Introdução
O Programa Bolsa Estágio Formação Docente (PBEFD) foi criado pela Secretaria Estadual de Educação do Espírito Santo (Sedu-ES), por meio do Decreto n. 2563-R, de 11 de agosto de 2010 (ESPÍRITO SANTO, 2010) e atualizado pelo Decreto n. 160-R, de 10 de outubro de 2014 (ESPÍRITO SANTO, 2014). Trata-se de um programa estadual voltado para a oferta de bolsas de estágio não obrigatório a estudantes de licenciaturas de instituições particulares e públicas do ensino superior, abarcando todo o estado.
O interesse pela pesquisa veio da visibilidade que o PBEFD ganhou com o estudo de Gatti, Barreto e André (2011). As autoras já o identificavam como uma iniciativa importante e uma das poucas desenvolvidas com vistas ao aperfeiçoamento do estágio nos cursos de licenciaturas. Além disso, cabe destacar a duração do Programa no cenário político capixaba, de mais de 10 anos. Esses são fatores que levaram ao desenvolvimento de pesquisa de Doutorado voltada ao estudo do PBEFD. Um recorte dessa investigação é apresentado neste artigo que se volta à análise do contexto de influência (BALL, 2001) da criação e da implementação dessa política de estágio para a formação inicial de professores.
Para atingir o objetivo proposto, realizou-se uma análise bibliográfica e documental. Cabe ressaltar, com base em Evangelista (2012, p. 56), que a análise documental “[...] deve respeitar a pertinência aos objetivos inicialmente propostos, evitando-se tanto o alargamento exagerado da busca, quanto o seu estreitamento”. Desse modo, a compreensão adotada parte do pressuposto de que a seleção dos documentos não acontece de forma simples, mas a partir de amplo processo de reconhecimento, coleta, seleção e análise que demonstram ser importantes para a consecução do objetivo analítico deste artigo. Para isso, além do diálogo com a literatura do campo, procedeu-se à análise dos principais documentos relativos ao Programa Bolsa Estágio Formação Docente, sendo estes o relatório do estudo desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas (GATTI; NUNES, 2009); o Decreto de criação (ESPÍRITO SANTO, 2010); o Projeto de Implantação elaborado pela Sedu-ES (ESPÍRITO SANTO, 2011) e o Decreto de Atualização do Programa (ESPÍRITO SANTO, 2014).
O Programa foi criado em um cenário em que a formação inicial de professores é destaque nas políticas educacionais, em especial quanto às denúncias sobre as fragilidades da relação teoria-prática no processo formativo (GATTI, 2008; GATTI; BARRETTO; ANDRÉ, 2011). O que se sabe, de fato, é que essa relação é um desafio que persiste, principalmente a partir dos anos de 1990, quando a preocupação com a formação de professores se volta para a dimensão prática, em que a escola passa a ser considerada como lócus privilegiado de formação. E o estágio, em conjunto com as chamadas “práticas de ensino”, aparece como componente curricular de destaque para essa formação teórico-prática, o que reforça a importância da discussão proposta. Num primeiro momento, problematizamos o contexto global que configura a criação do referido Programa; em seguida, discutimos o contexto local. Por fim, apresentamos nossas considerações, no intento de concluir a análise trazida neste artigo.
A criação do PBEFD: o contexto global
Influenciada pelo cenário internacional, como descreve Brooke (2012), a reforma da educação gestada a partir dos anos 1990 possui vinculação com os ideários norte-americanos e ingleses, além de estar alinhada aos preceitos do neoliberalismo e da Reforma do Estado, que ocorreu notadamente, na realidade brasileira, nos governos de Fernando Henrique Cardoso (1994-2001). Também estava sob os auspícios da globalização (DALE, 2004; SHIROMA, 2016), o que ecoa na formação de professores, tanto inicial quanto continuada. Importa problematizar que a educação, nesse período especialmente, era apresentada como instrumento de desenvolvimento econômico e social, como uma espécie de Rei Midas1 (MARI, 2006), e as reformas objetivavam
[...] descentralizar a gestão, melhorar a qualidade, equidade e eficiência dos sistemas, dar maior autonomia e também cobrar maior responsabilidade da escola, investir mais e melhor na formação do professor e conectar a escola às demandas da sociedade (BROOKE, 2012, p. 326).
Ao se compreender o processo de internacionalização das reformas educacionais e localizar a América Latina, principalmente, tem-se uma semelhança evidente dos propósitos reformistas desse período, que se sustenta a partir dos eixos: “qualidade e equidade”; “propostas curriculares”; “gestão”; “avaliação das aprendizagens” e “aperfeiçoamento docente” (VAILLANT, 2005).
Situadas no centro dos debates das políticas educacionais e localizadas no cenário latino-americano sob o eixo do aperfeiçoamento docente, as políticas de formação implementadas buscam justamente incentivos para melhoria da qualidade da educação básica e programas de desenvolvimento profissional. Ideários que permanecem no campo educacional, mas que, para Vaillant (2005), não foram, de fato, suficientes para desenvolver a educação. A autora ainda critica o contexto político latino-americano ao identificar que vivenciamos um “paradoxo” na educação, pois exigimos habilidades, competências e compromissos de nossos docentes cada vez mais complexos, sem oferecer igualmente contrapartidas de formação, motivação e salário.
Considerando o contexto de influência mais amplo em que o Programa Bolsa Estágio foi gestado, as recomendações das atuais políticas educacionais e, no caso, da formação de professores, integram o que Ball (2014) chama de “redes de políticas”. Estas são uma espécie “de ‘social’ novo, envolvendo tipos específicos de relações sociais, ciclos, movimentos e constituem comunidades de políticas, geralmente baseadas em concepções compartilhadas de problemas sociais e suas soluções” (BALL, 2014, p. 29). Assim, como afirma Shiroma (2016), embora informais e fluidas, as ações destas redes definem metas, ressignificam conceitos, difundem visões de mundo que têm repercussões diretas sobre as formas de se pensar e se fazer educação. Para Ball (2014, p. 34), as análises de políticas educacionais não ficam restritas ao Estado de modo a pensar que
[...] essas redes constituem uma nova forma de governança e colocam em jogo, no processo das políticas, novas fontes de autoridade; há novas vozes nas conversas sobre as políticas e novos canais por meio dos quais os discursos introduzem o pensamento sobre políticas, bem como novas relações entre o global e o local.
Neste sentido, a disseminação de influências internacionais como, por exemplo, a concepção de formação que tem na figura do professor a centralização da qualidade, pode ser entendida a partir do fluxo de ideias que se dá por meio de redes políticas e sociais que envolvem a circulação internacional de ideias, o processo de “empréstimo de políticas”, da “venda” de suas soluções no “mercado educacional” e ainda o “patrocínio” ou a imposição de algumas “soluções” oferecidas e recomendadas pelos Organismos Internacionais (BALL, 2014). Ainda, para o autor, estes organismos podem ser considerados agências que exercem influência sobre o processo de criação de políticas nacionais, ainda que sempre recontextualizadas e reinterpretadas.
No âmbito da legislação, neste período reformista dos anos de 1990, no contexto brasileiro, cabe destacar que a promulgação da LDB/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) (BRASIL, 1996) representou algumas conquistas legais para o campo, como, por exemplo, a exigência de nível superior para atuação de professores da/na educação básica. Essa legislação também estabelece normas orientadoras importantes para a formação de professores quanto a suas finalidades e fundamentos. Enfatiza a associação entre teoria-prática, tanto na formação inicial quanto na continuada, e expressa preocupação com a práxis profissional, estabelecendo a ampliação da carga horária de prática de ensino. Para Azevedo et al. (2012), um dos principais pontos positivos desta legislação é provocar a necessidade de se repensar as estruturas de formação de professores no Brasil de modo a provocar mudanças nos currículos, especialmente no que concerne à associação teoria-prática e ao aumento das práticas de ensino na integralização dos cursos. Esse aumento reflete também na ampliação da carga horária dos estágios.
Entretanto, de acordo com Cury (1997), a LDB 9394/1996 trouxe problemas relacionados ao nível de formação, ao lócus institucional, à dualidade legal entre pedagogo e docente, bem como limitações no que se refere à carreira, à avaliação e ao pacto federativo. Dentre tais críticas, é importante destacar que o texto legal admitia inicialmente a coexistência de Universidades e Institutos Superiores de Educação (ISE) na formação inicial de professores, o que causou controvérsia no âmbito acadêmico. Nessa linha, Scheibe (2003) alerta que estes Institutos desresponsabilizam as Universidades pela formação do professor, o que poderia provocar, além de esvaziamento e desvinculação entre a pesquisa e a formação do professor, hierarquização no interior do ensino superior, ao colocar a formação docente no nível mais baixo, revestindo-a de um caráter técnico-profissional. Em concordância, Saviani (2009, p. 148) adverte que, ao contrário das expectativas, ao introduzir estes institutos e as escolas normais superiores como alternativas à formação de professores e aos cursos de Pedagogia, a referida LDB acabou nivelando a formação por baixo, uma vez que, “[...] os institutos superiores de educação emergem como instituições de nível superior de segunda categoria, provendo uma formação mais aligeirada, mais barata, por meio de cursos de curta duração”.
De modo geral, as críticas às políticas de formação de professores gestadas principalmente após a LDB/1996 estão direcionadas ao seu caráter, considerado pragmático, elegendo a Pedagogia das competências como ideário central, atrelada à noção de qualidade (SCHEIBE, 2003; FREITAS, 2007; BRZEZINSKI, 2008). Para Barreto (2015), essa questão se tornou ainda mais latente na década de 2000, com a proliferação dos cursos na modalidade a distância, sendo este um grande mercado, especialmente para o setor privado. Para a autora, essa expansão se justifica para atender ao disposto em lei, mas não implica melhoria da qualidade da educação básica, tampouco da formação dos profissionais.
Outra legislação da educação no país emergente após a LDB que cabe ser mencionada, no que tange ao tratamento da formação de professores, é o Plano Nacional de Educação (PNE). Este documento tem como propósito determinar as metas e estratégias para a política educacional em um período de dez anos. Essa ideia de um plano fixado em lei é trazida desde a Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 2016) e reforçada na LDB/1996 (BRASIL, 1996). Cury (2009) ressalta que, em especial, a LDB obriga a União a elaborar o plano em colaboração com estados e municípios, em sintonia com a Declaração Mundial Educação para Todos, construída em Jontiem nos anos de 1990. Apesar disso, para ele, o Plano Nacional de Educação do ano de 2001 representou mais uma carta de intenções do que propriamente um plano de metas e estratégias para a educação brasileira, tendo em vista que não havia a previsão de estratégias nem de recursos para o cumprimento das metas, o que tende a fragilizar a sua real execução. No que se refere especificamente à formação de professores, o referido PNE previa assegurar em no mínimo cinco anos, a formação em nível médio na modalidade normal e, em 10 anos, em nível superior. Ainda assim, a questão da valorização profissional ficaria comprometida, uma vez que, o conflito entre formação em nível médio e superior não fora solucionado.
Cabe ressaltar que, a partir da primeira gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), iniciada em 2003, criou-se, entre as camadas populares, expectativa de maior diálogo com as entidades representativas de diversas áreas voltadas para o “social”, especialmente a educação. Para Scheibe (2003), estava no horizonte destas categorias, nesse momento, a promoção da autonomia das universidades públicas e sua manutenção efetiva pelo Estado; a revisão da política de formação de professores; e o investimento de verbas públicas na educação pública. Neste ponto, cabe salientar as principais iniciativas do governo Lula (2003-2006) tendo em vista o cumprimento dos compromissos firmados no Plano Nacional de Educação: criação de universidades federais; expansão da rede profissional tecnológica; autorização para contratação de professores e funcionários para redes federais de ensino técnico e superior; formação e qualificação de professores da educação básica; investimento em pesquisa e na formação de mestres, doutores e pós-doutores, entre outras.
Neste contexto, tem-se a criação do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), aprovado ainda no primeiro mandato do governo Lula, haja vista o atingimento das metas previstas no PNE de 2001-2010. Além disso, ressalta-se que o ano de lançamento do referido PDE se localiza justamente no prazo máximo estipulado pela LDB/1996 para as medidas previstas serem tomadas. De acordo com Malini (2009), o PDE configura-se como uma medida emergencial do governo Lula a fim de garantir “visibilidade” em termos de ações voltadas para a educação no período do seu mandato, ou seja, uma estratégia política. Nessa perspectiva, concorda-se com as análises de Malini (2009) que o PDE se refere a um plano elaborado pelo Ministério da Educação (MEC) de forma distinta do PNE, pois não envolveu qualquer tipo de consulta ou participação social. Sendo assim, consiste numa espécie de “projeto guarda-chuva”, no qual se agrupam programas e ações voltados para o cumprimento das metas previstas no PNE (MALINI, 2009).
Compreende-se que o PDE influenciou sobremaneira a criação da maioria dos programas atuais para a formação e valorização dos profissionais da educação, ocorridos especialmente nos anos de 2006 e 2007. Diante disso, tem-se a urgência (em virtude do esgotamento do prazo, conforme a década prevista na LDB de 1996) da composição de uma política nacional de formação e valorização dos profissionais da educação, de modo a garantir a integração necessária aos programas e ao contexto, bem como às discussões do campo.
No geral, observa-se uma conjuntura discursiva e de encaminhamentos políticos que aproxima a formação de professores a uma perspectiva de desenvolvimento profissional, em que o professor assume centralidade no processo de formação/atuação profissional, de modo que seus saberes são investigados e levados para o cerne da formação. Saberes que são plurais, complexos (TARDIF, 2012) e envolvem temas da sociedade globalizada atual, dentre os quais o das inovações tecnológicas - o que pressupõe formação digital. O jargão predominante das políticas atuais é a busca pela "qualidade". Decorre desse contexto a necessidade de planejamento. Importa, ainda, considerar, com base em Freitas (2007), que sinalizava o “tripé” das agências reguladoras das políticas vigentes, inclusive as de formação docente, de modo que a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) regula a formação de professores; o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa Educacionais Anísio Teixeira (INEP) o eixo da avaliação em larga escala e o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), os recursos.
Em meio a esse cenário composto por discussões e iniciativas políticas, o último e ainda vigente PNE (BRASIL, 2014) foi aprovado com atraso, haja vista conflitos e disputas de interesses, fazendo com que a tramitação, da elaboração do texto até sua a redação final, durasse três anos. Trata-se de um plano que reforça basicamente os ideários do plano anterior (2001-2010), mas bem menos extenso, por conter 20 metas. Quanto à formação de professores, o referido plano reafirma as metas anteriormente traçadas, indicando a necessidade de melhoria da qualidade dos processos de formação, inicial e continuada, e a valorização profissional. Para Cury (2011), o PNE de 2014, diferentemente do anterior, representa uma oportunidade valiosa para avançar na qualidade e na quantidade da educação, por assinalar os recursos, bem como as estratégias necessárias ao cumprimento das respectivas metas. Ressalta a importância de que o investimento e os gastos em educação sejam feitos com rigor, racionalização e respaldo legal. Contudo, como afirma o autor, a execução do disposto nas metas ainda depende de muitos fatores, dentre os quais a concretização de um Sistema Nacional de Educação, tendo em vista a falta de lei complementar que defina o incremento financeiro que cabe à União no regime federativo que temos (CURY, 2011).
Com relação à formação inicial, em análise breve do texto legal do PNE vigente, foi observado que, das metas que compreendem formação e valorização profissional docente a meta 16 trata da ampliação da formação em nível de pós-graduação e do desenvolvimento de programas de formação continuada. As metas 17 e 18, por sua vez, tratam da valorização profissional ao prever planos de carreira, piso salarial e estruturação das redes de escolas da educação básica, de modo a prover melhores condições de trabalho para os profissionais. A meta 15 implica propostas de formação inicial, ao prever a política nacional de formação dos profissionais da educação. Passados mais de 20 anos da promulgação da LDB, persiste tal desafio.
Entretanto, concorda-se com Gatti (2013, p. 64) sobre o fato de que, “[...] mesmo com novas iniciativas em políticas de formação docente, continua sem solução a questão dos currículos e das formas institucionais quanto à formação inicial de professores - na verdade, quanto ao cerne dessa formação”. Segundo a autora, a escola mudou em decorrência das mudanças da sociedade, mas a formação inicial de professores não acompanhou tais mudanças e evoluções. Torna-se necessário questionar as estruturas curriculares, os arranjos organizacionais das universidades e o protagonismo das escolas nesse processo, haja vista uma real integração teoria-prática, ainda problemática no percurso da formação inicial docente.
Outro aspecto prescrito pela legislação em vigor é a autonomia pedagógica concedida às instituições formadoras, o que pode representar a permanência de variadas interpretações na estruturação dos projetos pedagógicos de curso e currículos da formação inicial de professores. Em contexto mais amplo, ao levar em conta a função social da universidade, a autonomia das Instituições de Ensino Superior (IES) brasileiras não pode ser concebida como liberdade total de autorregulação, tendo em vista que não seria legítima se ferisse o direito social de educação, garantido constitucionalmente (DURHAM, 2005).
Cabe considerar ainda a tradição da universidade em supervalorizar os conhecimentos teóricos e da pesquisa, o que acaba acarretando certa “crise das licenciaturas” (ARANHA; SOUZA, 2013), ou, o que se pode dizer, de certo descaso com os conhecimentos práticos, voltados ao ensino, mesmo reconhecendo o esforço por parte desta instituição na direção da articulação teórico-prática dos conhecimentos no processo de formação inicial. Demo (2011) problematiza a separação do ensino e pesquisa no âmbito universitário, por meio de elevação a nível mais prestigiado desta última, em detrimento do primeiro. Além disso, pesquisas anteriores já denunciavam as fragilidades da formação inicial neste quesito, tanto no cenário brasileiro quanto internacional, que versavam na falta de: articulação entre os conhecimentos teórico-práticos; clareza nos princípios de valorização profissional e concepção da formação como um continuum; objetividade e finalidade das propostas de formação, bem como das ementas de disciplinas e estágio; inserção dos componentes práticos e imersão na realidade da profissão docente ao longo do curso (NÓVOA, 1995, 2012, 2013; MARCELO GARCIA, 1999; MARCELO, 2009; IMBERNÓN, 2011, 2016; GATTI; NUNES, 2009; GATTI; BARRETO, 2009; GATTI et al., 2013, 2015).
No contexto internacional, importa ainda situar a realidade da formação docente na Inglaterra, a fragilidade que pode representar essa supervalorização, pois os autores sinalizam que a prática tem sido tão valorizada que os processos de formação se tornaram mais centrados nas escolas de educação básica, enfraquecendo o status e a autonomia das Higher Education Institutions (LÜDKE; SCOTT, 2018). Indo ao encontro desta lógica, o Programa Residência Pedagógica (BRASIL, 2018a), corrobora que o estágio e o âmbito prático da formação são as dimensões mais valorizadas pela política nacional recente, pelo menos no âmbito discursivo. O referido Programa tem como objetivos: aperfeiçoar a formação dos discentes de cursos de licenciatura, por meio do desenvolvimento de projetos que fortaleçam o campo da prática e conduzam o licenciando a exercitar de forma ativa a relação entre teoria e prática profissional docente, utilizando coleta de dados e diagnósticos sobre o ensino e a aprendizagem escolar, entre outras didáticas e metodologias; induzir a reformulação do estágio supervisionado nos cursos de licenciatura, tendo por base a experiência da residência pedagógica; fortalecer, ampliar e consolidar a relação entre a IES e a escola, promovendo a sinergia entre a entidade que forma e a que recebe o egresso da licenciatura e estimulando o protagonismo das redes de ensino na formação de professores; promover a adequação dos currículos e propostas pedagógicas dos cursos de formação inicial de professores da educação básica às orientações da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2018b).
Diante do cenário global discutido nesta seção, cabe entender o contexto local, do estado do Espírito Santo, onde o Programa Bolsa Estágio foi criado e implementado. É o que discute a próxima seção.
A criação e implementação do PBEFD no Espírito Santo: o contexto local
Na seção anterior problematizou-se o contexto nacional em que surgiu o Programa Bolsa Estágio Formação Docente como uma iniciativa da Sedu-ES. No âmbito mais local, numa estreita relação e interação entre global e local (BALL 2014), o Programa ganha relevância haja vista a necessidade de melhorias na formação inicial capixaba, como mostraram dados de diagnóstico, publicado em 2009, realizado pela Fundação Carlos Chagas (FCC)2, a partir da solicitação da Sedu-ES, e coordenado pelas professoras Bernardete Angelina Gatti e Marina Muniz Rossa Nunes. Essa pesquisa analisou 58 currículos de cursos de formação inicial ofertados no estado do ES por instituições públicas e privadas, sendo 34 cursos de Pedagogia; 7 cursos de Letras3; 8 cursos de Matemática e 9 cursos de Ciências Biológicas. De modo geral, evidenciou que os projetos pedagógicos de curso de formação inicial de professores do ES estão adequados à legislação sobre formação de professores quanto à estrutura e carga horária, atendendo ao disposto legalmente. O discurso da integração teoria-prática está presente em todas as propostas curriculares analisadas neste estudo, mas a descrição das ementas mostra algumas fragilidades, entre as quais a grande variação entre os tipos de ementas, que mostram textos vagos, pouco claros e sem indicação de como essa integração acontece no processo de formação. Em relação aos estágios, o estudo da FCC denuncia que os currículos dos cursos analisados no ES apresentam esse componente formativo com uma carência de definições relativas aos objetivos, a orientações e à forma de acompanhamento das atividades desenvolvidas. Ainda, constata que não há nenhuma ementa que especifique como se dá a articulação teoria-prática nesses estágios e não se prevê nenhum produto a ser produzido pelos alunos durante e após a sua realização no curso de formação inicial.
Os documentos oficiais do Programa, bem como as entrevistas realizadas, em especial aquelas com o grupo de Gestores da Sedu-ES e da Universidade Federal do Espírito Santo, sinalizam que ele é criado pela equipe da Secretaria a partir destas deficiências constatadas nos currículos de formação inicial de professores, mediante a referida pesquisa solicitada pelo Secretário de Educação da época, Sr. Haroldo Correa Rocha.
Na ocasião desse trabalho da Fundação Carlos Chagas junto à Sedu-ES, as instituições formadoras de professores no Estado, tanto públicas quanto privadas, foram mobilizadas para discussão de seus currículos de formação a partir das fragilidades detectadas. Ao falarem desta proposta, Gatti, Barreto e André (2011) afirmam que tais discussões aconteceram em seminários realizados no segundo semestre de 2010 e no primeiro semestre de 2011. Para as autoras, representou um avanço no Estado, haja vista ter sido uma iniciativa inédita. Nestes encontros
[...] os focos centrais foram a problematização de questões sobre a própria identidade dos cursos, sobre o desenvolvimento das metodologias de ensino e aprendizagem e dos estágios supervisionados, considerando-se ainda a proposta curricular do Espírito Santo para a educação básica. Várias proposições foram consolidadas pelos coordenadores participantes, as quais as instituições discutirão, dentro de suas características. A SEE pretende levar avante o processo de discussão e articulação SEE-IES, mediante seminários e dinamização de fórum sobre a formação de docentes no estado (GATTI; BARRETO; ANDRÉ, 2011, p. 132).
Analisando criticamente esse contexto, cabe destacar, de modo geral, que as políticas implementadas no estado do ES sofrem influências de grupos empresariais, indo ao encontro do que Ball (2014) indica no sentido de as análises de políticas educacionais não estarem restritas ao Estado, mas de identificar novas vozes e modos de governança nessa rede de políticas. Nesse contexto, foi identificada a influência exercida pelo grupo “Espírito Santo em Ação”, uma Organização Não Governamental (ONG), criada em 2003. Esta se constituiu a partir de uma crise política instaurada no Estado do ES, consequência de gestões de governadores desse período. O referido grupo apoiou, no ano de 2002, a candidatura do governador Paulo Hartung, eleito na época. O estudo de Rainha (2012) analisa como esse grupo vem se articulando nas propostas políticas do estado do ES, exercendo importante papel no Executivo e afirma que fica praticamente impossível perceber onde estão os interesses do grupo e/ou os do governo, não só de Hartung, mas de seu governo sucessor, Renato Casagrande4. Desse modo, tal grupo empresarial atua como formulador da agenda do governo, o que o eleva a um influente ator político, com propósitos e projetos. A ONG “Espírito Santo em Ação” é composta, em sua maioria, por empresários, mas ainda conta com consultores, intelectuais e outras personalidades de várias áreas no ES que tenham interesse em comum e em projetos/propostas específicas. Indicativo disso é que sua criação se associa ao primeiro mandato de Paulo Hartung, em 2003, havendo sua reeleição em 2006 para a gestão 2007-2010, e depois seu retorno no mais recente mandato (2015-2018).
As demandas de gestão do estado do ES são captadas e formuladas nos comitês temáticos que compõem o grupo “Espírito Santo em Ação”, onde há representação dos membros individuais e indiretamente das empresas conveniadas a este, conforme as áreas de interesse, a saber: gestão social, educação, segurança cidadã, rede empresarial, desenvolvimento, infraestrutura logística, meio ambiente, inovação, inserção competitiva, economia verde. Na área educacional têm-se, como mantenedoras do grupo, importantes instituições do estado, como a Faculdades Integradas Espírito Santense (Faesa), Fundação Instituto Capixaba de Pesquisas em Contabilidade, Economia e Finanças (Fucape) e Faculdade Centro-Leste (UCL). Ainda, o presidente do referido grupo no ano de 2017 é empresário mandatário de uma destas instituições do ramo educacional.
As análises de Rainha (2012) mostram que o governo Paulo Hartung, no segundo mandato (2007-2010), elaborou seu plano de gestão governamental, sob a decisiva participação do grupo empresarial “Espírito Santo em Ação” no processo de formulação das políticas públicas deste período e destaca, ainda, a ausência da participação da sociedade civil. Isso coincide com a criação do Programa Bolsa Estágio Formação Docente, cujas discussões iniciadas a partir do estudo da FCC, em 2009, se estenderam até a publicação do Decreto, em 2010. Cabe ressaltar, deste ponto, que as instituições formadoras que estiveram no seminário de mapeamento da situação da formação no Estado do ES, promovido pela FCC, não participaram para a construção e definição dos pressupostos do Programa Bolsa Estágio Formação Docente, conduzido especialmente pela Sedu-ES.
Deste ponto, problematiza-se como essa parceria público-privada vem sendo construída na criação, implantação e gestão de programas e propostas políticas para a educação, de modo específico, e os outros segmentos, de forma mais ampla. Isso reforça o atrelamento das políticas educacionais do Estado com a tônica de avaliação de resultados e eficiência. Sabe-se que ao auferir os resultados, o desempenho é um importante e necessário norteador para a gestão de políticas educacionais. Contudo, se não bem encaminhadas e acompanhadas as propostas desenvolvidas, tais resultados podem produzir, contraditoriamente ao objetivo inicial, reflexos na formação não condizentes com uma concepção de desenvolvimento profissional, pautados pela lógica simples de “ranqueamento” e “aplicacionista”. Nesse sentido, concorda-se com Malini (2009) quando problematiza as consequências que podem trazer essa tônica empresarial das políticas brasileiras, especialmente ao analisar a gênese do PDE atrelada aos interesses de grupos como Itaú, Instituto Ayrton Senna, todos que se encontram dentro de um movimento conhecido como “Todos pela Educação”5, e nos faz refletir sobre
[...] a adoção de um modelo educacional pautado tão somente no apreço ao desenvolvimento econômico em que as dimensões sociais e filosóficas, assim como a política são relegadas a segundo plano, pode produzir indivíduos pouco conscientes da natureza de seu papel de sujeito e agente transformador da sociedade dentro da qual está inserido (MALINI, 2009, p. 114).
Nesse cenário, o decreto de criação do Programa Bolsa Estágio Formação Docente (ESPÍRITO SANTO, 2010) considera a legislação pertinente ao estágio, em especial a n. 11.788/2008 (BRASIL, 2008); a importância de os estudantes vivenciarem em sua formação a realidade escolar e de sala de aula enquanto mecanismo integrador do momento do saber e do fazer pedagógico; a relevância da escola pública enquanto oportunidade de os licenciandos atuarem no cotidiano escolar por meio do estágio; e os resultados do estudo promovido pela Fundação Carlos Chagas em 2009, citado anteriormente. Desse modo, seus pressupostos indicam que o Programa visa atender às deficiências da formação inicial no ES, em especial no que tange às fragilidades na articulação entre teoria e prática na formação, em consonância com a legislação nacional do estágio n. 11.788/2018, e com o discurso da política nacional de formação de professores, especialmente a partir dos anos 2000. Para isso, o Programa estadual
[...] tem por finalidade contribuir para a formação profissional dos futuros professores, estreitando as relações entre teoria e prática, de modo a associar o conhecimento do conteúdo com os conhecimentos didáticos e metodológicos necessários à educação básica (ESPÍRITO SANTO, 2010, p. 17).
Tendo em vista essa finalidade, a Sedu-ES ofertou no período de 2012 a 2016, 2.168 bolsas no total, desde a assinatura dos primeiros contratos. Destas, 1.644 foram destinadas a licenciandos de IES particulares e 524 aos de IES pública. Apesar de o Programa Bolsa Estágio ter sido criado em 2010, sua tramitação legal e organização durou dois anos até sua efetiva implementação, o que justifica que a assinatura dos primeiros contratos tenha sido apenas em 2012.
Prevê o Decreto de Criação do Programa (ESPÍRITO SANTO, 2010), que o PBEFD se destina a estudantes de licenciatura que estejam, pelo menos, no 4º período do curso, abrangendo todo o Estado do ES. Para participar, o estudante deverá residir no estado do Espírito Santo, estar matriculado e ter frequência em curso de licenciatura em IES conveniada à Sedu-ES. Quanto à adesão formal, como previsto em legislação federal para o estágio n. 11.788/2008 (BRASIL, 2008), deverá haver assinatura de um termo de compromisso pelo estudante de licenciatura, pela IES, pela escola campo, e pelo agente de integração, neste caso, o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE). Os licenciandos, enquanto estagiários remunerados do Programa são direcionados às escolas públicas do ES e devem cumprir uma carga horária máxima de 4 horas diárias, 20 horas semanais, e ser acompanhado por professor supervisor da escola de educação básica, conforme a área de formação inicial escolhida na graduação. Os estagiários são selecionados por meio de edital, divulgado e gerido pela Sedu-ES junto do CIEE, que é a instituição intermediadora deste processo seletivo. A bolsa poderia ter duração máxima de 2 anos, e ser interrompida a qualquer momento, seja a pedido da escola campo de estágio ou do próprio estagiário.
Para o desenvolvimento das atividades, o decreto de criação (ESPÍRITO SANTO, 2010) prescreve, no Art. 4º, que esse estágio deverá propiciar aos futuros docentes: o desenvolvimento da competência didática; a vivência das situações reais de planejamento de ensino, de dinâmica da sala de aula e de avaliação da aprendizagem; o relacionamento cooperativo com os profissionais da escola e pais e responsáveis pelos alunos; a colaboração produtiva no desenvolvimento das atividades docentes; a incorporação de uma cultura profissional, da cultura da escola como organização social complexa e da cultura do sistema de ensino. Ainda, a análise documental dos contratos didáticos do Programa, firmados via termos de compromisso, conforme padrão previsto na Lei Federal de Estágio (BRASIL, 2008) preveem a realização de atividades de observação e participação em sala de aula; monitoria a grupos de alunos da educação básica; regência de classe orientada pelo professor supervisor; participação em projetos de pesquisa e outros de interesse da escola; seminários temáticos, oficinas, minicursos e outros, direcionados a alunos da educação básica, professores, pais e demais funcionários das escolas campo de estágio.
Quanto ao valor da bolsa, a técnica responsável pela gestão financeira do Programa na Sedu-ES confirmou que, até março de 2014, o valor era de R$ 545,88; a partir de abril/2014, que o valor foi reajustado para R$ 570,43, vigente até os últimos contratos de 20156, conforme período em estudo. Considerando o número de pagamentos de bolsas e auxílios no período de estudo do Programa, é considerável o investimento financeiro da Sedu-ES no Programa, totalizando R$ 1.250.285,94, o que evidencia a importância dele no cenário da educação capixaba.
Portanto, o ponto de partida para a formulação do PBEFD foi o diagnóstico da Fundação Carlos Chagas encomendado pela Sedu-ES. Na elaboração do Programa propriamente dito, a influência do empresariado se fez, assim como em outras políticas educacionais do governo à época. Além disso, o Programa, pelo amparo legal que teve, se constituiu como política de Estado e não só de Governo. Esse conjunto de características faz do PBEFD uma importante ação no cenário capixaba para a formação inicial de professores, haja vista o número de bolsas oferecidas em relação ao número de licenciandos nas instituições de ensino superior.
Por vias de concluir: a confluência entre as vozes do global e local
Considerando a interação dialética entre o global e o local, que se aprofunda à medida que a globalização promove a migração de políticas (BALL, 2014), cabe situar que as discussões iniciais do Programa Bolsa Estágio Formação Docente (PBEFD), no estado do ES, iam ao encontro do que acontecia no âmbito mais amplo das políticas de formação docente. Ou seja, em um contexto onde se buscava a consolidação de uma política nacional de formação de professores, prevista desde a CF 1988 e reforçada especialmente após LDB/1996 e que ainda estava centrada no argumento de maior valorização da dimensão prática da formação e dos docentes enquanto possibilitadores de uma educação de qualidade, tendo em vista a integração teoria-prática na formação cunhada pelo desenvolvimento profissional docente. Deste modo, pode-se dizer que é evidente uma confluência entre as vozes dos atores dos contextos global e local na criação do Programa Bolsa Estágio Formação Docente. Por isso, enfatiza-se a relevância de análises deste tipo para estudos de políticas educacionais.
De modo geral, ressalta-se, ainda, a influência empresarial no campo educacional, especialmente no contexto do programa analisado, o que suscita o indispensável protagonismo dos atores da educação na criação e gestão das políticas de formação profissional docente, por conhecerem e vivenciarem as necessidades surgidas a partir da atuação teórico-prática e da realidade educacional. Cabe reconhecer a importância da proposta capixaba, no caso o PBEFD, na formação docente e no cenário mais amplo das políticas educacionais, mas chama atenção a necessidade de um acompanhamento efetivo de suas atividades desenvolvidas em formação inicial dos futuros docentes no sentido de corroborar com o desenvolvimento profissional. Observou-se, pelas publicações oficiais da Sedu-ES, que houve lançamento do edital em 2019, antes da pandemia causada pelo Covid-19. Após esse período, não encontramos novo edital, mas acredita-se que essa interrupção esteja mais associada à suspensão das aulas presenciais neste período do que pelo interesse na continuidade do Programa Bolsa Estágio Formação Docente. Finalmente, espera-se que este estudo incite outras pesquisas, pois sabe-se que a formação docente tem sido campo polêmico de discussão, ainda mais num contexto em que se observa um “desmonte” em curso das políticas educacionais no país, refletido, a título de exemplo, na rotatividade de ministros da educação.