Introdução
As pesquisas sobre pesquisas, também nomeadas pela literatura acadêmica de estado da arte, estado do conhecimento, estudos de revisão, meta-análise, metapesquisa, revisão sistemática ou metassíntese, campo no qual este trabalho se situa, visam lançar um olhar panorâmico sobre a produção científica relacionada a uma área e/ou um tema específico. Um dos objetivos desse tipo de investigação é contribuir para o aperfeiçoamento das propostas de pesquisas e melhorar, de alguma forma, a formação dos pesquisadores, conforme apontam Ferreira (2002), Romanowski; Ens (2006), Charlot (2006) e Mainardes (2018), dentre outros. Para isso, é necessária uma permanente vigilância epistemológica que esteja em constante diálogo com a memória bibliográfica de cada campo/tema/objeto investigado (CHARLOT, 2006).
As pesquisas sobre temas relacionados a criança, infância e educação infantil foram tomadas como foco do presente estudo que buscou revelar referências fundamentais para quem pretende começar, recomeçar e/ou continuar suas jornadas acadêmicas na educação infantil, que não pode prescindir de um banco de dados que contenha uma memória bibliográfica coletiva. A partir de uma interlocução com Bernard Charlot (2006), o texto discute o envolvimento e a responsabilização de pesquisadores e de professores do campo educacional com a problemática do ponto de partida e da memória. Isso porque enquanto as “ciências duras” avançam a partir de seus pontos de chegada, as ciências da educação avançam a partir de seus pontos de partida. Assim, só seria possível avançar nas ciências humanas quando elas propõem novas formas de começar, pois o ponto de apoio para novas indagações é a memória construída e consolidada no campo de pesquisa (CHARLOT, 2006).
Conhecer e questionar como nos relacionamos com aquilo que já sabemos é fundamental. Antes, durante e depois de nossas pesquisas é imprescindível dialogar com as conquistas do passado e as perspectivas do futuro. Para não repetir o que já foi feito e pesquisado, um caminho profícuo seria não nos esquecer dos passos já trilhados por outros pesquisadores, aprendendo a dialogar com a memória científica do campo. De acordo com Bernard Charlot (2006), a recuperação da memória coletiva dos pesquisadores pode contribuir para o amadurecimento qualificado de nossas pesquisas educacionais.
A pesquisa aqui apresentada pretendeu inventariar parte da memória bibliográfica daqueles que desenvolvem pesquisas para, com e sobre criança, infância e educação infantil, contribuindo de alguma forma com pesquisadores ainda iniciantes e mais experientes. Sabemos que a pesquisa bibliográfica supõe um movimento incansável de releitura dos objetivos, de identificação das fontes, de observância das etapas, de interlocução crítica com o material coletado e de vigilância epistemológica (LIMA; MIOTO, 2007). Para isso, a partir das palavras-chave “criança”, “infância” e “educação infantil”, selecionamos e listamos todas as referências bibliográficas entre os anos1 de 2006 e 2016 em dissertações e teses disponíveis on-line na base de dados da Capes; em trabalhos de todos os Grupos de Trabalho (não apenas do GT 07 que estuda a criança de zero a seis anos) apresentados nas reuniões anuais da Anped acessíveis on-line; e em artigos de doze revistas2 acadêmicas da área da educação, classificadas como Qualis A1, que divulgam pesquisas, reflexões e discussões da área.
Partimos de baixo para cima, ou seja, não nos interessaram temas, conteúdos e abordagens presentes em cada trabalho. Buscamos as fontes utilizadas. Localizamos todas as teses e dissertações, todos os artigos e os trabalhos de todos os Grupos de Trabalho - GT’s - da Anped entre os anos de 2006 e 2016; selecionamos, organizamos e analisamos as referências e apontamos pistas dos pressupostos epistemológicos do campo, confrontando as fontes teóricas que orientam os pesquisadores. Após identificar e salvar todas as dissertações e teses, todos os trabalhos da ANPEd e artigos, adotamos o mesmo procedimento metodológico para o levantamento de dados bibliográficos, selecionando, listando, agrupando, contando, organizando e analisando autores e textos mais citados e mais lidos com vistas a identificar pressupostos epistemológicos das pesquisas. Após um trabalho exaustivo com uma imensidão de dados bibliográficos, apresentamos aqui a consolidação da pesquisa. Estamos cientes que o banco de dados organizado, a partir desse primeiro esforço, pode ser fonte para novas pesquisas, novos textos e novas análises. As fontes podem falar de várias formas. Cabe a quem pesquisa fazê-las falar, conforme apontam conforme apontam autores que fazem pesquisas sobre pesquisas, tais como Charlot (2006), Rocha (1999; 2010), Veiga Júnior (2012), Lima e Mioto (2007), Romanowski; Ens (2006), Mainardes (2018), Ferreira (2002), dentre outros.
Todas as referências bibliográficas citadas pelos pesquisadores em dissertações, teses, artigos científicos e trabalhos de todos os GT’s da ANPEd entre 2006 e 2016 formaram um banco de dados3 que se constituiu naquilo que foi definido como uma memória bibliográfica desse campo de pesquisa. A tabela 01 apresenta informações quantitativas acerca da composição desse banco de dados. Um total de 1.697 (um mil, seiscentos e noventa e sete) trabalhos foram selecionados e arquivados, gerando um total de 48.108 (quarenta e oito mil, cento e oito) referências citadas.
Total de trabalhos consultados para a composição da memória bibliográfica |
Percentual % |
Total de referências que constitui o banco de dados da memória bibliográfica do campo |
Percentual % |
|
---|---|---|---|---|
Dissertações | 984 | 57,98 % | 10.497 | 28,81 % |
Teses | 251 | 14,79 % | 25.682 | 53,38 % |
Trabalhos apresentados na ANPEd |
239 | 14,08 % | 4.711 | 9,79 % |
Artigos publicados em evistas qualis A |
223 | 13,14 % | 7.618 | 15,83 % |
1.697 | 100,00% | 48.108 | 100,00% |
FONTE: Elaboração própria com base nos Banco de dados da pesquisa (2018).
A base epistêmica das dissertações pesquisadas entre 2006 e 2016
Entender a base epistêmica que orienta as dissertações que produzimos é entender por onde começamos a nossa caminhada de investigação. O resultado das pesquisas acadêmicas de base aparece inicialmente em dissertações de mestrado e depois em teses de doutorado defendidas e divulgadas. Nas referências bibliográficas das dissertações disponíveis na base de dados da Capes, no período de 2006 a 2016, identificamos o time de onze autores e onze textos titulares e reservas4 mais citados e mais utilizados. Apresentaremos abaixo apenas o time dos titulares. A tabela 02 abaixo mostra os autores5 e seus respectivos textos6 mais citados nas dissertações analisadas. São eles:
Autores | Textos | |
---|---|---|
Ariès (2006) | História social da criança e da família | |
Campos; Rosemberg; Ferreira (1995) | Creches e pré-escolas no Brasil | |
Cerizara (1999) | Educar e cuidar: por onde anda a educação infantil? | |
Freire (2002) | Pedagogia da autonomia | |
Kishimoto (1999) | Política de formação profissional para a educação infantil | |
Kramer (1995) | A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce | |
Kuhlmann Jr. (2007) | Infância e educação infantil: uma abordagem histórica | |
Rocha (1999) | A pesquisa em educação infantil no Brasil | |
Rosemberg (2002) | Organizações multilaterais, Estado e educação infantil | |
Sarmento (2004) | As culturas da infância nas encruzilhadas da modernidade | |
Saviani (1997) | A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas |
FONTE: Elaboração própria com base nos Banco de dados da pesquisa (2018).
Do campo específico das pesquisas em educação infantil, as autoras mais citadas são Campos; Rosemberg; Ferreira (1995), Cerizara (1999), Kishimoto (1999), Kramer (1995), Rocha (2002), Rosemberg (2002) e Kuhlmann Júnior (2007). Nos textos publicados por esses autores e mais citados nas dissertações analisadas são discutidos temas como história, educação infantil, creche, pré-escola, educação, cuidado, formação, pesquisa, políticas públicas, papel do Estado e de organizações multilaterais.
Além dos (as) autores (as) que estudam especificamente a educação infantil, temos dentre as fontes bibliográficas mais citadas autores como Freire (2002), com a sua pedagogia da autonomia, e Ariès (2006) e Saviani (1997), do campo da história da educação, que nos mostram em seus textos aspectos relevantes da história da criança, da infância, da família e da legislação educacional. Do campo da sociologia da infância temos Sarmento (2004), que nos mostra em seu texto mais citado as culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade.
Através das referências bibliográficas de todas as dissertações entre 2006 e 2016 chegamos a estes autores e a estes textos mais lidos e mais citados pela comunidade de pesquisadores que se dedicam aos estudos sobre criança, infância e educação infantil. Acompanhando as fontes mais utilizadas em dissertações de mestrado, temos um bom roteiro de estudos para aqueles que pretendem ingressar nas pesquisas nesse campo de investigação.
O entendimento da base epistêmica que orienta as dissertações já produzidas sobre criança, infância e educação infantil é fundamental para todos aqueles que pretendem realizar estudos nesse campo. Os autores mais lidos e mais citados nas dissertações compõem os pressupostos das pesquisas da área e indicam que para entender a criança e a infância é importante ler e problematizar, por exemplo, os trabalhos de Ariès (2006) e os estudos de Sarmento (2004); para analisar o campo da educação, da pedagogia, da legislação e das políticas educacionais o estudo Freire (2002) e Saviani (1997) pode contribuir. Além disso, para compreender a história e as políticas para creche, pré-escola e educação infantil no Brasil pode contribuir o estudo dos trabalhos de Campos; Rosemberg; Ferreira (1995), Cerizara (1999), Kishimoto (1999), Kuhlmann Jr. (2007), Rocha (1999) e Rosemberg (2002). São autores e textos constitutivos da base teórica e da história desse campo de pesquisas. O conhecimento desses autores hegemônicos não impede, obviamente, que outras referências sejam identificadas e consideradas.
A base epistêmica das teses pesquisadas entre 2006 e 2016
Entender a base epistêmica que orienta as teses de doutorado que produzimos é entender os passos daqueles que já sustentam posicionamentos próprios, como a pesquisa em nível de doutorado supõe. Os resultados das pesquisas acadêmicas que aparecem em teses de doutorado defendidas e divulgadas podem ser considerados frutos mais amadurecidos na caminhada de investigação. Se a dissertação pode ser nomeada como a porta de entrada para a formação do pesquisador, a tese pode ser considerada a porta de saída, ou seja, com a conclusão do doutorado fecha-se um ciclo formativo iniciado no curso de graduação. Nas referências bibliográficas das teses disponíveis na base de dados da Capes no período de 2006 a 2016, identificamos o time de onze autores e onze textos titulares e reservas. Apresentaremos abaixo apenas o time dos titulares. A tabela 03 mostra os autores e seus textos mais citados nas teses analisadas. São eles:
Autores | Textos | |
---|---|---|
Benjamin (2002) | Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação | |
Campos, Füllgraf e Wiggers (2006) | A qualidade da educação infantil brasileira | |
Foucault (2007) | Vigiar e punir: o nascimento da prisão | |
Freud (1980) | Três ensaios sobre a teoria da sexualidade | |
Kishimoto (1999) | Política de formação profissional na educação infantil | |
Kramer (1995) | A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce | |
Kuhlmann Jr. (2007) | Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica | |
Piaget (1972) | Seis estudos de psicologia | |
Rosemberg (2002) | Organizações multilaterais, Estado e educação infantil | |
Sarmento (2004) | As culturas da infância nas encruzilhadas da modernidade | |
Vygotsky (1991) | A formação social da mente |
FONTE: Elaboração própria com base nos Banco de dados da pesquisa (2018).
Do campo de pesquisas específico da educação infantil, Campos, Kishimoto, Kramer e Rosemberg são as autoras que compõem o time dos mais citados e mais lidos nas teses de doutorado. Campos, Füllgraf e Wiggers (2006) estudam em seu texto a qualidade da educação infantil no Brasil; Kishimoto (1999) discute a política de formação dos profissionais da educação infantil; Kramer (1995) analisa a arte do disfarce das políticas do pré-escolar no Brasil; Kuhlmann Jr. (2007) apresenta a sua pesquisa histórica sobre a infância e a educação infantil no Brasil; e Rosemberg (2002) problematiza a relação entre organizações multilaterais e o Estado brasileiro no desenvolvimento de políticas públicas para a educação infantil.
Entre as referências bibliográficas mais citadas nas teses, aparecem ainda autores da psicanálise e da psicologia. São eles: Piaget (1972), Vygotsky (1991) e Freud (1980), mostrando que os estudos de psicologia e as teorias da sexualidade em uma perspectiva social compõem as fontes teóricas principais das pesquisas em nível de doutorado. Há também autores clássicos da filosofia: Benjamim (2002), com seu texto sobre a criança, o brinquedo e a educação; e Foucault (2007), com seu texto sobre as estratégias de “vigiar e punir” presentes em diferentes instituições sociais. Por um lado, a criança viva e brincante. Por outro, a criança vigiada e punida. As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade são apresentadas e discutidas por Sarmento (2004), autor da sociologia da infância mais citado nas pesquisas sobre educação infantil.
Aqueles que fazem pesquisas no campo têm, através das referências utilizadas nas teses da área, que considerar a produção bibliográfica de Campos, Kishimoto, Kramer, Rosemberg e Kuhlmann Jr. Além delas(es), os pesquisadores citam amplamente, do campo da filosofia, Walter Benjamin e Michel Foucault; da sociologia da infância, Manuel Sarmento; e da psicologia/psicanálise, Sigmund Freud, Jean Piaget e Lev Vygotsky. Como não poderia ser diferente, nas teses de doutorado há um aprofundamento das abordagens teórico-metodológicas, e isso se reflete entre os autores apontados como pressupostos das pesquisas para, com e sobre criança, infância e educação infantil.
O entendimento da base epistêmica que orienta as teses já produzidas sobre criança, infância e educação infantil é fundamental para todos aqueles que pretendem realizar estudos nesse campo. Os autores aqui identificados compõem os pressupostos das pesquisas da área e indicam que para entender a criança e a infância pode contribuir o conhecimento dos trabalhos de Benjamin (2002), Foucault (2007), Freud (1980), Piaget (1972), Sarmento (2004) e Vygotsky (1991). Além disso, para compreender a história e as políticas para a pré-escola e a educação infantil no Brasil pode contribuir o acompanhamento das pesquisas de Campos; Rosemberg; Ferreira (2006), Kishimoto (1999), Kuhlmann Jr. (2007) e Rosemberg (2002). São autores e textos constitutivos da base teórica e da história desse campo de pesquisas. O conhecimento do referencial predominante não exclui, conforme já afirmamos, a análise de estudos emergentes.
Base epistêmica dos trabalhos apresentados na ANPEd entre 2006 e 2016
Entender a base epistêmica que orienta os trabalhos apresentados nas reuniões da ANPEd é entender a movimentação dos pesquisadores em direção ao julgamento crítico de suas produções pela comunidade científica. Este evento é um dos primeiros canais de divulgação da produção acadêmica, materializada em teses e em dissertações. Esta associação congrega pesquisadores iniciantes e veteranos que atuam na pesquisa educacional. Ao submeter um texto a um dos grupos de trabalho da Associação estamos nos submetendo ao crivo analítico de nossos pares já mais experimentados. Nas referências bibliográficas dos textos apresentados em todos os grupos de trabalho da ANPEd no período de 2006 a 2016, identificamos o time de onze autores e onze textos titulares e reservas. Apresentaremos abaixo apenas o time dos titulares. A tabela 04 mostra os autores e seus textos mais citados nos trabalhos analisados. São eles:
Autores | Textos | |
---|---|---|
Bakhtin (2003) | Estética da criação verbal | |
Benjamin (2002) | Reflexões sobre a criança, o brinquedo, a educação | |
Campos, Füllgraf e Wiggers (2006) | A qualidade da educação infantil brasileira | |
Corsaro (2011) | Sociologia da infância | |
Deleuze; Guattari (1997) | Mil platôs | |
Foucault (2007) | Vigiar e punir: o nascimento da prisão | |
Freire (2002) | Pedagogia da autonomia | |
Kramer (2002) | Autoria e autorização: questões éticas das pesquisas com crianças | |
Rosemberg (2002) | Organizações multilaterais, Estado e políticas de educação infantil | |
Sarmento (2005) | Gerações e alteridade interrogações na sociologia da infância | |
Vygotsky (1991) | A formação social da mente |
FONTE: Elaboração própria com base nos Banco de dados da pesquisa (2018).
Dentre as autoras mais citadas do campo da educação infantil nos trabalhos completos da ANPEd temos Campos, Füllgraf e Wiggers (2006), Kramer (2002) e Rosemberg (2002), incluindo um novo texto de Kramer (2002) envolvendo questões éticas de autoria e autorização nas pesquisas com crianças. Bakhtin (2003), com Estética da criação verbal; Corsaro (2011) com Sociologia da infância; e Deleuze; Guattari (1997), com Mil platôs, são autores e textos que aparecem pela primeira vez como referências principais.
Benjamin (2002), Foucault (2007), Freire (2002) e Sarmento (2005) já tinham sido citados em dissertações e teses. No entanto, o texto “Gerações e alteridade”, de Manuel Sarmento (2005), apareceu pela primeira vez como fonte mais citada nos trabalhos da ANPEd entre 2006 e 2016.
Eloisa Rocha (2010) analisou o percurso das pesquisas sobre educação infantil no grupo de trabalho da ANPEd que estuda essa temática por um período de trinta anos, revelando abordagens teóricas, metodologias privilegiadas, áreas científicas e cruzamentos disciplinares. O crescimento da demanda por educação infantil e a análise dos movimentos sociais e políticos em torno dessa demanda estiveram, conforme a pesquisa, presentes nos trabalhos analisados. Rocha (2010) mostra que a “maturidade” das pesquisas foi sendo construída gradativamente, possibilitando o fortalecimento e a consolidação da área. A diversidade de origens epistêmicas e de aportes teóricos é um desafio para a produção do conhecimento no campo e para as pesquisas desenvolvidas na área. Para enfrentar esse e outros desafios, os trabalhos indicam a necessidade de um maior diálogo entre as práticas e as pesquisas em educação infantil.
O entendimento da base epistêmica que orienta os trabalhos da ANPEd já produzidas sobre criança, infância e educação infantil é fundamental para todos aqueles que pretendem realizar estudos nesse campo. Os autores aqui identificados compõem os pressupostos das pesquisas da área que indicam que para entender a criança e a infância pode contribuir o estudo dos trabalhos de Bakhtin (2003), Benjamin (2002), Corsaro (2011), Deleuze; Guattari (1997), Foucault (2007), Sarmento (2005) e Vygotsky (1991). Além disso, para compreender a educação, a pedagogia e as políticas para a educação infantil no Brasil os estudos de Campos; Füllgraf; Wiggers (2006), Freire (2002), Kramer (2002) e Rosemberg (2002) são indicados como referências da área e que devem ser considerados nas novas pesquisas a serem desenvolvidas.
Base epistêmica dos artigos científicos analisados entre 2006 e 2016
Entender a base epistêmica que orienta os artigos publicados em revistas científicas do campo da educação é entender a movimentação dos pesquisadores já experientes para veicular os resultados de suas pesquisas e estabelecer diálogo crítico com a comunidade científica. A publicação de artigos em revistas qualificadas já é um passo mais ousado na carreira acadêmica dos pesquisadores. Nas referências bibliográficas dos artigos publicados em revistas Qualis A da área da educação entre 2006 e 2016, identificamos o time de onze autores e onze textos titulares e reservas. Apresentaremos abaixo apenas o time dos titulares. A tabela 05 mostra os autores e seus textos mais citados nos artigos analisados. São eles:
Autores | Textos | |
---|---|---|
Andrade (1976) | Criança prodígio | |
Ariès (2006) | História social da criança e da família | |
Benjamin (2002) | Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação | |
Campos (1997) | Educação infantil: o debate e a pesquisa | |
Corsaro (2011) | A sociologia da infância | |
Foucault (2007) | Vigiar e Punir: o nascimento da prisão | |
Kramer (1995) | Política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce | |
Oliveira (2002) | Educação Infantil: fundamentos e métodos | |
Rosemberg (1984) | O movimento de mulheres e a abertura política no Brasil | |
Rossetti-Ferreira et al (2004) | Rede de significações | |
Sarmento (2004) | As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade |
FONTE: Elaboração própria com base nos Banco de dados da pesquisa (2018).
Do campo da educação infantil temos duas novidades na lista dos mais citados: a autora Oliveira (2002), com seu livro sobre fundamentos e métodos da educação infantil, e Rossetti-Ferreira et al. (2004), com o estudo sobre redes de significações. Além disso, são novidades ainda nesta lista o texto sobre o debate das pesquisas acadêmicas na área da educação infantil, de Campos (1997), e o texto que analisa a relação entre o movimento de mulheres e a abertura política no Brasil, de Rosemberg (1984).
A surpresa na lista dos autores mais citados nas referências bibliográficas dos artigos publicados em revistas foi sem dúvida o modernista brasileiro Mário de Andrade (1976) e seu texto sobre a criança prodígio. Além disso, o texto “história social da criança e da família”, de Ariès (2006), presente nas dissertações e ausente da lista principal das teses e dos trabalhos da ANPEd, volta a figurar como fonte principal dos artigos da área.
Os mesmos textos de Benjamin (2002) e de Foucault (2007), já citados anteriormente, aparecem novamente como os mais citados nas referências bibliográficas dos artigos analisados. Também Corsaro (2011), ausente como fonte principal em dissertações e teses, volta a aparecer com o mesmo texto sobre sociologia da infância, já citado amplamente nos trabalhos da ANPEd.
O entendimento da base epistêmica que orienta os artigos científicos já produzidos e publicados sobre criança, infância e educação infantil é fundamental para todos aqueles que pretendem realizar estudos nesse campo. Os autores mais lidos e mais citados nos artigos científicos publicados em revistas acadêmicas compõem os pressupostos das pesquisas da área e indicam que para entender a criança e a infância uma possibilidade é a leitura e o estudo dos trabalhos de Andrade (1976), Ariès (2006), Benjamin (2002), Corsaro (2011), Foucault (2007) e Sarmento (2004). Além disso, para compreender a educação infantil e as políticas para a área no Brasil os estudos de Campos (1997), Kramer (2002), Oliveira (2002), Rosemberg (2002) e Rossetti-Ferreira et al (2004) são significativas fontes. São autores e textos constitutivos da base teórica desse campo de pesquisas que não exclui, ao contrário exige, o conhecimento das pesquisas emergentes.
Autores e textos mais citados: um roteiro para novas pesquisas
Através dos autores citados em todas as bases de dados pesquisadas é possível ter uma visão geral do que predomina como fonte epistemológica das pesquisas para, com e sobre criança, infância e educação infantil entre os anos de 2006 a 2016. O pesquisador iniciante tem aqui uma bússola que guiará sua caminhada nas pesquisas do campo. O pesquisador experiente tem aqui uma ferramenta bibliográfica para a revisão do percurso já trilhado e para a proposição de novas estratégias de pesquisa. Não temos que saber tudo, mas urge conhecer o que é pressuposto, que é a base que fundamenta o campo de investigação onde investimos o nosso interesse e as nossas energias. Inicialmente temos os autores que aparecem como os mais citados nas quatro bases de dados pesquisadas: as dissertações, as teses, os trabalhos da ANPEd e os artigos. São eles: Maria Malta Campos, Sonia Kramer, Fúlvia Rosemberg e Manuel Sarmento.
De Maria Malta Campos (1997) temos “Educação infantil: o debate e a pesquisa”. Além desse texto, temos textos da autora publicados em parceria com outras pesquisadoras: Creches e pré-escolas no Brasil e “A qualidade da educação infantil brasileira” (CAMPOS; ROSEMBERG; FERREIRA, 1995; CAMPOS; FÜLLGRAF; WIGGERS, 2006). Os dois textos da década de 1990 são textos básicos sobre as pesquisas no campo da educação infantil e sobre o atendimento em creches e pré-escola. Já o texto de 2006 traz o resultado da pesquisa sobre a qualidade na educação infantil em todo o país.
De Sonia Kramer (1995, 2002) temos dois textos citados amplamente pelos pesquisadores: A política do pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce e “Autoria e autorização: questões éticas da pesquisa com crianças”. O texto da década de 1990 é um texto básico da autora que discute as políticas para a pré-escola no Brasil, e o texto de 2002 apresenta tema atual e relevante: as questões éticas envolvidas nas pesquisas com crianças.
De Fúlvia Rosemberg (1984, 2002) temos dois textos que compõem as referências principais dos pesquisadores da educação infantil: “O movimento das mulheres e a abertura política no Brasil” e “Organizações multilaterais, Estado e políticas públicas de educação infantil”. O artigo da década de 1980 é um texto básico, que discute a relação entre o movimento das mulheres e o processo de abertura política no Brasil. Já o texto de 2002 analisa a relação entre as políticas de educação infantil com o Estado e as organizações multilaterais.
De Manuel Sarmento (2004, 2005) temos dois textos entre os mais citados e amplamente utilizados pelos pesquisadores: “As culturas da infância nas encruzilhadas da segunda modernidade” e “Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância”. O texto sobre as culturas da infância na segunda modernidade é um capítulo do livro organizado por Sarmento e Cerizara (2004), Crianças e miúdos: perspectivas sociopedagógicas da infância e educação. Já o texto com interrogações dirigidas à sociologia da infância a partir da definição da infância como categoria geracional, em que o autor retoma e recontextualiza o conceito de geração, foi publicado no dossiê temático sobre sociologia da infância organizado por Delgado e Müller (2005) e publicado pelo Caderno Cedes da Universidade de Campinas.
Os autores que compõem o time de onze nas referências de dissertações, teses, trabalhos da ANPEd e artigos são os mais citados entre todos os utilizados como fontes bibliográficas. No entanto, há autoras que aparecem em apenas uma das bases de dados pesquisadas. São eles: do campo da educação infantil, Cerizara (1999), com seu texto sobre educar e cuidar na educação infantil; Oliveira (2002), com seu estudo sobre os fundamentos e métodos da educação infantil; Rocha (1999), com seu texto sobre as pesquisas em educação infantil no Brasil; e Rossetti-Ferreira et al. (2004), com o trabalho sobre as redes de significações.
Além dessas autoras, dois autores brasileiros, Andrade (1976) e Saviani (1997) e quatro estrangeiros, Bakhtin (2003), Deleuze-Guattari (1997), Freud (1980) e Piaget (1972) aparecem como fontes principais em apenas uma das bases do banco de dados. Andrade (1976) com o texto sobre a criança prodígio; e Saviani (1997) com o livro discutindo trajetória, limites e perspectivas da nova LDB no Brasil de 1996. Bakhtin (2003) com o texto sobre a estética da criança verbal; Deleuze-Guattari (1997) com Mil platôs; Freud (1980) com seus três ensaios sobre a teoria da sexualidade; Piaget (1972) com os seis estudos sobre psicologia.
Os livros Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação, de Walter Benjamin (2002), e Vigiar e punir: o nascimento da prisão, de Michel Foucault (2007), aparecem como fontes principais em teses, em trabalhos da ANPEd e em artigos científicos da área. Os dois autores só não são as referências principais no time dos onze autores mais citados das dissertações. A obra de Benjamin marca todo o pensamento teórico do século XX, com a busca incondicional da chamada “vida autêntica”, que se recusa a “vender a alma à burguesia”. Como pequeno caçador das primeiras letras, Benjamin mostra a alegria de estar em companhia de brinquedos, de livros infantis e do “teatro infantil proletário”. Já o livro Vigiar e punir, em que Foucault mostra a evolução das estratégias de vigilância e de punição com vistas à formação de corpos obedientes e dóceis, nos alerta sobre os riscos do processo de institucionalização e escolarização precoce das crianças, fundado nos sentimentos de paparicação, de moralização e de proteção da infância.
Philippe Ariès (2006), com seu livro História social da criança e da família, é fonte principal nas dissertações e em artigos científicos. William Corsaro (2011), com seu livro Sociologia da infância, é fonte importante em trabalhos da ANPEd e em artigos científicos. Tizuko Kishimoto (1999), com seu texto sobre as políticas de formação dos profissionais da educação infantil, aparece como fonte principal em teses e dissertações. Paulo Freire (2002), com seu livro Pedagogia da autonomia, é fonte principal em dissertações e em trabalhos da ANPEd. Moysés Kuhlmann Júnior (2007), com seu livro Infância e educação infantil: uma abordagem histórica, é fonte principal em teses e dissertações. Lev Vygotsky (1991), com seu livro A formação social da mente, é fonte principal em teses e nos trabalhos da ANPEd. São três autores brasileiros: Kishimoto, Freire e Kuhlmann Jr; e três autores estrangeiros: Ariès, Corsaro e Vygotsky.
Essa ampla e fundamental lista de autores e textos, que compõe base teórica e a memória bibliográfica identificada em nossa pesquisa sobre pesquisas, pode ser agrupada de várias formas. Indicamos aqui apenas alguns agrupamentos possíveis, sempre incompletos e provisórios: I) agrupamento de textos que traçam um quadro geral da educação infantil no Brasil, com Campos, Rosemberg e Ferreira (1995), Rosemberg (1984), Kramer (1995), Kuhlmann Jr. (2007) e Oliveira (2002); II) agrupamento de textos contendo reflexões sobre as pesquisas desenvolvidas no campo, com Rocha (1999), Campos (1997) e Kramer (2002); III) agrupamento de textos que abordam as políticas para oferta e garantia do direito das crianças à educação, com Cerizara (1999), Kishimoto (1999), Rosemberg (2002), Oliveira (2002) e Campos, Füllgraf e Wiggers (2006); IV) agrupamento de textos contendo reflexões e aportes teóricos e conceituais dos campos da história, com Ariès (2006) e Kuhlmann Júnior (2007); da sociologia da infância, com Sarmento (2004, 2005) e Corsaro (2011); da filosofia, com Benjamin (2002), Deleuze e Guattari (1997) e Foucault (2007); da psicologia, com Piaget (1972) e Vygotsky (1991); e da psicanálise, com Freud (1980); V) agrupamento de textos com outros aportes relevantes para as pesquisas no campo educacional, tais como Paulo Freire (2002), Mikhail Bakhtin (2003), Mário de Andrade (1976) e Dermeval Saviani (1997).
Com esta investigação foi possível constatar que a educação infantil é um campo permeado por vários saberes, por um rico arsenal de conhecimentos que engloba várias campos das ciências humanas tais como história, psicologia, sociologia, filosofia, pedagogia etc. Acreditamos que é possível aventar como hipótese para a continuidade dos estudos que a memória bibliográfica da área indica que as diversas áreas do conhecimento que estudam a criança, a infância e a educação infantil convergem para uma centralidade: conceber a criança como sujeito de direito no âmbito da educação.
Pinto e Sarmento (1997) já mostraram que para reconhecer a criança como sujeito de direitos, superando uma visão linear e teleológica do desenvolvimento da criança e assumir uma nova reflexividade em que a criança surge como ser biopsicossocial, ator social competente, pleno de direitos e produtor de cultura. A compreensão dessa criança, assim concebida, que tem muito a nos dizer sobre seu mundo e sua vida, requer uma literatura científica multidisciplinar que vai das ciências da educação à sociologia da infância, às ciências da comunicação, à psicologia, às ciências do esporte etc. A análise dos contextos de vida das crianças, sinalizadores de suas identidades, requer abordagens pluriteóricas e plurimetodológicas (PINTO; SARMENTO, 1997).
Conclusões finais, mas provisórias
Abramowicz (2015), ao estudar e discutir a emergência da sociologia da infância no Brasil, entrevistou autoras primordiais da área da educação infantil e nos mostrou o quanto é imenso, exuberante, denso e complexo o campo dos estudos da infância no Brasil. Nossa pesquisa confirma essa conclusão da autora. Após a identificação dos autores mais citados em dissertações, teses, trabalhos da ANPEd e artigos entre 2006 e 2016, realizamos o mapeamento daqueles autores cujas ideias podem ser consideradas pressupostos das pesquisas para, com e sobre criança, infância e educação infantil, consolidando uma memória bibliográfica dessa área de investigação.
Quatro autores aparecem como os mais lidos e mais citados em todas as bases de dados das pesquisas sobre criança, infância e educação infantil: Maria Malta Machado Campos, Sonia Kramer, Fúlvia Rosemberg e Manuel Sarmento. Dois autores aparecem como fontes bibliográficas principais em três das quatro bases do banco de dados (dissertações, teses, ANPEd e artigos): Walter Benjamin e Michel Foucault. Seis autores aparecem como mais lidos e mais citados em duas das quatro bases do banco de dados da pesquisa: Philippe Ariès, William Corsaro, Paulo Freire, Tizuko Kishimoto, Moysés Kuhlmann Júnior e Lev Vygostsky. Os autores que aparecem em apenas uma base de dados são: Mário de Andrade, Mikhail Bakhtin, Ana Beatriz Cerizara, Gilles Deleuze e Félix Guattari, Sigmund Freud, Zilma Oliveira, Jean Piaget, Eloisa Rocha, Maria Clotilde Rossetti-Ferreira e Dermeval Saviani.
Em síntese, no conjunto de 22 autores e de seus textos mais citados pelos pesquisadores que estudam criança, infância e educação infantil, os pressupostos epistemológicos da produção de conhecimento da área ancoram-se em diferentes campos teóricos relacionados às ciências humanas: pedagogia, educação, filosofia, direito, política, sociologia, antropologia, psicologia, história e linguística. Todos os autores que são as referências na área dialogam de uma forma ou de outra com pelo menos dois desses campos de estudo, revelando que a compreensão da criança, da infância e de sua educação depende de pressupostos teóricos e metodológicos que são híbridos.
As pesquisas para criança, infância e educação infantil se beneficiam principalmente dos aportes teóricos dos campos da pedagogia, educação, direito e política. As pesquisas com criança, infância e educação infantil se beneficiam principalmente dos aportes teóricos dos campos da sociologia, antropologia e psicologia. As pesquisas sobre criança, infância e educação infantil se beneficiam principalmente dos aportes teóricos dos campos da filosofia, história e linguística. Como entender e analisar o perfil dos autores e dos respectivos textos hegemônicos em cada campo das pesquisas em exame? Como considerar autores que predominam nas fontes, promovendo e reconhecendo a necessidade de assegurar uma justiça epistêmica em relação a todos que atuam no campo?
O empenho dos pesquisadores dessa área de estudos é constante no sentido de fortalecer diálogos interdisciplinares para a construção de pesquisas e de práticas educativas a partir da memória bibliográfica, aqui esboçada. Para conhecer a escola, a criança, a infância e a educação infantil, temos que sair de casa e também voltar para casa, ou seja, temos que abrir diálogos com outros pressupostos (significa sair de casa) para reconhecer, afirmar e reafirmar a base epistêmica que funda o nosso pensamento e a nossa ação no campo (significa voltar para casa). E como afirma Charlot (2006), no processo de pesquisa é fundamental assumir que o nosso ponto de partida é a memória dos saberes já produzidos. O conhecimento dessa memória bibliográfica mostra ainda que fica a certeza, conforme nos diz Cátia de França (cantora popular brasileira), ao falar da música que produz: “não estamos andando num terreno movediço, pois sabemos bem do que se trata” (FRANÇA, 2017).