O presente texto apresenta diferentes perspectivas de discussão da relação criatividade, emoção e educação. Inserindo-se no debate entre cognição e afetividade, entende a criatividade e a emoção como indispensáveis para o acesso à pessoa integral na educação. Pode-se entender a emoção e a criatividade como elo de ligação entre o funcionamento mental superior e a corporalidade. Emoção e criatividade se desenvolvem em um contexto histórico, cultural e social e, nesse sentido, o papel da educação evidencia-se como fundamental para o seu desenvolvimento e expressão.
Em tempos de modernidade líquida (BAUMAN, 2003), e no atual século XXI, pode-se dizer que as capacidades mais importantes a serem desenvolvidas pela escola são a criatividade e a emoção. O interesse pelo estudo da criatividade, tendo iniciado na segunda metade do século XX, volta-se primeiramente à pessoa criativa, sua personalidade e seus atributos (TORRANCE; 1983; SCHLEDER, 1992; STOLTZ, 1999; FLEITH, 2001). Nos Estados Unidos, país que se destaca por seus estudos sobre criatividade, a década de 1950 é marcada pelo financiamento de pesquisas no sentido de identificar e promover talentos em áreas de interesse (FLEITH, 2001).
Na década de 1960 e 1970, após um período de exacerbação das críticas em relação à escola, por seu caráter inibidor da criatividade, coube sobretudo ao movimento Humanista ou da Terceira Força em Psicologia (MASLOW, 1968; ROGERS, 1985; STOLTZ, 2000), um impulso importante voltado ao desenvolvimento da criatividade na escola, visto cada ser humano tem o potencial para ser criativo, segundo essa perspectiva teórica. Durante esse período, o interesse em torno da criatividade esteve voltado à promoção do desenvolvimento do potencial criativo individual.
É a partir da década de 1970 e 1980 que a psicologia cognitiva passa a predominar nos estudos sobre a criatividade. O foco recai sobre o processo criativo, buscando identificar as variáveis do contexto social responsáveis pelo desenvolvimento do processo. Muitas teorias de criatividade começam a ser desenvolvidas (FLEITH, 2001; FELDMAN; CSIKSZENTMIHALYI; GARDNER, 1994; GARDNER, 1993; CSIKSZENMIHALYI, 1996).
A partir de 1980, segundo Fleith (2001), predomina a visão sistêmica de criatividade (CSIKSZENTMIHALYI, 2014), que a entende como resultado da interação entre o indivíduo e o contexto histórico, social e cultural. Atualmente, não é possível falar de pessoas criativas sem fazer alusão ao contexto que possibilita o desenvolvimento dessa capacidade. Em especial, destaca-se o trabalho de Renzulli (1992, 1994) com seu Modelo de Enriquecimento Escolar. Há, portanto, um conjunto significativo de pesquisas que apontam para formas de desenvolvimento da criatividade, considerando o contexto histórico, social e cultural (ALENCAR, 1990, 1997, 1999; ALENCAR; FLEITH, 2009; GARDNER, 1993; AMABILE, 1996; CSIKSZENMIHALYI, 1996, 2014; NEVES-PEREIRA; BRANCO, 2015; PISKE et al., 2014; PISKE et al., 2016; PISKE et al., 2018; VIRGOLIM, 2018; VIRGOLIM; FLEITH; NEVES-PEREIRA, 1999; PISKE et al., 2020; PISKE; STOLTZ, 2020; STOLTZ; WIEHL, 2021) dentre outras. Por que, então, o desenvolvimento da criatividade permanence sendo um grande desafio para a escola e para a sociedade?
Baudson e Haager (2019) propõem um conjunto de aspectos que respondem a essa questão:
A criatividade desestabiliza: o que é conhecido dá segurança e permite um enquadramento interpretativo passível de ordenar as experiências cotidianas. A criatividade rompe com esse enquadramento. Ela trabalha com o novo e o desconhecido, que não pode ser previsto. No contexto da escola isso é ainda mais evidente. Os professores são geralmente orientados para a segurança e não para correr riscos. Os professores também não gostam de cometer erros. O fazer criativo, entretanto, exige conviver com a incerteza.
A criatividade incomoda: como consequência da incerteza que gera, a criatividade incomoda. Uma parte de nossa segurança está baseada no fato de nossa vida ser previsível. A criatividade atravessa os nosso planos. Estudantes criativos são geralmente menos bemquistos que os seus pares porque eles apontam quão ilusória é a crença de que tudo está sob controle.
A criatividade (parece) menos importante. A escola não se reduz ao domínio de competências a serem transmitidas. Embora um sólido conhecimento científico seja importante para o desenvolvimento da criatividade, a aquisição de conhecimentos e de competências para o mundo econômico revela-se como uma visão muito limitada e ilusória de que é possível predizer o futuro.
A criatividade é difícil de ser avaliada. A avaliação objetiva de produtos criativos não é fácil. Como desenvolver critérios justos para o que ainda não existe? Muitos produtos criativos somente são reconhecidos mais tarde. Como pode acontecer a avaliação na escola, se até nas artes há grande discordância?
A criatividade requer espaço, tempo e lazer. A criatividade precisa de liberdade para se desenvolver e, em nosso tempo regrado pela eficiência não se está aberto a esse tempo. Em nosso sistema de educação, a Arte, a Música, além da Educação Física são as primeiras a serem sacrificadas como luxo, em uma situação de poucos recursos. A ideia de que é preciso alimentar a cognição e preparar a pessoa para o mundo do trabalho, não é vista com a mesma força para preparar o corpo e as emoções. Ao lado disso, experimenta-se o excesso de inputs, o vazio e o não fazer nada focado no aparelho celular e outras mídias, que tornam a vida empobrecida.
Os aspectos citados afastam a escola do desenvolvimento da criatividade. Como forma de se contrapor a esse estado de coisas, Baudson e Haager (2019) sugerem:
Mente aberta: perceber primeiro e não julgar precipitadamente. Questionar criticamente as próprias convicções.
Coragem de fazer diferente, se há a convicção de que o caminho da maioria não é o melhor.
Capacidade de permitir espaço e um lugar vazio, tanto para os alunos como para si mesmo. É quando não acontece muita coisa externamente que pode acontecer algo internamente.
É justamente na direção de uma nova escola, que prepare pessoas para o século XXI, que o trabalho com a emoção, ao lado do trabalho com a criatividade é fundamental. “A emoção ou afeto refere-se a sentimentos que envolvem, perante estímulos ou situações ambientais, não só a avaliação subjetiva dos mesmos ou das mesmas, como também, processos somáticos-corporais e crenças culturais” (FONSECA, 2016, p. 366).
Diferentemente do processamento de informações do computador, o processamento de informações do ser humano avalia a partir de uma perspectiva emocional e não somente racional algorítmica. O processamento humano de informações dá colorido afetivo à informação e orienta-a subjetivamente para tomar decisões. Damásio (2012) sugere que as funções cognitivas são guiadas pela emoção e pela avaliação e julgamento das consequências das ações. Para a aprendizagem, a emoção vem antes da cognição e a acompanha, visto o cérebro atuar sistemicamente em um todo funcional e harmonioso. Dessa forma, a escola deveria se preocupar com o contexto social e emocional.
Ao mencionar a emoção não se pode deixar de citar a imaginação. A imaginação está ligada à emoção. A imaginação retira seu material da realidade e, dando-lhe novas significações, devolve à cultura leituras renovadas da mesma realidade. A imaginação é intelectual e emocional, o que também denota a criatividade (NEVES-PEREIRA; BRANCO, 2015). O que surge do encontro entre a pessoa e a cultura caracteriza-se como o novo e original. Dentro de uma perspectiva histórico-cultural, a criatividade pode ser vista como a marca da singularidade na ontogênese. Cultura pessoal e cultura coletiva interagem dando origem a novas configurações subjetivas e coletivas. A criatividade é assim entendida como função psicológica superior, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento socio-histórico (STOLTZ et al., 2015; PISKE; STOLTZ, 2020).
Diante desta breve introdução, os artigos que compõem este dossiê buscam discutir perspectivas de entendimento da criatividade e da emoção e suas repercussões no campo da educação a partir de pesquisas teóricas e empíricas.
Em meio à incerteza e complexidade do tempo presente, torna-se fundamental o investimento no desenvolvimento da criatividade na educação. A emoção está diretamente relacionada à criatividade, pois trabalha com outra lógica. É a partir das emoções e da criatividade que o ensino se torna significativo. Como compreender criatividade e emoção na educação? Como trabalhar na educação contribuindo para o desenvolvimento da criatividade e da emoção?
O conjunto de trabalhos justifica-se socialmente pela urgente necessidade de integração da dimensão da criatividade e da emoção no trabalho educativo (STOLTZ; WEGER; VEIGA, 2017; STOLTZ; WIEHL, 2021). O primeiro artigo que compõem o dossiê é de Merav Dechaume e Todd Lubart. Trata do Estilo parental e potencial criativo de crianças. Defende que estimular habilidades criativas em crianças e adultos constitui um objetivo importante para educadores e profissionais. Nesse sentido, o estilo parental, que inclui práticas de criação dos filhos, interações pai-filho específicas da criatividade e percepções sobre criatividade, está intimamente relacionado ao desenvolvimento do potencial criativo. Cinquenta e oito famílias participaram deste estudo. Foi apontada uma relação estatisticamente significativa entre as interações pai-filho específicas da criatividade e a percepção dos pais nos questionários de auto-eficácia de seus filhos. O estudo traz indicativos de construções vinculadas ao ambiente criativo da casa e relacionadas à transmissão da criatividade na sociedade.
O segundo artigo, de Vasiliki Beloyianni e Dimitrios Zbainos intitula-se: O que impede a criatividade? Investigando a influência percebida por estudantes do Ensino Fundamental II de barreiras à criatividade para melhorar a simpatia em relação à criatividade na escola. Este artigo enfoca as barreiras que impedem a expressão da capacidade criativa no contexto escolar. Essas barreiras podem variar em relação ao contexto cultural e à capacidade criativa individual. O estudo investigou barreiras à criatividade de alunos do ensino médio da Grécia. Os resultados indicam barreiras como falta de tempo e oportunidades, inibição, timidez e falta de motivação como obstáculos à criatividade, o que reflete um clima não propício ao desenvolvimento da criatividade nas escolas gregas.
O terceiro artigo, de Lola Prieto, Mercedes Ferrando e Carmen Ferrándiz intitula-se: Criatividade. Inteligência Emocional. Implicações educativas. As autoras propõem o estudo da relação entre criatividade e inteligência emocional, em 187 estudantes de alta capacidade (superdotados e talentosos). Os resultados indicam que a dimensão intrapessoal mostra correlações mais fortes com o pensamento divergente, sendo capaz de prever, timidamente, a criatividade. As diferenças entre estudantes de alta capacidade e seus colegas são estatisticamente significativas para o humor e adaptabilidade. Por fim, o artigo apresenta implicações educativas para o desenvolvimento do potencial criativo por meio das emoções.
As vulnerabilidades das altas habilidades e superdotação: questões sócio-cognitivas e sócio-afetivas abrange o quarto artigo de autoria de Angela Virgolim. Virgolim observa a necessidade de um olhar complexo e sistêmico das altas habilidades e superdotação, considerando a heterogeneidade desse grupo. Em resposta a essa complexidade, podem ser observados comportamentos sociais desajustados, hostilidade, agressão, baixo autoconceito, insegurança, frustração, raiva e sentimentos de inadequação. Essas características, se não forem trabalhadas, podem levar à posição de vulnerabilidade e de risco socioemocional. O conhecimento das características afetivas diferenciadas desses alunos e de suas necessidades pode auxiliar pais e professores a construir um ambiente mais adequado ao seu desenvolvimento.
Na sequência, Tatiana de Cassia Nakano, Ricardo Primi e Rauni Jandé Roama Alves apresentam o artigo Habilidades do século XXI: relações entre criatividade e competências socioemocionais em estudantes brasileiros. Os autores analisam a criatividade e competências socioemocionais de 362 estudantes do 3° e 5° ano, com idades entre 08 e 15 anos de escolas públicas municipais do Estado de Pernambuco, Brasil. Os resultados indicam correlações significativas entre a criatividade figural e quatro competências socioemocionais (conscienciosidade e amabilidade, abertura à experiência e locus de controle externo) e da criatividade verbal com duas dimensões socioemocionais (conscienciosidade e amabilidade). Indica-se a necessidade de estimular ambas no contexto educacional.
Dando seguimento ao dossiê, Fernanda Hellen Ribeiro Piske e Tania Stoltz apresentam o artigo: Criatividade na Abordagem Sociointeracionista e na Pedagogia Waldorf: implicações para o trabalho com superdotados. O objetivo do estudo é investigar o desenvolvimento da criatividade na Pedagogia Sociointeracionista e na Pedagogia Waldorf e suas implicações para o trabalho com estudantes superdotados. As propostas de Vygotsky e de Steiner vão ao encontro das necessidades de estudantes com altas habilidades/superdotação, sobretudo na consideração da mediação docente significativa. As propostas apresentam um ensino criativo e estético voltado ao amor ao conhecimento e à vida.
O sétimo artigo, de Ervin Karademir, da Turquia, aborda a Criatividade como habilidade. A criatividade, uma das habilidades mais importantes na educação, é uma habilidade de alto nível que ocorre interdisciplinarmente, na qual os indivíduos produzem produtos novos e úteis a partir da interação entre habilidade, processo e ambiente. O primeiro objetivo deste artigo é realizar uma revisão de estudos teóricos e experimentais sobre classificações e definições de habilidades e sua natureza dinâmica. O segundo objetivo volta-se ao desenvolvimento de uma prática em sala de aula para ampliar a criatividade de alunos talentosos. O resultado do estudo prático em sala de aula revelou que a habilidade criativa pode ser desenvolvida por meio de design e projeto.
Cristina Costa-Lobo, Susana de Sá e Alexandra Ribeiro são as autoras do Promoção de Talento & Intervenção Psicológica: contributos da literatura. Considerando ser o talento relacionado ao estudo da criatividade, as autoras propõem-se a contribuir, por meio de uma revisão sistemática, para uma leitura crítica e interpretativa das plurais linhas de investigação em torno do construto talento. A partir da seleção de 132 estudos, os resultados indicam que não é suficiente a existência de um talento inato. O talento deverá ser trabalhado a partir de diferentes variáveis, de forma ajustada, objetivando o seu crescimento. Concluem que há a necessidade concreta de sistematização das contribuições da Psicologia e das Ciências da Educação para o estudo do talento.
O dossiê integra artigos de seis nacionalidades: França, Grécia, Turquia, Espanha, Portugal e Brasil. Do Brasil, reúne artigos da região Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país. Trata-se de um conjunto de autores especialistas no tema da criatividade e/ou emoção na educação. Na organização do dossiê agradece-se especialmente à Dra. Fernanda Hellen Ribeiro Piske. Espera-se que o dossiê inspire o pensar, o sentir e o fazer criativo na escola, nos grupos sociais e na sociedade.