Introdução
O presente artigo busca evidenciar a relação com o saber de pessoas idosas matriculadas em turmas1 da Educação de Jovens e Adultos (EJA) do Núcleo de Estudos da Terceira Idade (Neti) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), na cidade de Florianópolis.
Para tal propósito, fizeram-se imprescindíveis os elementos e as análises da pesquisa2 intitulada O empoderamento de idosos na escolarização da EJA do Núcleo de Estudos da Terceira Idade da Idade/UFSC (MACHADO,2017), defendida em 2017, no Programa de Pós-graduação em Educação do Centro de Ciências da Educação da UFSC. Ao ter um olhar atento para os indícios de empoderamento emancipatório de pessoas idosas na EJA, o estudo buscou no coletivo de estudantes3 registrar/destacar a voz de cada um, sobretudo ao compreender que cada pessoa é, simultaneamente, social e singular e, portanto, é na relação com o saber que os sujeitos interagem de modos distintos do processo de reprodução social, em que ressignificam a experiência e transformam a si próprios, quer dizer em processos de singularização e constituição das identidades (CHARLOT, 2000).
Aponta-se que a pesquisa realizada é de natureza qualitativa com características exploratórias e que adotou em seu processo de investigação, o levantamento bibliográfico, a análise documental e o emprego da técnica de grupo focal (instrumento de entrevista coletiva com foco em determinadas questões com onze participantes) e de entrevistas (três profissionais).
O Neti como lócus de pesquisa ocorreu por vários fatores, dentre eles: a) o compromisso perante os processos educativos de demanda social e de escolarização do público idoso - com a implantação Curso de Leitura e Escrita para pessoas idosas e adultas4 (2007); b) a oferta de turmas de EJA diurnas; c) o número significativo de matrículas de pessoas idosas nas turmas de EJA ofertada no Núcleo; d) a localização privilegiada5 na cidade; e e) ter como meta a incorporação das pessoas idosas na Universidade, por meio de cursos de capacitação, projetos e atividades voltadas à gerontologia e à educação, assim como assessorias e consultorias à comunidade, em parcerias governamentais e não governamentais.
De acordo com a pesquisa que norteia o estudo, a presença de pessoas idosas na universidade, no Neti e nas turmas de EJA (como parte integrante do Núcleo) é (de)marcada para além da necessidade de ocupação do tempo livre (versus solidão), pois situa-se em relações de saberes com desdobramentos sociais emancipatórios, haja vista que o Núcleo traz consigo uma proposta de promover as pessoas idosas como “sujeitos em transformação e transformadores” (MACHADO, 2017, p. 49).
O diálogo com Paulo Freire e Bernard Charlot tornou-se imprescindível. Para Freire, a disparidade social foi sempre motivo de muita preocupação, por isso que seu maior legado foi para o povo, em que o oprimido precisa ter coragem para libertar-se e humanizar-se - motivo pelo qual as contribuições freireanas inquietam os opressores da sociedade (FREIRE, 2006).
Bernard Charlot (2000) ao inferir que toda pessoa ao nascer ingressa em um mundo no qual estará submetida à obrigação de aprender, significa dizer que cada uma “[...] nasce com a necessidade de aprender tudo. Não traz consigo instintos que o ensinem tudo o que deve saber sobre como se alimentar, como se defender, como se relacionar com os outros” (CHARLOT, 2000, p. 54), mas exige essas aprendizagens. Por assim dizer, entende-se que em qualquer fase da vida é possível aprender e, que cada pessoa em sua história (ao mesmo tempo social e singular) estabelece uma forma particular de relação com o saber, logo essa conexão não é mérito de alguns e sim, possibilidade de todos, indistintamente.
A EJA ao possuir um compromisso social para com os sujeitos jovens, adultos e idosos, precisa dar visibilidade aos estudantes idosos na modalidade, tanto para fortalecer essa relação de pertencimento, como para que se efetive na velhice o direito à educação.
O artigo em questão buscará tecer reflexões a partir dos realces da investigação científica, cuja questão problematizadora é: Que relações com o saber estabelecidas pelos estudantes idosos da EJA do Neti contribuem para o processo de empoderamento?
Os sujeitos da pesquisa
Os protagonistas do estudo possuem diferentes origens, vivências, situações financeiras, relações familiares, condições de saúde, crenças, costumes e modos de ser, pensar e agir diversificados. São pessoas das camadas populares que iniciam/voltam à escolarização da Educação de Jovens e Adultos na etapa da vida definida como velhice.
A Tabela 1 situa o perfil dos participantes dentro das seguintes características: nome fictício, idade, estado civil, situação ocupacional, naturalidade, bairro em que reside, número de filhos e atividades que realizam.
Participantes estudantes da EJA | Idade | Estado civil | Situação ocupacional | Naturalidade | Bairro e/ou cidade de moradia | Filhos (nº) | Atividades que realizam |
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1. Ana, 2º segmento - EJA | 62 anos | Viúva | aposentada | Serro Negro SC6 | Trindade Florianópolis | 3 | Artesanato e Contação de Histórias no Neti |
2. Beatriz, 2º segmento - EJA | 64 anos | Viúva | pensionista | Tubarão SC | Forquilhas-Terra Firme São José | 6 (1 falecido) | Costureira |
3. Sandra, 2º segmento - EJA | 75 anos | Viúva | aposentada | Ituporanga SC | Itacorubi Florianópolis | 6 | Hidroginástica, ginástica/UFSC e artesanato |
4. Denise, 2º segmento - EJA | 68 anos | Separada (há 8 anos) | aposentada | Serro Negro SC | Serrinha Florianópolis | 8 (2 falecidos) | Frequenta a Igreja Universal |
5. Flávia, E.M. 7 - Ceja8 | 82 anos | Viúva | aposentada | Florianópolis SC | Trindade Florianópolis | 10 (3 falecidos) | Ginástica e pilates |
6. Ilza, E.M. - Ceja | 75 anos | Viúva | aposentada | Criciúma SC | Antônio Carlos | 3 | Aula de Estimulação da Memória/Neti |
7. Lia, 2º segmento - EJA | 74 anos | Casada | aposentada | Florianópolis SC | Trindade Florianópolis | 3 | Vôlei e ginástica/ UFSC |
8. Marcelo, 2º segmento - EJA | 80 anos | Solteiro | aposentado | Venâncio Aires RS9 | Coqueiros Florianópolis | 0 | Não realiza atividades |
9. Nádia, 2º segmento - EJA | 75 anos | Viúva | pensionista | Florianópolis SC | Centro Florianópolis | 5 (2 falecidos) | Aula de estimulação da memória/Neti e ginástica/ UFSC |
10. Olinda, 2º segmento - EJA | 81 anos | Viúva | aposentada | Pinheiro Machado RS | Rio Vermelho Florianópolis | 11 (2 falecidos) | Ginástica/ UFSC, participa do Grupo de Convivência, teatro e Mulheres Mil/IFSC10 |
11. Paula, 2º segmento - EJA | 73 anos | Casada | aposentada | Guatambú SC | Caeira do Saco dos Limões Florianópolis | 4 | Ginástica e realiza caminhadas |
FONTE: Machado (2017, p. 94-95).
Dos onze (11) sujeitos investigados, dez (10) são do sexo feminino e apenas um (1) do sexo masculino, com idades que variam de sessenta e dois (62) a oitenta e dois (82) anos, havendo mais concentração de pessoas idosas na faixa etária de 70 a 79 anos, como também o predomínio de mulheres na escolarização e nessa fase da vida, evidenciando assim a feminização da velhice e da EJA no Neti/UFSC.
Um dado importante é que apenas duas (2) pessoas (mulheres) possuem relação oficializada, enquanto as demais (mulheres) parecem não ter esse vínculo. Isso nos instiga a pensar que as mulheres com relação oficializada vêm recebendo nessa fase da vida mais apoio de seus companheiros (maridos) para estudarem, tratando-se de uma conquista perante as condições de “violência doméstica”11, “violência de gênero”12, em que se preza por uma relação de inferioridade das mulheres perante os homens, visto que essa
[...] condição de hipossuficiência da mulher decorre do desenvolvimento histórico-cultural de uma Sociedade patriarcal, que sempre teimou em colocar a mulher submissa ao homem, vista como o “sexo frágil”. Já o homem foi preparado, desde a infância, para ter atitudes agressivas (SALEH; SALEH, 2013, p. 509).
O fato de as mulheres idosas e casadas saírem do espaço doméstico (privado) para ingressarem no espaço público (Neti/UFSC, EJA, comunidade...) fazem valer o “direito de poder estudar” (como também, de pensarem mais em si, de estarem na presença de outros/as e de agir conforme suas vontades) representa uma grande conquista, haja vista que “as disparidades no acesso a educação é uma das formas de contribuir para a desigualdade entre homens e mulheres” (LISBOA, 2012, p. 81).
Quanto à naturalidade dos participantes, nove (9) nasceram em diferentes cidades no estado de Santa Catarina e dois (2) participantes nasceram no estado do Rio Grande do Sul (RS) em cidades distintas, ou seja, 82% dos participantes da pesquisa nasceram no estado de Santa Catarina e 18% nasceram no estado vizinho (RS). Salienta-se que apenas três (3) participantes nasceram na cidade de Florianópolis.
Nove (9) participantes declararam que estão aposentados e duas (2) são pensionistas; com relação ao estado civil, sete (7) participantes se declararam viúvas, duas (2) casadas, uma (1) separada e um (1) solteiro, ou seja, mais da metade (64%) dos participantes da pesquisa enfrentam a viuvez13.
Os dados acima ganham mais significado quando se evidencia uma situação atípica na sociedade brasileira, em que o único homem, participante da pesquisa, não constituiu o matrimônio nem mesmo possui filhos, embora tenha o desejo de encontrar alguém para partilhar a vida.
Outra situação atípica é que ao constatar que entre as dez (10) mulheres da pesquisa, apenas duas (2) ainda são casadas e, que essas, nessa fase da vida são incentivadas pelos maridos a continuar/iniciar seus estudos, postura nunca antes adotada em outras fases da vida. Já as participantes viúvas salientam que a perda do companheiro trouxe um enorme vazio para suas vidas, por vezes se sentiram desorientadas e deprimidas, sem vontade de viver, no entanto ao decidirem estudar, essa sensação se modificou. Conforme relatado por uma participante:
Bom, a minha vinda para EJA foi uma situação bem delicada porque eu vim de Rondônia por motivo de doença do meu marido e ele chegou aqui e a doença venceu e eu o perdi. E aí eu fiquei desnorteada pela perda, né? [...] E foi a minha chegada na EJA e estou aqui até hoje eu me encontrei com professores maravilhosos. é uma coisa que não se recupera, mas senti que não estava sozinha que tinha gente comigo, amigos, amigos que eu não pensava encontrar [...] (ILZA, 75 anos, E.M. - Ceja).
O fato de Ilza (75 anos, E.M. - Ceja) ficar “desnorteada pela perda” do marido revela a imagem social que é internalizada na condição feminina, compreendida em relações de submissão, dependência, geradas na possessividade (poder de reprimir, censurar, determinar...) da figura masculina da sociedade patriarcal. Para Ilza “a chegada na EJA” fez com que se percebesse “carregada” de gente (não mais se percebendo sozinha), portanto é preciso que a EJA seja pensada como outra escola, como espaço de socialização, espaço de reconhecimento/fortalecimento dos sujeitos, espaço de compartilhamento de saberes, espaço de luta por direitos, etc.
Com relação ao número de filhos dos participantes, varia entre três (3) a onze (11) filhos, sendo que apenas um (1) participante do sexo masculino não possui filhos. Cabe lembrar que, tradicionalmente, a representação social atribuída à figura masculina, tem como “exigência” possuir descendentes, como também ser o provedor da família.
No decorrer da pesquisa, as participantes se ativeram em salientar a constante preocupação perante os afazeres domésticos, a educação dos filhos e a opinião e as decisão do marido, portanto o zelo familiar tomou conta de suas vidas, a passo que toda essa dedicação fez com que essas mulheres abdicassem de tantas coisas que gostariam de ter realizado. Isso se evidencia no seguinte relato:
Também estava pensando aqui eu estudei um pouco, aí depois casei muito nova e veio os filhos, aí eles vão tirando o tempo da gente e agora já estão tudo casados, então eu comecei a pensar, eu preciso dar uma melhorada e voltar à sala de aula para pensar (NÁDIA, 75 anos, 2º segmento - EJA).
A influência dos papéis sociais de gênero da sociedade (que marca uma posição social) falou mais alto em suas vidas a ponto de não conseguirem naquela época fazer valer os desejos, as vontades, as metas, porém neste momento da vida buscam suas realizações. Desse modo, apesar de, durante muito tempo, a educação das mulheres terem sido desvalorizadas por suas famílias; pois, historicamente, elas tinham outras tarefas a serem priorizadas. Entretanto, esse quadro vem sofrendo alterações, efeito das mudanças culturais, pois o modo de vida e do relacionamento entre homens e mulheres foram sendo alterados14, adaptando-se às exigências do próprio tempo. Essa alteração na relação entre homens e mulheres de poder e de submissão da mulher vem sendo desconstruída com o passar dos anos.
Segundo Lisboa (2003), o produto da dominação-opressão de gênero tem sido historicamente uma situação vivida pelas mulheres de países subdesenvolvidos. Afirmando que “Em todas as sociedades, os cidadãos organizam suas vidas dentro de duas lógicas: a da casa (o privado) e a da rua (o público)” (LISBOA, 2003, p. 119). No entanto, no Brasil não há um contraste rígido e simples entre casa e rua, pois “[...] a casa tanto pode definir o espaço íntimo e privado de uma pessoa [...] quanto um espaço social máximo e absolutamente público, como ocorre quando nos referimos ao Brasil como ‘nossa casa’” (DA MATTA, 1991, p. 19). Portanto, casa e rua transcendem a lugares físicos, visto que são espaços de pessoas, de relações, de julgar, de decidir, de conflitos etc.
Nesse sentido, compreende-se que a saída da mulher do espaço doméstico para a vida pública foi conquista extremamente significativa, pois esse deslocamento fez com que a mulher resistisse às imposições perante essa conquista15 e buscasse demarcar o seu lugar, mais legitimamente, uma luta que permanece ainda hoje. De acordo com Lisboa (2003, p. 19),
[...] a perspectiva de gênero exige uma nova postura diante da concepção de mundo, aos valores e ao modo de vida, ou seja, põe em crise a legitimidade do mundo patriarcal. Esta perspectiva permite compreender que as relações de desigualdade e iniquidade entre os gêneros são produtos de uma ordem social dominante e que as múltiplas opressões de classe, raça, etnia, geração que se exercem sobre as mulheres configuram uma superposição de domínio.
Interessante é que, nesta fase da vida, as participantes revelam com muito entusiasmo que são incentivadas, valorizadas e reconhecidas pela família, inclusive aquelas que permanecem casadas. Flávia relata que,
[...] a minha nora é professora de matemática me ajuda também. Mas é bom isso aí né? Eles ficam felizes da vida. A vó estudando! Que legal! Tudo contente. [...] Mas é assim meus filhos adoram, meus netos adoram, meu genro é professor e ele me incentiva muito, no trabalho de pesquisa ele já vai para a internet e me ajuda a pesquisar, me adora! É que ele percebe que eu tenho muita força que eu tenho muita vontade de vir aqui estudar (FLÁVIA, 82 anos, E.M. - Ceja).
O participante do sexo masculino revelou certa frustração em ser solteiro, pois sempre teve o desejo de namorar, mas nunca conseguiu, uma vez que o trabalho sempre esteve em primeiro lugar na sua vida. Salientou que suas experiências de vida não foram tão boas, haja vista que, quando criança, ao ser criado por seu irmão e esposa, ou seja, sua cunhada, sendo muito maltratado, foi uma experiência que, segundo ele, será difícil de ser superada, porquanto foi nessa época que, por negligência de sua cunhada, ficou surdo de um dos ouvidos.
Dos onze (11) participantes da pesquisa, seis (6) participantes realizam diferentes atividades no próprio Núcleo de Estudos da Terceira Idade e na Universidade Federal de Santa Catarina, dentre elas: a hidroginástica, o vôlei (UFSC), a contação de história (Neti), a aula de estimulação da memória (Neti), dentre outras. Há dois (2) participantes que realizam atividades físicas em outros espaços e três (3) que não praticam atividades físicas, dentre eles: uma trabalha como costureira; outra frequenta a Igreja Universal e outro que somente estuda no Neti/UFSC. Também uma (1) participante da pesquisa declarou que participa do Programa Mulheres Sim16 no IFSC e duas (2) participantes estão no Neti desde a implantação do curso17 intitulado “Leitura e Escrita18” o qual foi direcionado ao público adulto e idoso a partir de um diagnóstico que apontou a necessidade de processos educativos no Núcleo. Assim, o curso implantado buscou “[...] constituir uma relação com o saber do mundo letrado uma vez que [...] [vivemos] numa sociedade que valoriza práticas de uso da escrita e do conhecimento sistematizado” (LAFFIN, 2012, p. 142). Uma das participantes revela a sua chegada ao processo educativo no Neti:
Eu já estou aqui há muito tempo, oito anos, fui uma das primeiras a vir para aqui. Quando vim para cá nossas professoras eram tudo voluntárias não eram efetivas. Depois elas entraram e são tudo professores da Prefeitura ou do Estado, são professores muito bons. O “fulano” era voluntário e agora é professor e daí de repente nesse meio tempo eu fiquei doente tive afastada [...]. Fui fazer terapia e depois voltei aqui para o Neti. [...] Essa é a vida maravilhosa que eu tenho! (LIA, 74 anos, 2º segmento - EJA)
Cabe destacar que dos onze (11) participantes da pesquisa, nove (9) estudam em turmas da EJA no Neti/UFSC pertencentes a Secretaria Municipal de Florianópolis e dois (2) pertencem à única turma do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja) de Florianópolis19 no Neti/UFSC, pertence a Secretaria de Estado da Educação de Santa Catarina.
Os participantes da pesquisa destacam o carinho dos professores da EJA e dos funcionários do Neti para com eles, especialmente a professora que está na função de articuladora na EJA da prefeitura,
Eu me sinto muito valorizada aqui no Neti porque aqui somos só nós, da terceira idade [...], todas as pessoas são da mesma idade e estuda e tudo, né, é melhor. E os professores são maravilhosos, todo o pessoal do Neti também. E tem uma professora que quando a gente não vem, ela liga para saber o que está acontecendo e ela dá muita segurança para gente nos estudos (PAULA, 73 anos, 2º segmento - EJA).
Relataram, também, a diferença do lanche fornecido pelos órgãos que ofertam a EJA, em que um órgão contempla uma variedade e a fartura de alimentos para lanchar e o outro, uma escassez e sem variedade nos alimentos, consideraram essa situação injusta já que todos estudam no mesmo ambiente, ou seja, no Neti.
Os participantes revelam alguns motivos para escolher o Núcleo de Estudos da Terceira Idade/UFSC para estudar na EJA, são eles:
A facilidade de acesso ao Neti/UFSC, pois o fato de o Núcleo pertencer a uma Universidade há um fluxo intenso de transporte coletivo para diferentes localidades da cidade. Por outro lado, os participantes relatam que nem sempre são bem tratados pelos motoristas de ônibus e que o espaço urbano oferece acessibilidade a todos;
A identificação com o público adulto e idoso, o fato de conviver com pessoas mais ou menos da mesma faixa etária trazem aos participantes da pesquisa mais segurança para falar no grupo, para expor as ideias e as dificuldades, pois entendem que pertencem a uma geração com um passado opressor (foi negado o direito de estudar). Tinham vergonha de não saber ler e escrever, de ter pouco estudo ou de não ter continuado os estudos. Também entendem que esse convívio na/o EJA/Ceja lhes fortalece, melhora a autoestima porque todos se ajudam, existe um respeito perante o ritmo de aprendizagem de cada um e que esse espaço fez a vida fazer sentido para eles, pois estão mais atuantes e participativos na sociedade;
A participação em outras atividades no núcleo e na universidade, os envolvidos contam que depois que começaram a fazer parte do núcleo suas vidas mudaram para melhor, pois estão inteiramente envolvidos em atividades, contribuindo para que se sentissem mais valorizados, bem como lhes trouxe responsabilidades perante as mudanças sociais como lutar contra o preconceito e a discriminação social durante a velhice, levando a um engajamento desses sujeitos;
O acolhimento dos profissionais do Neti/UFSC e dos professores da/o EJA, tanto do Ensino Fundamental, como no Ensino Médio alguns participantes da pesquisa foram convidados pelos próprios estudantes, outros, por indicações de profissionais da área de saúde, de familiares e professores. Todos participantes revelam a grande satisfação de estar em um lugar em que são tratados com muito carinho, respeito e dedicação.
Por meio dos dados coletados foi possível identificar que os estudantes idosos que frequentam a Educação de Jovens e Adultos no Neti/UFSC, em sua maioria são pessoas que, pelas circunstâncias da vida, distanciaram-se do percurso escolar ofertado no sistema regular de ensino. Assim, a modalidade (EJA) veio nessa fase da vida, como uma possibilidade de início ou continuidade nos estudos, mas principalmente foi o momento em que estão dispostos a pensar e a agir conforme as suas vontades.
A relação com o saber de pessoas idosas da EJA do Neti/UFSC
Entende-se que tomar a decisão de iniciar/retomar os estudos para pessoas idosas vem carregado de sentidos e significados, os quais foram essenciais a fim de apontar as dimensões da escolarização na vida das pessoas idosas, tendo em vista que foram muitas décadas sem o acesso à escolarização.
Ao destacar as dimensões da escolarização na vida das pessoas idosas foi possível evidenciar que a relação com o saber desses estudantes da EJA possui elementos marcantes com tantas riquezas e minúcias, que sequer é possível conceber que o espaço instituído e limitado da sala de aula pode ser considerado o único capaz de abarcar essa relação.
No intuito de ampliar essa visão e com base na investigação científica, apontam-se quatro subcategorias: a) a vontade de aprender nos sentidos dados pelos estudantes idosos; b) o sentir-se reconhecido e valorizado; c) o sentir-se consciente para dizer a sua palavra; e d) o ser capaz de lutar para transformar. Essas subcategorias se tramam na relação com o saber defendida por Charlot (2000, 2001) situadas na relação de opressão dos estudantes idosos e no processo de empoderamento compreendido por Freire (1980, 2002, 2006).
Nessas dimensões, entende-se que a “relação consigo mesmo” emerge na mobilização para o aprender, na vontade de estar junto e de ressignificar a velhice. Já a “relação com o outro” configura-se nas interações entre os sujeitos (estudantes), os mediadores (professores) e os saberes partilhados, o contato com o conhecimento próprio da escola e as referências dos “outros incorporados em si”. A “relação com o mundo” é situada pelas questões da realidade e o sentido e se perceber, ou não, mais capaz e atuante no e como mundo. Assim, todas essas dimensões poderiam ser vistas como aspectos da relação com o mundo, pois a origem de todas está na realidade e inscrita no tempo.
A vontade de aprender de estudantes idosos da EJA
Compreende-se que para explorar a relação com o saber, no caso em questão, supõe-se analisar o sujeito pessoa/estudante idoso(a) da EJA frente à sua obrigação de aprender num mundo em que é “partilhado” com os outros, no qual o sujeito vai-se educando e sendo educado ao mesmo tempo. De modo que a educação só é possível, se o sujeito a ser educado investir pessoalmente no processo que o educa, pois é preciso que ele deseje ser educado numa troca com os outros e com o mundo. Dessa forma, a educação só é possível se o indivíduo encontrar “[...] no mundo o que lhe permite construir-se” (CHARLOT, 2000, p. 54).
A estudante Olinda aos seus 81 anos de vida (2º segmento - EJA) revela que precisa adquirir o conhecimento (cultura letrada/dominante) necessário para validar a sua cultura, a sua história, ou seja, a vida de gente do povo.
[...] estudar para fazer um livro não precisava ser um arsenal de livros, um livro, dois livros para contar a história [(maior entonação)], a história da família, a minha história, contar as minhas trajetórias, contar as minhas coisas que eu gosto de fazer, que eu adoro fazer (OLINDA, 81 anos, 2º segmento - EJA).
Para Charlot (2013), toda educação supõe desejo, logo os desejos que mobilizaram os estudantes idosos para o(s) saber(es) escolar(es) estão diretamente relacionados ao fato de necessitarem desses saberes para valorizar as suas próprias existências/experiências, sobretudo ao terem maior domínio perante suas vidas e se situarem como atores sociais no mundo. Desse modo, o “desejo de” corresponde à realização pessoal e social, pois para os estudantes a escolarização ajudou-os(as) a conduzir suas vidas, a concretizar projetos que precisavam do domínio do saber sistematizado, bem como passam a ter mais participação na família, na comunidade e na sociedade.
Sentir-se reconhecido e valorizado
A relação com o saber para os estudantes idosos da EJA só faz sentido se o que buscam para si também pode ser compartilhado com os demais. Esse clima de solidariedade faz com que o saber escolarizado não seja permeado pela competitividade, de modo que a certificação não é a prioridade para suas vidas, mas sim o fato de estarem juntos apropriando-se de saberes, num clima de confiança, de descontração, de respeito e de comprometimento perante o aprendizado.
A aquisição do conhecimento sistematizado (da cultura dominante) potencializa as ações no/com o mundo, de modo que as pessoas idosas passam a assumir outra postura perante a vida e a sociedade, em que procuram valorizar a própria cultura, a existência de seu grupo social, como também evidenciam uma imagem positiva perante a velhice, de pessoas ativas, capazes, situadas e que desejam mais visibilidade social.
O fato de chamar a gente de velha, nós não somos velhas. A pessoa que chamou que é a velha porque nós temos uma idade que nós sabemos o que é o certo e o errado, entre o bonito e o feio. Nós não estamos no feio nós estamos no bonito. Nós temos é que florir a vida. E a vida florida é isso que nós estamos fazendo aqui discutindo e pulando para frente (ILZA, 75 anos, E.M. - Ceja).
Bosi (2010, p. 18) ressalta que a opressão na velhice ocorre de “[...] múltiplas maneiras, algumas explicitamente brutais, outras tacitamente permitidas”. Para essa autora, as pessoas idosas são oprimidas por intermédio de múltiplos mecanismos, como: os mecanismos institucionais visíveis, por exemplo, a burocracia na aposentadoria etc.; os mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis como a recusa do diálogo, a discriminação etc.; os mecanismos técnicos tais como as próteses e a precariedade existencial daqueles que não têm condições financeiras para adquiri-las; os mecanismos científicos como as pessoas que demonstram a incapacidade e as incompetências sociais da pessoa idosa (BOSI, 2010).
Por meio do relato das pessoas idosas, evidenciou-se que o ensino da EJA no Neti/UFSC vem a contribuir para que a velhice não seja encarada como uma fase de perdas e, sim, de possibilidades de conviver, de se aceitar, de se realizar, de se dedicar e de aprender a cada momento/dia com os outros (educação permanente). Também os estudantes idosos mencionam que não querem ficar de expectadores da vida e dos “conectados” no/com mundo, por isso lutam por mais visibilidade e reconhecimento nos diferentes espaços sociais.
Sentir-se consciente para dizer a sua palavra
Entende-se que as pessoas, independentemente da idade, que não dominam a leitura e a escrita deparam-se com sérios obstáculos, dentre eles o mais grave de todos, o estigma da exclusão. Paulo Freire salienta que o domínio da leitura e da escrita se dá como prática de liberdade, portanto, é preciso,
[...] respeitar os diferentes discursos e pôr em prática a compreensão da pluralidade (a qual exige tanto crítica e criatividade no ato de dizer a palavra, quanto no ato de ler a palavra) exige uma transformação social e política. [...] [É] preciso uma sociedade diferente, na qual dizer a palavra seja um direito fundamental e não simplesmente um hábito, no qual dizer a palavra seja o direito de tornar-se partícipe da decisão de transformar o mundo (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 36).
As pessoas idosas além de se perceberem como pessoas de saberes e de cultura, precisam compreender os mecanismos ideológicos de opressão os quais visam manter a “ordem” social em prol dos interesses de uma minoria (da elite). Assim, entende-se que os estudantes idosos ao refletirem sobre suas ações no/com o mundo, concomitantemente, estão minimizando os efeitos dos mecanismos de opressão, visto que a aquisição da cultura letrada possui significado pessoal e social.
Assinala-se a importância do saber escolarizado e do compromisso social dos professores da EJA perante o aprendizado dos estudantes, pois é preciso ter consciência crítica para ler o mundo e dizer a sua palavra.
Ser capaz de lutar para transformar
Entende-se que quanto mais as pessoas das camadas populares forem capazes de desvelar a realidade objetiva e desafiadora da qual incide a ação transformadora, mais condições terão de agir criticamente nela.
Os estudantes idosos em seus relatos trazem indícios de que a EJA no Neti/UFSC assume uma postura de “educação para a decisão, para a responsabilidade social e política” (FREIRE, 2006, p. 96), a qual só é possível por meio do diálogo e da participação democrática. Essa postura pode ser evidenciada no relato da estudante Ilza, que revela uma postura positiva perante a vida, de engajamento e de persistência perante os seus ideais: “Estou estudando, estou com saúde, estou na luta e não vou parar porque esse é o meu grande desejo e um desejo a gente luta por ele pra vencer na vida” (ILZA, 75 anos, E.M. - Ceja).
Desse modo, compreende-se que o saber escolarizado para os estudantes idosos vai muito além do domínio da leitura e da escrita, pois querem ter o domínio sobre suas vidas, querem estudar para ter “maior esclarecimento das coisas” (ANA, 62 anos, 2º segmento - EJA), assim como estão dispostos a lutar e a exigir seus direitos. Estão cientes de que “uma andorinha só não faz verão” (DENISE, 68 anos, 2º segmento - EJA), mas se todos pegarem juntos fará a diferença.
Considerações
Percebe-se que o tom se faz diferenciado quando as ações voltadas à população idosa se constituem na Universidade pública e se tornam inerentes a ela, cuja conotação que emana é de valorização e de reconhecimento social de uma parcela da população que sequer pode celebrar a sua longevidade, tendo em vista que falta a qualidade de vida20. Assim, há certo “status social” em ser estudante idoso da EJA no Neti da UFSC, de modo que o fato de estar indo para Universidade traz outra conotação perante a sociedade e contribui para o empoderamento, pois não é a falta de conhecimentos que situa esses sujeitos no território universitário e, sim, a imagem de ampliação de conhecimentos. Esse diferencial precisa ser retratado diante de tanta exclusão social que cerca a condição da velhice, acrescida à condição de analfabeta ou de pouca escolarização.
Outro fator importante é que a EJA do Neti/UFSC trouxe a possibilidade de as pessoas idosas refletirem sobre as suas realidades, ao mesmo tempo em que a experiência individual passa a ser coletiva, transmitindo um sentimento de pertencimento e de grupo (relacionado com a identidade etária ou próxima dela). Esse sentimento de pertencimento contribuiu para a autoconfiança dessas pessoas, como também para refletirem sobre suas vidas conferindo coragem para tomarem decisões, pois agora entendem que o próprio futuro não é algo predeterminado (LISBOA, 2003).
É possível constatar que a escolarização na EJA no Neti/UFSC trouxe contribuições para o processo de empoderamento das pessoas idosas, assim como Paulo Freire (2002) o compreendia, tendo em vista que esses sujeitos ao se apropriarem da cultura letrada são instigados pela ação pedagógica a terem consciência de suas ações no/com mundo e, assim, lutarem por mudanças sociais (contra a opressão).
Acredita-se que o “compromisso” para a transformação social não se finda no espaço de sala de aula, e sim no engajamento político com as pessoas das camadas populares em movimentos sociais (no ato de militância), isto é, extrapolando os limites da vida escolar, haja vista que o saber escolar só faz sentido na vida de cada pessoa se ele for capaz de potencializá-lo em seu agir consciente no/com o mundo.