1 Introdução
O presente artigo tem como escopo principal investigar e analisar o retrato de concepções 1 sobre deficiências, expostas por universitários matriculados em Instituições da Educação Superior (IES), públicas e privadas, do estado de São Paulo. Isso porque, ao considerarmos os contextos educacionais, enquanto importantes espaços de formação do indivíduo, compreendemos que os elementos sócio-histórico-culturais, ainda que veladamente, podem potencializar ou minimizar atitudes discriminatórias frente a pessoas com deficiência ( LEITE; LACERDA, 2018 ).
Essa tendência está, intrinsecamente, relacionada à construção histórica das concepções de deficiência que, sob diferentes perspectivas, podem fomentar, isoladamente ou concomitantemente, atitudes sociais positivas e negativas. A literatura científica desvela o predomínio de três tipos de concepções relacionadas à deficiência:
Concepção Metafísica: justificada por uma compreensão ontológica, teológica e suprassensível da realidade, tende a sobrepor ao sujeito com deficiência o ideário de ter alma demoníaca ou desígnios divinos, transcendendo a responsabilidade humana. Está atrelada a crenças – legitimadas por convicções e ensinamentos religiosos e/ou a crendices – fundamentadas em superstições de origem popular não sancionadas por doutrinas institucionalizadas ( HOUAISS; VILLAR, 2009 ; PESSOTTI, 1984 );
Concepção Biológica: considera uma série de comprometimentos no organismo decorrentes de padrões genéticos diferenciados, de lesões neurais, de malformações hereditárias e/ou de outras ocorrências que levam a um funcionamento diferenciado do organismo físico do sujeito – sobreposto na ideia de “normal” e de “patológico” ( CANGUILHEM, 2009 );
Concepção Social: pondera o estabelecimento das interações sociais do sujeito em contextos, com ou sem prejuízos, ocasionados histórica e culturalmente, deixando de ser um fato, exclusivamente, (sobre) natural ( DINIZ, 2007 ; LEITE; LACERDA, 2018 ).
Autores como Amaral (1998) e Carvalho-Freitas e Marques (2010) indicam que a produção da diferença, reeditada de tempos em tempos, em diferentes contextos e épocas, está imbricada na forma de interpretação compartilhada sobre a diferença e a deficiência, representando um fator fundamental para compreender ações sociais em relação a esse público.
Na Educação Superior, particularmente, as concepções de deficiências têm sido acompanhadas por políticas de ações afirmativas para o ingresso, permanência, formação, diplomação e transição para a atuação profissional, culminando em uma transformação lenta, mas contínua, da identidade das IES públicas e privadas, sobretudo a partir da década de 1960 (ANACHE, ROVETTO; OLIVEIRA, 2014; BRASIL, 2005a, 2005b, 2006, 2009, 2015, 2016, CABRAL, 2017 ; CURY; HORTA; FÁVERO, 1996; SANTOS, 1997 ).
Ao longo da última década, destacou-se o Programa Reuni, que visando a diminuir as desigualdades sociais no país, buscou ampliar vagas nos cursos de graduação; aumentar a oferta de cursos noturnos; promover inovações pedagógicas e combater a evasão. Cumpre notar que, apesar da crescente expansão das IES públicas nas últimas duas décadas, em decorrência de programas como esse, a rede privada da Educação Superior segue mais capilarizada e ofertando mais de 70% das vagas (BRASIL, 2007a).
Ainda assim, essas transformações, voltadas à promoção da acessibilidade 2 , puderam ser representadas na esfera de modificações culturais, arquitetônicas, comunicacionais, informacionais, atitudinais, metodológicas, programáticas, tecnológicas e/ou didáticas, nos sistemas de ingresso 3 , para além da transformação de seu status quo , tradicionalmente, elitizado, meritocrático, cristalizado e discriminatório em relação às diversas minorias político-sociais ( CABRAL, 2018 ).
Concomitantemente a esses movimentos, é inevitável (ou deveria ser) que as comunidades acadêmicas questionem suas concepções de deficiência, sobretudo quando são incitadas a reconhecerem as multiplicidades e as diferenças das pessoas com deficiências para legitimação de seus direitos. Isso porque, quando as variáveis complexas, que constituem uma concepção, não são bem discutidas e relacionadas aos seus micros e macros contextos, podem tornar-se elementos discriminatórios, arbitrários e excludentes, deixando determinados segmentos sociais em condições mais marginalizadas do que outros.
Nesse sentido, a comunidade científica tem-se debruçado em investigações sobre concepções de deficiências circulantes, junto ao campo educacional. Na Educação Superior, contexto em que se assenta o estudo em tela, predominam as análises de conteúdo de dados obtidos por meio de roteiros de entrevistas e/ou de questionários, sem utilização de escalas específicas ( ALVARENGA, 2016 ; CHRISTMANN, 2019 ; CRUZ, 2012 ; LOMÔNACO; CAZEIRO, 2006 ; MALUSÁ; SANTOS; PORTES, 2010; OLIVEIRA, 2007 ; PIMENTEL; SANTANA; RIBEIRO, 2013; TEIXEIRA JÚNIOR; SOUZA, 2019 ).
A proposição de escalas sobre concepção de deficiência, especificamente, foi identificada apenas nos estudos de Mattos (2016) e de Rodovalho, Moreira e Mané (2018). Todavia, o primeiro apoiou-se em uma escala ainda não validada e o segundo, respectivamente, subsidiou-se dos dados provenientes de uma escala voltada à concepção de deficiência atrelada à Matemática, ou seja, uma área de conhecimento específico.
No que tange às atitudes sociais em relação à deficiência, particularmente, cumpre destacar que há importantes escalas para seu aferimento ( ANTONAK; LIVNEH, 1988 ; OMOTE, 2005 , 2016 ; OMOTE et al ., 2005). Vale observar, contudo, que os objetivos centrais desses instrumentos não se centram, essencialmente, em identificar concepções de deficiência.
Nesse cenário e, considerando-se a potência que os contextos das IES brasileiras, públicas e privadas apresentam no processo de formação humana e profissional, importa identificar, sistematizar, validar e difundir instrumentos com indicadores sobre concepções de deficiências que possam desvelar elementos que subsidiem discussões de políticas de ações afirmativas para o reconhecimento e para a legitimação de direitos humanos, na perspectiva da acessibilidade.
Assim, na busca de compreender o processo de (des) construção de uma identidade institucional frente ao processo de (des) construção de concepções sobre a deficiência, ao legitimar os direitos de cidadania da população com deficiência, o presente estudo justifica-se, pela necessidade de fomentar as comunidades científicas e acadêmicas das Ciências Sociais, das Ciências Políticas, da Psicologia, da Educação e da Educação Especial, fundamentalmente, no intuito de identificar caminhos para a superação de atitudes discriminatórias com base na deficiência.
2 A pesquisa
Realizada por uma rede, interinstitucional, de grupos de pesquisa, que tem estudado com profundidade o tema, esse recorte 4 do estudo objetiva: (a) retratar como a deficiência é descrita e compreendida em contextos educacionais distintos, considerando suas semelhanças e contrastes; (b) identificar como estudantes universitários, matriculados em IES, públicas e privadas, posicionam-se diante de enunciados que retratam concepções diferenciadas de deficiência, a partir da aplicação da Escala Intercultural de Concepções de Deficiência (EICD); (c) comparar os resultados obtidos entre os estudantes nesses diferentes contextos; (d) analisar relações entre escolha de posicionamentos, em função de algumas variáveis, como: área de atuação e/ou de formação acadêmica; períodos de matrícula (ingressantes e/ou concluintes) e faixa etária.
3 A coleta de dados
A pesquisa foi realizada respeitando os procedimentos éticos da pesquisa com seres humanos, sendo que, a coleta de dados foi realizada com o consentimento e a participação de estudantes universitários, matriculados em três IES do estado de São Paulo, em diferentes anos da formação. Informa-se, ainda, que a pesquisa atende aos dispositivos da Resolução CNS nº 466/12, e apresenta parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa, registrado na Plataforma Brasil, sob o protocolo CAAE 84374018.2.1001.5398.
3.1 Procedimentos éticos, identificação e caracterização dos participantes
A coleta de dados foi realizada com o consentimento e a participação de estudantes universitários.
Conforme indica a Tabela 1 , de um total de 1.753 participantes, 805 são provenientes de uma instituição pública estadual (45,89%), 326 de uma instituição pública federal (18,59%) e 622 de uma instituição privada (35,52%) 5 .
Esfera área | IES-E | IES-F | IES-Pr | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
n* | %** | n* | %** | n* | %** | n* | %** | |
Humanas | 363 | 20,79 | 180 | 10,26 | 340 | 19,39 | 872 | 49,71 |
Exatas | 197 | 11,23 | 65 | 3,71 | 193 | 11,00 | 467 | 26,63 |
Biológicas | 244 | 13,91 | 80 | 4,56 | 80 | 4,56 | 404 | 23,03 |
N.I.*** | 1 | 0,06 | 1 | 0,06 | 9 | 0,51 | 11 | 0,63 |
Total | 805 | 45,89 | 326 | 18,59 | 622 | 35,52 | 1.753 | 100 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
IES-E: Instituição de Educação Superior – Pública Estadual; IES-F: Instituição de Educação Superior – Pública Federal; IES-Pr: Instituição de Educação Superior – Privada.
* Número absoluto de participantes; ** Percentual sobre o número total de participantes da pesquisa; *** Não informou o curso.
Os dados indicam, portanto, a prevalência de participantes matriculados em cursos da área das Ciências Humanas (49,71%), sendo 20,69% de IES-E; seguida, respectivamente, por participantes da área das Ciências Exatas (26,63%), sendo 11,69% de IES-Pr e das Ciências Biológicas (23,03%), sendo 13,91% também de IES-E.
Desse total, 1.061 estudantes autodeclararam-se como sendo do gênero feminino (60,49%); seguidos por 669 do gênero masculino (38,14%); 17 estudantes preferiram não responder (0,97%) e 7 que indicaram “Outro Gênero” (0,40%), conforme detalhado na Tabela 2 .
Esfera Administrativa Gênero | IES - E | IES - F | IES - Pr | Total | ||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||||
n* | %** | n* | %** | n* | %** | n* | %** | |
Feminino | 516 | 29,42 | 215 | 12,26 | 330 | 18,81 | 1.061 | 60,52 |
Masculino | 278 | 15,85 | 105 | 5,99 | 285 | 16,31 | 668 | 38,1 |
Prefiro não responder | 5 | 0,28 | 5 | 0,28 | 7 | 0,4 | 17 | 0,97 |
Outro | 6 | 0,34 | 1 | 0,06 | 0 | 0 | 7 | 0,4 |
Total | 805 | 45,89 | 326 | 18,59 | 623 | 35,52 | 1.753 | 100 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
IES-E: Instituição de Educação Superior – Pública Estadual; IES-F: Instituição de Educação Superior – Pública Federal; IES-Pr: Instituição de Educação Superior – Privada.
* Número absoluto de participantes; ** Percentual sobre o número total de participantes da pesquisa.
No que tange à condição de deficiência, 54 estudantes (3,08%) autodeclararam-se compor o grupo de pessoas com deficiência, sendo que, do total de participantes por instituição, 23 são matriculados na IES-E (2,86%), 19 na IES-F (5,83%) e 12 na IES-Pr (1,93%).
3.2 Instrumentos de coleta de dados
A coleta de dados ocorreu pela aplicação da EICD 6 constituída, tanto de questões para obtenção de informações sociodemográficas, quanto de enunciados referentes às três principais vertentes de concepções de deficiência: biológica, social e metafísica. Para a realidade brasileira, os processos de validação e de confiabilidade do instrumento, por meio de estudos psicométricos, foram publicados em Leite, Cardoso e Oliveira (2021). Aplicada em ambiente virtual, com a utilização da ferramenta Google Forms 7 . A escala foi composta por 43 enunciados da EICD, distribuídos em: 17 enunciados para a concepção biológica, 15 para a social e 11 para a metafísica – era seguido de 5 alternativas de concordância (tipo Likert ), das quais somente 1 poderia ser assinalada pelo respondente, ordenada com os valores de discordo totalmente (1), discordo (2), nem concordo nem discordo (3), concordo (4) e concordo totalmente (5), sendo os intervalos de confiança distribuídos de acordo com a Tabela 3 .
Concepções | Discordância | Tendência a discordância | Tendência a concordância | Concordância |
---|---|---|---|---|
Biológica | 17 a 34 | 35 a 42,4 | 42,5 a 67 | 68 a 85 |
Social | 15 a 30 | 31 a 37,4 | 37,5 a 59 | 60 a 75 |
Metafísica | 11 a 22 | 23 a 27,4 | 27,5 a 43 | 44 a 55 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
3.2.1 Procedimentos de tratamento e análise dos dados
Os dados, obtidos, por meio do formulário virtual da EICD, foram tabulados, codificados e exportados em formulário do programa Excel® e, posteriormente, foram transportados para o software de análise estatística IBM SPSS® versão 20.
O tratamento dos dados deu-se por meio do software e foram realizadas análises descritivas gerais, todas de frequência e análises inferenciais paramétricas, sendo elas: correlações de Pearson , Teste T de Student e ANOVA.
Em seguida, foi realizada a análise interpretativa das respostas, buscando examinar quais as concepções de deficiência mais concordantes e/ou discordantes e suas implicações, cujos resultados e discussões serão apresentados a seguir.
4 Resultados e discussões
O desenvolvimento da pesquisa produziu dados que foram tratados estatisticamente, permitindo comparações entre os resultados da aplicação da EICD nas três IES investigadas, mostrando aproximações e distanciamentos entre a forma de conceber a deficiência entre os universitários participantes.
4.1 Análise descritiva
A análise descritiva sobre as concepções de deficiência demonstrou similitudes e divergências quando correlacionadas às esferas administrativas.
Conforme demonstrado na Figura 1 , as IES públicas apresentaram média de concordância sobre as concepções social 8 (IES-E = 47,74; IES-F = 49,88), sendo mais expressiva na universidade federal e biológica 9 (IES-E = 51,72; IES-F = 48,63), em que a maior tendência de concordância foi na estadual. Porém, não demonstrando resultados significativos de concordância sobre a concepção metafísica 10 (IES-E = 17,08 e IES – F = 16,69). Paralelamente, a IES privada indicou igualmente concordância com as concepções social (44,62) e biológica (50,01), assim como as outras instituições participantes, mas foi a única que apresentou concordância com a concepção metafísica, com média 30,51.
Importa ressaltar que nenhuma das IES investigadas alcançou forte concordância nas 3 concepções investigadas, visto que precisariam ter obtido valores superiores de média (> 59) para a concepções social, (> 68) na biológica e (> 44) e na metafísica, respectivamente.
Em decorrência de todos esses dados, foi possível traçar as médias e o desvio padrão das concepções sobre deficiência. Conforme apresentado na Figura 2 , o que chama a atenção é que todas as 3 universidades tiveram alto desvio padrão, em todas as concepções, indicando que o grupo não tem uma concordância ou discordância homogênea.
4.2 Análise inferencial
Os dados foram analisados com base na correlação entre Concepção de Deficiência e as seguintes variáveis: idade e área de conhecimento.
4.3 Idade
Realizou-se o Teste de Correlação de Pearson para verificar se havia correlação entre as concepções sobre deficiência e a idade dos participantes. Identificou-se uma correlação significativa, diretamente proporcional ao ano de nascimento com a concepção biológica na IES-F, indicando que conforme maior o ano de nascimento (menor idade), maior a tendência em concordar com essa concepção, como pode ser observado na Tabela 4 .
Social | Metafísica | Biológica | |
---|---|---|---|
IES-Pr | 0,095 | 0,309 | 0,242 |
IES-F | 0,344 | 0,111 | 0,003 |
IES-E | 0,342 | 0,322 | 0,566 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
IES-Pr: Instituição de Educação Superior – Privada; IES-F: Instituição de Educação Superior – Pública Federal; IES-E: Instituição de Educação Superior – Pública Estadual.
4.4 Relação entre concepção de deficiência e área de formação
Realizou-se o teste ANOVA para identificar diferença de média significativa por grande área de conhecimento da formação do participante. Na IES-Pr e na IES-E, identificou-se diferença significativa nas três concepções investigadas, porém na IES-F, somente não foi observada diferença significativa por grande área na concepção metafísica, conforme observado na Tabela 5 .
Instituição Concepção | Social (p) | Metafísica (p) | Biológica (p) |
---|---|---|---|
IES-Pr | 0,019 | 0,001 | 0,005 |
IES-F | 0,000 | 0,134 | 0,000 |
IES-E | 0,000 | 0,005 | 0,000 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
IES-Pr: Instituição de Educação Superior – Privada; IES-F: Instituição de Educação Superior – Pública Federal; IES-E: Instituição de Educação Superior – Pública Estadual.
Ao ser observada significativa diferença nas três universidades, realizou-se a comparação pormenorizada de suas médias por grande área de conhecimento ( Tabela 6 ). Observou-se que, para a concepção social, as maiores médias foram as dos participantes dos cursos de exatas, da IES-Pr, e dos cursos de humanas provenientes das IES públicas. Na concepção metafísica, a maior expressão de média foi dos participantes dos cursos de biológicas, da IES-Pr, e dos cursos de exatas, no caso das instituições públicas. Para a concepção biológica, observaram-se maiores médias nas três universidades nos participantes procedentes dos cursos de exatas.
Concepção | Social | Metafísica | Biológica | ||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
| |||||||||
Área/Instituição | Hum | Bio | Exa | Hum | Bio | Exa | Hum | Bio | Exa |
IES-Pr | 43,71 | 45,58 | 45,8 | 29,55 | 32,21 | 31,37 | 48,89 | 52,31 | 50,9 |
IES-F | 52,12 | 51,73 | 41,76 | 16,78 | 15,3 | 18,04 | 46,12 | 49,48 | 54,46 |
IES-E | 49,92 | 46,81 | 44,8 | 16,01 | 17,77 | 18,09 | 48,9 | 53,58 | 54,66 |
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados da pesquisa (2020)
IES-Pr: Instituição de Educação Superior – Privada; IES-F: Instituição de Educação Superior – Pública Federal; IES-E: Instituição de Educação Superior – Pública Estadual; Hum: Ciências humanas; Bio: Ciências Biológicas; Exa: Ciências Exatas
5 Discussão
Transversalizando todo esse panorama, foi possível desenvolver uma análise que relaciona as concepções de deficiência dos participantes da presente pesquisa às suas respectivas proveniências administrativo-institucionais (IES públicas privadas).
Os dados inferem que nas três IES investigadas, existe uma tendência de concordância com enunciados que expliquem a deficiência, a partir de um modelo social (mais acentuada na IES-F) e/ou biológico (mais acentuada na IES-E). No entanto, somente a IES privada apresenta a concepção metafísica de deficiência com escore de concordância, estatisticamente, significativo 11 .
Diante dessas correlações, importa considerar as possíveis influências da atual globalização neoliberal sobre a Educação Superior, os diversos fatores que perpassam o reconhecimento das identidades e das diferenças dos sujeitos que acessam esse nível de ensino e, particularmente, sobre a influência desse contexto sobre a construção e as concepções de deficiência.
Soma-se a isso a tendência desse nível de ensino em atender os interesses do Banco Mundial e da Organização Mundial do Comércio, os quais se esforçam em conceber a Educação como potencial mercadoria, constatando a superioridade do capitalismo, inclusive, enquanto organizador de relações sociais (SILVA JÚNIOR; SGUISSARDI, 1999). Para direcionar tal discussão, é necessário compreendermos que “só há uma universidade quando há formação graduada e pós-graduada, pesquisa e extensão” ( SANTOS, 2005 , p. 65).
Abarcando essa configuração, Chauí (2001) destaca, ainda, que a universidade é uma organização social inserida no setor de serviços não exclusivos do Estado, além de expor que:
A legitimidade da universidade moderna fundou-se na conquista da ideia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na ideia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou sua descoberta, como no de sua transmissão [...]. Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos, com a conquista da Educação e da cultura como direitos, a universidade tornou-se também uma instituição social inseparável da ideia de democracia e de democratização do saber (p. 185).
Em complemento, Benincá (2011) e Castells (2018) destacam que a universidade não pode e não deve furtar-se à responsabilidade e ao direito de também aprender com grupos, comunidades, movimentos e experiências sociais, uma vez que esses são sintomas das nossas sociedades que causam impactos nas estruturas sociais, em diferentes graus de intensidade e com resultados distintos. Cabe à universidade, portanto, fortalecer as potencialidades dos movimentos sociais, a fim de promover a emancipação, resistir à globalização neoliberal e produzir uma globalização contra-hegemônica.
Por outro lado, quando consideramos que, potencialmente, os sintomas da sociedade tendem não fazer parte das reflexões, no âmbito das instituições privadas, podemos questionar: Como uma universidade privada, que tem interesses intrinsecamente econômicos, com vieses competitivos, perpassando, explicitamente, os sujeitos, poderá caminhar contra uma hegemonia neoliberal, reconhecendo as potencialidades e as competências de pessoas com deficiência?
Não é por acaso que a prática dominadora se assenta na teoria da ação antidialógica, buscando coisificar o outro, torná-lo objeto. As marcas de tal postura originam cenários onde imperam, no âmbito político, a “cultura do silêncio” e o autoritarismo, e no âmbito educacional, o “treinamento” dos sujeitos, que são ensinados a obedecer e não a fomentar a sua curiosidade em relação ao mundo. A consequência disso é um processo de cisões profundas no tecido social, pois a desigualdade social é deletéria para as práticas autenticamente democráticas ( PEREIRA, 2011 , p. 69).
Nesse sentido, os dados da EICD, ao indicarem a predominância de uma concepção metafísica de deficiência dentre estudantes provenientes de instituições privadas, podem sugerir que transpor a questão da deficiência a uma questão transcendental, naqueles contextos, seja mais cômoda e mais próxima ao “politicamente correto” 12 , em relação a assumir que existe uma concepção competitiva e negativamente discriminatória, incitada por um contexto neoliberal e mercadológico, sem que se faça algo para alterar o status quo da universidade e de suas próprias concepções.
Outro questionamento a ser aventado, refere-se a uma análise mais geral dos dados, que indica, nas concepções social e biológica, resultados de valores de média muito próximos nas três instituições, porém, em nenhuma apontando forte concordância em nenhuma das duas concepções investigadas. Somado a isso, tem-se um alto desvio padrão entre os respondentes no julgamento dos enunciados relativos a essas concepções.
Sustentados nessas observações, pode-se inferir que nas três amostragens investigadas, opinar sobre o fenômeno da deficiência não é algo simples, nem fácil. Ao contrário, a deficiência é um constructo complexo e multideterminado, e, ainda, recoberto de aspectos que extrapolam a materialidade humana. Por complexidade coadunamos com Carvalho (2015) , em que a [...] “a realidade está composta por múltiplos e não lineares elementos, que se interpenetram de modo intenso e desafiam a compressão” e, mais adiante, “levando, assim, ao significado de complexo como aquilo que é tecido junto, que está entrelaçado” (p. 156-157).
Diante disso, talvez se expliquem os altos índices de desvio padrão e os valores de médias encontrados, ou seja, apesar da amostra constituir-se de três grupos de universitários, percebe-se que mesmo os provenientes de uma instituição semelhante deixam de apresentar (enquanto grupo) posicionamento marcante, em modos de explicar a deficiência, enquanto algo decorrente de um funcionamento orgânico diferenciado, ou como decorrente da interpretação que a audiência social julga na presença de atributos físicos, comportamentais e/ou sensoriais dissemelhantes.
Em particular, se os estudantes das três instituições concordarem com os enunciados da concepção biológica implica dizer que, no interior do contexto universitário, é circulante a ideia da deficiência, ou da pessoa que se encontra nessa condição, como atípicas, por apresentarem um corpo classificado como patológico - ou anormal, que necessitam de tratamentos corretivos, como já bem debatido por Amaral (1988) e Canguilhem (2009) . Com isso, conforme apontado por Gaudenzi e Ortega (2016 , p. 3062) “[...] discursos doutos de caráter científico tomam os corpos que não se encaixam nos padrões estéticos ou funcionais da média da sociedade como objeto de saber/poder e rotulam-los como anormais, isto é, corpos que não são apenas diferentes, mas que devem ser ‘corrigidos’”. Sob esse entendimento, a deficiência passa a ser representada como anomalia, portanto, desviante de um padrão de normalidade.
Além disso, os conceitos e as terminologias relacionados à deficiência presentes na legislação brasileira, indicam a influência do modelo médico (biológico) na construção, na aplicação e no desenvolvimento de políticas públicas no setor. Nesse sentido, o chamado “modelo médico” exerce controle sobre aspectos fundamentais da vida de pessoas com deficiência, definindo, por meio da legislação, se elas podem ou não trabalhar, o tipo de escola e os níveis de escolaridade que devem frequentar, serviços e benefícios que podem exercer e receber ( BERNARDES; ARAÚJO, 2012 ).
Mais recentemente, o modelo social de deficiência tem influenciado a elaboração de leis e normas e impactado nas políticas públicas. Emergem diversos documentos legais que apontam para eliminação de barreiras e de direitos sociais: Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o Decreto nº 6.214/2007 (BRASIL, 2007b), que trata do Benefício de Prestação Continuada (BPC), assume os princípios da funcionalidade para a avaliação da deficiência, introduzindo parâmetros ambientais, sociais e pessoais, entre outras leis. “A adoção dessa nova perspectiva e da absorção dos novos referenciais teóricos na legislação tem impactado a formulação de políticas públicas para pessoas com deficiência e para o restante da sociedade” ( BERNARDES; ARAÚJO, 2012 , p. 2438).
Assim, há, na sociedade, uma pluralidade de compreensões circulantes, que se fazem sentir nas respostas dos estudantes. No contraponto há, igualmente, tendência a concordar com enunciados que interpretam a deficiência como uma condição social, atributos corporais diferenciados dependem da interpretação subjetiva, e, portanto, passíveis de serem compreendidos de formas diversas no social.
Disso podem decorrer modos de entendimento e de acolhimentos diversos, à luz de serem configurados como um grupo populacional, que, por apresentar condições distintas, necessita de respostas sociais específicas, porém, pautados na ideia de que a diferença é constitutiva do homem. Em detrimento a ela, as singularidades passam a receber medidas protetivas para a garantia dos direitos comuns a todos ( MADRUGA, 2016 ).
Nessa direção, a pessoa com deficiência pode deparar-se com dificuldades, ou ainda, ser impedida de ter acesso aos bens culturais, produzidos historicamente, uma vez que “o aparato da cultura humana (da forma exterior de comportamento) está adaptado à organização psicofisiológica normal da pessoa. Toda a nossa cultura é calculada para a pessoa dotada de certos órgãos – mão, olho, ouvido – e de certas funções cerebrais” ( VIGOTSKI, 2011 , p. 867).
Dito de outro modo, aparato cultural (instrumentos culturais – técnicas, estruturas sociais, formas de comunicação, dentre outros) é, em grande medida, planejado para atender um padrão de homem, considerado comum (ou normal) e, com isso, as pessoas que não se encaixam nessa norma (desviante) passam a ser vistas e classificadas como anormal, na análise aqui retratada, como deficientes ou pessoas com deficiência e não, simplesmente, cegas, surdas, paraplégicas, por exemplo.
6 Considerações finais
A EICD foi sensível ao indicar formas distintas de conceber-se a deficiência entre estudantes de IES públicas e privadas. Potencialmente, os resultados apresentados, analisados e discutidos com a literatura podem indicar diferentes caminhos para as ações que visem à acessibilidade e à inclusão das pessoas com deficiência nos espaços universitários, a depender de suas esferas administrativas.
Os estudantes das IES públicas, em geral, tendem a contar com recursos econômicos próprios, subsídios familiares ou políticas de ações afirmativas (bolsas de estudos, auxílio moradia, dentre outras). Isso contribui para que frequentem as universidades em período integral, convivendo com seus pares e, concomitantemente, com as diferenças, possivelmente, corroborando uma compreensão da deficiência enquanto fenômeno social.
Os estudantes das IES privadas, em algumas vezes, são mais velhos e matriculados em cursos do turno noturno, trabalhando para custear seus estudos, ou ainda, em busca de uma certificação profissional. Com isso, o vai-vem universitário tende a se restringir à participação em aulas, tendendo trazer concepção prévia ao ingresso na universidade e, no caso investigado, apresentaram menor discordância à concepção metafísica, indicando a presença de um sistema de crenças, de um pensamento religioso, que justifica e explica a deficiência.
A área de conhecimento à qual o estudante está ligado, também, se mostra relevante, uma vez que há correlação significativa entre as áreas e as concepções reveladas pelos estudantes. Investigações mais abrangentes podem ajudar a compreender se há variáveis específicas de uma localidade ou se corresponde a uma constante para uma região, ou mesmo para o país.
Apesar de contar com uma amostra razoável de participantes e, de terem sido adotados métodos sólidos de investigação que permitem anunciar as inferências traçadas, os limites dessa pesquisa circunscrevem-se a três IES de um mesmo estado geográfico, não podendo seus resultados, a priori , serem generalizados para outros lugares. Sugere-se, assim, que estudos com outras amostras de universitários sejam realizados para fortalecer, cientificamente, o debate nesse tema, essencialmente, para superar discussões cotidianas e contribuir para o aprofundamento crítico da ordem social atual, pautada em pilares frágeis - na garantia da participação mais efetiva das pessoas com deficiência que tendem a ampliar a sua atuação em campos profissionais das mais diversas áreas do conhecimento.
Compreender melhor a forma de pensar dos estudantes pode favorecer ações mais acertadas no que tange à inserção da pessoa com deficiência nos níveis mais avançados de ensino, uma vez que o ingresso das pessoas com deficiências na Educação Superior se vem ampliando, fruto das políticas públicas no âmbito da legislação brasileira.
Reiterando os dispositivos da Convenção Internacional dos Diretos da Pessoa com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão, importa que as diversas sociedades compreendam a deficiência sem valoração negativa, na relação policêntrica entre as condições dos sujeitos e seus respectivos contextos (BRASIL, 2015).
Os resultados da investigação científica que aqui se apresentam, como elementos para uma possível composição que visa a contribuir com o processo gradativo da legitimação da igualdade dos direitos em todas as esferas sociais, da equidade de oportunidades e da não discriminação negativa com base na deficiência. Complementando, podem auxiliar no estabelecimento de ações mais propositivas por parte da gestão universitária, seja ela pública ou privada, na perspectiva democrática e de acessibilidade, para que minorias político-sociais, como as pessoas com deficiência, tenham condições adequadas em suas trajetórias de formação acadêmica em nível superior.
Acreditamos, ainda, que os achados traduzem as marcações sobre deficiência, que futuros profissionais de diversas áreas do saber trazem consigo. Diante disso, reforça-se a importância de investimentos acadêmico-científicos, culturais e políticos que fomentem o debate crítico com todos os estudantes, no reconhecimento e na valorização das diferenças humanas, promovendo ações para uma qualificação mais atenta e compromissada com um segmento que, ainda, infelizmente, encontra sérias dificuldades de inserção social.
Nesse sentido, as Instituições da Educação Superior podem atuar, significativamente, no processo de tradução das prescrições legais na dimensão da atuação cotidiana, do debate plural e crítico dos fenômenos culturais, extrapolando as narrativas “politicamente corretas”, mas que, muitas vezes, podem ser incoerentes com a prática do reconhecimento da diferença.