Primeiras impressões...
Um primeiro ponto a destacar sobre a problemática que nos propomos a discutir neste artigo é a relevância do tema, quer pela quantidade, quer pela abrangência dos trabalhos que discutem a relação entre currículo e conhecimento (LOPES; BORGES, 2017; GABRIEL, 2013). Outro aspecto a considerar é que os estudos curriculares não são recentes na história da educação nacional e que há diferentes perspectivas teóricas que disputam sentidos neste campo, tais como as perspectivas tradicionais, as críticas, as pós-estruturais, as pós-fundacionais, entre tantas outras. Também queremos salientar que esse caráter multifacetado do currículo contribui para o adensamento das discussões sobre os processos de escolarização, notadamente para a centralidade do conhecimento.
Sobre isso, Jorge Ramos do Ó argumenta que há muito a ser pesquisado com relação ao currículo, não necessariamente para compreender como o conhecimento escolar foi sistematizado em tempos passados, mas para tentarmos compreender como dado conhecimento tornou-se, concomitantemente, “necessário, válido e útil” (Ó, 2019, p. 281). Na argumentação do autor português, há a defesa de que se trata de compreender o “processo de fabricação dos saberes escolares, dos objetivos e interesses sociais que acompanharam a sua institucionalização, a fim de podermos questionar criticamente a sua presença nas interações que ocorrem nos nossos dias” (Ó, 2019, p. 281). E mais:
Dando corpo a este sentido seminal do currículo, a escolarização impôs a seriação tanto do conhecimento quanto das tarefas, das realizações e das experiências necessárias a que cada aluno se transforme num actor social capaz de responder aos padrões de eficiência - produção e de comportamento - exigidos pela sociedade do seu tempo. Não pode causar por isso estranheza o afirmar-se que o currículo se refere tanto à administração do conhecimento quanto à construção da cognição e da identidade mesma dos sujeitos que nele se encontram envolvidos. (Ó, 2019, p. 284-285).
Assim, concordamos com Jorge do Ó com relação à força e, porque não dizer ao status, que o currículo exerce no campo educacional. Interessa-nos chamar atenção para a argumentação de que o currículo se fortalece na mesma medida em que há uma aderência com o conhecimento naturalizado como “necessário, válido e útil”. Trazendo essa problemática para uma abordagem pós-estrutural com um enfoque discursivo, consideramos que tal sedimentação dá-se em um campo de discursividade no qual vários processos de significação atuam na sedimentação (parcial) de dado discurso.
Consideramos que as investigações cujas abordagens se dão por vias discursivas têm permitido, de forma veemente, trazer para o debate outras miradas sobre essa problemática que se mantém na ordem do dia. À guisa de exemplo: as reiteradas reconfigurações dos paradigmas da Modernidade, o questionamento acerca da transparência da linguagem e sua literalidade e, ainda, o questionamento da estruturalidade da linguagem saussureana, tudo isso abala um argumento consensuado de que os projetos pedagógicos são produzidos a partir de um pensamento racional, e que por isso têm legitimidade de definirem (previamente) um dado modelo de educação/conhecimento, de sujeito e de sociedade.
Isto posto, temos a pretensão de abordar neste artigo, como os avanços tecnológicos, as práticas sociais e as dinâmicas laborais, promoveram importantes mudanças nos conteúdos curriculares e na reconfiguração do ensino da leitura e da escrita a partir de discursos marcados por essencialismos.
Adotamos a estratégia de mobilizar algumas estabilizações de sentidos que se deram ao longo do século passado e estão se dando no século atual. Para isso, a proposta é tentar apresentar esse campo como objetado, contraditado, significado segundo diferentes perspectivas e a partir das mais variadas demandas, tradições e intenções, ainda que não tenhamos a pretensão de esgotar esta discussão.
Partimos dessa proposição porque entendemos a teoria curricular como um discurso (sempre) normativo que tenta fixar ações, sancionar experiências, legitimar práticas e definir padrões de reconhecimento cultural (LOPES, 2015; MACEDO, 2017).
Ao argumentar que ela (a teoria curricular) não possui um sentido a priori, original ou fechado, mas é produto de articulações em terrenos relacionais e contextuais em nome de uma demanda, afirmamos ser tais estabilizações sempre parciais, passíveis de deslocamentos, de subversões (LACLAU, 2011; LACLAU; MOUFFE, 2015; LOPES, 2013, 2015, 2021).
Como demanda, argumentamos ser reivindicações/ solicitações de sujeitos e/ou de grupos sociais que, embora sejam elementos diferenciais, em uma prática articulatória, se tornam equivalentes frente àquilo que se antagonizam, a um exterior que ameaça seu atendimento, sua realização. Retamozo (2009), esclarece que os antagonismos são processos abertos que permitem a reorganização, reforçando as cadeias de equivalência e de diferença em um caráter político e subversivo, mas que abre a possibilidade para um novo momento re-fundador (p. 84).
Assim, ao elegermos a teoria curricular como objeto de análise neste artigo e com o enquadramento explicitado, impõe-nos operar a argumentação como uma produção heterogênea, portanto, sem uma significação última, constituída a partir da passagem de sentidos nos significantes através de um investimento radical que “consiste nessa tentativa de nomear, de representar o irrepresentável: nada determina logicamente ou pré-anuncia o conteúdo normativo, mas ainda assim esse conteúdo é anunciado, investe-se na sua constituição” (LOPES, 2015, p.125).
A própria produção teórica no campo do currículo (LOPES; MACEDO, 2011; SILVA, 2016b) expressa esse embate entre posições antagônicas, conflituosas e em disputa que buscam hegemonizar, universalizar sentidos. Os primeiros apontamentos que gostaríamos de destacar sobre essas diferentes significações são datados do século XX, a partir dos efeitos da Segunda Revolução Industrial com as mudanças de comportamento na sociedade frente às alterações econômicas que constituem uma outra lógica marcada pela interdependência entre trabalho e educação.
Estabelece-se uma particular relação entre a estrutura curricular e as demandas oriundas desse processo de industrialização. Nesse contexto, diferentes concepções de currículo ganham centralidade no campo, como: o tecnicismo, segundo Ralph Tyler; o progressivismo, de John Dewey e o currículo com ênfase no conhecimento, de Michael Young.
Com o enfoque dado aos estudos pós-estruturais no início deste século (LOPES; MACEDO, 2011), veremos na segunda seção deste trabalho, que uma nova interpretação é conferida à teoria curricular. A partir da crítica a uma linguagem fundamentada em um referente, em uma estrutura capaz de garantir a significação e a rejeição à uma verdade absoluta, a concepção de um sentido uno, pleno, fechado, passa a ser questionada (LACLAU, 2011). Dessa maneira, outras formas de leitura curricular são anunciadas, agora, com a radicalidade em uma dimensão contingente e em constante disputa por outras possibilidades de vir a ser.
Com tais argumentos, consideramos importante apresentar, na terceira seção deste artigo, como essas teorizações têm mobilizado as pesquisas no campo da alfabetização. Mais que isso, como temos compreendido esse currículo voltado para a fase inicial da escolarização e quais sentidos vêm sendo disputados pelo estabelecimento de um determinado conhecimento nele.
A pretensão deste trabalho é problematizar esses enunciados que, “vistos como formações específicas e parciais, com fronteiras usualmente pouco definidas, inseridas em um campo de discursividade amplamente interativo, aberto e instável”, (LOPES; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 2018, p. 176), têm sido estabilizados e orientado políticas curriculares para a alfabetização em seu caráter “necessário, válido e útil”.
Tecendo alguns fios da teoria curricular: o tecnicismo, o progressivismo, o currículo e o conhecimento
Conforme argumentado anteriormente, tentamos escapar de toda pretensão de esgotar o tema. Ainda que a teoria curricular seja significada a partir de diferentes perspectivas teóricas, tencionamos, através de uma lógica não linear, apresentar os contextos precários para a sua constituição.
Tal investimento encontra-se em estreito entendimento de que “toda teoria está constantemente interpelada e, nesse sentido, é sempre, além de múltipla e heterogênea, contingente” (MACEDO, 2017, p. 540) e, por essa razão, diferentes concepções epistemológicas por uma normatividade curricular são produzidas.
Partindo dessa assertiva, optamos pela explanação com/contra os estudos curriculares que ganharam impulso no século XX. Um dos efeitos das significativas mudanças no cenário político-econômico nos Estados Unidos foi a instituição de uma outra ordem mundial com reverberações para fora do mundo do trabalho. Investigadores do campo educacional, com destaque para Franklin Bobbit, incorporaram a lógica do controle social para o campo curricular (SILVA, 2006a).
Com o processo de intensificação da industrialização, novas formas de divisão e operacionalização do trabalho foram requeridas e, com elas, a necessidade de especialização da mão de obra para o manejo das máquinas impulsionavam progressivamente a revisão dos conteúdos disciplinares (SILVA, 2006a).
Essa marca ainda acompanha as teorizações no campo curricular. No entanto, cabe destacar que desse processo progressivo de industrialização, o controle2 é o que talvez tenha sido mais introjetado, não só na dimensão educativa, não só na dimensão laboral, mas no modo de governar a vida das pessoas, na forma como elas interagem com o outro e consigo próprias.
Para Bobbit, a nova classe operária que surgia na América do Norte, por ele denominada de “grupo de operários associados”, precisava ser preparada tanto para conhecer suas tarefas sociais e econômicas para a execução de um produto maior, quanto para se inserirem em organizações hierárquicas de trabalho. Assim, Bobbit e Charters, apoiados em concepções da Administração Científica “construíram uma teoria de estruturação do currículo que se baseava na diferenciação de objetivos educacionais em termos das funções específicas e limitadas da vida adulta” (SILVA, 2006a, p. 4822).
Segundo Lopes e Macedo (2011), essa teorização curricular era composta por um programa de treinamento através da identificação de importantes elementos da atividade de bons profissionais. Os eficientistas, assim denominados, não determinavam ou defendiam um conteúdo a ser ensinado, mas as tarefas e os objetivos considerados centrais que poderiam ser reunidos em disciplinas e integrados aos currículos. Talvez possamos dizer que a faceta da utilidade do conhecimento se sedimentava.
Uma vez que o conteúdo de base científica “explicitamente associado à administração escolar e baseado em conceitos como eficácia, eficiência e economia” (LOPES; MACEDO, 2006, p. 22) ganha força, apontamos um campo discursivo para duas outras perspectivas, o taylorismo e o fordismo.
Como discurso envolve palavras e ações, envolve disputa de sentidos no campo da discursividade, cabe recuperar uma aproximação que pode parecer anacrônica. Vale argumentar que o cenário industrial se reconfigura tanto pelas fontes de energia, eletricidade e petróleo, como pelo surgimento das telecomunicações e da aviação e, a indústria automobilística, passa a ser a força motriz da economia: mão de obra qualificada, produção seriada e padronizada passam a ser imperativos nesse momento (SILVA, 2006a).
Sobre o taylorismo, cabe dizer que se trata de uma construção teórica a partir de um modo de composição racional do trabalho. Destacamos que a ideia de racionalidade direciona essa nova operacionalização fabril em duas diferentes vertentes: “(i) separação rigorosa do trabalho manual e do trabalho intelectual, da concepção e da execução do trabalho; (ii) decomposição rigorosa, nos seus elementos gestuais, das operações do trabalho produtivo” (SILVA, 2006a, p. 4822).
O fordismo, por sua vez, trouxe consigo a lógica da esteira rolante, provocando a reorganização do espaço de produção em linhas bem coordenadas, por meio da divisão das tarefas e dos postos de serviço. Agora, não são requeridas somente as habilidades manuais, antes, a flexibilidade e a rapidez. O que é conhecimento válido? O operário, não mais precisa conhecer a máquina, uma vez que profissionais mais bem qualificados passam a exercer tarefas hierárquicas de controle e manutenção (SILVA, 2006a). Essa lógica se fortalece a partir da otimização do espaço e do tempo e ganha status da eficiência/eficácia.
Talvez possamos seguir a afirmação de que ante às demandas dessa sociedade industrial, por volta dos anos de 1950, Ralph Tyler, a partir de uma racionalidade técnica ou sistêmica, apresenta uma nova proposta de elaboração curricular. A adversativa aqui serve para acentuarmos que cabe sempre colocar sob suspeita essas afirmações naturalizadas, como por exemplo, a de que a racionalidade tyleriana é um efeito direto da industrialização. Com isso, não estamos retirando desse empreendimento laboral, societário, estético, a relação estreita com a progressiva industrialização. Mas estamos afirmando que há outros aspectos a serem considerados.
O modelo tyleriano de formação assenta-se na definição dos objetivos de ensino; na seleção, criação e sistematização de experiências de aprendizagem e, ainda, na avaliação curricular. Essa última, ganha importância na sua teorização, com repercussões até a atualidade, porque propõe que a eficiência dos currículos implementados seja aferida através dos resultados obtidos pelos discentes (LOPES; MACEDO, 2011).
Segundo Silva (2006), enquanto Tyler estava voltado para um currículo tecnicista, valorizando o estabelecimento de objetivos comportamentais para atender as novas exigências econômicas da conjuntura industrial, Dewey se dedicava a um currículo com enfoque ativo, a partir do interesse da criança.
Para esse teórico, um dos mais importantes representantes do progressivismo, o conteúdo escolar deveria ser construído tendo em vista a dimensão psicológica do conhecimento, levando em conta a maturidade dos alunos, suas experiências e atividades, a fim de alcançar o bem-estar da humanidade e não somente o funcionamento dos sistemas social e/ou produtivo (LOPES; MACEDO, 2011).
Diferentemente dessa concepção adotada por Dewey, o conhecimento, na teoria curricular, também é abordado por Michael Young. Para este estudioso e outros colaboradores, o melhor conhecimento, independente do campo de investigação, deve compor o currículo. A ideia de normatividade teórica também é defendida e está assentada na possibilidade de algum acordo sobre o que ser ensinado, tendo por referência uma noção de verdade (ciência, conhecimento, disciplina) socialmente construída através de critérios não positivistas (LOPES, 2015).
Esclarece Lopes (2015) que, para Young, o melhor conhecimento é aquele que tem validade, legitimidade do campo epistemológico, pois ainda que falível, é possível estabilizá-lo por um certo período, através de um acordo entre as comunidades disciplinares, em relação ao conhecimento já consolidado. Ademais, esse conhecimento
não está apenas vinculado à ideologia e interesses, mas à objetividade e à fidedignidade. Daí a importância que ele confere tanto à transmissão do conhecimento do passado quanto do conhecimento que permite a criação de novos conhecimentos (YOUNG, 2013), ambos conectados a questões epistemológicas e de justiça social (LOPES, 2015, p. 127).
Importa destacar que, mais recentemente, Young, reconhecido por ser um dos representantes da Nova Sociologia da Educação (NSE), afirma que as reflexões feitas sobre os estudos curriculares politizaram o campo e abriram caminho para a teoria crítica que trazia a ideia de um currículo oculto, a partir da incorporação das relações predominantes de poder. Assim, denominou essa interpretação de “conhecimento dos poderosos”, uma abordagem que desvela quem/como se tem legitimidade para definir o currículo e quais conhecimentos seriam valorados em detrimento de outros (YOUNG, 2013).
Para Young “essa tradição parte do princípio de que o atual currículo, baseado no ‘conhecimento dos poderosos’, poderia ser modificado por uma transformação política - mas não oferece nenhuma indicação sobre o que seria o novo currículo” (YOUNG, 2013, p. 230). Ademais, ele esclarece que ao mudar de um modelo tecnicista de instrução para uma crítica ideológica, a teoria curricular perdeu o seu objeto principal, aquilo que se ensina e se aprende na escola - aquilo que é “necessário, válido e útil”, diríamos. Duas consequências da perda dessa especificidade foram notadas: a primeira delas, pesquisadores de diferentes áreas passaram a trazer outras questões (cultura, identidade) ao campo, embora não falassem especificamente sobre currículo e, a segunda, o apagamento do papel dos teóricos do currículo enquanto especialistas da área (YOUNG, 2013).
No tocante à inserção de outras discussões no campo curricular, na próxima seção, em diálogo com estudos da linguagem, argumentamos acerca de outras interpretações sobre esse objeto de investigação.
A instabilidade na significação: afinal, é possível definir o que é currículo?
Na literatura especializada (LOPES; MACEDO, 2011), as primeiras asserções da perspectiva pós-estrutural no campo do currículo são datadas do final da década de 70 e se constituíram a partir da crítica aos estudos da vertente estruturalista francesa, que defendia uma linguagem linear, fundamentada em um referente, construída por meio da articulação arbitrária entre significante e significado.
Pensadores como Hall, Bauman, Derrida, Deleuze, Guattari, entre tantos outros, partilhavam a defesa da ideia de um sujeito “descentrado”, dependente do sistema linguístico e constituído discursivamente. Também comungavam a rejeição às metanarrativas e a objeção ao estabelecimento de estruturas universais, corroborando, então, para que novas formas de compreender o mundo, a partir da provisoriedade da significação, fossem passíveis (LOPES, 2013).
Embora não fosse uma concepção teórica de princípios comuns, o estruturalismo, a partir de Ferdinand de Saussure, postulava ser a língua formada por um conjunto de regras ordenadas dentro de um sistema, de uma estrutura, obedecendo mecanismos de organização e leis internas. O signo linguístico, um conceito e uma imagem acústica (um significado e um significante) estariam intrinsecamente relacionados, compondo uma unidade.
À vista disso, algumas interpretações sobre essa estruturalidade passaram a ser produzidas. À guisa de exemplo: ao trazer uma nova proposta de reflexão à psicanálise através de uma outra ciência, a linguística, Lacan rejeita a concepção saussuriana de signo e elabora uma teoria que privilegia o significante em detrimento do significado. Na teoria psicanalítica lacaniana, o que faz parte da estrutura de um significante é a sua conexão com outros significantes, formando, assim, uma cadeia, por intermédio das operações de condensação (metáfora) e de deslocamento (metonímia) (FERREIRA, 2002). Essa cadeia é a movimentação discursiva, há um remetimento de significantes para outros significantes.
Essa concepção estruturalista também é questionada por Jacques Derrida, pois é a partir da crítica à metafísica da presença, de uma verdade garantida através da correspondência entre uma origem, um significado, e o que é expresso pela voz, phoné (um som), que o filósofo apresenta a noção de desconstrução vinculada à desestruturação hierárquica do conceito de linguagem (DUQUE-ESTRADA, 2020).
Para Derrida, não existe um centro, uma origem que garanta a significação. Os sentidos ou rastros, como ele assim denomina, são produzidos através de um jogo, através de substituições, de diferenças, de uma falta que deverá ser sempre suplementada (DUQUE-ESTRADA, 2020). E, se é necessário suplementar, é porque essa significação não está fechada, acabada, nela existe uma ausência, um vazio a ser preenchido.
Também estão associados ao pós-estruturalismo os estudos pós-coloniais. Com início na segunda metade do século passado, podemos dizer que foi um movimento teórico que buscava desestabilizar as relações hierárquicas e verticalizadas entre colonizador e colonizado (LOPES, 2013), questionando a superioridade de uma cultura em detrimento de outra. No processo de colonização, por mais que se tentasse produzir o mesmo no outro, esse espaço de negociação e tradução com a alteridade exigia o reconhecimento da diferença.
A partir desse entendimento, o local da cultura se reconfigura num espaço ambivalente, nem um nem outro, mas no contraditório e fronteiriço do entre-lugar de negociação, que inscreve a cultura como produção híbrida, o que desconstrói a concepção de produção original, herança, totalidade, a expõe como dupla inscrição entre a performance e a tradição, passado e presente, num tempo entrecruzado, do presente enunciativo e disjuntivo, mudando a concepção de reconhecimento da cultura não como diferentes em si, mas como efeito de práticas de significação e diferenciação cultural (FRANGELLA, 2009, p.04).
Embora seja irrepresentável esse entre-lugar ou Terceiro Espaço da Enunciação, ele traz esse caráter híbrido e contingente das construções culturais “que garantem que o significado e os símbolos da cultura não tenham unidade ou fixidez primordial e que até os mesmos signos possam ser apropriados, traduzidos, re-historicizados e lidos de outro modo” (BHABHA, 1998, p.68).
É a partir da reconfiguração desse processo de significar que os currículos escolares passaram a ser concebidos enquanto espaço de interação e reconhecimento da diferença, trazendo “discussões sobre gênero, raça, classe, sexualidade e linguagem” (LOPES, 2013, p. 15), assuntos até então colocados à margem das discussões.
De certo modo, comprometidos com colocar sob suspeita a “consciência moderna” (das metanarrativas, da razão, da verdade) destacamos outros dois movimentos: o pós-fundacionalismo e, a partir dele, o pós-marxismo. No pós-fundacionalismo são produzidas as críticas aos fundamentos e às perspectivas que entendem a sociedade e a política enquanto princípios imunes à revisão. Nessa teorização é trazida a necessidade de trabalharmos com fundamentos contingentes, mas que sugerem algum nível de fixação provisória de fundamentos instáveis” (LOPES, 2013, p.16). E o pós-marxismo, que assumia tanto a rejeição às relações essencialistas do capital vinculado à economia, quanto abordava a teoria do discurso de Laclau e Mouffe.
Estamos de acordo com Lopes (2013) quando afirma que todas essas tradições se cruzam e impactam de modo disruptivo o campo do currículo. Os projetos curriculares são desestabilizados, notadamente no que concerne às tentativas de formar uma determinada identidade seja no aluno ou no professor, abalam as construções de propostas de formação de um sujeito emancipado e capaz de promover mudanças no social, uma vez que não há sujeitos centrados e, ainda, questionam as noções de verdade, de certeza e de conhecimento, mobilizando diferentes conflitos pela sua significação.
Ora, se como vimos, “o signo é o nome de uma fissura, de uma sutura impossível entre significante e significado” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 188), o currículo, dentro dessa perspectiva, passa a ser concebido como uma prática de enunciação de sentidos.
Esses sentidos, por sua vez, produzidos em razão do caráter incompleto de toda fixação discursiva, “só podem existir na medida em que haja uma proliferação de significados” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p. 188) que serão negociados por diferentes sujeitos para direcionar ações. Ações essas que não se fecham completamente, pois são tomadas contextualmente, em terrenos indecidíveis e, por isso, provisórias e precárias.
A fim de trazer essa abordagem para o currículo voltado para a alfabetização, na próxima seção, fazemos alguns apontamentos acerca da precariedade das subjetivações e das significações nos discursos do campo.
Tentativas de controle no currículo para a alfabetização: o conhecimento necessário, válido e útil
Defendemos, a partir da perspectiva pós-estrutural, como o campo de currículo se institui nas disputas de sentidos pelo que possa significar até mesmo a noção de currículo. Dois aspectos precisam ser destacados: como diferentes concepções curriculares produziram aderência à noção de conhecimento identificados prontamente como “necessário, válido e útil” e como os deslocamentos discursivos se vinculam à ideia de controle, notadamente, a partir da instituição de uma nova ordem econômica. Também, nos interessa acompanhar como a demanda por alfabetização se edifica a partir dos processos de industrialização que se intensificaram no último século e meio. Em uma tentativa de fazer uma primeira aproximação, cabe dizer o óbvio (do ponto de vista discursivo), que a demanda pela alfabetização mobiliza diferentes estratégias discursivas em torno da sua aquisição. Importantes demandas decorrem da dita “modernização social” que reivindicam práticas leitoras e escritoras como importantes ferramentas para atender ao progresso.
Tanto estudiosos como gestores públicos passaram a significar as demandas por alfabetização segundo seus interesses (sejam eles políticos, econômicos, teóricos, epistemológicos, educacionais etc.) e, desde então, temos acompanhado uma efervescência de ações e articulações que constituem dada representação de currículo.
No Brasil, por muitos anos, as disputas estavam centradas nos diferentes métodos. As cartilhas para alfabetizar, por exemplo, expressam uma forte influência dos nossos colonizadores portugueses. Segundo Mortatti (2006), as primeiras a circularem no país, no final do século XIX, estavam baseadas em métodos de marcha sintética (de soletração, fônico e de silabação). Já a partir da primeira década republicana, sob forte influência de professores paulistas, o método analítico ganhou espaço no ensino (processos de palavração e sentenciação). Até meados dos anos de 1920, a discussão sobre os métodos de alfabetização estava assentada no ensino inicial da leitura. Quanto a escrita, essa se dava através de exercícios de cópia, ditados e caligrafia. Segundo Mortatti (2006), somente a partir desse marco temporal que a “alfabetização” passou a abarcar o ensino tanto das primeiras palavras quanto das primeiras leituras.
Anos depois, por meio dos estudos que mediam a maturidade psicológica dos alunos, os métodos passaram a ser relativizados e as cartilhas baseadas na mescla dessas duas concepções (método misto).
Com a chegada da década de 1980 houve um deslocamento dos discursos até então centrados nas técnicas de ensino para abordagens teóricas. Não eram novos métodos, mas outras interpretações acerca da apreensão/aquisição/produção/uso do conhecimento. Tais mudanças se deram em razão da valorização e disseminação das pesquisas que se dedicavam a investigar sobre o cognitivo.
O construtivismo de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, ao valorizar o aluno enquanto participante ativo da aprendizagem, rompeu com a tradição de práticas sistematizadas, fortalecendo outras formas de concepção de alfabetização.
Ganha centralidade a postura reflexiva. Isso adquire força em grande medida pela crítica ao modelo bancário que desconsiderava a postura criativa dos sujeitos aprendentes. Paulo Freire, foi um dos defensores de uma educação/alfabetização como leitura de mundo, como um ato dialógico, um ato de refletir sobre a realidade e transformá-la (FREIRE, 1989).
Essa mudança de percepção sobre a aprendizagem da leitura e da escrita foi sendo requerida na mesma medida em que a sociedade se modernizava: popularização de aparelhos telefônicos, de computadores, de eletrônicos, novas formas de se comunicar, de viajar, de estudar, de trabalhar. Não bastava mais apenas ter em conta o conhecimento, ou por outra, reconhecer o código da língua e interpretá-lo de maneira rasa, superficial, mecanizada, e sim, ter controle sobre seus usos nos mais variados contextos.
Nessa mesma argumentação, notadamente nos anos de 1990, o letramento ganha destaque no cenário educacional a partir dos discursos em defesa do uso da leitura e da escrita em práticas sociais, para além do binarismo codificação/decodificação. Rastros de concepções tradicionais que viam a alfabetização e o letramento enquanto processos independentes (como eram vistos os métodos), foram superados a partir dos estudos de Magda Soares (2003; 2017) que os entendia como duas dimensões indissociáveis embora apresentassem, cada um, suas especificidades.
Nesse mesmo exercício de reflexão, observamos a tensão entre diferentes concepções teóricas que almejam chegar à condição de universal. Embora apresentem um discurso que nos pareça comum: a aprendizagem da leitura e escrita (alfabetização) com vistas à justiça social, elas são concebidas, conforme vimos ao longo do artigo, por demandas diversas (mão de obra qualificada, operacionalização das máquinas, mercado de trabalho, sujeito emancipado, ensino libertador, práticas sociais, avanço tecnológico) correspondentes à cada momento histórico.
As formações discursivas que se dão via deslocamentos de sentidos a partir de demandas contextuais e contingentes, dão a ver os constrangimentos e as apostas em projetos educacionais constitutivos do próprio jogo político. São marcas de uma possibilidade versus impossibilidade de sentidos disputados nesse cenário conflituoso de significações.
Na esteira dessa análise, destacamos algumas sedimentações dessas concepções teóricas (que voltam a aparecer) em recentes políticas orientadas para o campo da alfabetização. A exemplo, o construtivismo de Ferreiro e Teberosky que orientaram os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, de 1997 (BRASIL, 1997); construtivismo e o sociointeracionismo, no Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, de 2012 (SOUZA, 2014); o discurso em defesa do letramento na BNCC, de 2017 (SANTOS; SANTOS; PINHEIRO, 2020); e o método fônico, no Política Nacional de Alfabetização, de 2019 (SANTOS; SANTOS; PINHEIRO, 2020).
Os deslocamentos dos significantes nos eixos associativos, metafóricos e metonímicos, que ora estabilizam tendências mais prescritivas, ora as de base psicológica, reverberam traços de uma educação tida como ideal de um conhecimento reconhecido como “necessário, válido e útil” que almejam alcançar a qualidade.
Ainda que nos pareça um objetivo comum, a qualidade da educação articula diferentes sentidos pelo seu estabelecimento. Conforme esclarece Matheus e Lopes (2014), esse discurso foi fortemente difundido na década de 90 através da relação entre os modos de operar na escola e as lógicas empresariais, mas mobilizam conflitos pela fixação desse significante que se estendem até a atualidade.
Dentre as articulações discursivas pela qualidade, chama a atenção a cadeia de equivalências que tenta fixar e ter controle sobre o conhecimento escolarizado. Podemos dizer que o discurso em defesa da qualidade mobiliza vários grupos sociais. Talvez porque a qualidade seja um significante vazio que evoca discursos pró desenvolvimento humano, para um bem comum. Também, estão nessa mesma cadeia, demandas que buscam emprego, ascensão social, os sentidos de formação para o mercado e os de “empregabilidade [que] são tornados equivalentes pela própria flutuação de significantes como eficiência, bem comum e desenvolvimento” (MATHEUS; LOPES, 2014, p. 343).
Conforme vimos até aqui, existe uma certa circularidade nas propostas curriculares, tendo em vista que elas apontam a complexidade nos movimentos discursivos pela estabilização de sentidos pela definição de um currículo, bem como para um currículo voltado para o aprender a ler e a escrever, a saber: são elencados os conhecimentos a serem aprendidos; avaliados os currículos empregados; medida a eficiência de tais conteúdos; adaptados conforme às necessidades de cada época; apoiados na justificativa de uma sociedade com as mesmas oportunidades para todos.
Um efeito disso no campo educacional diz respeito a como a alfabetização incorpora também essa significação pasteurizada e se articula discursivamente para assegurar essa faceta funcionalista da escola: aprender a ler e escrever a serviço da sociedade. Dito de outro modo, há uma “coincidência” discursiva no campo curricular no qual o conhecimento é reiterado por seu caráter “necessário, válido e útil”.
À guisa de conclusão
Orientadas pela perspectiva pós-estrutural, chegamos ao final deste artigo destacando o caráter contingencial, precário e provisório das práticas discursivas pelo estabelecimento de um currículo.
Por ele, foi observado ao longo da escrita, que não há consensos nos discursos do campo pelo estabelecimento dos projetos educacionais, acordos entre as diferentes propostas pedagógicas, mas disputas pela constituição desse documento. As nuanças observadas entre as perspectivas teóricas, são estratégias político-discursivas para permanecerem ou alcançarem a condição hegemônica. Quando determinada teorização/concepção/perspectiva perde sua força ou centralidade, ela não é excluída desse jogo, mas segue na disputa para voltar à condição de universal.
Para isso, novas articulações são feitas, novos sentidos são inseridos nas cadeias discursivas e outros são excluídos, a fim de fecharem a significação. Esse movimento é observado nas constâncias e interrupções dos projetos curriculares ao longo da história, por exemplo.
Ao assumirmos uma postura investigativa de analisar esses deslocamentos nas enunciações para a construção curricular, a condição contestada da linguagem nos permitiu desestabilizar alguns dos discursos empreendidos no campo da educação: o de projetos pré-estabelecidos, o de alcance de uma sociedade justa, o de um conhecimento que deve ser controlado para atingir seu fim previamente dado.
Sendo assim, apontamos para questionamentos sobre as fixações de sentidos acerca de como o conhecimento ganha o status não contextual e não contingencial e passa a ser lido por seu caráter “necessário, válido e útil”.
Partindo dessa premissa, reconhecemos os limites desta produção, entendendo-a como uma interpretação precária e, por isso, também sujeita a outras possibilidades de significar o currículo e o alfabetizar.