Introdução
E pensar não é sobretudo raciocinar ou calcular ou argumentar, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e ao que nos acontece (LARROSA, 2017, p. 16-17)
Desrespeito ao nome social, episódios de transfobia institucionalizada e patologização das identidades trans têm sido apontados pela literatura científica como as principais causas de não acesso aos serviços de saúde pela população trans (ROCON et al., 2019). Diante desse cenário, emerge, na mesma literatura, uma aposta na insuficiência formativa por parte dos (as) trabalhadores (as) da saúde como causa da problemática em pauta.
Neste contexto, Arán e Murta (2009, p. 17) apontam: “nota-se que um dos principais desafios para implementação desta modalidade de assistência é a capacitação profissional da equipe interdisciplinar e medidas de humanização, para que se possa garantir um atendimento de qualidade e livre de discriminação”. Já Sehnem et al. (2017, p. 1682) afirmam ser a “falta de qualificação dos profissionais de saúde para o atendimento a esta parcela da população [...]” a problemática relativa à garantia do acesso à saúde pela população trans, em especial na atenção primária.
Souza et al. (2015, p. 774) sugerem, por sua vez, que “talvez, um primeiro passo seja repensar a formação dos profissionais que atendem as travestis, principalmente, a formação dos profissionais de saúde. Quem sabe se multiplicarmos meios de debater temas como sexualidade, gênero e diferença [...]”. Spizzirri, Ankier e Abdo (2017, p. 176) afirmam, a esse respeito, que “diversos estudos procuraram identificar como é realizada a abordagem das particularidades desse grupo de pessoas pelos profissionais da saúde. Essas pesquisas relatam atitudes que poderiam parecer ou ser consideradas discriminatórias e fóbicas”, apostando que, diante desse cenário, uma solução plausível seria capacitar e especializar os(as) trabalhadores(as).
No presente artigo, apresentamos as ideias de aprendizagens com os signos trans e transetopoiese disruptiva. Partindo delas, problematizamos a hipótese de uma insuficiência formativa quando esta se traduz num problema de ordem quantitativa, solucionável por um aumento do número de cursos, especializações, etc., disponibilizados aos(às) trabalhadores(as). Apostamos que no encontro entre os atores e as atrizes do cotidiano da saúde trans emergem, na forma de mal estar, aprendizagens com os signos trans que convocam um reposicionamento ético-político-metodológico dos(as) trabalhadores (as), uma transetopoiese que os(as) convoca a dar passagem, em seus corpos e vida, ao que difere, coemergindo com a população trans na produção de um saber etopoético
Metodologia
O meio comparece perturbando, e não transmitindo informações. Perturbar significa afetar, colocar problema (KASTRUP, 1999, p. 115).
A pesquisa que compõe este artigo se deu por postura cartográfica, assumindo a reversão metodológica hódos-metá, apostando naquilo que, no caminhar da vida, recortamos como campo empírico, e também que produzimos os dados, nunca presentes aprioristicamente, para analisar os problemas propostos.
Aqui, levantamos como problema percorrer as linhas de formação que recortam os serviços de saúde produzindo modos de trabalhar, gerir e cuidar com a saúde trans. Não necessariamente tentando produzir uma atenção a tudo o que acontece, até porque isso não seria possível, mas dando passagem ao que perturba, ao que afeta. “Como cartógrafos, nos aproximamos do campo como estrangeiros visitantes de um território que não habitamos. O território vai sendo explorado por olhares, escutas, pela sensibilidade aos odores, gostos e ritmos” (BARROS; KASTRUP, 2009, p. 61) e, assim, afirma-se uma determinada postura ética no campo de pesquisa.
Produzimos um conjunto de 9 (nove) entrevistas conversantes, com 7 (sete) trabalhadoras (enfermagem, serviço social, medicina e psicologia) e 2 (duas) pessoas trans (Homem e Mulher trans) de um ambulatório do processo transexualizador do SUS de um hospital universitário, que oferece serviços de hormonioterapia, cirurgias de redesignação sexual (mudança de sexo) e acompanhamento clínico, psicológico e social.
Apostar na conversa como ferramenta de pesquisa “[...] implica assumir, ética e politicamente, o fazer investigativo como uma (inter)ação compartilhada [...]” (RIBEIRO; SOUZA; SAMPAIO, 2018, p. 175). Assim, experimentamos uma entrevista conversante, evitando fazer da entrevista um conjunto de questões pré-estabelecidas, que assumam a forma de questionário estruturado, semiestruturado ou aberto com questão disparadora; “Qualquer que seja o tom, o procedimento questões-respostas é feito para alimentar dualismos” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 29). Nesse sentido, diferentemente,
Acompanhar a experiência do dizer, considerando e alimentando a circularidade intensiva entre os planos do conteúdo e da expressão, eis o desafio colocado ao manejo cartográfico da entrevista, eis o que buscamos na pesquisa dos processos que faz uso de entrevistas, sejam elas grupais ou individuais. Pensamos na entrevista como experiência compartilhada do dizer que, como vimos, em sua performatividade cria mundo, sempre. (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2013, p. 316).
Em acordo com os(as) participantes, gravamos em áudio digital as conversas e construímos notas num diário a fim de registrar sensações, desconfortos e aprendizagens emergentes, ou seja, o que escapava à gravação. Na mesma linha, registramos pausas, repetições, mudanças de rota, engasgos, tons e interrupções, bem como expressões faciais e elementos singulares da fala. Sobretudo, talvez, atentamos para os efeitos do encontro entre pesquisador, participantes e campo na produção da experiência da narrativa, ou seja, acompanhando a experiência do dizer, o que supõe uma abertura ao acontecimento, ao desconhecido, imprevisível, processual e não repetível (LARROSA, 2017), portando-se como “um território de passagem, algo como superfície sensível que [...] inscreve algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos [...]” (LARROSA, 2017, p. 25). Nesse sentido, somente por essa abertura foi possível a produção dos dados, uma vez que “[...] estes (que, por sinal, nunca são “dados”) não emergem somente depois do processo [...]” (RODRIGUES, 2018, p. 7).
O projeto de pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o parecer nº 3.334.302, e CAEE nº 05625118.4.0000.5542, quando, então, foi iniciada a pesquisa de campo à qual todos(as) os(as) entrevistados(as) consentiram na participação mediante preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Informações como nomes de participantes, do serviço e do hospital não são apresentadas, como forma de garantir o anonimato conforme acordado com os mesmos.
Resultados/discussão
Linhas de modelização dos modos de trabalhar, cuidar e gerir com a saúde trans
Em uma reunião com a direção, disseram: - “Você precisa ter um protocolo de quantos atendimentos você vai fazer antes de encaminhar para a cirurgia, se o paciente terá reação suicida, se ele vai se arrepender depois ou não vai”. Isso (risos). Exatamente. Então a vontade é falar assim: - “Não dá”. Porque aquele sujeito precisa de 30 [atendimentos], o outro precisa de 01 [atendimento], e se vai se arrepender ou não, eu não tenho bola de cristal (Trabalhadora 1).
Das mulheres eu me sinto um pouco mais desafiada, eu percebo que tem uma coisa assim, eu me sinto mais pressionada com relação a dar laudo, ao encaminhamento para a cirurgia, como será a cirurgia, como se elas estivessem seguindo aquela coisa do script para eu conceder um laudo. Eu, aí, quando eu tento sair um pouco disso, parece que eu não estou acolhendo (Trabalhadora 5).
Ela me perguntava se eu tinha um relacionamento, ou se não era, se era algo com muita frequência, as pessoas, como se dava isso. Como era com a família, aqui no trabalho como que funcionava… E, tudo mais. E, eu acho que os próximos encontros foram meio que a partir daquilo que eu estava trazendo, a todas as vezes que eu ia, que estava de certa forma me incomodando. Então, eu lembro que meu acompanhamento foi muito mais nesse sentido, e com relação a essa questão da cirurgia, e de entender o que eu queria, e porque, e tudo mais…. Meio que para justificar também isso do porquê querer a cirurgia (Usuária 1).
Esses três relatos mostram efeitos de processos formativos que disciplinam o processo de trabalho em saúde com a população transexual e travesti usuária de serviços transexualizadores, a partir dispositivos como protocolos, fluxos terapêuticos, manuais de diagnóstico e legislações. Por dispositivo, compreendemos
Um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos (FOUCAULT, 2014a, p. 364).
Os dispositivos citados atravessam os cotidianos da saúde trans configurando “[...] relações de forças, seja para desenvolvê-las em uma direção, seja para bloqueá-las, ou estabilizá-las, utilizá-las” (FOUCAULT, 2014b, p. 47), em função de tentativas de normalização dos corpos. Esse conjunto de dispositivos confluem para a produção do que Bento (2006; 2008) nomeou por dispositivo da transexualidade, que busca na produção de saberes, discursos de verdade, em meio a relações de poder, fixar os gêneros às estruturas corporais, aprisionar os corpos trans em verdades produzidas para os gêneros apresentadas como universais e anteriores às existências dos próprios corpos.
Tais verdades, mais especificamente, apresentam os gêneros numa perspectiva binária, segundo a qual “o gênero reflete, espelha, o sexo” (BENTO, 2006, p. 90), e as sexualidades, sob a norma heteronormativa, “a heterossexualidade [...] como o padrão [...]. Todas as outras formas de sexualidade são consideradas, na melhor das hipóteses, incompletas, acidentais e perversas; e, na pior, patológicas, criminosas, imorais e destruidora da civilização” (BORRILLO, 2010, p. 31). Nessa direção, “numa sociedade cujas normas predominantes para a inteligibilidade dos corpos residem no gênero binário e na heteronormatividade, todos os corpos inadequados a esse padrão poderão ser considerados doentes, como no caso dos corpos trans” (ROCON et al., 2016, p. 2524).
Sob tais perspectivas, as participantes nos apresentam o modo como os dispositivos em pauta, ao produzirem uma formação normalizadora, modelam modos de trabalhar, de se colocar no trabalho e, assim, possivelmente, ouvir, ver, falar e se relacionar com usuários e usuárias. Percebemos que tais dispositivos também cumprem um importante papel de vigilância sobre os corpos trabalhadores, à medida que, por meio da quantificação e vigilância dos atendimentos e/ou acontecimentos, exercem uma determinação central sobre as práticas e a organização do trabalho.
Não é demais lembrar, como pontuou Foucault (2014c) outrora, que os(as) trabalhadores(as) da saúde são o primeiro objeto de normalização no interior de um hospital que opera como clínica, para que, assim, possam operar processos disciplinadores e normalizadores sobre os corpos constituídos de pacientes, usuários, etc. Esse modo de operar também pode ser compreendido como efeito de uma formação calcada numa perspectiva de cientificização, protocolização e tecnificação das práticas com a saúde. Perspectiva que Camargo Jr. chama de biomedicina e, assim, analisa mediante três de suas proposições:
Dirige-se à produção de discursos com validade universal, propondo modelos e leis de aplicação geral, não se ocupando de casos individuais: caráter generalizante; os modelos aludidos acima tendem a naturalizar as máquinas produzidas pela tecnologia humana, passando o Universo a ser visto como uma gigantesca máquina, subordinada a princípios de causalidade linear traduzíveis em mecanismos: caráter mecanicista; a abordagem teórica e experimental adotada para a elucidação das leis gerais do funcionamento da máquina universal pressupõe o isolamento de partes, tendo como pressuposto que o funcionamento do todo é necessariamente dado pela somadas partes: caráter analítico (CAMARGO JR., 2005, p. 178-179).
A biomedicina apresenta, aos(às) trabalhadores(as) da saúde em formação, um corpo e um mundo pré-determinados, cuja invariabilidade é assegurada por uma normalidade ditada por leis biológicas universais de funcionamento. Nessa perspectiva de formação, prega-se o conhecimento e transmissão de informações, verdades científicas sobre normas e leis universais que regulam o funcionamento dito normal para o corpo e o mundo, a fim de aplicá-las, quando necessário, para o combate ao então concebido como desvios patológicos e sociais.
O diálogo com Camargo Jr. (2005) possibilita pensar uma quarta proposição sobre a biomedicina: inscrita numa ordem discursiva. Organizada como disciplina, a biomedicina estará implicada na produção de verdades sobre o funcionamento dos corpos, a partir de discursos sobre saúde e patologia, normalidade e anomalia, separando-a de outras teratologias referentes a um saber dito falso. Segundo Foucault (2014d):
No interior de seus limites, cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para fora de suas margens, toda uma teratologia do saber [...] A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras (FOUCAULT, 2014d, p. 31, 34).
O autor problematiza, em uma perspectiva genealógica, as produções de discursos em meio a jogos de poder e a constituição de um campo delimitado como verdadeiro. Nesse bojo, nem todo discurso será pressuposto como verdadeiro, assim como seu pronunciamento será organizado por jogos de interdição e normalização. Foucault (2014e) fala, nessa direção, de uma economia política da verdade, na qual “[...] a verdade está centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem [...]” (FOUCAULT, 2014e, p. 33).
Desse modo, durante as consultas com objetivos diagnósticos, nem todos(as) as pessoas trans poderão dizer o que desejam, quando desejam dizer algo ou com liberdade para apresentar suas experiências com os gêneros e as sexualidades. Aqueles(as) classificados(as), por um poder/saber médico, como anormais, loucos e, no caso deste texto, transexuais e travestis, estarão sob a égide de uma espécie de logofobia, que, segundo Foucault (2014d, p. 48), se apresenta como um temor ao discurso que possa ser apresentado como possuidor de algo de “[...] violento, de descontínuo, de combativo, de desordem [...]”.
À medida que “os discursos são elementos ou blocos táticos no campo das correlações de forças” (FOUCAULT, 2013, p. 112), os processos de uma formação normalizadora imputarão ao conjunto de práticas de saúde dos(as) trabalhadores(as) uma busca por desvendar as verdades por de trás das sintomatologias, das manifestações patológicas, desviando-se de possíveis enganos diagnósticos e terapêuticos mediante o uso de dispositivos diagnósticos protocolares. Dispositivos que são apresentados nos cotidianos da saúde como orientadores de uma prática dita baseada em evidências científicas, que estaria delimitada no plano do verdadeiro. Este plano, a verdade, ao ser proposta como elemento universal, invariável e produzido com base na neutralidade científica, necessariamente afasta um conjunto de proposições outras, concebidas como teratologias do saber.
A usuária 1, em sua fala, demonstrava cansaço. Talvez por termos conversado após sua saída do trabalho, ao final do dia; mas também acredito que pelo fato de ter de repetir, de reiterar, uma verdade aos(às) trabalhadores(as) que a acompanharam. Assim, ela nos conta que, para fazer a cirurgia, é preciso corresponder a um discurso de verdade sobre a transexualidade. Em sua fala, tornava-se necessário selecionar os elementos que correspondessem a uma ideia de transexualidade verdadeira, produzida pela operação do dispositivo da transexualidade. Nesta verdade produzida para a transexualidade, busca-se modelar as experiências dissidentes ao gênero binário a partir de discursos, poderes e saberes, enquadrando-as num regime de verdade que prega a impossibilidade de ser, viver e existir no mundo em perspectivas não previstas pelos binarismos de gênero e pela heteronormatividade.
Em um tom que misturava indignação e incompreensão, a usuária 1 questionou o porquê de o atendimento não poder ser diferenciado para aquelas e aqueles que apresentavam as alterações documentais; ou seja, um reconhecimento, pelo poder jurídico, da veracidade de suas identidades.
Dessa forma estandartizada configura-se um processo de trabalho que castra eventuais possibilidades de exercício de autonomia pela população usuária mediante uma polícia discursiva. Demanda-se uma correspondência entre as(os) usuárias(os) e a identidade transexual de verdade pensada pelos(as) trabalhadores(as). Estes(as) buscam uma possível correspondência entre as narrativas dos usuários e usuárias trans sobre suas experiências, no gênero e na sexualidade, e as verdades impressas em legislações e manuais diagnósticos, os quais apresentam a aferição da performance do gênero binário e da heteronormatividade, por parte da população trans, como um componente necessário do processo de trabalho e como condição de acesso aos serviços de saúde (ROCON et al., 2019). Nesse contexto, um usuário nos conta sobre o espanto de uma trabalhadora ao relatar suas experiências afetivas como gays: “Mas você é um homem trans com um homem? [...] Aquela coisa, assim: - “Mas, você. Eu achei que você ficava com mulher, homem trans”. Aquela cara que quando você vê, você imagina isso, sabe (Usuário 2).
O relato do usuário nos remete à análise que Bento (2008, p. 87) realiza sobre o processo de trabalho com os serviços de saúde para a população trans, apontando que “o único mapa que guia o olhar do médico e dos membros da equipe são as verdades estabelecidas socialmente para os gêneros”. Outro elemento a ser destacado é a interdição do discurso que podemos perceber na narrativa da usuária 1 como mulher transexual. No processo de acompanhamento, ela era bombardeada por perguntas a serem respondidas, sendo tais perguntas repetidas em outras consultas, a fim de aferir a veracidade das respostas. Tal interdição é percebida na medida em que a usuária não pode dizer o que talvez compreendesse como importante em seu processo de acompanhamento terapêutico, ou o que talvez simplesmente gostasse de dizer. A ela, era posta uma condição de apenas manifestar-se quando requerida e por meio das palavras esperadas de um(a) transexual de verdade.
Nesse cenário, pesquisas como as de Bento (2006; 2008) e Rocon et al. (2016; 2019) mostram como a população trans organiza seus discursos em consonância à ideia de transexualidade verdadeira expressa nos manuais diagnósticos e nas compreensões que os(as) trabalhadores(as) dos serviços transexualizadores possuem sobre gênero, sexualidade e transexualidade verdadeira. O script, então, seria uma estratégia de resistência frente às tentativas de interdição discursiva, a partir da qual é operada uma seleção do que dizer e do que omitir sobre as vivências e experiências com os gêneros e as sexualidades, a fim de conquistar o laudo que condiciona o acesso aos serviços de hormonioterapia e às cirurgias de redesignação sexual.
Nesse contexto, em sua fala, a trabalhadora 5 vislumbra apresentar suas tentativas de não tornar o laudo como elemento central em seu processo de trabalho com a população trans. Contudo, narra sentir-se desafiada, à medida que, segundo ela, as usuárias a pressionam pelo laudo, não possibilitando que a descentralização da emissão do laudo ocorra no acompanhamento terapêutico.
Seu olhar, enquanto fala, parece refletir dúvidas ou mesmo preocupação com o que está dizendo. Talvez para ela, naquele momento, estar diante de um pesquisador gay, por ela conhecido, poderia colocá-la em risco de ser repreendida por seu ato de fala sobre a cobrança do laudo pelas usuárias. Contudo, o que pensava durante sua narrativa e que analiso aqui é a força com a qual o dispositivo da transexualidade opera, e não apenas na produção da transexualidade verdadeira e correlata exclusão de pessoas transexuais e travestis dos serviços públicos de saúde mas, também, como tal dispositivo, de certa maneira, amarra, barra e impede tentativas de criar dispositivos de cuidado que escapem às normas binárias de gênero.
Podemos ver os efeitos de anos de interdição do discurso da população trans sobre suas vivências nos gêneros e sexualidades pela operação de um dispositivo da transexualidade pelos serviços de saúde. Assim, a presença de práticas que buscam superar o modo normalizador, disciplinador, medicalizador e patologizador pelo qual esses serviços têm se organizado, eventualmente poderá ser percebida como novas tentativas de auferir a presença, ou não, da transexualidade dita verdadeira, soando, em decorrência, como uma busca por surpreender os usuários e as usuárias num vacilo discursivo que prejudicaria seu acesso ao serviço de saúde.
Não é demais esperar tal resposta da população trans, uma vez que, como nos narrou a usuária 1, e também podemos verificar na literatura, a configuração dos(as) trabalhadores(as) da saúde como verdadeiros(as) inquiridores(as) sobre uma verdade produzida para os gêneros e os sexos está presente nos serviços transexualizadores desde a sua criação no Brasil, em 1997, pelo Conselho Federal de Medicina.
Tal análise nos ajuda a compreender que a exigência de protocolarização do processo de trabalho, como nos conta a trabalhadora 1, bem como o processo de diagnóstico que a perpassa - e que se apresenta e/ou tornamos mais evidente nas falas da trabalhadora 5 e da usuária 1 -, configuram uma normalização. Esta normalização atravessa as vidas dos sujeitos que compõem a paisagem existencial dos serviços de saúde à medida que as verdades que orientam, como mapa, os olhares dos(as) trabalhadores(as), são aquelas mediante às quais seus próprios corpos, gêneros e sexualidades foram igualmente normalizados.
É deste conjunto de processos nos cotidianos da saúde que Rocon (2020), em diálogo com Gilles Deleuze, Felix Guattari e Michel Foucault, diz emergirem linhas molares de uma formação normalizadora de gêneros, sexualidades e práticas dos(as) trabalhadores(as) da saúde. Segundo Deleuze e Parnet (1998, p. 151), “[...] toda a segmentaridade dura, todas as linhas de segmentaridade dura envolvem um certo plano que concerne, a um só tempo, às formas e seu desenvolvimento, os sujeitos e sua formação”. Delas derivam máquinas dicotômicas (homem/mulher, macho/fêmea, professor/aluno, mestre/discípulo, classes sociais, público/privado), de modo que se você não é a ou b, será c. (DELEUZE; GUATTARI, 2012; DELEUZE; PARNET, 1998). Tais linhas produzem um plano de organização que busca fixar identidades sob perspectivas normativas do gênero binário e de heteronormatividade, modulando modos de viver, ser e estar no mundo. As estratégias formativas que essas linhas percorrem se configurarão numa formação normalizadora: o conjunto de suas práticas tenderá ao controle e à normalização dos corpos dos(as) trabalhadores(as) para o também controle e normalização dos corpos trans sob verdades supostamente neutras, universais e invariantes.
As estratégias que compõem uma formação como normalizadora constituem uma espécie de ortopedia por padronizações. Assim, operam pela transmissão de informações e representações a serem aplicadas por trabalhadores(as) nos serviços de saúde, modelando as práticas em saúde - gerir e cuidar nos serviços de saúde -, orientados pelos manuais diagnósticos articulados pela transexualidade como verdade, operada pelo dispositivo da transexualidade.
As práticas que emergem dessa formação restringem ao extremo eventuais exercícios de autonomia, pela população trans, sobre seus corpos, gêneros e sexualidades, sobre suas histórias, vivências e experiências, na medida em que produzem uma relação hierárquica entre trabalhadoras(es) e usuárias(os). Tais práticas, permeadas por relações de poder/saber, operam a interdição de discursos da população trans considerados não verdadeiros, discursos passíveis de enunciar/anunciar possibilidades de viver com os gêneros, os corpos e as sexualidades para além dos limites normativos estabelecidos pelos discursos biomédicos para as transexualidades e travestilidades. Nesses termos, vislumbra-se o controle e/ou a dissipação de emergências criadoras de possibilidades de vivências com os gêneros e as sexualidades, tanto nos(as) trabalhadores(as) quando nos(as) usuários(as) trans, bem como em práticas em saúde que afirmem a diferença.
Em resistência à formação normalizadora, por uma transetopoiese disruptiva: fuga pelas aprendizagens com os signos trans
Eu aprendi também a desconstruir meu corpo. Quando você está nesse trabalho, não é um trabalho de uma via de mão única, né? Você está ali para resgatar também quem é você, a sua existência enquanto gênero, enquanto negra, a minha sexualidade, a minha libido. Tudo isso entrou no jogo, né? Por isso que eu acho que trabalhar com a transexualidade, na diversidade de gênero, é difícil. Ela te implica em várias questões, não é só você chegar lá, fazer seu atendimento, pegar sua bolsa e ir embora. Não, isso te acompanha! Te acompanha na sua casa, na sua relação com seu companheiro, nos seus desejos, e você também abre a sua mente: - “Eu posso também várias outras coisas” [...]. Então eu também sou uma mulher construída de uma forma diferente, mas o quanto eu tive que reprimir isso, até diante do meu parceiro, para que a gente consiga viver melhor. E agora, trabalhando com isso eu descubro, hello? Não é isso! [gargalhadas]. [...] Então, a gente precisa estar o tempo todo [se observando]. E trabalhar com a diversidade, ela te faz isso, ela te faz pensar no mundo, e vê que você pode fazer diferente. [...]. Eu como mulher, negra, aliás, eu falo sempre o contrário eu como negra e mulher, né? O quanto que eu tive que moldar o meu corpo, meu pensamento, para poder viver melhor em sociedade. Quando, na realidade, a sociedade é que tinha que tentar ser o contrário nessa história, né? (Trabalhadora 4).
A trabalhadora nos conta sobre suas aprendizagens nos encontros, conversas, olhares e escutas nos cotidianos de saúde nos quais trabalha com usuários e usuárias trans. Segundo Dias, Barros e Rodrigues (2018, p. 956), num encontro, temos a oportunidade de mergulhar numa “relação na qual o pensamento entra em conexão com aquilo que não depende dele”. Tal processo formativo, diferentemente de uma formação normalizadora, se firma numa convergência de afecções que decorrem da presença da população trans, com seus corpos e vivências, no território existencial dos serviços de saúde.
Nesse processo, a trabalhadora fala de um mergulho no pensamento sobre si, sobre as relações que estabelece com seu corpo, os gêneros, as sexualidades e sua cor. Nessa volta a si como cuidado de si, em termos foucaultianos (FOUCAULT, 2010), na qual se observam pensamentos, modos de conduzir a vida e de se relacionar com os outros e o mundo, a trabalhadora parece perceber-se calando e também moldando sua cor e suas vivências ditas masculinas para relacionar-se com seu companheiro e o mundo.
Interessa notar que, entre as trabalhadoras, ela é a única que posiciona sua cor e suas vivências como corpo muitas vezes marginalizado e cobrado por modelizações de modos de existência - mais uma vez, pautados no gênero binário e na heteronormatividade. Essa circunstância nos convoca, ainda que tal aspecto não seja aprofundado neste texto, a analisar as normas para gênero e sexualidade atreladas à branquitude, que confluem numa opressão “[...] cishetropatriarcal branca e de base europeia [...]” (RIBEIRO, 2020, p. 14). Processos de normalização esses que levaram a trabalhadora 4, por meio de técnicas de si, à produção de uma subjetividade mulher correspondente às dimensões de papéis prescritos, tanto na relação com o parceiro quanto com a sociedade.
A esse olhar sobre si, seus próprios pensamentos e modo de viver as relações com sexo, gênero e sexualidade, Rocon (2020) chamou de linhas de aprendizagens com os signos trans - que como linhas de fuga, podem ser “definidas por descodificação e desterritorialização (há sempre algo como uma máquina de guerra funcionando nessas linhas)” (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 112). A ideia de signos trans e da aprendizagem com tais signos é produzida em diálogo com Deleuze (2003, p. 29), para o qual mais importante que pensar é “aquilo que faz pensar”. De modo que “pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a experimentação sempre atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer” (DELEUZE, 2003, p. 136). Para o autor, pensamos e aprendemos algo pela violência com a qual os signos, por um encontro, nos convocam a decifrá-los pela sua experimentação como catalisadores de experiências. Para o autor:
A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; [...]. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifrados do mesmo modo, não mantêm com o seu sentido uma relação idêntica (DELEUZE, 2003, p. 5).
Relacionamo-nos com o mundo e o mundo conosco pelos signos emitidos por pessoas, objetos e matérias. Inventamos, criamos mundos, pelos sistemas de signos imersos nos encontros que realizamos: “O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende” (DELEUZE, 2003, p. 21). Deleuze (2003) discorre sobre a existência de quatro grupos de signos: os signos mundanos, os do amor, os sensíveis e os signos da arte. Os signos nos forçam a pensar porque:
O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Nem existem significações explícitas nem ideias claras, só existem sentidos implicados nos signos. [...] A criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos (DELEUZE, 2003, p. 91).
É pela violência de um signo, como catalisador da experiência que nos força a pensar, que experimentamos aprender com algo, alguém, alguma coisa. Muito diferente de uma aprendizagem prevista como acúmulo e transmissão de informações e representações, formação normalizadora na qual aprendemos por efeitos de recognição, estocando na memória para uma aplicação posterior, aprender com signos é experimentar um processo formativo temporal, da ordem do encontro, convocados(as) pelo mal-estar que movimenta o pensamento.
Dentre os signos trans, categoria proposta para nossa análise, privilegiamos os signos da arte propostos por Deleuze (2003, p. 13), signos desmaterializados para os quais convergem os mundanos, os do amor e os sensíveis, sendo o mundo da arte que “[...] os integra, dá-lhes o colorido de um sentido estético e penetra no que eles tinham ainda de opaco”. O signos trans são signos de uma arte de fazer-se trans, de experimentação ativa de uma vida como obra de arte, obra aberta pela manipulação dos corpos para viver e existir nos gêneros e nas sexualidade não limitados normativamente.
No encontro com as transexualidades e travestilidades temos a oportunidade de aprender com tais signos. Mas isso não quer dizer que eles pertencem aos sujeitos que vivem a transexualidade e a travestilidade; não se originam de uma dada identidade. Assim, a busca por uma interpretação objetiva dos signos trans, ligando-os a sujeitos ou identidades, provocará decepção.
A decepção é um momento fundamental da busca ou do aprendizado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não nos revela o segredo que esperávamos. [...] Poucas são as coisas não decepcionantes à primeira vez que as vemos, porque a primeira vez é a vez da inexperiência, ainda não somos capazes de distinguir o signo e o objeto: o objeto se interpõe e confunde os signos (DELEUZE, 2003, p. 32).
A decepção por tentar objetivar para compreender - por exemplo, ligar os signos trans às identidades trans - é o primeiro momento de uma linha de aprendizado. O segundo é “a tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva, em que construímos conjuntos associativos” (DELEUZE, 2003, p. 34). Como aprendemos, então, com os signos trans? Experimentando um encontro com eles. Nesse sentido, talvez a decepção dos(as) trabalhadores(as) de se encontrarem com os signos trans seja também a decepção de se encontrarem com a ausência da tão apregoada verdade universal sobre seus próprios corpos, gêneros e sexualidades.
Outro relato sobre aprendizagens com os signos trans retrata a problemática do nome social, que, apesar de previsto num conjunto de legislações, portarias e notas técnicas que orientam o trabalho com a saúde trans, permanece negligenciado.
A gente tinha um lugar para atender que era lá no ambulatório, as pessoas iam até lá, mas eu passei a fazer diferente, eu comecei a atender dentro do serviço social, porque eu queria que essa população entrasse no hospital. E aí começou a causar problema e eu comecei a ser chamada até pela a coordenação da portaria. [Questionavam] porque eu autorizava as pessoas a entrar mesmo estando com trajes que não eram apropriados. Mas, que trajes são esses que não são apropriados? Então, assim, as meninas que usam short curto podem entrar, por que, aqui, uma travesti que usa short curto não pode entrar? [...] Coisa que eles não costumavam fazer, não costumavam ter acesso a essa discussão, aos poucos foi se trazendo isso. É, pode ser que não tenha ocorrido a aceitação completa da pessoa em si, mas a gente fez um fomento dessa discussão, ela foi levada ali, eles tinham que encarar e tinham que aprender a lidar: - “É menino? É menina? Como é que eu chamo?” Então, essas coisas básicas, do tratamento, a gente conseguiu trazer ali pra dentro, dentro do serviço social que não se importou em discutir, desde a recepção o pessoal questionou: - “Como é que eu faço para chamar?” [...] Então, essa discussão foi para a mesa de refeição, [...] elas [outras trabalhadoras] acabavam sendo instigadas a isso porque as pessoas estavam me procurando, procurando os estagiários. E aí, como é que vai lidar? Então, eu acho que essa foi uma das estratégias que a gente começou a trazer para o trabalho, né? (Trabalhadora 4)
O uso do nome social e a recepção das pessoas trans nos serviços de saúde se configuram como um importante problema de acesso à saúde por essa população. A trabalhadora 4 nos apresenta, em sua narrativa, os efeitos do encontro dos(as) demais trabalhadores(as) da comunidade hospitalar, muitos deles não envolvidos com o processo transexualizador, com os corpos trans percorrendo os corredores do hospital.
Acontece então uma espécie de aparecimento público dos corpos trans no Hospital, sem o controle das clínicas, consultórios, ambulatórios, centros cirúrgicos, enfermarias, dentre outros espaços hospitalares delimitados pelos quais os corpos trans deveriam caminhar sob controle e vigilância. Ao circularem pelos corredores hospitalares, lugares que não previam a sua presença, os corpos aparecem como estão, com as roupas que usam, transtornando um ambiente que sente não mais poder controlá-los pela definição de vestimentas e de comportamentos aceitáveis para caminhar por aquele território.
O encontro com os signos trans, ao produzir mal-estar por forçar a pensar sobre o que até então não fora objeto de inquietação, faz com que o nome social e a discriminação emerjam como problema concreto no cotidiano das práticas em saúde. Não mais restritos aos serviços transexualizadores e suas estruturas dentro do hospital, provocam, com sua violência, os(as) trabalhadores(as) à produção de um novo corpo a fim de dar passagem a novos modos de existência, modos de gerir e de trabalhar.
Um problema que os força, no caso, a uma experiência, promovida pela mudança de postura; que força a emergência de um modo de trabalhar, de ouvir e de olhar para essa população a partir de uma relação consigo não prevista nem possível a partir da transmissão de informações, conceitos ou representações sobre gênero, sexualidade, travestilidade, transexualidade, etc.
Aprender com os signos trans é produzir, na ordem do encontro com as vivências trans, um saber etopoiético que, segundo Foucault (2010) em sua análise sobre o cuidado de si e o conhecimento de si dos gregos, possibilita a produção, modificação ou transformação de um êthos - algo bem diferente da verdade pensada como universal, invariável e anterior à subjetivação, presente na formação normalizadora.
Aprender com os signos trans é experimentar uma transetopoiese disruptiva, um movimento trans-eto-poi-ético de reposicionamento subjetivo pela produção de um êthos que experimente viver as relações de gênero e sexualidade de maneira desacomodadora ante as normas binárias e heteronormativas. Assim, a verdade não é aprioristicamente concedida ao sujeito: ele a encontra nas operações de trans-figuração e trans-produção de um êthos que dê passagem à diferença, “uma verdade descontínua, não-universal, dispersa e que se produz como acontecimento” (CANDIOTTO, 2007, p. 204)
O encontro com os signos trans produz o mal-estar de um encontro com o que difere, com o que é da ordem de um acontecimento e faz emergir uma verdade a qual, em sua violência, nos coloca a pensar. Uma verdade que, em sua provisoriedade, rompe com um campo de saber organizado e estabelecido, possibilitando a emergência de “um campo no pensamento que seja a encarnação da diferença que nos inquieta, fazendo do pensamento uma obra de arte” (ROLNIK, 1995, p. 246). Ainda segundo Rolnik:
O que nos força é o mal-estar que nos invade quando forças do ambiente em que vivemos, e que são a própria consistência de nossa subjetividade, formam novas combinações, promovendo diferenças de estado sensível em relação aos estados que conhecíamos e nos quais nos situávamos. Neste momento é como se estivéssemos fora de foco, e reconquistar um foco exige de nós o esforço de constituir uma nova figura. É aqui que entra o trabalho do pensamento: com ele fazemos a travessia destes estados sensíveis que, embora reais, são invisíveis e indizíveis, para o visível e o dizível. O pensamento, neste sentido, está a serviço da vida em sua potência criadora. Quando é este o trabalho do pensamento, o que vem primeiro é a capacidade de nos deixar afetar pelas forças de nosso tempo e de suportar o estranhamento que sentimos quando somos arrancados do contorno através do qual até então nos reconhecíamos e éramos reconhecidos (ROLNIK, 1995, p. 245).
É a força dos signos de uma vida como obra aberta, como devir, que força as trabalhadoras a um reposicionamento ético em suas práticas clínicas. Faz-se necessário mais do que leituras prévias sobre o saber já dado, saber que tem enquadrado as vidas trans numa prisão identitário-diagnóstica. Diferentemente, tal aprendizado se dá numa dimensão ética e estética, de criação permanente de práticas, de reposicionamento do cuidar, trabalhar e gerir com os serviços de saúde; também do olhar, do ouvir, do sentir e do problematizar a si e ao mundo; e ainda portador de uma dimensão política, decerto, “porque se trata de uma luta contra as forças que em nós obstruem a nascente do devir: forças reativas, forças reacionárias” (ROLNIK, 1995, p. 246).
O encontro com os signos trans convoca a um reposicionamento ético perante a vida, as experiências com o gênero e a sexualidade; um movimento transetopoiético disruptivo, de escape ao gênero binário e à heteronormatividade, convidando a modos de viver e trabalhar que afirmem a diferença.
Considerações inconclusivas
Apostar numa aprendizagem com os signos trans e, assim, na produção de um saber transetopiético e disruptivo nas relações com o gênero e as sexualidade, é afirmar a impossibilidade de pensar processos formativos com trabalhadores(as) da saúde para o trabalho nos serviços transexualizadores sem o encontro com as vivências transexuais e travestis. Mas não só: tais signos, com o mal-estar que nos convoca ao pensamento sobre o que temos feito de nós mesmos e de nossos modos de existência com os gêneros e sexualidade, podem nos ajudar a produzir dispositivos. Dispositivos que permitam a efetivação das políticas de saúde como políticas efetivamente públicas, cujo caráter público se engendre pela afirmação do direito à diferença e pela defesa de uma vida que, segundo Deleuze (2002), emerge pelo meio, como pura imanência.
Assim pensando, talvez possamos vislumbrar a criação de dispositivos formativos que nos permitam, nos jogos de poder/saber/discurso, romper com a hierarquia trabalhador(a)-paciente em direção à produção de uma lateralizarão dessa relação, engendrando assim uma “gestão coletiva e criativa do mal-estar para permitir a germinação de outros mundos” (PRECIADO, 2018, p. 17). Dispositivos formativos esses, cumpre insistir, que abram espaço para que os sujeitos possam voltar-se para si mesmos, experimentando movimentos transetopoiéticos que problematizem modos de viver e trabalhar, produzindo uma existência inventiva e bela nas relações que estabelecemos com os gêneros e as sexualidades.