Eram quatro horas da madrugada quando ouvi o ralar do cipó tatxik na aldeia Tankala Maë, rio Ituí.1 Os Korubo conversavam na maloca. Há dias, a caça estava escassa. Wio, primeira esposa de Takvan Vakwë, inicialmente assumiu a função de me “criar”, e disse-me para avisá-la quando eu menstruasse. Então, eu pararia de dar aulas. Semanas após este aviso, o anúncio da minha menstruação originou uma rede de cuidados e atenção à reclusa. Wio instruiu-me a permanecer dentro de casa durante a reclusão, saindo apenas para banhos na floresta com água coletada no igarapé. Gritou “sangue” em voz alta para todos ouvirem e espiou-me ligeiramente durante o banho. A minha comunicação com os homens passou a ser apenas sonora.
Uma hora depois do anúncio, ouvi o som de uma embarcação e o canto-choro (wine), que evoca as relações de parentesco com alguém enfermo para que este permaneça entre os vivos. Da minha casa, espiando pela fresta da palha, vi a movimentação dos Korubo correndo entre as casas e a maloca. Três crianças contaram-me que Kuinin, um velho da aldeia Sentele Maë, se engasgara com uma tampa de garrafa plástica e estava sob os cuidados da equipe de saúde, com possibilidade de remoção para um hospital na cidade. Nanë, uma das filhas de Kuinin, me fez companhia durante aquele primeiro dia de reclusão. À tarde, soube que ele estava fora de perigo e retornaria para a aldeia no dia seguinte. Apesar disso, os Korubo choravam o dia inteiro. Poucas vezes alguma criança ou mulher trouxe alimentos para mim, como mandioca, água e uma porção de arroz que, a pedido dos Korubo, eu levara para a aldeia e estava armazenado na casa de Wio.
Na manhã seguinte, o canto-choro continuou. Nanë avisou-me que, após receber alta, Kuinin visitaria a Tankala Maë. Ao longo do dia, Wio enviou por Nanë ou Lonkon, segunda esposa de Takvan Vakwë, água, mandioca, macaco barrigudo e bacuri. Mesmo com a chegada de Kuinin, o canto-choro continuou ecoando pela aldeia. Quando Wio se comunicava comigo a distância, era para perguntar se eu estava com fome. Reclusa, eu refletia sobre a minha condição: um tanto isolada, tardiamente informada e, apesar disso, o quanto estávamos nos acostumando uns aos outros.
À noite, tudo parecia tranquilo, quando Wio entrou em um estado de raiva (kuinine, nakane). Enquanto cozinhava arroz para me alimentar, ela começou a falar alto e acelerado. Entre os Korubo, ninguém permanece próximo de alguém que está “bravo”. A pessoa torna-se violenta, propensa a matar, pois desconhece seus parentes. A raiva é um estado antissocial em que a pessoa corre para a floresta, onde permanece sozinha até retornar à condição social. Naquela noite, todos permaneceram em silêncio enquanto Wio proferia o monólogo por quase uma hora. As crianças e os homens sussurravam. Apesar de ainda estar iniciando o aprendizado da língua korubo, identifiquei a recorrência do termo nawa (branco) nas falas dos Korubo.2 Da maloca, a mãe de Wio passou a chamá-la por seu nome próprio, algo incomum em uma aldeia onde as pessoas se tratam por termos de parentesco. Todos pareciam tentar trazer Wio de volta.
Na escuridão da minha casa, permaneci em silêncio, ouvindo. A reação dos Korubo indicava que não era algo inédito nem rotineiro. Após o silêncio de Wio, pela primeira vez, um rapaz trouxe o arroz cozido, sem olhar em minha direção e, desconfiado, saiu caminhando de costas para a porta. Em seguida, um casal sussurrou do lado de fora da minha casa, perguntando se eu estava dormindo, como se estivessem verificando o meu estado. Mais silêncio. Todavia, os Korubo não tinham ido dormir, conforme eu pensara. Reuniram-se na casa de Wio, localizada ao lado da minha, onde um dos velhos conduziu a conversa, afirmando em voz alta: nawa, Kanamari avi, Marubo avi, Mayoruna avi, Matis avi (avi: ter). Todos os outros povos da bacia do rio Javari já tiveram brancos em suas aldeias com objetivos diversos, como aprender a ler e a escrever. Isso implica ter que lidar com questões novas, como o sangue menstrual de uma não indígena.
Diante desses acontecimentos, no terceiro e último dia da minha reclusão, chamei Nanë para informá-la que o meu ciclo praticamente chegara ao fim. Ela saiu da minha casa e avisou os demais. Minutos depois, Takvan Vakwë, marido de Wio e Lonkon, me convidou para comer mandioca e açaí. Foi a primeira vez, desde o início da reclusão, que eu saí da minha casa para visitar pessoas em outras casas. Takvan estava sozinho com suas filhas. Perguntei se Wio estava bem, ele respondeu afirmativamente e me informou que, em alguns dias, faríamos uma expedição de caça. Eu não soube o que dizer naquele instante. Ele, como quem lê pensamentos, disse-me que os Korubo não queriam me deixar “sozinha” na floresta. Nenhum korubo jamais comentou o que aconteceu durante aqueles três dias de reclusão.
Essa foi a minha primeira e única reclusão menstrual entre os Korubo. Eles são um povo falante de língua Pano que reside em um território compartilhado com outros povos, a Terra Indígena Vale do Javari, no estado do Amazonas. Praticam a agricultura de coivara e os cultivos de suas roças complementam a proteína obtida em caçadas. Hoje, considerados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) como de “recente contato”, os Korubo somam cerca de 150 pessoas distribuídas nos rios Ituí e Coari, no interior da terra indígena. Regionalmente, são conhecidos como “caceteiros”, devido ao uso de bordunas como armas de guerra. Até onde sabemos, eles nunca tinham hospedado brancos em suas aldeias por longos períodos.
Embora já tivessem visto outras mulheres brancas e soubessem que estas menstruam, aquela foi a primeira vez que os Korubo administraram a reclusão menstrual de uma não indígena em suas aldeias. A partir da minha reclusão como um estudo de caso, este artigo analisa as concepções korubo sobre os brancos, a adoção e a menstruação. Argumentarei que a reclusão menstrual da antropóloga pode ser interpretada como uma menarca anômala em que concepções ameríndias sobre os brancos são reconstruídas sob o aspecto performativo do parentesco.
1. Os brancos
Os Korubo se relacionaram com uma série de brancos que adentraram a bacia do rio Javari. Travaram conflitos com seringueiros e caucheiros e, a partir dos anos 1940, também com madeireiros. Em 1980, os exploradores de petróleo chegaram à região. Além desses brancos interessados em explorar recursos naturais, a partir dos anos 1970, os Korubo conheceram a Funai, os profissionais de saúde, turistas e jornalistas.3 Foi também nesse período que os Korubo conheceram o primeiro “pesquisador” interessado em sua língua. A partir disso, passaram a conceber que “fazer pesquisa” é usar equipamentos, como o gravador de voz. Nesse processo de conhecer tipos de brancos, suas concepções em torno desses personagens estão sendo tecidas.
Antes da chegada dos brancos, a bacia do rio Javari era ocupada por grupos locais que guerreavam entre si. Com a exploração extrativista na região, as guerras aumentaram, gerando cisões e a reorganização de grupos locais (Philippe ERIKSON, 1993; 1996). Diferente de outros povos, como os Kanamari e os Marubo (Luiz COSTA, 2007; Elena WELPER, 2009), os Korubo não trabalharam no sistema de aviamento e os brancos, não sendo seus patrões, tornaram-se inimigos. Ao longo do século XX, os Korubo furtaram ou quebraram mercadorias dos extrativistas, bloquearam trilhas na floresta e saquearam roças. Os conflitos e as mortes geraram dispersões entre os grupos familiares korubo que passaram a viver em fuga. Os extrativistas, com suas armas de fogo, e os Korubo, com suas bordunas, configurando uma guerra incessante e desigual. Sem dúvidas, naquela época, os Korubo já observavam minuciosamente os comportamentos e o corpo dos brancos.
Nos anos 1970, a Funai chegou à região para facilitar a abertura da Rodovia Perimetral Norte e construiu quatro postos visando, dentre outros objetivos, efetuar o contato com os Korubo, então considerados “isolados”, “arredios”. Ao longo de duas décadas, houve aproximações esporádicas entre grupos familiares korubo e a Funai, seguidas de mortes de ambos os lados. Em 1996, um desses grupos estava tão encurralado que uma equipe conseguiu realizar a primeira expedição de contato com eles. Um ano após essa expedição, a princípio pacífica, esse grupo matou mais um funcionário da Funai com golpes de bordunas. Em 2014, 2015 e 2019, a Funai realizou outros cinco eventos de contato com grupos familiares korubo distintos. Hoje, esses grupos coresidem em aldeias nos rios Ituí e Coari, no interior da terra indígena (Juliana OLIVEIRA SILVA, 2022, p. 121-167).
A concepção dos Korubo em torno desses tipos de brancos com quem se relacionaram nas últimas décadas caracteriza-se pela atribuição de duas capacidades: matar e adquirir dinheiro. A primeira adjetiva os seringueiros, madeireiros e exploradores de petróleo. A segunda é um atributo da Funai, Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), dos turistas, jornalistas e pesquisadores. Para os Korubo, durante o período extrativista, os brancos queriam matá-los. Após a relação mais estável com a Funai, passaram a conceber que tudo o que os brancos querem é adquirir dinheiro para acessar mercadorias industrializadas e viver nas cidades. No primeiro caso, vigora a “guerra” e, no segundo, a “troca” em um desenho corrente nas terras baixas da América do Sul, conforme Claude Lévi-Strauss (1976) demonstrou.
Os Korubo vinculavam os brancos às roupas e armas de fogo. Seus antepassados relataram que, durante o período extrativista, os brancos os viam nas margens dos rios e disparavam. Então, eles passaram a observar vestígios na floresta, como cartuchos vazios, e mudavam a rota. Hoje, os Korubo relembram essas mortes ao ouvirem o som dos trovões, que remetem aos disparos. Armas de fogo passaram a ser utilizadas em caçadas e sinalizam o estado da relação interétnica, sendo consideradas “barulhentas” como os brancos e as cidades. Aqueles que disparavam na direção dos Korubo estavam sempre vestidos, dificultando incialmente a distinção entre brancos e ameríndios que também usam roupas. Hoje, os Korubo utilizam roupas em suas tarefas habituais e rituais fúnebres dentro e fora das aldeias. Entre as pessoas contatadas em momentos diferentes pela Funai, há um degradê de vergonha e o desejo de cobrir os corpos: aqueles com mais tempo de contato têm, em geral, mais vergonha do que aqueles contatados mais recentemente.
Com o saldo de mortes envolvendo os brancos, os Korubo ainda se veem como pessoas que não podem se deslocar para as cidades do entorno desacompanhados dos agentes estatais e em embarcação própria, pois acreditam que os brancos desejam vingar-se. Antes de conhecerem as cidades, não faziam ideia de quantos brancos existiam, mas não tardaram a perceber que são numerosos. Após conhecerem algumas cidades e observarem a dinâmica desses espaços, a ênfase na capacidade de “matar” tem passado para o “ganhar dinheiro”.4 Os Korubo acreditam que os brancos objetivam obter dinheiro às suas custas de diversas maneiras e, por isso, têm interesse em fotografá-los, filmá-los, pesquisá-los etc.
As relações dos Korubo com os brancos ocorreram e ainda ocorrem, majoritariamente, com homens. Primeiro com os extrativistas, depois com os agentes estatais que permanecem na “Base Ituí”, espaço eminentemente masculino, localizado na principal entrada da terra indígena. A aproximação com mulheres brancas tem sido minoritária. Na expedição realizada em 1996, havia duas jornalistas. Nos eventos ocorridos em 2014, 2015 e 2019, havia uma enfermeira nas equipes de contato. Então, as mulheres korubo aproveitaram para observar o corpo da enfermeira. Tocaram-lhe os seios e a barriga, verificaram a existência ou não de gordura, pelos pubianos e a cor dos cabelos (Luziane Silva, comunicação pessoal).
O interesse dos povos indígenas das terras baixas da América do Sul pelo corpo dos brancos não se restringe às situações de contato com o Estado. Diversos povos enfatizam suas percepções sobre o corpo dos brancos, podendo expressá-las em rituais ou não. Os Yanomami, em seus primeiros contatos diretos com os brancos, vincularam os extrativistas e agentes estatais a espíritos maléficos e fantasmas, verificando a calvície ou pilosidade, a língua falada, e o uso de roupas e sapatos (Bruce ALBERT, 1992, p. 165). Em outro contexto, o ritual damiain dos Kaxinawá narra a negociação da terra indígena e o branco é representado com “sobrancelhas muito grossas, grandes orelhas, uma barba horrível e um cigarro pendurado no canto da boca. Sua voz era rouca e ridícula, sua postura curvada, e ele se balançava de um lado para o outro enquanto falava” (Cecília McCALLUM, 2002, p. 385). Os Korubo também conferem especial atenção à postura torácica arqueada e ao que consideram ser um excesso de pelos na cabeça e no rosto dos brancos. Essas características desdobram-se em performances, apelidos e brincadeiras internas.
Homens e mulheres korubo mantêm a postura reta enquanto desempenham suas tarefas diárias, conferindo um aspecto rígido e forte (txëlëx) aos seus corpos. Os homens brancos, ao contrário, são concebidos como moles e fracos (palixe), o que dificulta caminhar e sentarem-se em bancos de madeira no centro da maloca, um espaço masculino. Os Korubo também atribuem determinadas características animais ou de seres extrassociais aos brancos: uma pessoa grande é comparada à anta; com dreads loiros ao macaco zogue-zogue; com barba de coloração escura ao macaco parauacu. Pessoas calvas podem ser um sampin, ser extrassocial que vive na floresta, deixa rastros, emite sons e gera doenças.
Da guerra contínua ao longo do século XIX ao início de uma relação mais estável e dialógica no século XX, os brancos (outrora iminentes matadores) são hoje considerados mentirosos (moepe) e sovinas (kulaspek). Em vez de guerrear ou fugir, os Korubo estão observando os corpos e comportamentos dos brancos, interessados em compreender as “coisas de nawa”: mercadorias industrializadas, bens, serviços e conhecimentos não indígenas. Como parte dessa busca, pude conhecê-los e me tornei a primeira “antropóloga” e “professora” a residir em suas aldeias. Um novo corpo dentro do espectro de possibilidades até então existentes. Eu não era similar àqueles que os mataram durante a exploração extrativista. Não era “Funai” ou “Sesai”, “jornalista” ou “turista”. Nem era um “pesquisador” homem.
Como não indígena, eu partilhava similaridades com outras mulheres: magra, cabelos compridos e escuros, pele clara. Mas havia uma peculiaridade. Dessa vez, tratava-se de uma branca, dependente deles e vivendo em suas aldeias. Os Korubo sabiam que os agentes estatais da Funai e Sesai me chamavam de “antropóloga”. Contudo, buscaram me encaixar em um novo papel, pois na relação interétnica aprenderam que alguém que ensina a língua e os números dos brancos é chamado de “professor” (lalawameankit). Então, usaram esse termo para indicar a minha posição em suas aldeias. Não havia qualquer tipo de contrato trabalhista nessa relação. Era uma contrapartida para a realização dessa etnografia.
Fiz pesquisa de campo na Terra Indígena Vale do Javari entre janeiro de 2019 e março de 2020. Nesse período, residi em duas das quatro aldeias korubo no rio Ituí. A contrapartida exigida pelos Korubo para a realização dessa pesquisa foram aulas de português e matemática que ocorreram em casas unifamiliares elevadas, construídas em paxiúba, chamadas de “escolas” e algumas vezes de Julianan xuvu (-n: posse; xuvu: maloca, casa). O ineditismo da minha estadia nas aldeias korubo se tornou evidente no cotidiano. Afinal de contas, como hospedar o inimigo?
2. Adotar
Os antropólogos costumam narrar como foram recebidos por seus anfitriões durante a pesquisa de campo. Essa relação pode ser expressa como “adoção” por envolver coresidência, partilha de alimentos e substâncias, nomeação, dentre outros. A adoção pode ocorrer de modo formal ou informal, abrangendo ou não os parentes próximos do pesquisador (Sergei KAN, 2001). Na Amazônia, a adoção é uma modalidade de relação acionada em diversos domínios e em relação a diferentes seres. Uma criança órfã pode ser adotada após o falecimento de sua mãe. Uma mulher infértil pode adotar uma criança para se tornar mãe. Crianças podem ser capturadas em expedições guerreiras e criadas por determinado povo, conforme o caso dos Txicao (Patrick MENGET, 1988, p. 64-66). Entre os Yukpa, a adoção nem sempre substitui relações de filiação e pode resultar em casamentos envolvendo quem adotou ou foi adotado. Há situações temporárias (fostering) em que crianças vivem períodos em casas diferentes, sem que os termos de referência para pai, mãe e avós, por exemplo, sejam alterados (Ernst HALBMAYER, 2004, p. 161). A adoção ocorre também em contextos interespecíficos com animais, plantas e espíritos (ERIKSON, 1987; Oiara BONILLA, 2007; Carlos FAUSTO, 2008; Fabiana MAIZZA, 2014).
Os Korubo criam animais e conhecem algumas modalidades de endo-adoção. Hoje, “criam” animais domesticados (galinhas, cachorros e gatos), além de xerimbabos (jabutis, espécies de macaco, preguiças e mutuns). Os macacos, a preguiça e o mutum recebem tratamento específico, sendo não apenas alimentados, mas também protegidos contra chuva e trovões em expedições de caça, pesca e coleta. Recebem nomes korubo ou não indígenas e tornam-se parentes e homônimos dos Korubo. Ao falecerem, há rituais fúnebres e transformações nos termos de referência utilizados entre as pessoas que são criadoras e homônimas desses animais. Quando um animal de criação ou pessoa falece, as mulheres, na posição de mães do falecido, passam a ser chamadas de tokoma, enquanto todos aqueles que são homônimos ou estão na posição de irmãos do falecido tornam-se wiloma. Tokoma e wiloma compõem o conjunto de termos fúnebres utilizados pelos Korubo durante o luto e alteram temporariamente os termos de parentesco utilizados pelos vivos (OLIVEIRA SILVA, 2022, p. 130). Os Korubo oferecem leite materno e pequenos pedaços de alimentos da roça aos xerimbabos, colocando-os na boca, ato chamado de wisma e traduzido pelos Korubo como “amansar”. Wisma também é o termo utilizado para o gesto de assoprar no rosto desses animais durante o amansamento ou, no caso de queixadas, assoprar algodão na direção desses animais para evitar que corram para longe e, ao mesmo tempo, atraí-los. O termo wisma tem cognatos em outras línguas Pano, como em Matsés, onde designa mansidão, sociabilidade e ausência de timidez, sendo especialmente usado para falar sobre as mulheres (David FLECK; Fernando BËSO; Daniel HUANÁN, 2012, p. 238).
No caso da criação de pessoas, entre os Korubo, há diferentes modalidades de adoção e fostering:
(1) Quatro crianças residem separada e temporariamente com suas avós maternas que têm o objetivo de “cuidar” delas. Nestes casos, as avós são mulheres mais velhas (matxo), casadas e com filhos pequenos e/ou netos coresidentes. Em um destes casos, o menino mudou-se de aldeia “para caçar” para a sua avó materna, onde permaneceu até casar-se;5
(2) A mãe classificatória de uma menina, uma matxo, a “cria” para casar-se com um de seus filhos;
(3) Quatro crianças passaram a residir com o novo marido de suas mães por tornarem-se órfãos de pai, seja por viuvez ou separação;
(4) Duas meninas mudaram-se para a aldeia do futuro marido, passando a viver com ele, tornando-se sua segunda esposa;
(5) Três homens residem em determinada aldeia “para trabalhar” ou “ajudar” outrem. Esses casos podem ser interpretados como modalidades de adoção, pois, a despeito de serem adultos, as relações entre grupos familiares korubo com diferentes tempos de contato com os brancos fazem com que eles sejam estruturalmente jovens diante das pessoas para quem trabalham, ou seja, apesar de serem adultos, o tempo de contato os faz serem tratados como jovens (paxa) pelos outros com mais tempo de contato e maior conhecimento do mundo dos brancos (xëni). Em geral, são homens que foram contatados em 2014 ou 2015 e trabalham para aqueles contatados em 1996. Em troca, recebem bens e mercadorias industrializadas. As mulheres de uma aldeia korubo costumam chamá-los pelo termo de parentesco utilizado para o sobrinho cruzado (miuka).
A ideia de “cuidar” ou “ajudar”, conforme tradução dos Korubo, envolvida na maioria desses casos, é referida pelo termo mëkakit (-më: mão; -kit: nominalizador). Tais casos revelam estratégias de construção do parentesco entre pessoas de distintos grupos familiares contatados pela Funai ao longo dos últimos 27 anos. Até 2019, essas relações não abrangiam outros ameríndios, tampouco os brancos. Não há registros de que os Korubo adotaram brancos ao longo dos séculos XIX e XX, tal como os Matsés fizeram após os conflitos com seringueiros e caucheiros, quando passaram a raptar e criar cativos indígenas e brancos (Walter COUTINHO, 2017, p. 255-259). Como vimos acima, a relação de guerra dos Korubo com os brancos admitia apenas duas opções: matar ou evitar, nunca capturar e criar. Após a chegada da Funai na região, os Korubo começaram a se relacionar de modo pacífico e estável com os agentes estatais, sendo colocados e posicionando-se como alvos do cuidado e da atenção. Isso também ocorreu na relação com os Matis, que atuaram como intermediários nos eventos de contato da Funai, onde o tratamento mútuo é perpassado por termos de parentesco que detonam ora a afinidade simétrica, ora a consanguinidade assimétrica (OLIVEIRA SILVA, 2022, p. 146-164).
Os Korubo costumam exigir cuidado e atenção por parte dos agentes estatais por serem concebidos como sendo “pagos para trabalhar com os Korubo”, conforme dizem. Contudo, ter uma não indígena nas aldeias exigiu o movimento inverso, em que os Korubo tornaram-se os cuidadores. Ao chegar em campo, com frequência os Korubo me chamavam de txampi. Em korubo, meninas são txampi, mulheres adultas são matses e as mais velhas são matxo.6 Os meninos são papi, homens adultos são lala e os velhos são tsusivo ou darasibo. A priori, os Korubo revezavam entre nawa (branca), nawa txampi (menina branca) e lalawameankit (professora) para se referir a mim.7 Não me chamavam de latkute: termo presente em narrativas sobre a morte dos seus antepassados com armas de fogo e, atualmente, utilizado em referência àqueles brancos que vivem nas cidades.
Ainda em 2019, Lëyu e Txitxopi - então reconhecidos como “caciques” da Tankala Maë - me deram o nome Manis quando estávamos na Base Ituí. Até então, os Korubo costumavam apelidar os brancos a partir de características físicas, conforme mencionei. Receber este nome korubo incidiu na maneira como eles passaram a se referir a mim, e vice-versa. Naquela ocasião, enquanto contavam a dois matis que eu iria para as aldeias dar aulas, Lëyu disse que eu me chamaria Manis, nome que depois passou a ser utilizado pelos demais. Até então, havia duas Manis nas aldeias korubo: uma criança e uma mulher adulta. Lëyu passou a brincar, perguntando-me: “Manis, cadê o seu Wanka?”. Wanka é o marido da Manis adulta, que se tornou a minha homônima. Essa pergunta, mais que uma brincadeira, evidenciava a minha incompletude como menina ou mulher adulta. A idade biológica não era um critério de classificação. Eu era biologicamente mais velha que a Manis adulta, mas fui instruída pelos Korubo a chamá-la de minha homônima mais velha (wënxëni). Afinal, eu possuía o mesmo nome, mas não era criança nem tinha esposo ou filhos.
Nas aldeias, os Korubo passaram a ensinar-me os termos de parentesco correspondentes com o nome dado. Apesar de ter recebido esse nome em minha primeira entrada em campo, demorou algum tempo para que eles me chamassem dessa maneira. Enquanto não utilizavam Manis, me chamavam de nawa, txampi ou lalawameankit. Com o passar das semanas, o pronome possessivo para a primeira pessoa do plural (nukin) qualificou estes termos e, quando conversavam entre si, era o pronome possessivo da segunda pessoa do singular (min) que diziam uns aos outros: min nawa, min txampi, min lalawameankit. Nesse primeiro momento, poucas vezes me chamavam pelo meu nome não indígena.
Após os eventos de contato com a Funai, os Korubo passaram a construir aldeias relativamente fixas nas margens do rio Ituí e a utilizar tecnologias de navegação para se visitarem. Em 2019 e 2020, a maior parte dos visitantes nas aldeias eram pessoas de outras aldeias korubo no rio Ituí. Recebiam também os agentes estatais e, semanalmente, as equipes de saúde. O fato de não receberem estrangeiros que permanecessem em suas aldeias por longos períodos impôs dificuldades iniciais para se tornarem os meus anfitriões. Dar um nome e ensinar os termos de parentesco são apenas uma parte do processo. A outra parte inclui o modo de alimentar, pois eu não levava comida industrializada para as aldeias.
Os Korubo implementaram diferentes arranjos para a divisão das tarefas com o objetivo de garantir a minha alimentação. Na Tankala Maë, onde menstruei, inicialmente, estive sob os cuidados da família de Takvan Vakwë, composta por três mulheres jovens, um caçador e um velho: Wio e Lonkon (suas esposas), Xikxuvo e Nanë (seu pai e sua madrasta). Eu acompanhava Wio, Lonkon e Nanë nas roças. Elas me ensinavam como coletar e transportar os cultivos utilizando os cestos, pendurados no alto da cabeça, pendendo para as costas. Takvan e Xikxuvo retornavam da caçada e entregavam a caça para elas. Eu observava o preparo da comida, manifestando interesse em participar, mas os Korubo nunca deixavam eu cozinhar. Nem mesmo o arroz e a farinha que, a pedido deles, eu levava para a aldeia e permaneciam armazenados na casa de Takvan.8 Caso eu cozinhasse, creio que acrescentaria outra contradição ao processo: produzir alimentos como uma mulher adulta, porém, não casável.
Essa dinâmica foi alterada quando Takvan e Wio viajaram para Manaus acompanhados pela Sesai. Lonkon mudou-se temporariamente para a aldeia dos pais dela. Xikxuvo era velho e não caçava mais sozinho. Não houve uma redefinição imediata na divisão das tarefas entre os Korubo que cuidariam de mim na ausência dessa família. Então, permaneci alguns dias na Base Ituí, aguardando o retorno deles para a aldeia. Nesse período, acompanhei a Sesai em uma visita à Tankala Maë, ocasião em que percebi que Txitxopi “cacique” estava chateado. Ele pediu que eu sentasse no centro da maloca para uma “reunião”, ocasião em que exigiu o meu retorno para a aldeia. Naquele momento, percebi que não estava evidente para os Korubo o motivo de eu ter ido à Base. Eles imaginaram que eu estava com “preguiça” de trabalhar (txikexe) ou em busca de “internet”, características que atribuem aos brancos.
Na ausência da família que me criava inicialmente, perguntei então quem iria me alimentar naquela aldeia. Os Korubo ficaram perplexos, pois não imaginavam que eu estava com fome - um tema de extrema relevância para eles. Txitxopi concordou comigo e, naquele momento, redefiniu a divisão das tarefas. A minha alimentação passou para os cuidados de um número maior de pessoas que incluía duas matxo, uma mulher adulta e dois caçadores, além do próprio Txitxopi: Luni e Malu Xuma (suas esposas), Vunpa (seu filho mais velho), Seatvo e Waxmën (seu genro e sua sogra). Até então, eu não sabia que o pedir comida é um passo na compreensão das relações e ativação do parentesco, conforme Aparecida Vilaça (2018, p. 36) observou em sua relação com Paletó, o wari’ que a adotou como filha. Aprender a dizer que eu estava com fome foi fundamental para que os Korubo consolidassem a minha adoção.
Nessa nova etapa, houve uma atenção qualitativa à minha alimentação. Os Korubo passaram a estudar o modo como eu comia e perceberam que eu mastigava mais devagar que eles. Então, passaram a separar uma porção de alimentos para mim nas arestas dos pratos coletivos. Sabiam que, caso não fizessem isso, eu não conseguiria comer o suficiente, já que eles mastigam mais rápido. Esse processo, em grande medida não verbalizado, incluiu também o gesto de determinados homens e mulheres mais velhos esfriarem pequenos pedaços de alimentos para me oferecer, praticamente colocando em minha boca, similar ao modo como alimentam os xerimbabos e as crianças menores. Com o passar dos meses, isso mudou e pude esfriar a minha comida.
Os Korubo passaram a perguntar com mais frequência se eu estava com fome e, sem que eu nada dissesse, percebiam os meus sinais de cansaço e sono. Aquele cuidado, inicialmente designado a determinadas pessoas da Tankala Maë, se estendeu para todos os Korubo. Pessoas de diferentes casas passaram a me convidar para comer e os visitantes de passagem naquela aldeia também observavam a logística dos cuidados comigo. Nessas ocasiões, as pessoas dessa aldeia informavam aos visitantes o quê e o modo que eu comia, as atividades de que eu participava, o funcionamento das aulas etc. Com orgulho, diziam aos visitantes que eu já “não precisava de comida de branco”, pois comia “igual korubo”, ou seja, sem sal e utilizando as mãos. Posteriormente, quando fui morar na Sentele Maë, as pessoas desta aldeia já estavam organizadas para me receber. Os Korubo tornaram-se os melhores anfitriões que eu já tive.
Levavam-me para as expedições de caça, pesca e coleta (kapoe), que podem durar um ou mais dias.9 Geralmente, uma kapoe inicia-se durante a madrugada, quando os Korubo aproveitam o deslocamento fluvial para caçar jacarés e aves. Em terra firme, ensinavam-me onde e como pisar, pois eu caminhava descalça, algo que eles apreciavam. Guiavam-me indicando os locais onde havia elementos que pudessem machucar meus pés, como espinhos e formigas. Seguravam a minha mão quando passávamos sobre as pinguelas. Mostravam-me diversas frutas e animais, ensinando-me os termos dessas espécies em korubo e a distinguir os sons. Ao perceberem que eu me divertia nas expedições, me convidavam ainda mais. Levaram-me até para caçar queixadas.
Nessas expedições, as mulheres coletam frutos, como o buriti. Com as pontas dos dedos, retiram as escamas externas e reúnem a polpa, formando uma massa a ser consumida na maloca. Inicialmente, eu me alimentava de buritis coletados por outras mulheres. Meses depois, peguei alguns frutos e formei a minha própria massa, que não era tão grande quanto a das mulheres korubo, mas foi o suficiente para causar surpresa e admiração. Elas observaram que eu tinha aprendido a coletar buriti, comentavam entre si e informaram aos homens. Um destes, sorrindo, disse que “todos” comeriam o buriti que eu coletara. De fato, os Korubo nem deixaram que chegássemos à maloca e comeram tudo no trajeto para a aldeia, onde tive que me alimentar do buriti coletado por outras mulheres, conforme o habitual. Tudo se passava como se os Korubo regulassem os limites da minha possível autonomia.
Outro esforço era tentar tornar-me fisicamente parecida com eles. Pintavam-me com urucum e látex de seringueira. Observavam o modo como eu sentava-me nos bancos de madeira e apreciavam quando a minha coluna estava retilínea, índice de que eu “sabia sentar”. Estranhavam o comprimento das minhas pernas, que me torna mais alta que eles. As matxo desejavam cortar o meu cabelo em meia-lua, pois diziam que “pareço velha” com os cabelos compridos. Ofereciam-me alimentos até que eu estivesse satisfeita, com a barriga arredondada, pois eu era “magra” demais, e gordura corporal é sinônimo de saúde e beleza.
As estratégias que os Korubo utilizaram para coabitarem comigo convergem no que alguns etnólogos chamam de “familiarização”. Originalmente formulada para descrever caça, guerra e xamanismo (o xerimbabo alimentado e criado, o espírito capturado, o cativo adotado), a familiarização se estendeu para a análise dos processos de criação e alimentação que geram e sustentam laços de proximidade, semelhança, e, em alguns casos, parentesco (ERIKSON, 1987; FAUSTO, 2001; 2008; COSTA, 2017; FAUSTO; COSTA, 2022). A familiarização é amplamente difundida na Amazônia e, no caso dos Korubo, parece ter um escopo limitado à criação de xerimbabos e de crianças, conforme mencionei.10
O meu processo de familiarização foi inédito. Hoje, as mulheres korubo manifestam interesse em adotar outros brancos, pedindo os bebês de gestantes não indígenas, algo que ainda não se concretizou. Eu estava ali para ensiná-los e, sobretudo, aprender. Possuía um saber estrangeiro que eles desejavam e, ao mesmo tempo, carecia de um conhecimento imprescindível ao cotidiano das aldeias. Além disso, a minha presença demandava cuidados relacionados à alimentação e transmissão de conhecimentos. Esse processo ocorreu em etapas, como receber um nome, ensinamentos da língua korubo; aprender a ofertar e a receber alimentos; ensinar e aprender a caminhar na floresta e nas roças; e fazer corpo. Com o tempo, assumi certa autonomia, sem ser completamente xerimbabo ou criança. Entre os Piro, quando a criança demonstra alguma autonomia em relação aos pais, ela começa a circular entre as casas, pois não depende mais fisicamente da alimentação providenciada por eles (Peter GOW, 1991, p. 160). Nessa fase, qualquer adulto pode tornar-se o alimentador, como ocorreu comigo, sobretudo, durante a ausência dos meus primeiros anfitriões. Entre os Kanamari, esse período de maior autonomia e mobilidade está ligado ao casamento (COSTA, 2017, p. 125-128). No meu caso, essa possibilidade não era cogitada. Então, a minha autonomia era, em alguma medida, fictícia, pois não vinha acompanhada de uma disponibilidade para o casamento. Isso tornou-se mais evidente com a minha menstruação. Afinal, o que fazer com uma estrangeira que sangra na aldeia?
3. Menstruar
Os temas das etnografias refletem a inserção do pesquisador em campo e sua convivência com determinado povo. O gênero incide especialmente nessa relação. Bruna Franchetto (1996, p. 36-37) considerou-se como um “ser andrógino” entre os Kuikuro, que a trataram como detentora de traços femininos e também masculinos. Luisa Belaunde (2021, p. 53) narrou o desconforto que sentiu durante a sua reclusão menstrual, quando permaneceu sentada em folhas de bananeira por cinco dias e, sendo um tema público, todos os Airo-Pai passaram a perguntar se ela estava se sentindo “triste e sozinha”. Os Korubo já tinham visto algumas não indígenas e, conforme os relatos dos agentes estatais, até sabiam que elas sangram, mas nunca tinham convivido com uma branca reclusa em suas aldeias. Em toda a Amazônia, o sangue é alvo de atenção, tratado com dietas e reclusões, especialmente durante a menstruação e o puerpério. A menstruação torna-se um assunto propositalmente público nas comunidades, originando uma rede de cuidados e apoio em que homens e mulheres obtêm alimentos e cuidam das crianças para que a mulher menstruada permaneça reclusa (GOW, 2001; BELAUNDE, 2006).
Os Korubo costumam evitar o contato direto com o sangue que sai de um corpo, exceto o sangue proveniente das picadas de piuns: borrachudos que eles matam, espocam suas picadas com espinhos e, posteriormente, cheiram a ponta dos dedos, como se quisessem “evitar desperdícios” de energia, uma característica Pano (ERIKSON, 1986, p. 197). Quando caçam, aguardam o sangue da presa escorrer para colocá-la nas embarcações. Quando guerreavam, o homicida permanecia dias sem se alimentar até que o corpo da vítima, não enterrada, entrasse em estado de putrefação. Durante o resguardo, o matador ingeria apenas tatxik (Paullinia sp.), retirava suas braçadeiras e voltava a se alimentar aos poucos, sem consumir a primeira caça abatida após o homicídio. No caso das mulheres, os Korubo conferem atenção à menstruação e ao puerpério, períodos em que as relações sexuais são suspensas. Uma das primeiras vezes que ouvi os Korubo falarem em menstruação foi quando Takvan narrou como os Xiavo tornaram-se o que hoje concebemos como diferentes povos na bacia do rio Javari. Existem versões desse mito entre os Marubo e os Matsés. Nelas, a potência do sangue menstrual gera a passagem do contínuo ao discreto (LÉVI-STRAUSS, 1993).11 Depois disso, algumas mulheres falaram-me mais sobre esse tema enquanto estive reclusa.
Os Korubo utilizam a expressão tsat vule para a menstruação e reclusão menstrual. Os termos indicam que, nesse período, a mulher deve permanecer “sentada” (tsat) enquanto o sangue “desce” (vule), similar ao termo para menstruação entre os Matsés, que também se relaciona ao ato de sentar (piscud) (FLECK; BËSO; HUANÁN, 2012, p. 167).12 O termo genérico para sangue (inta) é o mesmo utilizado para o sangue menstrual. Os Korubo concebem a menarca como uma consequência das relações sexuais, precedidas pela penetração vaginal com os dedos (mëpuku; -më: mão) (OLIVEIRA SILVA, 2022, p. 288). Um homem auxilia na construção do corpo da menina, a princípio penetrando-a com os dedos, para que ela menstrue e engravide, formando o feto a partir do acúmulo de sêmen. Assim, todos os homens que mantêm relações sexuais com uma gestante, em alguma medida, podem ser considerados pais da criança.
Antigamente, as mulheres korubo sentavam-se no chão da maloca quando estavam menstruadas. Hoje, as jovens permanecem sentadas ou deitadas em suas redes. Uma mulher menstruada toma banho no igarapé, e não entre as árvores na floresta, conforme ocorreu comigo. Caso haja alguém no local, ela aguarda a pessoa sair para tomar banho sozinha. Exceto nessas ocasiões, permanece em sua rede de dormir. A produção de artefatos com a fibra de tucum é uma das poucas atividades que as vi fazerem menstruadas. Elas não cozinham nem estudam, e permanecem semirreclusas. Aqui, o uso do termo semirreclusão (e não reclusão) indica que uma das diferenças entre a menarca e a menstruação entre povos Pano é justamente a maior rigorosidade em relação à primeira menstruação, quando há reclusão, distinta da semirreclusão que caracteriza os ciclos posteriores.
Durante a menstruação, as mulheres matis, por exemplo, não preparam bebidas fermentadas (ERIKSON, 1996, p. 302), enquanto as mulheres nahua circulam pela aldeia e realizam algumas atividades (Conrad FEATHER, 2010, p. 108). Durante a menarca, ao contrário, há maior rigorosidade. A menarca kaxinawá evita proteína, sal, doces e água. Ingere apenas caiçuma para engordar e permanece em casa, executando atividades sob a orientação de sua avó materna (Kenneth KENSINGER, 1995, p. 201; McCALLUM, 2001, p. 53-54). A menarca yawanawá utiliza plantas para modelar o corpo e não consome alimentos assados e sanguinolentos, que causariam enegrecimento da face, cólicas e hemorragias futuras (Laura PÉREZ-GIL, 2006, p. 71).
Durante a menstruação, uma mulher korubo evita consumir caças sanguinolentas e circular pela aldeia. Não ser vista por um homem é livrá-lo da má sorte nas caçadas e dos acidentes ofídicos, pois aquele que vê uma mulher menstruada durante a lua nova atrai serpentes. A semirreclusão, característica da menstruação entre os Korubo, também objetiva a quietude da reclusa, pois assustar-se gera hemorragia. As mulheres korubo se referem à menstruação como um estado de medo (lakule) do que pode acontecer consigo e com outrem. O medo é um aspecto em comum entre os estados da reclusa e do homicida korubo. Nesses casos, o resguardo objetiva retomar a fertilidade e o convívio social. Bruce Albert (1985, p. 570-621) estabeleceu o paralelo reclusa-homicida ao analisar o caso dos Yanomami. Ambos fazem dietas e resguardo para regular o sangue em seus corpos, neutralizando os perigos, apaziguando a raiva e restabelecendo o parentesco. O homicida retira o excesso do sangue da vítima acumulado em sua barriga para evitar que ele e seus coresidentes transformem-se em outro ser. O excesso de sangue da reclusa também é perigoso para si e para os demais.
Caso sejam mais velhas (matxo), as mulheres korubo evitam também tomar tatxik. Somente os homens e as matxo tomam essa bebida amarga, potencializadora de caçadas e xamanismo, interdita às crianças e mulheres jovens. As matxo configuram um conjunto de mulheres korubo que possuem uma posição de senioridade e maturidade. Algumas delas são férteis, têm filhos pequenos e os amamentam. Isso as distingue das macho entre os Matis. Ao entrarem na menopausa, as mulheres matis tornam-se macho e transcendem os gêneros, isto é, passam a desempenhar atividades masculinas, como sentar no centro da maloca e ingerir substâncias amargas (ERIKSON, 1999, p. 120). No caso korubo, todas as mulheres mais velhas são matxo, mas nem todas estão na menopausa e, mesmo assim, transcendem os gêneros.
Para além da idade biológica, as matxo têm uma posição relacional de acúmulo dos conhecimentos, destreza e habilidades otimizadas, evidenciadas em expedições na floresta e no cotidiano das aldeias. Gerem a fertilidade e a reprodução de outras mulheres, decidindo quem dentre os recém-nascidos será amamentado (tukune), ou seja, quem será criado e se tornará pessoa. Aproveitam expedições ao máximo, extraindo matérias-primas para a fabricação de artefatos que só elas sabem fazer, como as cerâmicas. Hábeis em tratar a caça e transportá-la, as matxo acompanham até caçadas de queixadas. Cortam o cabelo de todos os Korubo em meia-lua. São mestres no cuidado com os demais, sobretudo, com as crianças (OLIVEIRA SILVA, 2022, p. 252-262). Conforme mencionei, as matxo são centrais nas adoções entre os Korubo. Não é à toa que a maior transformação no meu processo de familiarização ocorreu quando duas matxo passaram a cuidar de mim. Ao contrário das outras mulheres korubo, elas não necessariamente cozinham, pois com frequência alguém (rapazes ou mulheres jovens) cozinha para elas. Além disso, elas tomam tatxik, bebida interdita apenas quando estão menstruadas.
Assim, durante a menstruação, as mulheres korubo permanecem semirreclusas e seguem dietas. Eu não presenciei uma menarca em campo, mas as etnografias iluminam o que aconteceu comigo durante os três dias narrados no início deste artigo. Durante a minha menstruação, houve maior rigor sob a forma de uma reclusão, diferente da semirreclusão e dieta seguida pelas mulheres korubo e de outros povos Pano. Eu não pude circular pela aldeia, exceto para tomar banho na floresta, e não no igarapé. Nem pude ver homens, com apenas uma exceção, pois vi um rapaz quando Wio entrou em estado de raiva. A minha dieta foi composta basicamente por frutas, mandioca e água.
Pela primeira vez, uma não indígena menstruou na aldeia e os Korubo tiveram que gerenciar essa reclusão. Até então, eu era como uma menina ou um xerimbabo, dependentes da alimentação mediada pelo trabalho dos adultos. Minha menstruação parece ter sido tratada pelos Korubo como uma menarca apenas para fins de reclusão, pois, ao final do ritual, eu não me encaixava plenamente nos ciclos produtivo e reprodutivo da vida korubo. Conforme Gow observou, um dos efeitos da menarca é produzir parentesco:
By celebrating the initiand’s control over her menstrual blood, the ritual sets up the conditions for her future control over the flow of beer in her daughters’ initiation rituals, and, further into the future, her control over the flow of design painting in rendering girls of her granddaughters’ generation beautiful for their initiation rituals. Equally, the ritual sets up the transformations in kin relations which allow for sexual relations and for real affinity, by transforming ‘distant kinspeople’ into real husbands and wives and others affines. The ritual transforms the temporal distancing of kin ties into the genesis of future kin ties by crating new sexual relations13 (GOW, 2001, p. 176).
A menarca é o momento em que pessoas de geração ascendente controlam substâncias corporais de pessoas de geração descendente, viabilizando o casamento e a produção de novas vidas no processo de criar e sustentar o parentesco. Homens e mulheres korubo administram a reclusão de uma menina (txampi) para tornar-se adulta (matses) e, depois, velha (matxo). Assim, a minha menstruação foi uma menarca anômala, pois não pude construir parentesco por vias reprodutivas. Permaneci reclusa, mas não passei de txampi a matses. Não casei, não adquiri uma casa ou roça para cuidar nem gerei filhos.14 Embora dependesse dos Korubo, eu tinha potência: capaz de sangrar, gerar a vida e a morte; e detentora de conhecimentos sobre o mundo dos brancos.
Diante disso, houve um curto-circuito nas formas que os Korubo utilizavam para me classificar. Após a reclusão, passaram a me chamar menos de txampi (menina), e mais de Manis, nukin Manis (nossa Manis) e, durante as aulas, de lalawameankit (professora) e matxo (mulher mais velha).15 De txampi, tornei-me também matxo. Embora utilizem esses termos como inversões em brincadeiras de parentesco, matxo assinala (contextualmente) a proeminência de algumas mulheres em relação a todos os Korubo. Após a minha menarca anômala, o uso de matxo em contextos específicos (as aulas) assinalou a ambiguidade e ambivalência do meu corpo. Eu não era mais apenas txampi, mas também não era uma matxo completa. Não possuía a senioridade das matxo expressa em permissões, como tomar tatxik.16 Tudo se passa como se fosse necessário reduzir, estrategicamente, o potencial autônomo e criativo deste ser ambivalente: dependente como um animal ou uma criança, mas que sangra e concentra conhecimentos sobre a epistemologia dos brancos.
Conclusão
O estudo de caso narrado inicialmente abriga três eixos de discussão: as concepções korubo sobre os brancos, a adoção e a menstruação. Nesses eixos, para usar uma velha expressão de Mary Douglas (2001, p. 36), eu era “matéria fora de lugar”. Eu não era nem um nem outro, e sim alguém que convivia com eles em suas aldeias. Minha total inépcia com a vida na floresta e nas aldeias era evidente para todos. Ao ser adotada, viver em suas aldeias e comer sua comida, as classificações elaboradas para os brancos não abrigaram a complexidade do meu processo de familiarização, sobretudo, quando menstruei. Minha menstruação foi tratada com rigor, como uma menarca. Foi a primeira e última vez que menstruei em campo, pois, como as mulheres korubo, senti “medo”.
Decidi usar um contraceptivo para suspender a minha menstruação durante a pesquisa de campo. Diante disso, as mulheres korubo mostraram-se interessadas em compreender que medicamento era esse, capaz de interromper o sangue. Algumas jovens afirmavam não querer menstruar e mostravam-se curiosas sobre a minha nova condição. Contudo, ao compreenderem que o contraceptivo me tornava infértil, perdiam o interesse. Não queriam menstruar, mas queriam ter filhos. Os Korubo passaram a me tratar como um ser liminar entre infância e velhice, incapaz de produzir vida. Se, em algum momento, fui menina (txampi), após sangrar, não me tornei mulher adulta (matses), e sim uma menina-velha. Ser velha (matxo) inclui ainda transcender gêneros, o poder de realizar funções femininas e masculinas, isto é, o “ser andrógino”, nos termos de Franchetto (1996). Eu frequentava roças, acompanhava mulheres e crianças em expedições de caça, pesca e coleta. E, ao mesmo tempo, sentava-me junto aos homens no centro da maloca.
Os Korubo nunca me chamaram pela conjunção dos dois termos (txampi-matxo), mas oscilavam entre os dois, sinalizando a ambivalência evidenciada pelo meu sangue. Até então, era pertinente que eu fosse txampi ou Manis, termos que indicavam o fato de me ensinarem sua língua, o uso correto dos termos de parentesco, o modo de existir e me tornar pessoa. Txampi é alguém que depende de outrem, improdutiva, na posição de ser (apenas) “criada”, alimentada e ensinada pela comunidade. Após a reclusão menstrual, matxo passou a ser utilizado durante as aulas, na “escola”, onde eu estava na posição de ensinar algo. Minha reclusão caracterizou-se por incerteza e medo, e complexificou as concepções korubo sobre os brancos: menina-velha, inimigo-parente, criança-adulta, aluna-professora, antropóloga.