1 Introdução
Ao longo da sua trajetória histórica, o Brasil foi, e é, marcado por profundas e por múltiplas desigualdades sociais ( ARRETCHE, 2015 ). Embora, nas últimas décadas, tenham ocorrido transformações relevantes, especialmente quanto ao acesso a serviços públicos por parte dos estratos mais pobres da população, o país persiste entre um dos mais desiguais do mundo (CAMPELLO et al. , 2018). Na Educação, por exemplo, a diminuição das disparidades de acesso e de permanência intrarregionais ocorreu, concomitantemente, ao aumento das desigualdades entre as regiões do país ( MEDEIROS; OLIVEIRA, 2014 ). Enquanto a escolarização de mulheres, nos últimos 50 anos, cresceu em relação a de homens e a de pardos aproximou-se da de brancos (RIBEIRO; CENEVIVA; BRITO, 2015), no mesmo período, pretos, e, especificamente, mulheres pretas, continuaram com as menores taxas de acesso à Educação formal e com o pior impacto educacional na mobilidade social ( LIMA; PRATES, 2015 ).
O monitoramento dos movimentos dessas desigualdades para a formulação e a avaliação de políticas tem sido feito a partir de indicadores sociais ( JANNUZZI; 2016 ) e operacionaliza-se na forma de instrumentos de políticas públicas. Por instrumento de políticas, entende-se um tipo particular de instituição na forma de um dispositivo técnico e político que estabiliza modos de regulação (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012a). No caso da Educação brasileira, o acompanhamento das políticas educacionais por instrumentos é realizado, principalmente, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), autarquia subordinada ao Ministério da Educação1 . Dentre os diferentes instrumentos do Inep, para a Educação Básica, destacam-se o Censo da Educação Básica (Censo Escolar) e o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb).
Enquanto o Censo Escolar é coletado, anualmente, em todas as escolas brasileiras, públicas ou privadas, e de qualquer etapa e/ou modalidade, o Saeb é de periodicidade bianual e é composto por um universo amostral que envolve um público-alvo matriculado em séries específicas, que cumpram requisitos normatizados pelo Inep. Na edição de 2019, comporiam o universo de participantes do Saeb ( INEP, 2019 ) os estudantes do 2o, do 5o e do 9o anos do Ensino Fundamental e os estudantes do 3o e 4o anos do Ensino Médio (tradicional e integrado). Os exames de proficiência em Língua Portuguesa e em Matemática seriam aplicados para todas as escolas públicas (de forma censitária para o 5° e o 9° anos, além do Ensino Médio) e para uma amostra de escolas privadas. Já os exames de proficiência em Ciências Humanas e em Ciências da Natureza seriam para grupos amostrais de escolas públicas e privadas do último ano do Ensino Fundamental. Em 2019, pela primeira vez, também foram realizadas avaliações específicas para um grupo amostral de instituições públicas ou conveniadas da Educação infantil.
Tanto no Censo Escolar quanto no Saeb constam informações das escolas, dos docentes, dos estudantes e dos gestores que podem ser utilizadas na avaliação de políticas, como os dados relativos ao número de matrículas por etapa e/ou modalidade, a infraestrutura escolar, a formação de professores, os resultados de aprendizagem etc. O Plano Nacional de Educação (PNE), Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014, por exemplo, utiliza-se dessas informações para o acompanhamento de seus objetivos, como para a avaliação da Meta 2, que trata da universalização de matrículas no Ensino Fundamental; da Meta 7, que trata da melhoria dos fluxos escolares, de aprendizagem e de condições de infraestrutura escolar; da Meta 15, que se refere à formação de professores da Educação Básica, dentre outras ( BRASIL, 2014 ). Dessa maneira, a conjugação do Censo Escolar e do Saeb fornece, para os poderes públicos, os pesquisadores, os acadêmicos, os think tanks educacionais e demais grupos de interesse, um conjunto de evidências sobre a realidade educacional no país.
Criado em um contexto de emergência dos pressupostos da Nova Gestão Pública, o Saeb pode ser considerado uma política educacional pendular e ambígua ( OLIVEIRA, 2015 ). Ou seja, ao mesmo tempo que tem caráter de produção de dados para subsidiar políticas educacionais, permitindo intervenções e investimentos, também suscita gerencialismo de resultados e de competição entre as instituições ( SOUZA; COSTA, 2009 ).
Vai ao encontro dessa dubiedade, o fato de que, apesar da existência de informações concretas sobre todas as instituições educacionais brasileiras, a partir do Censo Escolar, um percentual expressivo de escolas e de estudantes não ter sua proficiência avaliada em relação à aprendizagem no Saeb, resultando na invisibilização de sujeitos e de escolas pela própria regulamentação do processo ( WELTER, 2019 ; WELTER; WERLE, 2021 ).
Essa invisibilização dá-se pelos critérios de inclusão e de exclusão de escolas no sistema de avaliação, presentes desde as suas primeiras edições. Em 2019, não compuseram o público-alvo do Saeb escolas com menos de 10 estudantes matriculados nas séries avaliadas, ou em escolas onde essas séries fossem exclusivas de turmas multisseriadas, de correção de fluxo, da Educação de jovens e de adultos, de Educação especial ou de Educação indígena que não ministrassem a Língua Portuguesa como primeira língua (MEC/ INEP, 2019 ). A explicação dada para esses critérios de exclusão seria a dificuldade operacional de aplicação nas escolas muito pequenas (INEP, 2021) e de adaptação das provas para as demais modalidades como a adaptação linguística, no caso de escolas indígenas. Apesar do reconhecimento dos eventuais problemas de excluir-se parte do público, as modificações dos instrumentos poderiam repercutir na perda de significância estatística, e mesmo na perda de comparabilidade, o que, em última instância, tornaria os exames em larga escala inviáveis ( UNESCO, 2019 ).
Assim, mesmo sendo essas séries censitárias no Saeb, aproximadamente mais de meio milhão de estudantes dessas séries não se encaixavam no público-alvo do Saeb. Dentre eles, 36,0% e 14,5% das escolas que ofertavam o 5º e o 9º anos, respectivamente, não foram avaliadas quanto à aprendizagem de seus estudantes, em 2019.
Em face desse contexto, esse trabalho tem como objetivo analisar como o desenho do Saeb pode resultar em exclusão das escolas não participantes das políticas públicas educacionais e em invisibilidade quanto aos seus resultados de aprendizagem. Para isso, discute as características das escolas das séries censitárias de Ensino Fundamental, a partir de dois indicadores: um de infraestrutura das escolas e um de adequação da formação docente. A pergunta a ser respondida é: o que a exclusão das “escolas invisíveis” do Saeb ( WELTER, 2019 ) permite inferir sobre os instrumentos de política e suas formas de operacionalização? A hipótese que subjaz a esse problema de pesquisa as piores condições de oferta de Educação escolar estão nessas escolas, e que sua invisibilidade se constituiria um limite significativo para o Saeb como instrumento de política pública de avaliação. Essa hipótese é fundamentada em achados da literatura da área de que as escolas com turmas exclusivamente multisseriadas e com menor número de estudantes seriam, em geral, as que apresentam as piores condições de infraestrutura (ALVES et al. , 2019a) e de adequação de formação do corpo docente (OCDE, 2018a; 2018b), sendo as escolas rurais parte considerável delas (DUARTE; GOMES; GOTELIPE, 2019).
Justifica a pesquisa que dá origem a esse texto a necessidade de identificar os limites dos instrumentos de avaliação de políticas educacionais no Brasil, especialmente para as escolas em situação de maior vulnerabilidade quanto aos indicadores sociais e educacionais. A manutenção de sua invisibilidade quanto à aprendizagem poderia ter profundas consequências na busca pela garantia de um padrão de qualidade da Educação e de sua equidade, asseguradas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988, art. 206, incisos I e VII) e pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ( BRASIL, 1996 , art. 3, inciso IX; e 4, inciso IX).
2 Materiais e métodos
Para o estudo das escolas excluídas da avaliação de séries censitárias do Ensino Fundamental do Saeb (5° e 9° anos), foram feitos dois movimentos de pesquisa. O primeiro foi a identificação das escolas nas bases de dados. O segundo procedimento foi caracterizar os aspectos da infraestrutura e da adequação da formação docente dessas escolas, cotejados com os perfis regionais e nacionais.
Para a identificação das escolas, foi feito um caminho inverso do descrito no detalhamento da população do Saeb na Nota Técnica nº 10/2019/CGIM/DAEB e na Portaria n° 366, de 29 de abril de 2019 ( BRASIL, 2019 ), que orientaram a realização do exame daquele ano. Isso se fez necessário uma vez que a divulgação dos resultados do Saeb com identificação da escola pelo código único do Inep – o que permitiria a associação das informações dos bancos – somente ocorre quando as escolas registram, no mínimo, 10 alunos presentes no momento da aplicação do exame e as escolas e/ou municípios atinjam um percentual mínimo de taxa de participação2 (80% de estudantes por escola e 50% por município). Portanto, parte considerável dos casos tiveram seus resultados mascarados, e a análise se tornou possível apenas no nível do município, e não no da escola.
Sendo assim, a partir dos dados do Censo Escolar 2019, foram discriminadas todas as escolas com ofertas nas séries censitárias do Ensino Fundamental, em ambas as bases, e selecionadas aquelas que não cumpriam os critérios para inclusão no sistema. Chegou-se ao total de 35.297 escolas excluídas que ofertavam o 5° ano e 8.632 escolas excluídas do 9° ano, valores muito próximos aos descritos na Nota Técnica n°10/2019 (35.799 e 8.215, respectivamente)3 . Considerando apenas as escolas públicas não avaliadas, em ambas as séries, foram selecionadas 28.471 escolas (15,6% do total do país).
O estudo sobre a infraestrutura das escolas foi realizado a partir de pesquisas desenvolvidas por Alves et al. (2019a) e Alves, Xavier e Paula (2019). Nessas pesquisas, foram desenvolvidos um modelo conceitual, bem como instrumentos de avaliação de infraestrutura de escolas de Ensino Fundamental. Tendo como referência os marcos legais e baseando-se na literatura nacional e internacional sobre o tema (ALVES; XAVIER; PAULA, 2019), foram produzidos 11 indicadores para avaliar a infraestrutura das escolas públicas brasileiras de Ensino Fundamental com base nos dados do Censo Escolar e do Saeb (ALVES et al. , 2019a). Além disso, foi criado um indicador geral que sintetiza todos os itens utilizados nos indicadores múltiplos e tem a finalidade de descrever tipologias de escolas. A escala desse indicador, que varia de 0 a 10 pontos, foi seccionada em sete níveis, sendo: (I) até 2 pontos, que corresponde à situação menos adequada; (II) mais de 2 a 4 pontos; (III) mais de 4 a 5 pontos; (IV) mais de 5 a 6 pontos; (V) mais de 6 a 7 pontos; (VI) mais de 7 a 8 pontos e (VII) mais de 8 pontos, que corresponde à situação mais adequada. Esses níveis refletem os ganhos de qualidade de acordo com os atributos mensurados pelas variáveis e suas respectivas categorias (ALVES et al. , 2019a).
A análise das características dos professores foi feita a partir de um indicador educacional, construído pelo Inep, de adequação da formação docente (em 2014, foi atualizado para os anos seguintes), que utiliza informações levantadas no Censo Escolar para essas escolas. O indicador foi classificado em cinco grupos, conforme apresentado no Quadro 1 . Assim, os professores com a formação mais adequada para o nível/etapa de atendimento educacional são classificados no Grupo 1, adequação essa que diminui, progressivamente, até o Grupo 5, nível de menor adequação da formação docente.
Grupo | Descrição |
---|---|
1 | Docentes com formação superior de licenciatura na mesma disciplina que lecionam, ou bacharelado na mesma disciplina com curso de complementação pedagógica concluído. |
2 | Docentes com formação superior de bacharelado na disciplina correspondente, mas sem licenciatura ou complementação pedagógica. |
3 | Docentes com licenciatura em área diferente daquela que leciona, ou com bacharelado nas disciplinas da base curricular comum e complementação pedagógica concluída em área diferente daquela que leciona. |
4 | Docentes com outra formação superior não considerada nas categorias anteriores. |
5 | Docentes que não possuem curso superior completo. |
Fonte: Elaborado a partir de dados do Inep (2014) .
Foram construídas tabelas, gráficos e mapas para a apresentação dos resultados. Para fins de padronização, as escolas não avaliadas pelo Saeb foram sempre representadas em tonalidades vermelhas.
3 Resultados
Segundo dados do Censo Escolar, em 2019, havia, no Brasil, 182.468 escolas em atividade, nas quais 142.373 eram públicas – 77,9% municipais, 21,6% estaduais e 0,5% federais (INEP, 2020a). Desse total, pouco menos da metade (49,6%) foi avaliada no Saeb 2019. Das mais de 76 mil escolas que ofertavam o 5° ano, em 2019, 46 mil foram avaliadas e cerca de 36 mil, dentre as 37 mil escolas que ofertavam o 9° ano, tiveram a proficiência de seus estudantes em Língua Portuguesa e em Matemática mensurada.
De todas as escolas públicas brasileiras de Ensino Fundamental com matrículas no 5° e/ou no 9° anos, 28.471 não cumpriam os requisitos do Inep para participação em nenhuma dessas duas séries, não sendo, portanto, avaliadas. Essas escolas, em sua maioria, eram municipais (91,8%) e estavam localizadas em áreas rurais (95,6%), sendo 9,1% em áreas de assentamento da reforma agrária; 7,7%, em terras indígenas e 4,1%, em comunidades remanescentes de quilombos.
Quanto à distribuição territorial ( Tabela 1 e Figura 1 ), quase metade das escolas não avaliadas no Saeb 2019 estava na região Nordeste do Brasil. Os estados que concentravam os maiores números dessas escolas eram o Pará (15,8%), o Maranhão (14,5%) e a Bahia (13,3%). Ou seja, essas escolas, em sua maioria, localizavam-se nas regiões menos desenvolvidas do país e, mesmo na região Sudeste, a maior parte das escolas não avaliadas estavam em localidades mais pobres, como nas regiões Norte, Vale do Jequitinhonha e Vale do Mucuri de Minas Gerais; e nas regiões Noroeste e Central do Espírito Santo.
Região | Frequência | Porcentagem |
---|---|---|
Norte | 8.946 | 31,4 |
Nordeste | 13.462 | 47,3 |
Sudeste | 3.246 | 11,4 |
Sul | 2.086 | 7,3 |
Centro-Oeste | 731 | 2,6 |
Total | 28.471 | 100,0 |
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do Inep (2020a).
Além de estarem em regiões que, em geral, têm menos acesso aos serviços públicos, essas escolas, na comparação pelo indicador de infraestrutura (ALVES et al. , 2019b, encontravam-se em situação menos favorável do que aquelas que foram avaliadas no Saeb 2019. A média da escala de infraestrutura das escolas públicas participantes do Saeb 2019 foi 6,3 (18% de variação) e das escolas não participantes, 3,8 (37% de variação), com diferença estatisticamente significativa entre as médias (t(39578) = 2; p < 0,05).
Mais da metade das escolas não avaliadas no Saeb 2019 estava nos níveis I e II na escala de infraestrutura de Alves et al . (2019a), ou seja, 11,4% delas não tinham banheiro ou, quando o havia, eram fora do prédio; não tinham água ou, quando havia, era de rio, de cacimba ou de fonte; não possuíam energia, nem usavam gerador ou algum tipo alternativo; não tinham esgoto, mas, sim, fossa. Cerca de 42% estavam em situação semelhante, a diferença era que contavam com água de poço artesiano e com banheiro dentro da escola, além de energia elétrica de rede pública. Em comparação com as demais escolas públicas brasileiras, apenas 0,6% das escolas avaliadas no Saeb 2019 estavam no nível I de infraestrutura e 3,8%, no nível II.
Quando comparadas por região do país, as médias da escala de infraestrutura acompanham o perfil brasileiro ( Figura 2 ). A maior diferença entre as médias era na região Norte, seguida da região Sudeste. Dentre as escolas avaliadas no Saeb 2019, não havia diferença estatisticamente significativa das médias dos escores na escala de infraestrutura de Alves et al . (2019a) das regiões Norte e Nordeste, e nem entre as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste. Nas escolas não avaliadas no Saeb 2019, não havia diferença, estatisticamente significativa, entre as médias de escores das regiões Sudeste e Centro-Oeste. Em todas as regiões, havia diferença significativa na média dos escores das escolas avaliadas e não avaliadas.
Além da infraestrutura, também foi analisada a formação dos professores nas escolas não avaliadas no Saeb 2019. Foi utilizado o indicador de adequação da formação docente ( Quadro 1 ), construído pelo Inep, que classifica o docente segundo sua formação acadêmica e a(s) disciplina(s) que leciona na Educação Básica, levando em conta as normatizações legais nacionais (INEP, 2020b).
Foi possível identificar o predomínio, nas escolas avaliadas no Saeb 2019, de professores com formação no Grupo 1 (formação superior na área de atuação): 60,5%. Já para as escolas não avaliadas, predominavam professores sem formação na área em que lecionavam (36,9%) e sem formação superior (37,5%). Nessas escolas, apenas 22,6% dos professores tinham formação adequada para sua área de atuação ( Figura 3 ).
A Figura 4 considera apenas o Grupo 1, de formação adequada, por estado. É possível verificar que o padrão observado entre os estados de menores percentuais de adequação da formação docente nas escolas participantes do Saeb 2019 se repete para as escolas não avaliadas.
4 Discussão
A oferta da Educação no Brasil é de competência compartilhada entre União, estados e municípios (BRASIL, 1988, art. 23, inciso V). Porém, a atuação na Educação Básica cabe aos entes subnacionais, sendo o Ensino Fundamental (ao qual pertencem o 5° e o 9° anos, séries censitárias no Saeb 2019), de oferta prioritária para estados e municípios. Assim, o dever do Estado para com a Educação Básica é altamente descentralizado, o que se torna evidente na diferença de gastos e de formas de gestão dos sistemas de Educação, não só entre estados como, também, entre municípios ( MEDEIROS; OLIVEIRA, 2014 ). De modo geral, desigualdades educacionais refletem desigualdades regionais mais amplas ( CASTRO, 2000 ; RIGOTTI, 2001 ) e os estados e os municípios mais pobres são aqueles que mais deveriam elevar o nível educacional de suas populações para alcançar melhores resultados.
Quando se observam os dados educacionais, há um padrão de divisão Norte-Sul. Os resultados desse estudo corroboram a literatura. Quase metade das escolas que não foram avaliadas no Saeb 2019 estava na região Nordeste do Brasil, que engloba os municípios menos desenvolvidos do país. Mesmo na região Sudeste, a maior parte das escolas não avaliadas estava em localidades mais precárias. Segundo Medeiros e Oliveira (2014) , a redução dessas desigualdades regionais é a meta de várias iniciativas políticas.
Quando se trata de convergência educacional entre regiões, a maior parte do debate tem foco nos sistemas de Ensino (MEDEIROS; OLVEIRA, 2014). Porém, como aponta a literatura, os fatores escolares não são os principais determinantes da desigualdade educacional – há bastante evidência de que a origem social do aluno tem um peso não negligenciável em seu desempenho. Evidências como essas têm origem no conhecido Relatório Coleman (COLEMAN et al ., 1966), fundamental para a compreensão da associação entre origem social, étnico-racial, regional e outras variáveis estruturais na explicação das desigualdades em resultados escolares ( ALVES, 2020 ).
A partir dos anos 1970, estudos com conclusões divergentes começaram a surgir, com argumento central de que a variação entre as escolas não poderia ser negligenciada na explicação dos resultados escolares (BROOKOVER et al. , 1979; RUTTER et al. , 1979). Essas pesquisas instauraram um novo campo de estudo, denominado de pesquisa sobre efeito escola, ou, ainda, pesquisa em eficácia escolar ( BROOKE; SOARES, 2008 ). Os autores argumentavam que era preciso dirigir o foco para o contexto escolar e os processos que ocorriam dentro da escola, sem, obviamente, negar a influência de fatores extraescolares, como a origem social dos estudantes e os investimentos em Educação ( ALVES; SOARES, 2007 ).
Ao analisar os dois indicadores propostos nesse estudo – infraestrutura e adequação da formação docente – evidenciam-se desigualdades territoriais. Em geral, os municípios localizados nas regiões Sul e Sudeste conseguem garantir níveis mais elevados desses indicadores, corroborando os achados da pesquisa. A média do indicador de infraestrutura das escolas não avaliadas no Saeb 2019, localizadas, em sua maioria, em áreas rurais das regiões Norte e Nordeste, foi inferior à média das escolas avaliadas no Saeb 2019, apresentando uma infraestrutura menos adequada e, possivelmente, privando seus alunos e seus profissionais de condições mínimas de dignidade, ferindo o princípio da equidade.
No que diz respeito à formação docente, há um consenso na literatura educacional de que o professor é uma das peças-chave para o desempenho dos alunos ( BRESSOUX, 2003 ; GAUTHIER et al ., 2014). Levine (1996) destaca o fato de que as notas mais altas nas avaliações escolares são obtidas, geralmente, por alunos que tiveram contato com professores de instrução superior ( apudSOARES; ALVES, 2002 ). Alves et al . (2017), ao verificar a relação entre a formação do professor e o seu desempenho, encontraram que alunos com nível de aprendizado abaixo do básico em Leitura e em Matemática estudam em escolas com menor proporção de professores com formação adequada, sobretudo no 5º ano.
A literatura educacional sobre a formação docente possui evidências que corroboram os achados dessa investigação. Enquanto nas escolas avaliadas pelo Saeb 2019 predominavam professores com formação superior, nas escolas não avaliadas, em contrapartida, foram identificados, em sua maioria, docentes sem a formação adequada. São nessas escolas que, provavelmente, encontram-se estudantes entre os níveis mais baixos de aprendizagem.
Por tudo isso, é possível destacar os limites do Saeb como instrumento de políticas públicas de avaliação. Mais do que apenas ser uma limitação da operacionalização da avaliação em si – por excluir um número expressivo de escolas e, em geral, serem essas as com piores condições de infraestrutura e de recursos humanos na forma de professores com formação adequada ao nível da disciplina que lecionam – as opções adotadas na formulação do Saeb desvelam relações de poder associadas ao próprio instrumento (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012a).
As análises de políticas públicas, tomadas como estudo da ação pública, visam a compreender as regras de seu funcionamento e os recursos de poder, assim como os modos de interações entre atores e instituições nos processos políticos. Nessa concepção, os instrumentos podem ser pensados como dispositivos técnicos e sociais, assim como meios de operar, que organizam relações específicas entre o Estado e a sociedade, segundo as representações e os significados que carregam consigo (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012a).
Além disso, há uma tendência de os agentes tentarem dissipar suas posições, atribuindo neutralidade aos instrumentos que dão suporte às suas decisões. Para Lascoumes e Le Galès (2012b), o desenvolvimento de instrumentos despolitizados não seria apenas uma consequência da dinâmica de “tecnicização” da ação, mas escolhas políticas deliberadas de distanciamento das variáveis políticas pelos detentores de mandatos eletivos. Em outras palavras, para se evitarem os custos políticos das escolhas (a exclusão de parte das escolas do Saeb, por exemplo), imputa-se às ações um lugar no campo da racionalização técnica e/ou científica (a dificuldade logística de sua aplicação em escolas com menos de 10 alunos matriculados).
Os instrumentos de políticas públicas (como o Saeb), pelo contrário, não são neutros, mas portadores de valores e, ao mesmo tempo, produtores de valores, pois induzem uma problematização específica dos objetos na medida em que misturam componentes técnicos (métricas, cálculos, regras jurídicas e procedimentais) e sociais (representações e símbolos). “Cada instrumento é uma forma condensada de conhecer o poder social e as formas de exercê-lo” (LASCOUMES; LE GALÈS, 2012b, p. 202). Ou seja, o Saeb não expressa apenas uma concepção de avaliação de sistemas de Educação, mas pode significar, também, uma concepção do próprio direito à Educação, e de se exercer o poder de inclusão e de quem está excluído dele.
Mais do que analisar a natureza dos instrumentos em si, torna-se necessário avaliar a importância dos efeitos que eles geram (a instrumentação), tanto pela sua autonomia relativa, quanto pelas relações de poder que organizam, uma vez que essa instrumentação é um meio de orientar as relações entre as sociedades política e civil. Isso se dá uma vez que as escolhas dos instrumentos, em nome de sua racionalidade, de modernidade, ou de eficácia, são também escolhas políticas, e em um nível discursivo, às quais se atribui neutralidade.
O caráter técnico atrelado às avaliações externas, entre elas o Saeb, objetiva “melhorar a eficácia do Ensino, reduzir as desigualdades e as diferenças de desempenho entre grupos de alunos (a equidade), enfim, controlar, ou então reduzir, os custos, ou seja, melhorar a eficiência” ( MAROY; VOISIN, 2013 , p. 882). Isso gera uma aceitação tácita do Saeb e, do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) dele decorrente, como métricas técnicas e neutras para a definição de qualidade à qual se somam outras avaliações, sejam as de nível infranacional (municipais e estaduais), mas também internacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa). Dessa forma, todas as ações públicas, de agentes estatais e não estatais, passam a referendar esse modelo de avaliação, naturalizando-o. As demais políticas decorrem desse instrumento, que delimita o que entra ou não no escopo do necessário e/ou do prioritário. Em outras palavras, qualquer ação que não tenha como ponto de partida as avaliações sistêmicas, ou que não tenha como objetivo último atender ao instrumento – no caso, melhorando os resultados – passando estar ao segundo plano.
Assim, a exclusão de um número expressivo de escolas do Saeb resultaria na invisibilidade dessas escolas, bem como de seus alunos e de seus professores, não apenas quanto aos seus resultados de desempenho, mas, também, para qualquer política pública educacional - pelo menos para aquelas que tivessem como objetivo a redução de desigualdades. Por outro lado, essas mesmas políticas públicas estarão, de maneira geral, disponíveis para as escolas avaliadas pelo sistema, aprofundando ainda mais as desigualdades de oportunidades educacionais. Se isoladas, as escolas invisibilizadas reúnem um número ínfimo de estudantes. Em conjunto, representam um percentual expressivo de crianças e de adolescentes que podem não estar tendo garantia à uma Educação de qualidade e de igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola.
5 Considerações finais
O objetivo do estudo que dá origem a esse texto foi identificar as condições de oferta educacional das escolas públicas brasileiras de Ensino Fundamental não participantes do Saeb 2019, e em que medida essa exclusão resulta na invisibilidade quanto aos resultados de aprendizagem dessas escolas. Embora o Saeb seja uma avaliação censitária para os alunos do 5º e do 9º anos do Ensino Fundamental e do 3º e do 4° anos do Ensino Médio, encontrou-se um número significativo de escolas que não foram avaliadas no Saeb 2019, sendo, em sua maioria, instituições municipais localizadas em áreas rurais. Por suas características físicas e de recursos humanos, seriam as escolas invisibilizadas para o sistema de avaliação justamente aquelas que mais necessitariam de investimentos e de atenção por parte dos poderes públicos.
O Saeb, enquanto política pública de avaliação, surge em um contexto de crescimento da instrumentalização de políticas em um cenário de regulação pós-burocrática do Estado. Esses instrumentos, na perspectiva da ação pública como dispositivos, ao mesmo tempo técnicos e sociais, organizam as relações e os meios de operar entre Estado e sociedade, carregando consigo e, em certa medida, construindo, representações e significados. A análise da ação pública por seus instrumentos suscita reflexões que desnaturalizam determinados dispositivos evidenciando os aspectos políticos por trás de sua aparência técnica. Mais do que apenas dizer se os instrumentos, as técnicas e as ferramentas funcionam na implementação de uma dada política, como o caso da avaliação de sistemas de Educação, essa análise reporta a necessidade de se perguntar se as escolhas para a operacionalização de tal política revelam seus mecanismos, suas intencionalidades e seus limites.
A Educação tem sido, cada vez mais, pensada a partir de avaliações dos seus sistemas. Portanto, o Saeb, como instrumento, produz lógicas próprias de articulação entre os diversos atores educacionais, construindo uma noção de qualidade baseada em resultados nos testes padronizados, aferidos, difundidos e, publicamente, controlados por índices estatísticos. Todas as demais políticas, a partir de então, são orientadas e balizadas pelas repercussões que podem (ou poderão) incidir nos resultados do índice.
A instrumentalização das políticas e de seus discursos de neutralidade e de rigor científico, assim como a sua adoção, muitas vezes de forma acrítica, tornam invisibilizadas para as políticas elementos que, por qualquer razão, não chegam, sequer, a ser seu alvo, como é o caso de parte considerável de escolas municipais rurais de todo o país, com maior concentração na região Nordeste. Nesse sentido, a reflexão sobre o Saeb, sobre como são escolhidos e construídos seus parâmetros, permite desvelar, pelo menos em parte, seus mecanismos e suas repercussões nas interações entre os diferentes atores do tecido social.