gerais pelas quais a sociedade brasileira passava. Essa é a razão por que, embora se tome como objeto específico de análise a sumarização dos trajes de banhos utilizados na praia, a investigação não perde de vista que isso fazia parte de um processo mais amplo do desenvolvimento do capitalismo nacional para estágios mais avançados.
Além disso, conforme se busca demonstrar, a propagandeada modernidade feminina à beira-mar é reveladora da própria noção de modernidade que estimulou este trabalho, qual seja: um processo contraditório, não-homogêneo, que comporta temporalidades distintas, nem sempre contemporâneas. Nessa acepção, a modernidade não se limita ao moderno, haja vista que compreende o tradicional, o arcaico, o patriarcal. E mais ainda: a modernidade não apenas conserva o patriarcal como o recria sob novas formas (José de Souza MARTINS, 2008; Henri LEFEBVRE, 1969).
A técnica de pesquisa adotada baseou-se no escrutínio de reportagens, artigos de opinião, notas e anúncios publicados nos seguintes meios de comunicação: o Correio da Manhã, que, na época, era um dos principais jornais do país; o Beira-Mar, jornal voltado para a vida social e política das praias de Copacabana, Ipanema e Leblon; e as revistas ilustradas O Cruzeiro, Fon-Fon! e Para Todos, notabilizadas pelo público leitor feminino. O acesso a essas fontes históricas ocorreu por meio de buscas na hemeroteca digital da Fundação Biblioteca Nacional, disponível em https://bndigital.bn.gov.br/.
Em rigor, a análise das fontes acabou abrangendo materiais de janeiro de 1919 a maio de 1943. O recorte temporal adotado se justifica porque é nesse período que o tecido urbano-industrial alcança, de fato, o território ainda ruralizado da zona sul da cidade do Rio de Janeiro, e, sobretudo, porque é quando se começou a ir à praia não apenas para fins recreativos e terapêuticos, mas, sublinhe-se, para que citadinos e turistas se banhassem sob o sol (Bert BARICKMAN, 2016). E, em razão desses processos, por vezes infensos a uma datação histórica mais sequencial, é que se optou por não estruturar o texto em uma ordem necessariamente cronológica.
Visando assegurar a originalidade das fontes, optou-se por manter a grafia utilizada na época nas citações diretas. A coleta dos dados não foi feita de forma sistematizada, isto é, tomando como referência o total de ocorrências de dada palavra-chave em cada jornal ou revista pesquisados. Em vez disso, a opção foi explorá-los aleatoriamente utilizando palavras-chave comuns ao tema, como praia, banhos de sol, trajes de banho, maillot etc.
Os dados primários obtidos pela pesquisa documental foram analisados qualitativa e descritivamente, e complementados com informações obtidas por meio de levantamento bibliográfico em acervo pessoal e em repositórios digitais de livros, periódicos científicos e trabalhos acadêmicos.
Por fim, as figuras do artigo possuem a finalidade de apenas reforçar o que está sendo discutido, de modo que elas não estão sujeitas a uma análise pormenorizada. Essas figuras ilustrativas foram obtidas mediante buscas no periódico Beira-Mar (também disponível na supracitada hemeroteca digital) e nas revistas ilustradas O Cruzeiro e Fon-Fon!. Por se tratar de material escaneado de jornais e revistas antigos, as figuras passaram por edição utilizando o software Adobe Photoshop. No caso de O Cruzeiro, cujo acervo é protegido por direitos autorais, o uso de imagem foi obtido por meio de contato com a D. A Press.
Uma ousadia controlada: as banhistas da zona sul carioca
Difícil crer que um dia o habitante da cidade do Rio de Janeiro já fora considerado um sujeito pálido e franzino. Em A Menina sem Estrela, Nelson Rodrigues rememorou esses dias, quando, ainda uma criança de oito anos, deslumbrara-se ao ver, pela primeira vez na vida, o umbigo de uma mulher nas festas carnavalescas de 1918 (Nelson RODRIGUES, 1993). Também, estão distantes os dias em que os cariocas, aos olhos alheios, chegaram a ser vistos como tristes e melancólicos. E, de fato, em 1928, a Sociedade Anônima de Viagens Internacionais, uma das primeiras do gênero a atuar na cidade, não tinha dúvidas de que, malgrado as belezas cênicas que o cercavam, o carioca era alguém propenso a se desfazer em melancolia (Bianca FREIRE-MEDEIROS; Celso CASTRO, 2013).
É legítimo supor que esses episódios tinham a ver com os usos até então vigentes da praia. Os seus frequentadores se banhavam quase que completamente vestidos. No caso das mulheres, elas iam à praia vestidas dos pés à cabeça. E, para isso, usavam-se meias, toucas, sapatilhas e um roupão de lã (Joana SCHOSSLER, 2019). Até mesmo naqueles momentos que invertiam a ordem cotidiana das coisas, não se viam muito as formas femininas, caso dos tradicionais banhos de mar dos blocos de carnaval da época, nos quais os trajes mais emulavam do que substituíam as fantasias típicas.
Para ser mais preciso, somente pela via dos artifícios e das estratégias que se lograva ver algo a mais do corpo de moças e senhoras. A exemplo dos rapazes que se reuniam, à tarde, na hora do banho, na praia do Flamengo, para ficarem espiando as pernas das “madames” que iam observar, inclinando-se na amurada do cais, os exercícios de natação, conforme nota cômica publicada na seção Trepações da edição de 21 de janeiro de 1922 da revista Fon-Fon! (FON-FON!, 21/01/1922, n.p.).
O fato de as mulheres irem todas trajadas aos banhos de mar não deve ser confundido com uma simples moda do período. Ainda que já se fizessem propagandas comerciais acerca disso, os trajes e acessórios de banho reverberavam comportamentos morais patriarcais e conservadores, ditados, por exemplo, pela Igreja cristã, católica ou não, e pelo discurso médico do período - e isso não pelo lado das qualidades terapêuticas do banho do mar, também advogadas pela classe, contra distúrbios tidos como femininos, como a histeria (Helena MACHADO, 2000).
A esse propósito, digno de nota é a afinidade entre ciência e religião. Em sintonia com as concepções do higienismo, a modernidade prolongava, à sua maneira, as velhas críticas religiosas das impurezas de um corpo não-natural. Ato contínuo, uma cútis bela e sadia deveria ser livre de quaisquer artificialismos, caso de maquiagens e cremes para pele, que, quando usados, isso era feito às escondidas - algo que persiste no comportamento das mulheres, haja vista que o embelezamento feminino continua sendo um mundo de confidências (Denise SANT’ANNA, 2014). Portanto, o que se prescrevia era, antes, um modo de vida, e não uma receita para uma condição física (André DALBEN; Carmen Lúcia SOARES, 2008).
Não se deve estranhar, assim, que uma mulher em trajes sumários na praia pudesse indignar mais do que o jogo, considerado então o vício dos vícios. É o que se infere do artigo de opinião A Vergonha do Casino de Copacabana, publicado no Correio da Manhã, em 17 de janeiro de 1928. No texto, após levantar suspeitas de que a família Guinle, proprietária do hotel Copacabana Palace, estava sendo beneficiada por uma decisão judicial local, e sob a conivência do governo Washington Luiz, que manteve o cassino do hotel em funcionamento, em um momento em que o jogo, mais uma vez, voltara a ser proibido, o articulista se permite, assim, àquele tipo de hipótese que, no fundo, todos sabem que é uma pergunta retórica, indagando se a reação do presidente do país teria sido a mesma caso, em vez do jogo, fosse a nudez na praia que tivesse sido permitida. Ao que respondeu de pronto: “Certamente que não”. (CORREIO DA MANHÃ, 17/01/1928, p. 04).
Fonte: FON-FON! (18/02/1922)
#PraTodoMundoVer A imagem representa mulheres e homens para o tradicional banho de mar dos blocos de carnaval. O cenário é a praia do Flamengo, durante o carnaval de 1922, com o passeio e a estreita faixa de areia repletos de foliões
De qualquer maneira, o fato é que tanto a tavolagem quanto o nudismo (que, nesses textos, parece não se limitar à prática cultural secularmente cultivada na Alemanha, mas a qualquer tipo de atrevimento em matéria de vestimenta), pelas próximas duas décadas, seriam alvo, a um só tempo, de concessões e repressões. E isso terá um lugar privilegiado para acontecer, a saber: as praias e os bairros atlânticos do Rio de Janeiro.
Em primeiro lugar, pelo interesse de quem que ali começou a investir (e também a residir), notadamente a partir do momento em que aquela porção mais ao sul da cidade, rural e de paisagem pesqueira tradicional, teve seu acesso mais bem garantido pelo desenvolvimento do tecido urbano-industrial, vide a construção do túnel da Real Grandeza ligando o bairro de Botafogo à zona sul da cidade, em 1892.
No caso, a chamada elite cilense, cuja sigla CIL é uma referência aos bairros de Copacabana, Ipanema e Leme, desejava fazer da zona sul a expressão de uma identidade sui generis, que os diferenciasse dos outros cariocas. Mais precisamente, queriam se apresentar [inclusive ao mundo] como representantes de uma aristocracia moderna (Júlia O’DONNELL, 2014). O lado aristocrático almejado consistia no bom viver de uma sociabilidade praieira - objetivo esse que, aliás, se mostrou resiliente. Afinal, o eu lírico bossanovista vai recuperar algo semelhante, ao insistir na intimidade e nos sentidos, em meio ao intenso crescimento imobiliário da Copacabana dos anos 1950 (André HAUDENSCHILD, 2018). Já o lado hodierno é o que procurava se distinguir da elite local concorrente, os moradores das praias do Flamengo e do Botafogo, ainda muito ancorados no regime monárquico, e isso pelo gosto dos esportes e da boa alimentação, pela vida cosmopolita e, claro, pelos lugares-comuns do ethos moderno, a saber: a mais profunda ojeriza a qualquer signo do “arcaico” no urbano, aí incluídos as feiras livres, os vendedores ambulantes e as primeiras favelas da cidade do Rio de Janeiro.
Um segundo aspecto que tornava as praias atlânticas, especiais para o novo, a exemplo de Copacabana, pode parecer, à primeira vista, um motivo lateral: a largura da faixa de areia. Talvez o fosse quando o banho de mar era o hábito prevalente entre os frequentadores da praia. Mas já não o era mais a partir do momento em que os banhistas começaram a querer ‘praiar’, isto é, passar mais tempo se divertindo na areia do que propriamente na água. Decerto, se esse era agora o principal atrativo, tanto as até então badaladas praias do Flamengo e do Botafogo quanto as de menor prestígio social, localizadas no centro da cidade, como a das Virtudes, que não passava de um amontoado de pedras, não se prestavam muito bem para essa função, justamente pela estreiteza do areal (BARICKMAN, 2009).
É por esse motivo que um informativo sobre uma novidade trazida pela casa comercial Casa Colombo deve ser lido nos seus detalhes, sob pena de, pela aparente banalidade, perderem-se informações preciosas. O informe, feito no Correio da Manhã, em 22 de outubro de 1927, anunciava uma ideia útil e original: a instalação de abrigos para banhistas em alguns postos da praia de Copacabana. Ainda que o objetivo declarado fosse a proteção dos banhistas contra os “causticantes raios solares”, não se pode deixar passar despercebido o horário em que a instalação permaneceria montada: das primeiras horas de cada domingo até à tarde (CORREIO DA MANHÃ, 22/10/1927, p. 05). E isso porque um dos primeiros indicativos da conversão da praia em um atrativo de lazer e de consumo é justamente o horário para visitá-la. No paradigma anterior, a praia era frequentada, sobretudo, nas primeiras horas do dia ou à “tardezinha”, e quase nunca nos horários mais quentes (MACHADO, 2000).
Um personagem símbolo dos novos usos da praia será a mulher moderna, desinibida e esportiva, cada vez mais presente no imaginário social do período, seja em jornais e revistas ilustradas, na publicidade ou nas produções de Hollywood. Só que, antes de ser mera representação, essa mulher terá uma existência real, concreta, no dia a dia local. Em grande parte, resultado das campanhas feministas e dos espólios da primeira grande guerra, que exigiram delas a assunção de novos papéis, de secretárias à motoristas de ambulância, essa mulher conviverá com a carioca, despertará a sua atenção, quando não a inveja, e exercerá influência sobre ela. Essa mulher podia ser uma atriz, uma miss, uma touriste - ou mesmo a filha de um dos diplomatas das 32 embaixadas e 41 consulados que a cidade do Rio de Janeiro sediava (Ruy CASTRO, 2019).
Fonte: Beira-Mar (14/12/1930, p. 01).
#PraTodoMundoVer A imagem representa 12 mulheres perfiladas para uma fotografia, sem paisagem ao fundo, em uma exibição de novos modelos de maiô para a estação balneária
Não obstante, convém não achar que esses setores da “indústria cultural” tivessem libertado a mulher da censura patriarcal. E isso era válido tanto para o cinema quanto para a publicidade, e, ainda mais, para as revistas ilustradas. Havia um paradoxo entre a imagem projetada pela propaganda e a linguagem publicitária. Frequentemente, o texto enfatizava [ou defendia] o papel da mulher como mãe, esposa católica e nacionalista, ao passo que, na imagem, figuravam as melindrosas, as flappers. Dito de outro modo, é como se o texto representasse o espaço privado, doméstico, e a imagem, a nova vida ao ar livre - leia-se, as lojas de departamentos, os calçadões, a praia (Cristina AZAMBUJA, 2006).
O importante a destacar é que, se, por um lado, as revistas ilustradas eram uma das grandes responsáveis por propagandear as mulheres modernas e, especificamente no que aqui se interessa, transmitir entre o público feminino as últimas tendências da moda praia; em compensação, em suas páginas, não raro se acham recriminações, mais em umas do que em outras, explícitas ou veladas, contra a sumarização dos trajes de banhos.
Com efeito, na coluna Trepações da revista Fon-Fon!, de 19 de outubro de 1935, o autor do texto advertia que as cariocas evitassem ou desistissem de usar o maillot nas praias aristocráticas - no caso, as praias de Copacabana e Ipanema. E isso porque o traje se mostrava diabólico e perverso, sobretudo quando despia “certas mulheres” (FON-FON! 19/10/1935, n.p.). Advertência essa que, aliás, não era a primeira vez que aparecia na revista. Afinal, para alguns, tinha-se a impressão de que a praia de Copacabana, de dezembro a março, virava um “vasto balneário promíscuo, uma Miami meridional que [...] não se salvou de certos terremotos moraes, impossíveis de cobrir ou disfarçar com os simples maillots collantes”. É o que se lê em crônica intitulada Banhos de Mar..., publicada em 05 de fevereiro de 1927 e, ao que tudo indica, dirigida às “senhoras novidadeiras” e às “meninas hystericas” da época (FON-FON!, 05/02/1927, n.p.).
Já em relação ao semanário que vinha se tornando “infallivel todos sabbados nas mãos de todas as melindrosas”, nem por isso resistiu a fazer comparações que associavam o maiô ao pecado original. Donde, ainda na sua sexta edição, datada de 25 de janeiro de 1919, em texto que levava o título Costumes Novos, a origem da melindrosa foi narrada da seguinte forma:
Não há muitos annos as moças do Rio de Janeiro só muito timidamente se approximavam das ondas, dentro de umas roupas enormes que lhes não deixavam a descoberto nada do corpo. Um dia, porém, tal qual como surgiu no Paraiso a serpente, assim appareceu no Flamengo uma tentação em figura de mocinha, e linda, e livre das severidades tradicionais, atirando ás ondas a sua mocidade toda denunciada com absoluta evidencia por um maillot curtíssimo [...]. (PARA TODOS, 25/01/1919, n.p.).
É de se supor que as evocações edênicas, tão caras ao discurso patriarcal, ficassem para trás, à medida que a revista Para Todos, cujo público-alvo era a carioca de classe média e alta, junto com as suas congêneres, fosse banalizando a moda feminina. Ocorre que, mesmo em edições posteriores, é possível identificar alusões à criação divina. É o que se infere de crônica publicada no 417° número da revista, na seção “De elegância”, em 11 de dezembro de 1926. Nela, fica-se sabendo de um amigo do cronista que vive a patrulhar as praias do Rio, a observar as mulheres e para quem os joelhos e cotovelos femininos são “cousas que, raramente, deixam de ser de lamentavel fealdade”. Ainda que, para o cronista, isso não devia ser um motivo de preocupação para elas, haja vista que “as mulheres, assim, de ‘maillot’ são lindas, (principalmente as bem-feitas)” (PARA TODOS, 11/12/1926, p. 40).
Mas não eram somente civis à paisana que se incumbiam de patrulhar a vida feminina à beira-mar, porque, pelo menos até a década de 1940, a polícia do Distrito Federal organizou diversas campanhas contra a sumarização dos trajes de banho. É o caso da campanha organizada às vésperas da Exposição Universal do Centenário da Independência, talvez a primeira que as fontes históricas indicam, quando a cidade do Rio de Janeiro se organizava para apresentar-se ao mundo e receber milhares de turistas estrangeiros. Na oportunidade, as autoridades brasileiras temiam que o nudismo causasse uma má impressão nos forâneos - embora isso já fosse um hábito entre eles. A essa se seguiram outras, com destaque para a campanha organizada pelo chefe de polícia Batista Luzardo, nos primeiros anos do governo Vargas, e a capitaneada pelo general Antônio José de Lima Câmara, em 1948, para quem calções e maiôs eram sinais do comunismo (BARICKMAN, 2016).
Verdade que a repressão policial não só alcançava as mulheres, constrangidas a terem que se submeter à fita métrica de um policial a medir seus trajes de banho. Os homens, também o eram, e até com mais frequência - muito embora isso tivesse a ver com o próprio patriarcalismo, já que os descamisados, dizia-se, representavam uma tentação para elas, ainda mais quando acompanhadas dos seus pais e irmãos. E é certo, também, que alguns jornais e, de forma geral, as revistas ilustradas se posicionavam contra as campanhas policiais, posto que nada podiam fazer contra um fenômeno que, em essência, era global para ambos os sexos.
A título de ilustração, vale citar a capa do jornal Beira-Mar, porta-voz dos interesses da elite cilense, que, em 08 de março de 1931, denunciava, em manchete de primeira página, que a polícia varguista estava “anemiando a mocidade das nossas praias” (BEIRA-MAR, 08/03/1931, p. 01). E, igualmente, as colunas publicadas por Peregrino Júnior em O Cruzeiro. Nas quais, entre outros senões, dizia que, embora não fosse um “partidário” do nudismo, mesmo assim não poderia se furtar a escrever que a campanha de Luzardo Batista era “bocó” e que restabelecia “a indumentária e os costumes de nossas avós, representando na nossa vida urbana, um retrocesso de cicoenta annos” (O CRUZEIRO, 24/01/1931, p. 46).
Não obstante a sua natureza global e irrefreável, nem sempre a modernização da sociedade brasileira era interpretada de forma igual para homens e mulheres. Pelo menos é o que se verifica em coluna publicada pelo mesmo Peregrino Júnior, agora na edição de 26 de maio de 1934 de O Cruzeiro. No caso, ao divergir de que a elegância masculina estava fadada ao fim pelo pragmatismo do progresso, o autor do texto chama atenção para o fato de que, em vez disso, o que se viu foi uma evolução, uma generalização, dessa qualidade, e assim “ella deixou de ser um privilegio de uma casta, para ser patrimônio commun de todos os homens. Dahi a sua “standardização [...]”. Só que, enquanto para eles, “a moda masculina uniforme, igualitaria, invariavel” era uma consequência lógica da vida do homem moderno, uma vez que “o automovel, o aviao, o cinema, o esporte modificaram-na num sentido sentido inflexivel de simplicidade, conforto e hygiene”; para elas, a julgar pela disseminação do maiô cidade afora:
o figurino da elegancia universal seja aquelle, innocente e primitivo, com que os nossos avós tupinambás se apresentaram, com tão discreta singeleza, deante dos olhos curiosos e espantados dos expedicionarios felizes da frota de Cabral (O CRUZEIRO, 26/05/1934, p. 51).
Enfim, o que esses exemplos retirados das revistas ilustradas demonstram é que, por trás da apregoada liberdade feminina à beira-mar, o foco era mesmo propugnar uma espécie de ousadia controlada para a mulher carioca. Tudo se passa como se, na capa das revistas, houvesse uma mulher emancipada das funções domésticas, mas, logo a seguir, na contracapa, a prefiguração de sua culpa por ter abandonado o lar (AZAMBUJA, 2006).
O curioso é que, mesmo quando os trajes de banho nas praias da cidade se renderam definitivamente à moda, isso não significou que o mercado abdicasse do patriarcalismo para vender os seus produtos. Muito longe disso.
As mercadorias à beira-mar e o público-alvo dos banhos de sol
É importante, contudo, não limitar a sumarização dos trajes de banho femininos [e também masculinos] ao universo da moda. Decerto, tudo aquilo que chegava de fora, seja dos franceses, cujos hábitos a elite carioca ainda procurava replicar, e, sobretudo, de Hollywood, que passava agora a ditar os rumos da civilização e da modernidade, deve ser levado em consideração. Por outro lado, em âmbito estrutural, o que se via com cada vez mais frequência na orla marítima da cidade do Rio de Janeiro era resultado de um processo mais amplo e complexo, qual seja: a transformação da praia num espaço-tempo de produção e consumo de mercadorias.
O que, aliás, as próprias revistas ilustradas acabaram por captar. E isso, naturalmente, segundo um modo menos científico e acadêmico, conforme se observa em texto de O Cruzeiro, de 29 de maio de 1943:
[...] Foi a praia que valorizou o chão, foi a praia que ergueu os arranha-céus. A praia criou aquela mocinha queimada e de óculos escuros, que fala uma linguagem que você, da Tijuca ou de Madureira, não compreenderá. Bars, cassinos, homens de terras distantes, americanos alegres e austríacos enterrados na sua melancolia, casas de antiguidades, atletas e “cock-tails” - tudo isso é fruto da praia (O CRUZEIRO, 29/05/1943, p. 15).
Um dos primeiros sinais dessa transformação foi a possibilidade de auferir rendas fundiárias das amenidades paisagísticas presentes na orla marítima. Pode parecer estranho à luz dos dias atuais, mas uma construção à beira-mar nem sempre foi um ativo socialmente valorizado. Até as primeiras décadas do século XX, o bairro da praia de Copacabana, por exemplo, mesmo que já cobiçado por companhias urbanizadoras, abrigava suas poucas residências não voltadas para a praia, ou para o que viria ser a avenida Atlântica, reurbanizada em 1922, e sim para as ruas internas do povoamento, na direção da avenida Nossa Senhora de Copacabana. Rigorosamente, a praia era um quintal das residências (CASTRO, 2019). E isso se explica, em parte, porque, no imaginário brasileiro oitocentista, o litoral era um lugar estigmatizado, marcado pela atividade portuária e pelo descarte, de objetos e, não raro, de corpos (O’DONNELL, 2013a).
Talvez mais do que as casas e os palacetes, primeiro, e, depois, os prédios de apartamentos e arranha-céus, que passariam a transformar radicalmente a paisagem das praias do Rio de Janeiro, sobretudo as da zona sul, foram os hotéis os que mais se beneficiaram da valorização imobiliária da faixa litorânea da cidade. É possível afirmar que, tendo a praia como um atrativo, foram os hotéis que favoreceram a expansão urbanística das áreas ruralizadas da cidade (Elysio de Oliveira BELCHIOR; Ramon POYARES, 1987). Emblemático disso foi a construção do hotel Copacabana Palace. O empreendimento, um pedido pessoal do presidente Epitácio Pessoa a Otávio Guinle, tendo em vista a recepção dos estrangeiros esperados para a exposição de 1922, foi responsável direta ou indiretamente pela rápida valorização dos terrenos das praias de Copacabana, Ipanema e Leme; por lançar a tendência das janelas e fachadas voltadas para o oceano Atlântico; pelas diversões e o footing na orla, pela art deco nas construções à beira-mar, e por consagrar a zona sul da cidade, sob o epíteto de Cidade Maravilhosa, como um destino turístico do país (Cláudia Cristina DIAS, 2008).
Essa sequência não obedeceu a uma ordem cronológica, tampouco apresentou um mesmo ritmo de desenvolvimento. No caso do setor turístico, malgrado o desenvolvimento da atividade, sobretudo a partir da liberação do funcionamento dos cassinos durante a chamada era Vargas, não se deve superestimar os seus impactos. Assim, se, por um lado, os cassinos como o da Urca ou do próprio Copacabana Palace ajudaram a resolver o problema de que tanto se queixava a elite cilense, o de que os forâneos não tinham como gastar dinheiro na cidade e, por isso, tão logo zarpavam para os balneários da bacia do Prata; por outro, o sonho de fazer da cidade algo comparável ao que se via em Biarritz, Ostend, Deauville ou Miami não se concretizou naquele momento. Em essência, os fundamentos do beach going na cidade do Rio de Janeiro se devem muito mais ao lazer do e da carioca do que aos turistas e viajantes estrangeiros (BARICKMAN, 2014).
É digno de nota que, não obstante a praia de Copacabana figurar nos guias turísticos da cidade desde as primeiras décadas do século XX, nessas publicações, o enfoque era dado para os atrativos do centro urbano, e não para os do litoral (Isabella PERROTTA, 2013). É o caso dos guias O Rio de Janeiro e os seus arredores, publicado pela Sociedade Anônima de Viagens Internacionais em 1928, do South American Handbook, lançado para o público inglês em 1932, e da Carte Touristique da cidade do Rio de Janeiro, publicada pelo governo federal em 1938. Nessas três publicações, a atenção era direcionada para praças, jardins, fontes, estátuas e cafés, sendo que, na última delas, os bairros praianos eram representados de forma secundária, nos cantos das imagens (O’DONNELL, 2013b).
Vale, igualmente, destacar que os próprios compositores brasileiros ainda não haviam incorporado a praia em suas letras. Verdade que alguns já o faziam, caso de Dorival Caymmi. Mas, nesse exemplo, o compositor baiano se inspira em um litoral pré-moderno (HAUDENSCHILD, 2018). Não se trata, portanto, de idealizar a praia como um oásis em meio ao crescimento das cidades industriais. O que será feito apenas depois, notadamente nos anos 1950 e 1960, pela bossa-nova, ao tematizar o sol e o sal do mar (CASTRO, 2016). E isso não é um fator menor para a atividade turística no país, haja vista que a ideologia antiurbana é um dos principais ingredientes utilizados pela publicidade para vender destinos de viagem.
Se, em matéria de mercado, as praias da zona sul ainda não haviam sido plenamente exploradas pelo turismo e pela indústria fonográfica, o mesmo não se pode dizer a respeito dos restaurantes, bares e boates. E isso porque a zona sul da cidade converteu-se no novo centro gravitacional da cultura carioca. Como resultado, a boemia e a agitação social migraram dos casebres assobradados do bairro da Lapa para, então, alcançar os “edifícios modernistas à beira-mar” (Heloísa PONTES; Rafael do Nascimento CESAR, 2019, p. 673).
Fonte: O Cruzeiro (18/02/1933, n.p.).
#PraTodoMundoVer A imagem representa uma mulher de maiô em primeiro plano, e, em segundo plano, uma paisagem da praia de Copacabana e da avenida Atlântica, onde há carros estacionados e uma aglomeração de pessoas na faixa de areia para o banho de sol
Note-se, na figura, o trânsito de automóveis pela avenida Atlântica, cujo uso, na época, estava muito relacionado à vilegiatura campestre ou marítima do que propriamente com o deslocamento cotidiano pelas cidades (Rebecca ENKE, 2014).
Em que pesem os diversos setores econômicos impactados, tudo indica que foi o mercado de consumo feminino o principal beneficiário da transformação da praia em um espaço-tempo de consumo de mercadorias, notadamente para o que se reservava para o corpo da mulher. E, nesse tocante, de novo, as revistas ilustradas da época ajudam a entender como isso ocorreu.
Um primeiro indicativo se encontra nos cuidados com as pernas cada vez mais despidas pelo maiô. E, de fato, de acordo com uma publicação de O Cruzeiro de 15 de dezembro de 1928, cuja edição foi toda consagrada às praias de banho, no que era visto como “a ressurreição da sua beleza physica, depois da longa noite em que se occultara num vestuario impenetravel”, as pernas deveriam ser objeto de especial atenção. O que, para isso, não estariam as mulheres desassistidas, haja vista que o mar é “também um artista esculptor, que cinzela, lapida e aperfeiçoa o corpo feminino” (O CRUZEIRO, 15/12/1928, p. 03).
Na prática, a metáfora dizia respeito à difusão da prática esportiva, muitas das quais realizadas na praia. Caso, por exemplo, do frescobol, um esporte legitimamente carioca (CASTRO, 2021). Com efeito, o corpo exercitado deixava de ser algo exclusivo do homem, de modo que o corpo feminino passava, também, a fazer parte das manifestações fisiológicas da atividade física, fato inédito na história (Georges VIGARELLO, 2006). Razão pela qual o que, antes, era sinônimo de sofrimento, passava a integrar o universo do culto ao corpo, ou melhor, de “culto da plastica”, conforme se dizia à época.
No artigo de opinião A Psicologia das Pernas, também publicado em O Cruzeiro, em 25 de outubro de 1930, é interessante observar o lugar que as pernas despidas começaram a ocupar no imaginário social, e o papel dos esportes para essa nova condição do corpo da mulher. Assim, fica-se sabendo, num primeiro momento, das tentativas científicas de se fazer um diagnóstico moral das mulheres pelo formato de suas pernas - se fortes, pertenceriam a mulheres inteligentes e sensatas, mas se magras e secas, a mulheres ríspidas e frias -, num curioso prolongamento das teorias lombrosianas do século XIX. E, depois, malgrado as controvérsias de tais ideias biológicas, sobre as quais o próprio autor do texto coloca em xeque, é-lhe inconteste que
a moça sportiva do seculo XX tem particularidades anatomicas que a differençam da mulher sedentaria e indolente de outras épocas. As ondinas de Copacabana e as dansarinas dos chás dansantes não se movimentam como as suas timidas avós do tempo do Romantismo. Se Rubens tivesse vivido no nosso século é quase certo que não teria pintado as flamengas planturosas dos seus quadros, e lhes teria preferido para modelo a Miss Hollanda 1930 (O CRUZEIRO, 25/10/1930, p. 30).
Além das pernas, os maiôs mais curtos colocaram em evidência outras partes do corpo da mulher, e isso, igualmente, redundou, para elas, em cuidados a serem tomados na hora de se apresentar em público nas praias. Em especial, o que se destaca é como a liberdade corpórea à beira-mar é condicionada por padrões de beleza, no que coincide com a noção de neurose portátil, espécie de insegurança que se impõe ideologicamente a mulher a partir do momento em que ela conquista nos espaços na sociedade (Naomi WOLF, 2018).
É o que se verifica no artigo O Mar é das Mulheres, publicado em Para Todos, em 21 de junho de 1930, por Hermes Fontes. Apesar do que sugeria o título, e a julgar pelo que poderia ser um dos seus hobbies favoritos, o de ficar na balaustrada apreciando o movimento das pessoas na praia, o autor acabava por reforçar, nas entrelinhas, uma liberdade quanto ao corpo que só existia mesmo para os homens. Assim, enquanto eles eram, ou melhor, podiam ser “gorduchos ou magricellas, aboboras e pepinos”, elas, ao contrário, eram “treinadas” para mostrar o “bom” e velar o “ruim”. E por este lado negativo entendiam-se “as manchas de injecção, as cicatrizes, o talho, da appendicitomia”, ao passo que o aspecto positivo seriam “os braços hijos e ageis, o collo farto, as ancas firmes, as pernas sinuosas... e insinuantes” (PARA TODOS, 21/06/1930, p. 11).
Outro exemplo se encontra nas propagandas veiculadas em O Cruzeiro, durante o ano de 1933, do remédio A Saúde da Mulher, que prometia ser “o grande remédio das doenças de senhoras”. Tratava-se de um anúncio em formato de história em quadrinhos, produzido em vários capítulos e intitulado Coisas da Vida.... No capítulo quarto da história, a narrativa gráfica segue o seguinte enredo. Primeiro, a recusa de uma jovem mulher em tomar um banho de mar com o seu pretendente, num encontro a dois na praia. Na cena seguinte, em casa e elucubrando sobre o porquê da negativa, o homem desconfia que a sua amada possa ter alguma cicatriz, ao que conclui que só haveria um jeito de descobrir: pedir ajuda para sua irmã. No encontro entre as duas mulheres, sabe-se, então, que o motivo de a primeira não querer vestir um maiô é o ventre avantajado, que lhe faz tão “infeliz”. Mas a amiga lhe conforta, dizendo que, para os incômodos de mulher, há uma solução “única, insubstituível, A Saúde da Mulher”. Por fim, decorrem daí mais duas ilustrações: o esperado banho de mar do casal e a compra de alianças para o futuro casamento (O CRUZEIRO, 29/04/1933, n.p.).
Para se usar um maiô sem receios, podia-se inclusive contar com as cirurgias plásticas. Por certo, essa especialidade médica, à época uma área marginal na medicina ocidental, estava muito mais associada a propósitos terapêuticos, caso de deformações, queimaduras e cicatrizes, do que a fins meramente estéticos (Zygmunt BAUMAN, 2008). Não obstante, note-se o que diz artigo Belleza a bisturi, publicado em O Cruzeiro em 03 de outubro de 1934:
[...] É verdade que entre nós a cirurgia esthetica ainda está eivada de preconceitos e as mulheres que se interessam por ella geralmente procuram os centros europeus para a reforma ou conservação dos seus dotes physicos. Haverá algum mal em afastar do rosto os “pés de gallinha” tão amaldiçoados quando se trata de agradar um marido ou evitar outros vexames? Os psycanalistas já chamaram a atenção para o “complexo de inferioridade” formado por taes defeitos e especialmente a “ptose mamaria”, causa de serios desgostos íntimos quando se trata de vestir uma “robe de soirée” ou um “maillot de banho”. Tudo isso parece conto das mil e uma noites mas é, felizmente, para as mulheres, uma estupenda realização deste seculo XX (O CRUZEIRO, 03/10/1934, p. 40).
À diferença das cirurgias plásticas, o que já estava se tornando corriqueiro era o bronzeamento da pele. Se, no passado, a exposição ao sol era algo estigmatizado, porquanto associado ao trabalho braçal de agriculturas, quitandeiras e lavadeiras, isso, agora, já não era mais visto pela sociedade assim - de modo suplementar, é importante registrar que as teorias raciais, ainda vigentes em 1930, também estigmatizavam a cor morena da pele. Donde, no imaginário social da época, a necessidade de se enfatizar “a cor que se tem” da “cor que se pega”. O que ajuda a explicar o gosto das cariocas em exibir as chamadas marcas de sol, algo que não ocorria entre as mulheres de outros países, caso das americanas (BARICKMAN, 2009, p. 190).
Apesar dos preconceitos sociais e raciais, o corpo bronzeado passou a ser sinônimo de saúde, e não de rudeza; de status social, e não de pobreza, já que sugeriria tempo disponível para lazer e férias (VIGARELLO, 2006). E, desse modo, o corpo feminino assumiu uma nova tonalidade, que passava a ser, em vez da brancura, o bronze.
Em parte, a valorização do bronzeamento se devia à helioterapia, que apregoava os benefícios terapêuticos dos banhos de sol. O emprego da luz solar para a cura de doenças e para o fortalecimento do corpo não era necessariamente uma novidade, afinal, tratava-se de uma corrente médica da medicina natural que existia pelo menos desde meados do século XIX, desenvolvida primeiro na Alemanha e, depois, divulgada mundo afora. E tampouco era algo limitado ao litoral, sendo inclusive advogada para crianças, a fim de combater a tuberculose nas escolas, para o que se recomendavam passeios em praças, jardins, parques etc. (DALBEN, Henrique Mendonça DA SILVA, 2020). No entanto, a partir do momento em que se começou a ir às praias para tomar sol, a helioterapia se revestiu de novos significados, para além dos terapêuticos. É o que se observa no artigo Rumo ao Mar, publicado por O Cruzeiro em 18 de fevereiro1933:
Mesmo nas horas caniculares em que o sol queima, a praia ainda é boa e é benéfica. Faz bem até mesmo a carícia escaldante dos raios saturados de emanações de iodo-violeta, emanações que dão à pelle esse moreno bronze tão da atualidade e tão do gosto de toda gente (O CRUZEIRO, 18/02/1933, n.p.)
Por outro lado, nem sempre o discurso médico coincidia com a moda. Em nota intitulada Banho de Sol, publicada em 18 de julho de 1936 em Fon-Fon!, advertia-se sobre o abuso do sol nas praias, contra o que os médicos e higienistas vinham tanto reclamando nos jornais, “a fim de o público se acautele, usando com moderação este grande remedio da natureza, que é o sol” (FON-FON!, 18/07/1936, p. 65).
Um exemplo dessas reclamações é dado pela nota A Helioterapia, publicada em 27 de julho de 1935, também na Fon-Fon!. Baseada em um relato médico, a nota discorria como, a pretexto da helioterapia, estava-se desvirtuando essa prática terapêutica, agora transformada numa “coquetterie de certos homens e de quasi todas as mulheres”. Além do mais, o moreno estava saindo de moda e “a estas alturas, todos os laboratorios de belleza do mundo cuidam de conservar a brancura da epiderme, como a expressão mais linda da saúde e formosura” (FON-FON!, 27/07/1935, n.p.).
Como se sabe, não foi isso o que aconteceu. Tivesse o autor da nota entendido que os banhos de sol não eram apenas uma terapia ou mesmo uma moda passageira, talvez se desse conta de que os conselhos médicos agora concorriam com as seduções dos fabricantes de cosméticos.
Fonte: FON-FON! (03/04/1937, n.p.)
#PraTodoMundoVer A imagem representa um anúncio do creme da marca Nivea. O cenário é uma mulher em traje semelhante ao de marujo e cochilando num barco à luz do sol
Seja como for, fato é que o bronzeamento das mulheres nunca foi um fenômeno pronto e acabado, porquanto marcado por hesitações, dúvidas e críticas (Pascal ORY, 2018). Afinal, mesmo no tempo em que os maiôs começaram a ser substituídos pelos biquínis, em fins dos anos 1940, a carioca, quando grávida, não podia se exibir ao sol sem que fosse alvo de algum tipo de censura. Por isso, quando, em 1971, a atriz Leila Diniz o fez, ao se deixar fotografar grávida de biquíni na praia de Ipanema, não se estava inaugurando uma nova condição para a mulher brasileira, mas, sim, persistindo-se no lento e contraditório processo da emancipação dela do patriarcado.
Considerações finais
À guisa de conclusão, alguns pontos do que foi exposto devem ser retomados, a fim de melhor esclarecê-los.
De imediato, ficou evidente que a praia, malgrado o discurso da modernidade feminina à beira-mar, não se traduziu no cotidiano das mulheres em um espaço social diametralmente oposto ao espaço doméstico, ao lar patriarcal. Inclusive agentes que se julgavam modernizantes, caso da medicina, e, sobretudo, os meios de comunicação, a exemplo das revistas ilustradas, reforçaram, paradoxalmente, a subalternidade feminina.
O que não significa que não houvesse ambiguidades. As revistas ilustradas, ao mesmo tempo, expressavam e induziam aos novos espaços sociais que a mulher conquistava, de que a ida à praia, até mesmo sozinha, em trajes cada vez mais sumários é um sinal. Tudo leva a crer, portanto, que se está perante do que foi [e tem sido] teoricamente apontado como a essência do processo de constituição da modernidade no Brasil, uma modernização conservadora.
Um segundo ponto a ser destacado é que se deve evitar binarismos que divisam uma praia terapêutica antes de 1920 [e isso quando se passou a valorizar socialmente o mar em meados do século XIX] e uma praia lúdica depois. De fato, as fontes históricas demonstram uma miríade de usos e práticas que não se limitam às imersões aconselhadas pelos médicos. O próprio exemplo da brincadeira dos banhos de mar pelos blocos carnavalescos, ou mesmo da mulher que gostava de apreciar os exercícios de natação, ambos sinalizam isso. Por outro lado, parece importante distinguir que piqueniques, passeios, natação, encontros entre amigas, enfim, tudo aquilo que poderia ser entendido como do âmbito do lazer e dos divertimentos assume uma nova natureza quando englobado pelas transformações mais gerais que o país atravessava na época. O desenvolvimento das indústrias culturais, da sociedade de consumo nacional, pari passu, foram industrializando o tempo livre das pessoas, suas práticas de lazer. Prova disso é a maneira como os setores econômicos ligados ao vestuário e à cosmetologia incorporaram produtivamente os lazeres à beira-mar das cariocas.
Além disso, deve-se prestar atenção na forma como essas mercadorias voltadas para o banho de sol feminino estendiam para a vida pública, para o tempo disponível e os lazeres ao ar livre, as inseguranças vivenciadas pela mulher em âmbito privado. Daí o bronzeamento, longe de representar algo bioquímico e ditado por uma moda, ser, antes, uma instituição total, de natureza moral, econômica, psicológica, emocional, política, classista e racializante, e midiática, e que, por essa condição, torna-o uma prática não apenas de submissões e hierarquizações, mas de possíveis resistências.