Introdução
Fomentar uma discussão sobre as relações entre diversidade religiosa, juventude e contextos de formação universitária constituiu um dos objetivos gerais da pesquisa “Diversidade religiosa na Universidade Federal do Paraná”, que origina este trabalho. Trata-se de um levantamento de dados inédito, realizado entre 2018 e 2019, junto a uma amostra dos discentes de graduação presencial da Universidade Federal do Paraná (UFPR) matriculados em Curitiba.
A produção de informações sobre a diversidade religiosa em contextos universitários é pertinente por inúmeras razões. Primeiramente porque, através dela, é possível consolidar políticas de combate a intolerâncias e preconceitos, dentre os quais incluem-se os relativos às identidades religiosas. Em segundo lugar, porque podem oferecer subsídios para que docentes e servidores técnicos contemplem a pluralidade religiosa em suas estratégias de ensino, pesquisa e extensão. Por fim, e não menos importante, porque observamos que no caso da educação, as relações com a religião vêm se mostrando tensas, sobretudo nos seguidos embates a respeito da inclusão ou não da disciplina Ensino Religioso, a cada nova aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (CUNHA, 2014; CURY, 2004). Mais recentemente, a tensão foi intensificada por ocasião da aprovação dos Planos Municipais, Estaduais e Nacional de Educação, especialmente em função das questões voltadas às relações de gênero e à diversidade.
Constatamos que trata-se de um campo de reflexões ainda em expansão na área de Educação no Brasil, de modo que o artigo também pretende oferecer insights para a consolidação do mesmo eixo de pesquisa. Knoblauch (2017) afirma que entre alunas de Pedagogia de uma universidade do Sul do país, 81% se dizem religiosas e sua fé orienta e seleciona aprendizados no decorrer do curso, sobretudo em relação às questões de gênero. Pinheiro e Santos (2017) mencionam que mais de 70% dos estudantes de Educação Física de uma IES privada de Belo Horizonte também se consideram religiosos. Além disso, os estudos de Teixeira e Andrade (2014) e de Dorvillé e Selles (2009), ambos realizados com professores de Biologia do Rio de Janeiro, mostram tensões entre a formação universitária e a vivência religiosa de professores do Ensino Básico, em torno de conteúdos sobre evolução e o criacionismo. Malacarne (2009) também identificou esse tensionamento com professores de Ciências Naturais de uma região do Paraná. Valente (2017), por sua vez, aponta que a religiosidade está presente no cotidiano escolar de forma difusa e orienta práticas pedagógicas selecionando estratégias para o trabalho com a literatura infantil.
O diálogo com esse conjunto de trabalhos (todos com foco em diferentes licenciaturas) nos lançou o desafio de analisar o universo religioso dos estudantes do Ensino Superior, a fim de verificar se havia ou não diferenças de filiações e práticas religiosas entre discentes do bacharelado e da licenciatura. Destacamos que essa pesquisa se propõe a estudar a diversidade religiosa no conjunto de uma universidade, diferenciando-se de outras investigações feitas no âmbito de cursos específicos de instituições de ensino públicas e privadas2. A comparação entre estudantes de bacharelado e licenciatura de uma mesma universidade nos pareceu promissora para tecer análises, tendo em vista que o exercício de comparação com outras instituições não foi possível, como será destacado na próxima seção.
Reconhecemos, ademais, que a religião está imbricada em outras instâncias sociais, políticas e culturais. Observamos isso tanto na crescente participação política partidária, quanto nas mobilizações de diversos grupos religiosos na opinião pública a respeito de direitos reprodutivos, direitos humanos, direitos e respeito às minorias, por exemplo, e não por acaso, também no campo pedagógico. Já não é de hoje, aliás, que boa parte da literatura dedicada ao fenômeno religioso destaca a intensificação da ocupação do espaço público por parte dos atores religiosos: com cada vez maior frequência, eles atuam nas praças e estádios, mobilizam as mídias eletrônicas, impressas e digitais (CUNHA, 2007).
Outro ponto que integra a agenda de pesquisa dos estudiosos da religião e que é do interesse dos profissionais da Educação diz respeito à multiplicidade das formas com que são compostas as experiências religiosas na contemporaneidade. Há inúmeras pesquisas, por exemplo, que indicam que, especialmente entre os jovens, a vivência religiosa ocorreria especialmente a partir de hibridações e intercâmbios, além de ser cada vez mais comum ocorrer o que se convencionou chamar na literatura de “trânsito religioso” (ALMEIDA; MONTERO, 2001) e a “dupla filiação” (ou tripla, ou múltipla), envolvendo a mudança de práticas e crenças em relação à herança religiosa familiar, bem como o surgimento de um número cada vez mais expressivo dos “sem religião” e dos “evangélicos genéricos”, isto é, indivíduos que não se identificam ou se filiam a instituições religiosas específicas, embora mantenham ativas as relações com divindades e a concordância com certa cosmologia religiosa (quase sempre de matriz cristã) (cf. NOVAES, 2004; CAMURÇA, 2017).
Todo esse arcabouço serviu de apoio para nossa pesquisa, que pretendeu, por um lado, mapear a diversidade religiosa entre estudantes da UFPR matriculados em Curitiba e, por outro lado, procurou estabelecer relações entre a vivência religiosa e a vida universitária. Neste artigo compartilharemos com as e os leitores algumas notas sobre o desenho de nossa pesquisa, nossas estratégias de investigação e os resultados preliminares sobre vínculos religiosos, frequência e pertencimento religioso dos estudantes da UFPR, propondo a comparação entre bacharelado e licenciatura.
Delineando a pesquisa e os procedimentos de trabalho
O tema da diversidade religiosa em instituições de ensino superior brasileiras tem sido abordado, sobretudo, por meio de levantamentos que visam traçar o perfil religioso dos estudantes de cursos específicos, tais como o trabalho pioneiro de Novaes (1994), seguido pelos de Steil, Alves e Herreira (2001) 3, Simões (2007), Junqueira e Teófilo (2013), Mori e Silva (2016), Pereira e Holanda (2016), Mezzomo, Pátaro e Rosa (2017a, 2017b) e Swatowiski, Silva e Alvarenga (2018).
Esse conjunto de surveys inspirou o desenho de nossa pesquisa, porém, de modo diverso, ela não se detém em cursos específicos. Como um dos objetivos gerais do levantamento consistiu em produzir dados sobre o panorama religioso da UFPR, em resposta a demandas institucionais acerca do perfil religioso discente (SCHELIGA; KNOBLAUCH; BELLOTTI, 2018), isso nos direcionou aos setores que agregam cursos afins4. Essa estratégia nos permitiu, a um só tempo, ter uma visão do conjunto da universidade e também garantir uma amostra diversificada.
Em que pesem os distintos prestígios que cada carreira universitária goza e as características específicas de cada curso (quanto ao perfil socioeconômico de seu corpo discente e docente, número de vagas abertas, concorrência nos processos seletivos, turno ofertado e índice de evasão, por exemplo), a pesquisa realizada não permite aprofundamentos sobre essas questões particulares, nem era este o seu escopo inicial, como sublinhamos acima. Os dados do survey permitem, contudo, identificar tendências gerais sobre o comportamento religioso entre universitários, bem como fazer inferências a respeito do peso (relativo) da religião nos processos de formação de professores, indicando semelhanças e dessemelhanças entre os que optam, na entrada ou no decorrer do curso5, pelo bacharelado ou licenciatura.
A diferença de foco não foi o único limite para um eventual exercício de comparação entre os nossos dados e os produzidos pelos colegas supracitados: a grande variação que identificamos nesse rol de pesquisas - seja em relação ao escopo dos surveys, seja em relação às metodologias de produção de dados adotadas ou, ainda, ao modo como os dados foram analisados - demanda um esforço que ultrapassa os limites desse nosso exercício, de modo que eventuais aproximações entre os resultados obtidos nestes diferentes levantamentos só poderão ser realizadas futuramente. De modo análogo, as comparações com os dados do Censo de 2010 requerem algumas mediações: muito embora algumas tendências gerais captadas pela pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) possam servir de guia geral para a análise de nossos dados, sempre faremos ponderações sobre as especificidades de nossas questões e de nossa amostra, de modo a contextualizar os dados que apresentaremos na sequência.
A amostra de 385 entrevistados, calculada com apoio de Nivea da Silva Matuda, docente do Departamento de Estatística de nossa instituição de ensino, foi estratificada por Setor, habilitação do curso (bacharelado ou licenciatura) e gênero do participante, a partir do número geral de matrículas fornecido pelo Núcleo de Assuntos Acadêmicos da UFPR. O plano amostral inclui 304 estudantes do bacharelado e 81 das licenciaturas (representando, respectivamente, 79% e 21% das matrículas em cada habilitação). A margem de erro estabelecida para a amostra foi de 5%, com nível de confiança de 95%.
O instrumento de pesquisa foi validado após três sucessivas rodadas de pré-teste. A aplicação ocorreu entre o segundo semestre de 2018 e o primeiro semestre de 2019. O questionário aplicado continha dezenove questões, entre perguntas abertas e fechadas (com resposta única ou múltipla escolha), abrangendo concepções de espiritualidade e religião, elenco de práticas acadêmicas e religiosas, percepções sobre intolerância religiosa no âmbito da UFPR, frequência a instituições religiosas e vínculos com grupos religiosos que atuam no espaço universitário, relações estabelecidas entre fé e conhecimento, além de questões de caracterização da pessoa que participou da pesquisa. Em função dos limites deste artigo, apresentaremos apenas as análises relativas à declaração de vínculo religioso, a frequência em grupo(s) religioso(s) no ano de 2018, a frequência religiosa após o ingresso na universidade e a filiação religiosa institucional das e dos discentes.
Os questionários foram aplicados com a mediação de estudantes recrutados especificamente para essa tarefa. Optamos pela aplicação presencial como estratégia para garantir a representatividade por setor, habilitação e gênero e, ao mesmo tempo, assegurar a aleatoriedade dentro das cotas pré-definidas6. O formulário ficou disponível na plataforma Google Forms, com acesso restrito aos aplicadores, gerando banco de dados que foi consolidado em 2019.
Os dados
Os últimos levantamentos estatísticos sobre religião/religiosidade mostram que o cenário religioso está mudando no Brasil. Depois de uma história de mais de quatrocentos anos de hegemonia católica, nas últimas quatro décadas observa-se uma significativa diminuição do número de indivíduos que se declaram católicos, atualmente 64,6% da população, segundo o censo de 2010 (IBGE, 2010). Por sua vez, os evangélicos cresceram a 22,2% da população em 2010, sendo que a sua maioria é constituída de pentecostais, seguidos de uma minoria de evangélicos de missão (ou protestantes históricos) e evangélicos sem uma denominação específica7. Já os adeptos da umbanda e do candomblé correspondem a cerca de 2% da população desde o Censo de 2000, enquanto crescem os chamados sem religião, estimado em 8% da população em 20108.
Debates em torno do censo religioso de 2000 e de 2010 (MAFRA, 2004; TEIXEIRA; MENEZES, 2013; MENEZES, 2014) convergem em um ponto: as pesquisas de larga escala costumam apontar determinadas tendências e filiações religiosas, a partir da auto declaração dos respondentes, mas não possuem instrumentos para explorar as nuances das vivências religiosas. No censo do IBGE, a pergunta feita na amostra sorteada para responder o questionário mais extenso é: “qual é sua fé ou crença religiosa?”. Se, por um lado, isso oferece uma gama de respostas que abrange uma grande diversidade de denominações e grupos religiosos, por outro não permite que certas omissões sejam detectadas - um caso típico é a do baixo número de respostas confirmando adesão à umbanda e ao candomblé, por exemplo. Mesmo com o fato de o questionário ser anônimo, estudiosos das religiões de matriz africana afirmam que é possível haver um número maior de praticantes dessas religiões que preferem não explicitar sua pertença religiosa com medo de preconceito (PRANDI, 2013).
Interessadas em obter respostas que permitissem qualificar, de algum modo, os vínculos religiosos, optamos por uma questão diversa da do Censo, desdobrando nossa pergunta em dois sentidos: o do pertencimento e o da participação regular em um grupo religioso. Também optamos por situar as respostas, adotando o ano de 2018 como marco temporal dos vínculos. Desta forma, em lugar de perguntarmos diretamente “qual é sua fé ou crença religiosa?”, nossa questão foi assim formulada: “Tendo como referência o ano de 2018, você diria que pertence a e/ou participa de forma regular de algum grupo de caráter religioso ou de uma instituição religiosa? Leia as alternativas neste cartão e escolha aquela que melhor representa a sua opinião atual”.
As cinco possibilidades de respostas propostas por nós, formuladas após a fase de pré-teste da pesquisa, alinharam-se ao objetivo de captar nuances das filiações religiosas. A primeira das alternativas apresentava a possibilidade de o respondente indicar um vínculo religioso não institucional, o que a literatura da área de estudos da religião vem classificando como o “crer sem pertencer” (DAVIE, 1990; FULLER, 2001)9. A segunda delas explorava o ateísmo como possibilidade de resposta, levando em conta os dados preliminares de nosso survey, que nos sugeriam que uma parcela significativa dos pesquisados explicitava uma rejeição a qualquer tipo de vínculo com organizações de natureza religiosa. As três últimas alternativas, por sua vez, indicavam pertença e participação em grupos religiosos, destacando posicionamentos exclusivistas, cambiantes ou múltiplos. Os dados consolidados estão na tabela abaixo:
Vínculos religiosos em 2018 | Bacharelado | Licenciatura | Amostra Geral | |||
F | % | F | % | F | % | |
Não. Acredito em deus e/ou em uma força superior/transcendente, mas não participo de nenhum grupo religioso. |
129 | 42,43% | 29 | 35,80% | 158 | 41,04% |
Não. Sou ateu e não participo de grupos religiosos. |
60 | 19,74% | 19 | 23,46% | 79 | 20,52% |
Sim. Participo de mais de um grupo religioso, mas de modo alternado. |
6 | 1,98% | 2 | 2,47% | 8 | 2,08% |
Sim. Participo de um único grupo religioso específico. |
102 | 33,55% | 27 | 33,33% | 129 | 33,50% |
Sim. Participo de vários grupos religiosos simultaneamente. |
7 | 2,30% | 4 | 4,94% | 11 | 2,86% |
Total | 304 | 100,00% | 81 | 100,00% | 385 | 100,00% |
FONTE: As autoras (2019).
Analisando primeiramente os números totais de nossa amostra, obtivemos 38% de respostas que indicam algum vínculo religioso, sendo alternado, exclusivista ou simultâneo - ou seja, quase 4 em cada 10 universitários afirmaram pertencer e/ou participar de grupos religiosos. Um em cada cinco estudantes de nossa amostra afirmou ser ateu. Mais de 40% dos entrevistados, por sua vez, declarou não participar de nenhum grupo religioso, embora acredite em deus ou em uma força transcendente.
Nessa tabulação, não identificamos diferenças estatisticamente significativas nas respostas segundo a habilitação (licenciatura ou bacharelado). Se somarmos as três últimas alternativas de resposta, por exemplo, temos percentuais de resposta muito semelhantes nos dois grupos: 37,95% no dos alunos do bacharelado e 40,25% no dos alunos de licenciatura. Neste conjunto dos que responderam “sim”, destaca-se também a forma de participação predominante identificada: um terço dos respondentes de cada uma das habilitações apontou ter um vínculo religioso de caráter mais exclusivista, isto é, quando se frequenta apenas um único grupo religioso. Essa resposta parece, à primeira vista, relativizar a hipótese de que a religiosidade da juventude seria predominantemente sincrética ou híbrida.
Observando os dados gerais de nosso survey podemos, no entanto, captar uma outra tendência já identificada tanto na literatura quanto nos dados empíricos dos últimos censos brasileiros: a desfiliação religiosa. O debate sobre secularização serve como pano de fundo para essas discussões (BERGER, 2000, 2012; CASANOVA, 1994; PIERUCCI, 1997; MARIZ, 2000) que, em comum, indicam para uma nova forma de se relacionar com a religião. Uma parcela dos estudos sociológicos destaca o quanto a religião na modernidade estaria baseada mais na experiência e autonomia individual e na espontaneidade. Essa tendência conviveria, paradoxalmente, com a permanência das instituições e a centralidade do cristianismo no cenário cultural e religioso brasileiro (SANCHIS, 2008). Ao lado do “secularismo à brasileira” e de uma nova interpretação para o conceito de diversidade, novos desafios se põem à defesa da laicidade num momento em que, no contexto nacional, novas e delicadas relações se estabelecem entre política e religião (NOVAES, 2014).
Ainda que nossa indagação tenha sido diferente em relação àquela feita por ocasião do censo de 2010, podemos estabelecer nexos com os números daqueles que se declararam sem religião no levantamento nacional, observando também em nossa pesquisa os efeitos da redefinição dos vínculos religiosos por meio de rearranjos pessoais (HERVIEU-LÉGER, 1999; TEIXEIRA, 2014). Em nossa amostra, cerca de 4 em cada 10 estudantes assinalaram a primeira alternativa de resposta, indicando uma vivência mais fluida e menos institucionalizada com a religião. Nossos dados acompanham, assim, as reflexões de Novaes (2004) e de Camurça (2017) sobre as experiências religiosas juvenis, nas quais destacam o expressivo aumento do número dos “sem religião” nessa camada etária. Na comparação entre os dois itinerários de formação nota-se uma pequena diferença: obtivemos um número de respostas relativas aos “sem religião” ligeiramente maior no grupo dos estudantes do bacharelado (cerca de 42% de respostas contra quase 36% no grupo dos estudantes de licenciatura).
Notamos ainda que em nossa amostra obtivemos cerca de 20% de respostas de estudantes que se intitulam “ateus”. Como mencionado anteriormente, a inclusão da categoria ateu nas alternativas de resposta foi fruto do próprio processo de pesquisa: na fase de pré-testes, obtivemos muitas menções espontâneas que apontavam para a mobilização dessa categoria como central para a definição de uma identidade religiosa e isso nos levou a querer testá-la, estimulando a resposta. Nessa primeira tabulação não identificamos diferenças estatisticamente relevantes nos dois conjuntos de estudantes: em cada um dos grupos, cerca de um em cada cinco discentes declarou-se ateu.
Declarar-se ateu, no entanto, não deve ser lido como um afastamento sistemático do universo das práticas religiosas, tampouco como efeito da entrada em um ambiente pautado por princípios laicos, como se presume no senso comum. Embora muitos dos respondentes confirmem, em outro momento do questionário, que não frequentam regularmente grupos religiosos (e tampouco o frequentavam antes de ingressar na universidade, como se verá adiante), as respostas dadas a uma outra questão de nossa pesquisa nos mostraram que muitos dos que se declaram ateus compartilham com os colegas que afirmam ter uma pertença religiosa um amplo repertório de ações. Ou seja: em algum momento de 2018 muitos destes estudantes que se declararam ateus, bem como os que podem ser classificados como “sem religião”, engajaram-se esporadicamente em grupos de sociabilidade religiosamente orientados, consumiram mídia religiosa, participaram de ações de caridade promovidos por grupos religiosos e, sobretudo, conversaram sobre religião com seus amigos. Isso abre uma pista importante para pensamos sobre o uso social da categoria “ateu” no ambiente universitário, sugerindo haver uma forte rejeição por parte desses estudantes à vinculação estrita com um grupo religioso, portanto uma rejeição à identificação com uma igreja ou comunidade religiosa, o que aproxima esse grupo ao dos “sem religião”.
Voltemos agora aos nossos dados. A fim de qualificar a experiência de participação religiosa, perguntamos ao subgrupo que respondeu ter vínculos religiosos qual era a frequência de participação neste grupo ou organização. Novamente usamos o expediente de mostrar aos entrevistados uma lista com algumas alternativas de respostas, pedindo a indicação da que mais condizia com sua experiência. Reproduzimos abaixo os resultados:
Obtivemos um total de 148 respostas. Nesta subamostra, mais de 60% das ocorrências refere-se à participação em atividades religiosas com alta frequência ou frequência regular (isto é, diariamente, mais de uma vez por semana ou, no mínimo, uma vez por semana). Comparando os resultados das duas habilitações, chama a nossa atenção que 30% dos estudantes da licenciatura participam de atividades de caráter religioso mais de uma vez por semana; em contraste, essa alternativa foi assinalada por 20% dos estudantes do bacharelado. A participação mensal, por sua vez, obteve o dobro de respostas no grupo dos discentes do bacharelado em relação aos licenciandos.
Se, portanto, a Tabela 1 nos permitiu perceber que os estudantes de ambas as habitações apresentavam padrão de resposta bastante parecido à questão sobre vínculos religiosos, a Tabela 2 nos trouxe a indicação de uma diferença instigante para a nossa reflexão sobre a formação de professores: discentes dos cursos de licenciatura tendem a participar com maior frequência e regularidade das atividades religiosas em suas comunidades de fé, em comparação a seus colegas do bacharelado.
Frequência | Bacharelado | Licenciatura | Subamostra | |||
F | % | F | % | F | % | |
Diariamente. | 3 | 2,61% | 0 | 0,00% | 3 | 2,03% |
Mais de uma vez por semana. | 24 | 20,87% | 10 | 30,30% | 34 | 22,97% |
Uma vez por semana. | 43 | 37,39 | 12 | 36,37% | 55 | 37,16% |
Uma vez por mês. | 28 | 24,35% | 4 | 12,12% | 32 | 21,62% |
Algumas vezes por ano. | 15 | 13,04% | 7 | 21,21% | 22 | 14,87% |
Não frequento o grupo/organização. | 2 | 1,74% | 0 | 0,00% | 2 | 1,35% |
Total | 115 | 100,0% | 33 | 100,0% | 148 | 100,0% |
Fonte: As autoras (2019).
Os dados que produzimos nos sugerem que os elos estabelecidos pelos estudantes entre vida universitária e vida religiosa são múltiplos e complexos. Tendo isso em vista, pedimos aos entrevistados que indicassem se, após ingressar na UFPR, a frequência a atividades religiosas teria aumentado, diminuído ou permanecido a mesma (aqui desdobrada em duas opções: mantendo-se tão ausente ou tão constante quanto era antes do ingresso na instituição). Logo de saída, nota-se que para quase dois terços de nossa amostra o ingresso na instituição de ensino superior não alterou a frequência a grupos religiosos: cerca de 36% já não frequentava regularmente grupos religiosos e para 26% a frequência se manteve igual ao que costumava ocorrer no período pré-universitário. Quando convidados a justificar sua resposta, de modo espontâneo, muitos destes estudantes sustentaram que a universidade não interfere nas práticas religiosas em suas vidas, não produzindo efeitos sobre o tempo dedicado às atividades de natureza religiosa. Tampouco reconhecem existir conflitos entre discurso religioso e conhecimento secular, concedendo a cada qual um estatuto específico.
Os dados da Tabela 3 nos permitem novamente observar nuances interessantes nas respostas dadas pelos estudantes de cada um dos itinerários formativos, indicando que estudantes da licenciatura tendem a ter vivências religiosas mais intensas, por assim dizer. Como se lê na Tabela 3, quase 32% dos alunos do bacharelado destacou que, após o ingresso na instituição de ensino, passou a participar com menos frequência de atividades religiosas. No caso dos alunos da licenciatura, essa proporção diminui para 23%, ou seja, cerca de um quarto dos estudantes (e não de quase 1/3, como no grupo dos bacharelandos).
Frequência religiosa | Bacharelado | Licenciatura | Amostra Geral | |||
---|---|---|---|---|---|---|
F | % | F | % | F | % | |
Aumentou após ingressar na UFPR | 19 | 6,25% | 7 | 8,64% | 26 | 6,75% |
Diminuiu após ingressar na UFPR | 96 | 31,58% | 19 | 23,46% | 115 | 29,88% |
Não frequentava antes de ingressar na UFPR e continuo não frequentando |
106 | 34,87% | 32 | 39,50% | 138 | 35,84% |
Permaneceu a frequência de antes de ingressar na UFPR |
83 | 27,30% | 23 | 28,40% | 106 | 27,53% |
Total | 304 | 100,00% | 81 | 100,00% | 385 | 100,00% |
Fonte: As autoras (2019).
Vejamos agora um detalhe da subamostra formada pelos respondentes que indicaram ter reduzido a frequência a grupos religiosos. O principal motivo apontado pelos alunos dos diferentes cursos de bacharelado para diminuir a frequência a grupos religiosos foi a falta de tempo (48% das respostas), índice um pouco acima do encontrado no subgrupo das licenciaturas (42% alunos justificaram dessa forma). Se a alegada falta de tempo aproxima os dois grupos, outras razões os distinguem: apenas 6 estudantes do bacharelado apontaram os conhecimentos adquiridos na universidade como razão para essa diminuição (cerca de 6%), mas 7 estudantes das licenciaturas o fizeram - o que equivale a quase 37% daqueles que justificaram dessa forma entre os alunos das diferentes licenciaturas, índice de respostas bastante próximo ao da “falta de tempo”.
Os números absolutos são bastante baixos - no total de 385 alunos, apenas 13 alunos licenciandos e bacharelandos justificaram dessa forma -, mas quando fazemos a distinção segundo o percurso formativo, não deixa de ser interessante observar que essa última justificativa tem um índice muito mais representativo entre os alunos das licenciaturas que no subgrupo do bacharelado. Um primeiro impulso é ler esse dado como indício de um maior reconhecimento de conflitos entre fé e conhecimento secular por parte dos estudantes da licenciatura, mas não se pode dar esse passo sem muita cautela: os dados produzidos ainda não nos permitem nem compreender a fundo a natureza deste conflito, nem seus efeitos nas diversas carreiras de formação de professores.
Também não podemos deixar de ressaltar que, entre os estudantes das licenciaturas, a maior parte continua frequentando seus respectivos grupos religiosos com a mesma intensidade de antes do ingresso à universidade. Tampouco deixamos de notar que o percentual de respondentes que indicou aumento da frequência foi ligeiramente maior na licenciatura em comparação com o bacharelado, fato que é justificado pelos estudantes por meio do destaque às questões pessoais relacionadas às dificuldades ocasionadas pela vida universitária que se convertem em quadros que afetam a saúde mental. Este conjunto de dados que indicam uma participação religiosa mais tensa e/ou intensa entre estudantes das diferentes licenciaturas, futuros professores, é uma pista que esperamos poder seguir em trabalhos futuros, de modo a aprofundar essa relação que parece estar se estabelecendo entre docência e religião.
Finalmente, comentamos os resultados da filiação religiosa declarada, obtidos em 148 respostas das pessoas que responderam “sim” à frequência ou adesão a um ou mais grupos religiosos em 2018. Os respondentes que se disseram católicos e indicaram a igreja que frequentam, foram classificados como Católicos. No caso evangélico, agrupamos para esta apresentação os que se autodeclararam tanto “evangélicos” quanto frequentadores de igrejas reconhecidamente evangélicas; na nossa amostra, foram declaradas participações em igrejas pentecostais (Assembleia de Deus, Igreja do Evangelho Quadrangular, Igreja Universal do Reino de Deus, etc), igrejas protestantes históricas ou evangélicas de missão (Luterana, Presbiteriana, Batista), dentre outras. Os demais grupos identificados foram hinduísmo, budismo, umbanda (com destaque para o fato de que não houve nenhuma declaração espontânea de adesão ao candomblé), espiritismo, Testemunhas de Jeová e Mórmons (Igreja de Jesus dos Santos dos Últimos Dias). Por fim, também foram identificados adeptos das, assim chamadas pelos pesquisadores do IBGE, religiões indígenas (Santo Daime e Ayahuasca) e religiões orientais (Taoísmo, Mahiraki, Hare Krishna).
Tanto na licenciatura quanto no bacharelado observamos uma predominância de cristãos, distribuídos entre católicos, evangélicos e outras religiões cristãs (Testemunhas de Jeová, Adventistas de Sétimo Dia, Mórmons e cristãos sem declaração de uma denominação específica). Isso se segue a uma participação minoritária em outras religiões, como a umbanda, o espiritismo, religiões orientais e indígenas. Nota-se, ainda, uma ampla predominância do catolicismo entre estudantes do bacharelado (pouco mais de 40%) e uma adesão católica menor entre alunos da licenciatura (menos de 20% dos estudantes desta modalidade). Tendência oposta ocorre no caso dos evangélicos, somando-se os números dos evangélicos de missão, os pentecostais e os de religião evangélica não determinada: no bacharelado encontramos cerca de 28% de estudantes que se declaram evangélicos, com proporção semelhante de protestantes históricos e pentecostais; já na licenciatura, o percentual de evangélicos salta para cerca de 36%, predominando a identificação de vínculos com igrejas pentecostais. Dentre os licenciandos, nota-se, portanto, um índice percentual quase duas vezes superior de evangélicos em relação aos católicos. Também é interessante notar que o percentual de cristãos, somados os números de Testemunhas de Jeová, Mórmons e de Religiosidade Cristã Não Determinada, é quase o triplo na licenciatura em relação ao bacharelado. Constatamos também maior ocorrência de declarações de múltipla religiosidade, categoria utilizada pelo IBGE para classificar os casos de duplo ou múltiplo pertencimento, entre os alunos da licenciatura; assim como há, proporcionalmente neste subgrupo, maior número de estudantes que explicitam vínculos com a umbanda, tanto como sua única religião (aproximadamente 9% na licenciatura contra 5% no Bacharelado), quanto como uma das religiões com as quais mantém vínculo.
Filiação institucional | Bacharelado | Licenciatura | Subamostra | |||
---|---|---|---|---|---|---|
F | % | F | % | F | % | |
Budismo | 1 | 0,87% | 1 | 3,03% | 2 | 1,35% |
Católica | 50 | 43,48% | 6 | 18,19% | 56 | 37,84% |
Cristão - Igreja de Jesus dos Santos dos Últimos Dias |
0 | 0,00% | 1 | 3,03% | 1 | 0,68% |
Cristão - Religiosidade Cristã Não Determinada |
2 | 1,74% | 1 | 3,03% | 3 | 2,02% |
Cristão - Testemunha de Jeová | 2 | 1,74% | 1 | 3,03% | 3 | 2,02% |
Declaração Múltipla de religiosidade | 11 | 9,57% | 5 | 15,15% | 16 | 10,81% |
Espírita | 6 | 5,22% | 2 | 6,06% | 8 | 5,40% |
Evangélica não determinada | 3 | 2,60% | 4 | 12,12% | 7 | 4,73% |
Evangélico - Pentecostal | 15 | 13,04% | 7 | 21,21% | 22 | 14,86% |
Evangélico de missão | 14 | 12,17% | 1 | 3,03% | 15 | 10,14% |
Fundamentalismo | 1 | 0,87% | 0 | 0,00% | 1 | 0,68% |
Novas religiões orientais | 2 | 1,74% | 0 | 0,00% | 2 | 1,35% |
Outras religiões orientais | 1 | 0,87% | 0 | 0,00% | 1 | 0,68% |
Sem declaração | 0 | 0,00% | 1 | 3,03% | 1 | 0,68% |
Tradições indígenas | 1 | 0,87% | 0 | 0,00% | 1 | 0,68% |
Umbanda | 6 | 5,22% | 3 | 9,09% | 9 | 6,08% |
Total | 115 | 100,00% | 33 | 100,00% | 148 | 100,00% |
Fonte: As autoras (2019).
Nos casos relatados de duplo ou múltiplo pertencimento, pudemos observar que as combinações de participação em diferentes grupos religiosos seguem alguns padrões já identificados na literatura, como as associações entre catolicismo e umbanda, e catolicismo e espiritismo, por exemplo. Dentre as combinações apontadas pelos estudantes, chama a nossa atenção dois clusters, em particular: um, no qual se incluem, mais frequentemente, praticantes de umbanda e de religiões orientais e outro, que incluem evangélicos ou católicos.
Quando comparados esses dois subgrupos, observamos que os padrões de associação religiosa se modificam ligeiramente. Os estudantes evangélicos tendem a circular mais estritamente pelo universo dos grupos protestantes e pentecostais, assim como os católicos associam-se mais frequentemente a grupos religiosos que partilham elementos da cosmologia cristã. Há, claro, exceções, mas de modo geral os fluxos religiosos orientam-se, portanto, dentro de um espectro menos amplo se comparado àquele dos estudantes filiados a religiões de matriz não cristã. Reitera-se, portanto, a predominância de um exclusivismo religioso: os entrevistados tendem a frequentar somente o seu próprio grupo religioso, poucos são os que circulam por mais de um grupo e, quando o fazem, tendem a associar religiões afins.
Algumas considerações
Nossos dados corroboram duas tendências apontadas por cientistas sociais da religião: de um lado, identificamos dentre os alunos cristãos (isto é, católicos e, especialmente, entre evangélicos) da UFPR uma forte vivência exclusivista com seus respectivos grupos religiosos; por outro lado, também identificamos um alto índice de estudantes que se declaram “sem religião” ou ateus, exemplos vivos daquilo que a literatura consagra em termos dos “ventos secularizantes” (NOVAES, 2004) e de uma “secularização subjetiva” (CAMURÇA, 2017). A coexistência dessas duas tendências em nossa amostra nos permite demonstrar, justamente, não ser possível enquadrar o comportamento religioso juvenil em apenas uma ou outra direção: nem só de hibridações e apropriações individuais se faz a experiência religiosa dos universitários, uma vez que muitos se mostram atados a laços estáveis com um grupo religioso circunscrito; tampouco as formas tradicionais de vinculação religiosa são satisfatórias para todos os sujeitos. Nosso trabalho convida, assim, o leitor e a leitora a relativizarem as leituras que tendem a normatizar o comportamento religioso juvenil, nas quais se busca prescrever o que a experiência religiosa juvenil deve ser. O que buscamos é manter a atenção para a multiplicidade de formas que a experiência religiosa juvenil pode assumir.
Além disso, buscamos demonstrar algumas conexões entre vivências religiosas e itinerários formativos. Não foi nosso intuito demostrar as influências de A sobre B, ou seja, o quanto a pertença religiosa determina o fluxo das experiências universitárias e vice-versa. Respostas a essa questão demandariam outro tipo de estudo e nossos dados não permitem estabelecer essas relações causais. Mas podemos, no entanto, indicar alguns nexos que mostram particularidades no que diz respeito à formação de professores.
Ao longo do artigo demonstramos, por exemplo, que os alunos das licenciaturas da UFPR mostram-se, de modo geral, mais ativos em suas comunidades de fé, apresentando índices mais expressivos de participação rotineira nas atividades religiosas. Além disso, observarmos uma distribuição de alunos entre os diferentes grupos religiosos menos concentrada nas licenciaturas do que nos bacharelados, refletindo a adesão dos e das discentes da licenciatura a um conjunto mais diversificado de religiões, bem como maior abertura para conjugar duas ou mais religiões, embora a ampla maioria se engaje de modo exclusivo a uma única denominação e haja o predomínio da matriz cristã. Outro aspecto que nos chamou a atenção é que, dentre os estudantes dos cursos de formação de professores, há uma forte percepção de que a frequência às atividades religiosas é pouco alterada com a rotina universitária, mantendo-se nos níveis prévios à entrada na UFPR. Por outro lado, quando há diminuição na frequência, a falta de tempo e conflitos com o conhecimento veiculado pela universidade se configuram como justificativas de igual peso para esses estudantes, diferente do que ocorre com os colegas dos bacharelados. No aumento de frequência aos grupos religiosos, observamos que a religião é apontada como responsável por oferecer acolhimento em momentos de incertezas durante a graduação.
O quadro que esboçamos acima nos desafia a pensar sobre como a religião está, indelevelmente, inscrita na experiência de formação docente, de modo mais acentuado do que ocorre na formação dos bacharéis. O que encontramos no grupo dos licenciados é um convívio maior dos alunos com colegas de diferentes crenças - algo que pode influenciar na própria experimentação desses alunos em grupos diferentes do seu, ainda que de uma maneira não muito frequente, o que lhes faculta uma experiência de diversidade e de alteridade que é fundamental para seu exercício profissional. Mas nossos dados também permitem inferir que a adesão desses estudantes a uma gramática secular, igualmente fundamental para o desempenho como futuros professores, envolve nesse grupo desafios específicos.
Temos ainda um longo e desafiador caminho a percorrer na análise dos dados deste levantamento de modo a aprofundar a reflexão de como o conhecimento científico universitário se articula com a vivência religiosa dos alunos. Esperamos, com este artigo, ter aberto um campo de explorações, lançando o convite para olharmos com mais atenção para as relações entre o universo religioso e o universo acadêmico universitário brasileiro, bem como as relações, imbricações ou intersecções entre religião e espaço público tão caras para a defesa da laicidade.