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Educar em Revista

versão impressa ISSN 0104-4060versão On-line ISSN 1984-0411

Educ. Rev. vol.39  Curitiba  2023  Epub 06-Set-2023

https://doi.org/10.1590/1984-0411.87143 

Artigos

A contrarreforma da formação de professores no Brasil: BNC-Formação e os retrocessos para a valorização docente

The counter-reform in teacher training in Brazil: BNC-Training and throwbacks to teacher valuing

Lilian Giacomini Cruz Zucchini* 
http://orcid.org/0000-0002-7077-5413

Andrêssa Gomes de Rezende Alves** 
http://orcid.org/0000-0002-2344-454X

Leandro Picoli Nucci*** 
http://orcid.org/0000-0001-8319-4012

*Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, Mundo Novo, MS, Brasil. E-mail: lilian.giacomini@uems.br

**Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, Campo Grande, MS, Brasil. E-mail: andressa.alves@uems.br

***Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, UEMS, Ivinhema, MS, Brasil. E-mail: leandropicoli@uems.br


RESUMO

Este estudo apresenta os resultados de uma pesquisa que teve por objetivo analisar a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 - que define as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores e institui a Base Nacional Comum (BNC-Formação) - de modo a identificar e discutir as implicações das mudanças propostas na valorização do trabalho docente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa na qual os dados foram coletados por meio de análise bibliográfica e documental, sistematizados e analisados por meio de duas categorias: Relação formação docente - ethos profissional; Valorização e engajamento profissional. Os resultados demonstram o alinhamento da nova resolução com o receituário neoliberal, limitando essa formação a aspectos técnicos e pragmáticos ajustados a uma perspectiva economicista. Fica explícito que essa resolução expressa uma padronização das políticas para a formação docente centrada em competências de modo a atender aos pressupostos da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Entendemos também que a lógica na qual está baseada negligencia a valorização profissional como um projeto coletivo e passa a ser associada a critérios meritocráticos de desempenho individual ligados ao ideário liberal. Por fim, consideramos a necessidade de construção de uma resistência ativa/coletiva, tanto no plano pedagógico como no plano político, contra a precarização e a privatização do Ensino Superior.

Palavras-chave: Neoliberalismo; Política educacional; Formação docente; Competências

ABSTRACT

This study aimed to analyze Resolution CNE/CP 2/2019 - which defines the current National Curriculum Guidelines for the initial teacher training and sets the Common National Base (BNC-Training) - in order to identify and discuss the implications of proposed changes in valuing teaching work. This was a qualitative study, in which data were collected through literature and documentary analysis, systematized and analyzed through two categories: Relationship teacher training - professional ethos; Professional appreciation and engagement. The results demonstrate the alignment of the new resolution with the neoliberal prescription, limiting training to technical and pragmatic aspects adjusted to an economistic perspective. This resolution clearly expresses a standardization of policies for teacher training focused on skills in order to meet the assumptions of the BNCC. Also, the present logic neglects professional development as a collective project and becomes associated with meritocratic criteria of individual performance related to liberal ideas. Finally, we consider the need to build an active/collective resistance, both at the pedagogical and political levels, against the precarity and privatization of higher education.

Keywords: Neolibera&lism; Educational politics; Teacher training; Skills

Introdução

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial em nível superior e para a formação continuada de professores, definidas pela Resolução CNE/CP n.º 2 de 1.º de julho de 2015, propuseram o rompimento com a lógica das competências presentes nos documentos que norteavam a educação no final da década de 1990 e início dos anos 2000. De acordo com Gonçalves, Mota e Anadon (2020, p. 365) essa resolução incluiu ainda temas importantes relacionados à “[...] profissão docente, como as questões pedagógicas, a gestão educacional e as temáticas que envolvem a diversidade de sujeitos, culturas e saberes no contexto escolar”.

Contudo a aprovação das atuais diretrizes - Resoluções CNE/CP n.º 2 de 20 de dezembro de 2019 e CNE/CP n.º 1 de 27 de outubro de 2020, que tratam separadamente da formação inicial e da formação continuada de professores - rompe com as conquistas obtidas demarcando uma contrarreforma, uma vez que essa nova política nacional de formação docente toma como imperativo a privatização da educação pública a partir da inserção de critérios pautados na pedagogia das competências por meio de uma formação pragmática e padronizada, o que se configura em um retrocesso.

Segundo Gonçalves, Mota e Anadon (2020) os retrocessos expressos nas novas Diretrizes propõem uma formação meramente instrumental, com a diminuição da formação geral, e sinalizam o alinhamento das políticas educacionais para a formação de professores com os princípios do neoliberalismo em uma perspectiva conservadora. Assim,

A implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores revela o avanço de uma perspectiva política que procura empreender práticas comprometidas com o empresariamento da educação. Estão em jogo interesses mercantilistas que percebem na educação um mercado em contínua expansão (GONÇALVES; MOTA; ANADON, 2020, p. 376).

Nesse contexto compreendemos que as políticas educacionais para formação de professores no Brasil estão fortemente alinhadas com as políticas de cunho neoliberal, fruto de “[...] uma agenda global estruturada localmente, a partir de grupos hegemônicos, nem sempre coesos, mas que têm obtido sucesso em impor suas propostas, mudando profundamente a formação docente” (HYPOLITO, 2019, p. 187).

O avanço do neoliberalismo está associado ao processo de globalização, que regula as estruturas políticas e econômicas dos países e impacta diretamente as demandas sociais, incluindo a educação. No caso das políticas educacionais, elas seguem o paradigma da política neoliberal por meio de “[...] Programas, Projetos, Avaliações e Diretrizes, todos dotados da ideologia neoliberal cuja direção é a formação de trabalhadores que atendam às necessidades do mercado capitalista” (LOPES; SILVA FILHO, 2020, p. 88).

O neoliberalismo em curso nas últimas décadas é mais associado a um conjunto de políticas que “[...] privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigável para investidores estrangeiros” (BROWN, 2019, p. 28-29). Assim, a intensificação do neoliberalismo ocorre com a diminuição do poder do Estado por meio da proposta de Estado Mínimo para os direitos sociais e do avanço da privatização do público.

Entendemos que em decorrência da crise do capitalismo o neoliberalismo entrou em cena como uma reação ideológica da burguesia diante das dificuldades de expansão do capital. Essa corrente teórica se caracteriza como um conjunto de medidas políticas, econômicas e sociais que objetivam retirar o capitalismo da crise e dar as condições necessárias para a sua recuperação.

Segundo Dardot e Laval (2019), desde os anos 1970 o neoliberalismo se sustenta e se reforça das crises econômicas e sociais que gera. Os autores caracterizam o neoliberalismo anterior a 2008 como um processo de desdemocratização e apontam que a retirada do papel do Estado em relação às políticas sociais traz profundas consequências para a democracia:

O novo neoliberalismo é a continuação do antigo de maneira pior. O marco normativo global, que insere indivíduos e instituições dentro de uma lógica de guerra implacável, reforça-se cada vez mais e acaba progressivamente com a capacidade de resistência, desativando o coletivo. Esta natureza antidemocrática do sistema neoliberal explica em grande parte a espiral sem fim da crise e o aceleramento diante de nossos olhos do processo de desdemocratização, pelo qual a democracia se esvazia de sua substância, sem que se suprima formalmente (DARDOT; LAVAL, 2019, n.p.).

Segundo os autores, esse período do neoliberalismo, anterior à crise financeira mundial de 2008, tem como argumento a retirada do Estado como promotor e executor das políticas sociais. Apesar disso, na crise de 2008 o papel do Estado foi preponderante para salvar o capital financeiro. Esse fenômeno pode ser justificado a partir das análises de Harvey (2014), que apontam que o neoliberalismo se reinventa e se fortalece na própria crise. Dardot e Laval (2019) reforçam a tese de Harvey e nos trazem que:

O neoliberalismo não só sobrevive como sistema de poder, como também se reforça. É preciso compreender esta singular radicalização, o que implica discernir o caráter tanto plástico, como plural do neoliberalismo. Mas é necessário ir ainda mais longe e perceber o sentido das transformações atuais do neoliberalismo, ou seja, a especificidade do que aqui chamamos o novo neoliberalismo. (DARDOT; LAVAL, 2019, n.p.).

Para Dardot e Laval (2019), o novo neoliberalismo pós-crise de 2008 passou a ser a justificativa da diminuição de direitos materializados em políticas sociais. Além disso, a redefinição do papel do Estado desvincula o público do estatal e reforça um espaço público-privado que tem o mercado como modelo. Assim, a privatização é entendida como parte das redefinições do papel do Estado, que reorganiza as fronteiras entre o público e o privado.

As mudanças ocorridas após a crise de 2008 estão relacionadas ao Estado empreendedor, que não é mais o executor de políticas sociais e que, com base nos conceitos de meritocracia e de competitividade, transfere para o indivíduo a culpa por seu sucesso ou fracasso, com um deslocamento de princípios coletivos e democráticos para os individuais (PERONI; ROSSI; LIMA, 2021). Harvey (2014) aponta as implicações desse processo de individualização:

O sucesso e o fracasso individuais são interpretados em termos de virtudes empreendedoras ou de falhas pessoais (como não investir o suficiente em seu próprio capital humano por meio da educação) em vez de atribuídos a alguma propriedade sistêmica (como as exclusões de classe que se costumam atribuir ao capitalismo). (HARVEY, 2014, p. 76).

Além disso, ocorre também o deslocamento dos deveres do poder público para o terceiro setor. De tal modo, a proposta neoliberal é transferir a responsabilidade pela execução e direção das políticas sociais do poder público para o privado, considerado mais eficiente e produtivo. A privatização pode ocorrer com ou sem a mudança de propriedade, isto é, a propriedade pode permanecer pública, mas a direção, o conteúdo, a gestão e, no caso da escola, as suas rotinas passam a ter como parâmetro o mercado.

Nesse sentido, as transformações provocadas pelo neoliberalismo nas últimas décadas têm repercutido em todas as áreas da vida humana, inclusive na educação, em especial na formação docente. Peroni, Rossi e Lima (2021) consideram que a relação entre o setor público e a esfera privada na educação não se limita à propriedade, pois esse processo envolve projetos societários em disputa, em uma correlação de forças entre o Estado e a sociedade civil, que disputam a pauta educativa e a sua materialização.

No caso brasileiro, a promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 forjou uma concepção de estado democrático. Contudo a educação em uma perspectiva democrática cedo perdeu espaço para os interesses relacionados à educação privada. Esse processo foi legitimado pelo Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE) e pela Emenda Constitucional n.º 19, de junho de 1998, com a inserção da concepção mercadológica na gestão educacional e escolar, o que resultou na diminuição da atuação do Estado nas questões sociais e a adoção de um modelo gerencialista de gestão na administração para sanar as ineficiências da máquina pública.

Nesse cenário os processos de privatização do público se fazem presentes, seja por orientações de organismos internacionais, seja pela propagação de institutos e fundações que disputam o fundo público e tensionam o campo das políticas sociais em termos de restrição de direitos, de forma que o “[...] ‘conteúdo’ pedagógico e de gestão da escola é cada vez mais determinado por instituições que introduzem a lógica mercantil, sob a justificativa de que, dessa maneira, estão contribuindo para a qualidade da escola pública” (PERONI, 2021, p. 18).

Os processos de privatização no Brasil respondem ao modelo das parcerias público-privada (PPP) e têm nos institutos e fundações seus principais articuladores na definição de políticas públicas. A respeito das parcerias com os institutos, podemos afirmar que eles:

Trabalham definindo políticas, com a concepção, acompanhamento e avaliação da educação nas redes públicas parceiras. Na justificativa de sua atuação, apresentam problemas na qualidade do ensino e assumem o que seriam tarefas do estado para com as políticas públicas de educação. As metodologias empregadas são padronizadas e replicáveis, ao contrário das propostas de reestruturação produtiva, do próprio capital, que propõem a formação de um trabalhador criativo, que responda rapidamente às demandas com capacidade de raciocínio e trabalho em equipe (PERONI, 2018, p. 101).

De acordo com Hypolito (2019) a escola está cada vez mais submersa em políticas neoliberais. É de se ressaltar que o processo educativo engendrado nos padrões neoliberais já vinha em curso com a privatização da educação por meio de seu conteúdo, ganhando novos contornos diante do currículo, da gestão e do trabalho docente. Desse modo, verificamos que o controle sobre a escola, com as novas diretrizes impostas aos cursos de Licenciatura, passa pelo controle da formação docente.

Ainda segundo o autor existe “[...] uma agenda global que vai se estruturando localmente, a partir de grupos hegemônicos, nem sempre coesos, ora mais liberais, ora mais ultraliberais, ora neoconservadores e autoritários [...]” (HYPOLITO, 2019, p. 199). Esses grupos têm imposto sua agenda com diferentes formas de atender às demandas do mercado. No caso brasileiro, a Resolução CNE/CP n.º 2/2019, que institui a BNC-Formação, está na agenda das políticas educacionais de cunho neoliberal e tem na sua proposta e concepção interesses alinhados ao mercado em torno do controle sobre o conhecimento.

Diante do exposto e das muitas preocupações suscitadas no decorrer de nossa atuação profissional na formação de professores para a Educação Básica, alguns questionamentos nos levaram a um processo investigativo, cujos resultados compartilhamos no estudo que ora apresentamos. Entre essas questões configura-se como nosso problema de pesquisa: “Quais as implicações do empresariamento da educação para a formação e valorização docente?”

Destarte, nosso principal objetivo é analisar a Resolução CNE/CP n.º 2/2019 - que define as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial de professores e institui a Base Nacional Comum (BNC-Formação) - de modo a identificar e discutir as implicações das mudanças propostas na valorização do trabalho docente.

O texto está estruturado em quatro tópicos e as Considerações Finais. Na Introdução (primeiro tópico) tratamos sobre o alinhamento das reformas educativas ao receituário neoliberal, evidenciando que as concepções que perpassam a formação docente, no caso brasileiro, intentam atender às necessidades do capital. No segundo tópico apresentamos, de forma breve, o percurso da BNCC, seu processo de elaboração e implantação - que contou com a ampla participação de instituições ligadas à iniciativa privada - com a finalidade de expor e discutir os interesses e as intencionalidades que perpassam esse documento que agora norteia a política de formação e valorização dos professores no país. Em seguida, no terceiro tópico, descrevemos a metodologia de pesquisa empreendida para, em seguida, no quarto tópico, apresentarmos e discutirmos os resultados obtidos e, por fim, as nossas considerações finais.

Base Nacional Comum Curricular: trajetória e implicações na política de formação de professores no Brasil

Em conformidade com o que vimos discutindo e, de acordo com Peroni, Caetano e Lima (2017), nos últimos anos a educação, como parte de um projeto de nação, vem sendo disputada por visões antagônicas, no Brasil e no mundo, tanto no sentido da sua direção, quanto na execução.

Diferentes formas de privatização vêm ocorrendo a partir e/ou como consequência das reformas da gestão pública, instituindo reformas educativas de forma global. Ainda segundo as autoras, essa “disputa fica ainda mais clara quando examinamos os fatos a partir do golpe parlamentar de 2016, que retirou da Presidência da República, com o apoio do empresariado nacional, uma presidenta eleita pelo voto popular” (PERONI; CAETANO; LIMA, 2017, p. 418).

As reformas educacionais implementadas no período pós-golpe não foram debatidas com associações de professores, sindicatos e pesquisadores, e foram aprovadas sob sua resistência, como no caso da Reforma do Ensino Médio, da BNCC e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação de professores, que reforçaram a disputa por projetos distintos e que tiveram como foco a direção e o conteúdo da educação pública brasileira (PERONI; CAETANO; LIMA, 2017).

Diante do exposto, julgamos importante apresentar, mesmo que de forma breve, o percurso da BNCC, seu processo de elaboração e implantação - que contou com a ampla participação de instituições ligadas à iniciativa privada - com a finalidade de expor e discutir os interesses e as intencionalidades que perpassam por esse documento.

O delineamento de uma política de currículo formulada a partir de uma base nacional comum não é assunto recente, tendo em vista que a elaboração desse documento foi prevista na CF de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 e, mais precisamente, no Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2014-2024.

O artigo 210 da CF dispõe que “[...] serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Já o artigo 214 indica que “a lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração decenal, com o objetivo de articular o sistema nacional de educação em regime de colaboração e definir diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação [...]” (BRASIL, 1988).

Na LDB, a construção de uma base nacional comum é indicada no artigo 26:

Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos (BRASIL, 1996).

No artigo 64 a LDB também recomenda a estruturação de uma base nacional comum, referindo-se aos processos que envolvem a formação do professor e a orientação do processo de ensino por meio dos cursos de graduação e pós-graduação:

A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a base comum nacional. (BRASIL, 1996).

Diante dessas determinações, em 1997, no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, mesmo sem a aprovação do Conselho Nacional de Educação (CNE), foram definidos e implementados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que se configuraram na primeira proposta de uma referência curricular para orientar a Educação Básica no Brasil. Os PCNs para o Ensino Fundamental tinham como objetivo central o encaminhamento de um projeto de organização curricular para todo o Brasil respaldado em um discurso que previa a promoção de avanços educacionais e nos sistemas de ensino (JOHANN, 2021).

De acordo com Corrêa e Morgado (2018, p. 4), já naquele momento o governo estudava as possibilidades de implementação de programas de avaliação em larga escala, “[...] num pretenso processo de melhoria educacional, que começa pelo “final”, ou seja, pela avaliação”.

Segundo Johann (2021), na contramão do que se esperava, os PCNs, que se apresentavam como uma nova referência para a reorganização curricular em nível nacional, não foram adotados em diversos espaços do Brasil sob a justificativa de não atenderem aos anseios do professorado brasileiro. Desse modo, por meio de forte pressão e resistência, principalmente do meio acadêmico, houve uma regressão no caráter normativo do documento, que passou a ser tratado como um parâmetro.

Silva, Alves Neto e Vicente (2015, p. 335) argumentam que os PCNs foram uma “[...] tentativa de criar uma Base Nacional Comum, mas que precisou ser modificada para outro caráter, mudando-se o nome para Parâmetros, que ficaram submetidos às Diretrizes Curriculares Nacionais, sem força de ‘lei’ ou de marco regulatório nos currículos”.

Johann (2021) pontua que uma nova projeção para a superação dos PCNs somente começou a ser discutida no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, entre os anos de 2003 e 2010. Consideramos, no entanto, que foi durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, entre 2012 e 2013, que se deu o início da grande mudança do cenário da política educacional brasileira, quando a BNCC se tornou o mais importante projeto filantrópico de fundações ligadas ao setor empresarial, como a Fundação Lemann (TARLAU; MOELLER, 2020).

Segundo Tarlau e Moeller (2020), por volta de 2013 a Fundação Lemann começou a organizar e aplicar recursos num novo “movimento” nacional brasileiro, o Movimento pela Base Nacional Comum, que se tornou uma rede extremamente influente, reunindo membros do governo e de organizações da sociedade civil em apoio à BNCC. O seminário “Liderar reformas educacionais: fortalecer o Brasil para o século XXI”, que a Lemann organizou em abril de 2013 na Universidade de Yale, foi um dos eventos mais importantes para a criação de uma rede de apoiadores no Brasil. Entre os convidados estavam funcionários governamentais, como os secretários da Educação dos estados e altos funcionários do Ministério da Educação (MEC), e representantes de outras fundações e ONGs.

Além disso, nesse período um novo terreno político foi produzido no Brasil, o que permitiu que um ator estratégico como a Fundação Lemann pudesse solidificar a ideia da BNCC como um objetivo legislativo brasileiro oficial. Havia uma oportunidade imediata para fazer isso, pois o governo brasileiro estava terminando seu PNE, cuja aprovação estava prevista para o ano seguinte (TARLAU; MOELLER, 2020).

Segundo as autoras, a Fundação Lemann ajudou a organizar uma série de eventos em 2013, com os participantes do seminário em Yale, para promover a ideia da BNCC entre altos funcionários governamentais, mas já não atuava sozinha, embora não liderasse o movimento: “os protagonistas eram, agora, um grupo diverso de gente que se identificava como parte do Movimento pela Base” (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 569).

Tarlau e Moeller (2020, p. 569), com base em uma série de entrevistas com diversos atores desse percurso, apontam que a organização Todos pela Educação, que fazia parte do Movimento pela Base, apresentou 54 emendas ao PNE de 2014. Dessas, 52 foram aprovadas, inclusive três que estabeleciam prazos para a criação de diretrizes curriculares nacionais. Para os entrevistados, a entrada da BNCC no PNE de 2014 “deu um impulso muito grande” ao Movimento pela Base, “porque entrou com prazo para ser construída até junho de 2016 e encaminhada para o CNE”.

No seu Relatório Anual de 2014 a Fundação Lemann fala abertamente de seu papel no apoio à BNCC e seu suporte econômico à iniciativa por meio de relatórios de política pública e mobilização de redes.

Apesar de toda essa movimentação, curiosamente a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB) publicou no mesmo ano um primeiro esboço de padrões curriculares nacionais, completamente diferentes da versão da BNCC que seria escrita no ano seguinte, em 2015 (TARLAU; MOELLER, 2020). Segundo as autoras:

[...] em vez de indicar o conteúdo acadêmico específico a ser estudado a cada ano, o documento de 2014 começa pela descrição dos direitos dos alunos, como o direito a práticas culturais locais, conhecimento diverso, desenvolvimento humano, ação política e entendimentos históricos. Em seguida, discute os amplos objetivos de cada área curricular e apresenta grandes considerações filosóficas e teóricas para cada área de conhecimento. (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 570).

Desse modo, verificamos que esse documento não definia o conteúdo acadêmico que deveria ser parte do currículo, nem as competências para cada série e, em vez disso, discutia grandes componentes sociais e históricos de cada tópico, sendo, portanto, mais um documento filosófico do que tecnocrático, embora especificasse áreas curriculares a serem incluídas no currículo (TARLAU; MOELLER, 2020).

Esse tipo de abordagem, no entanto, trouxe grande preocupação ao setor empresarial, principalmente à Fundação Lemann, patrocinadora do movimento Todos pela Educação e “que também operava como a força isolada mais poderosa na estruturação do consenso entre os diversos conjuntos de atores através do Movimento pela Base” (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 555).

Ainda segundo as autoras, o Movimento pela Base defendia um documento mais “prático”, que especificasse o conteúdo que os educadores deveriam ensinar e, assim, atuou impedindo a divulgação e aprovação desse documento sob o argumento do ano ser eleitoral e, portanto, não ser um bom momento para uma nova legislação. O MEC nunca publicou oficialmente a versão preliminar da BNCC, de 2014 e, como diria, mais tarde, o então recém-nomeado secretário de Educação Básica, Manuel Palácios: “Recomeçamos do zero” (TARLAU; MOELLER, 2020, p. 571).

Por conseguinte, em 2014 foi aprovado o PNE, regulamentado pela Lei n.º 13.005, com vigência de dez anos (2014-2024), confirmando a necessidade da base e definindo que a União, estados e municípios deviam implantar os direitos e objetivos de aprendizagem e desenvolvimento que configurariam a BNCC do Ensino Fundamental (PERONI; CAETANO, 2015). No PNE a BNCC está relacionada às metas que dizem respeito à universalização do Ensino Fundamental (metas 2 e 3), à avaliação e ao Ideb (meta 7) e à formação de professores (meta 15) (BRASIL, 2014).

De acordo com Peroni e Caetano (2015), a partir do PNE o MEC passou a promover discussões sobre a proposta de uma Base Nacional Comum tendo como objetivo o estabelecimento de um rol de direitos de aprendizagem para a Educação Básica.

No entanto Alves (2014) questiona a ênfase dada às metas 2 e 3 do PNE. Segundo a autora, as já referidas forças privatistas argumentaram que o prazo de dois anos previsto para o seu cumprimento era curto. Ademais, ela relembra e alerta sobre a existência de outra meta - a de número 18, com o mesmo prazo de cumprimento - que se refere à necessidade de que todos os sistemas de ensino - municípios e estados - estabelecessem um Plano de carreira dos profissionais da Educação básica pública, “tomando como referência o piso salarial nacional profissional, obrigatório desde a constituição de 1988, e estruturado com valores desde 2008, mas que vem ainda sendo muito pouco cumprido pelos referidos entes federados” (ALVES, 2014, p. 1464).

Seguindo adiante na revisão desse processo histórico cumpre assinalar que em 2016 um grande marco mudou o rumo da política no Brasil e, em grande medida, atingiu o campo educacional, modificando a perspectiva da BNCC e os direcionamentos da matéria. O documento passou a reiterar os pressupostos neoliberais e, para além disso, acolheu a perspectiva neoconservadora. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 31 de agosto de 2016, pôs na presidência da república o então vice-presidente Michel Temer, do Partido Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) (JOHANN, 2021).

Desde sua primeira versão no ano de 2015, ainda no governo de Dilma Rousseff, o contexto da produção do texto da BNCC teve três versões que, na opinião do MEC, resultaram de um processo de construção democrático. Além da consulta pública, foram realizadas várias audiências com o intuito de “ouvir” a comunidade escolar. No entanto foi mínima a participação de especialistas/pesquisadores brasileiros na área de currículo, o que ensejou o envolvimento de especialistas internacionais pertencentes a fundações privadas. (CORRÊA; MORGADO, 2018).

Considerando sua versão final, publicada em 2017, Corrêa e Morgado (2018, p. 8) apontam que na elaboração do documento “não se elegeu uma concepção de currículo, mas a sua organização por competências, objetivos e conteúdos reflete a opção pelo modelo da teoria curricular de instrução”. Além disso, as tecnologias, no modelo de organização do currículo nacional, estão relacionadas com a regulação do estado e com as políticas de accountability, nas quais os conceitos de eficiência e de eficácia, bem como os resultados, aparecem.

Ainda segundo as autoras, o documento reforça as concepções já caracterizadas nos modelos com base nos quais foram concebidas, com as ideias de competências e “direitos de aprendizagem” presentes nos textos dos currículos do Chile, Austrália e EUA (CORRÊA; MORGADO, 2018).

Por fim, ressaltamos nossa apreensão em relação à forma como se deu todo o processo de elaboração, finalização e implantação do documento, com visível prevalência de um currículo prescritivo, centrado em competências, cujo desenvolvimento será controlado através de avaliações em larga escala, o que contribuirá para debilitar a autonomia do professor e da própria escola.

Metodologia

Considerando ser nosso objeto de estudo a atual política nacional de formação de professores optamos por desenvolver uma pesquisa qualitativa. Segundo Minayo (2008, p. 21), a pesquisa qualitativa atende a contextos muitos particulares, ocupando-se, nas Ciências Sociais, “com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado”, ou seja, “ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes”. Para a autora, esse conjunto de fenômenos humanos pode ser entendido como parte da realidade social, “[...] pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes” (MINAYO, 2008, p. 21).

Levando em conta as modalidades de pesquisa qualitativa em educação, próprias para a coleta de dados e para a interpretação de diferentes elementos dos processos estudados, consideradas por Tozoni-Reis (2007), a pesquisa que realizamos é documental, já que tem como principal característica o fato de que a fonte dos dados, o campo no qual se procederá a coleta dos dados, é um documento (histórico, institucional, associativo, oficial etc.). Para a autora, “isso significa dizer que a busca de informações (dados) sobre os fenômenos investigados é realizada nos documentos, que exigem, para a produção de conhecimentos, uma análise” (TOZONI-REIS, 2007, p. 30).

A finalidade de uma pesquisa documental é identificar as relações explícitas e implícitas do objeto de estudo no contexto histórico, social, político e econômico, em vista das informações advindas do contato com os documentos associados à temática. Para tal, utilizamos como fonte a Resolução CNE/CP n.º 2, de 20 de dezembro de 2019, levando em conta que a técnica mais indicada para coleta e análise dos dados nessa modalidade de pesquisa é a análise de conteúdo.

De acordo com Tozoni-Reis (2007, p. 46), considerando que todo documento pode apresentar um grande volume de informações que nem sempre interessam ao tema em estudo pela pesquisa documental, “o principal objetivo da análise de conteúdo é desvendar os sentidos aparentes ou ocultos de um texto, um documento, um discurso ou qualquer outro tipo de comunicação”. Ademais, ainda segundo a autora, a escolha dos procedimentos para essa análise “[...] depende do estudo em questão, de seus objetivos, das intenções do pesquisador, de seus referenciais teóricos, epistemológicos, políticos, sociais, culturais, educacionais e pedagógicos”.

A análise dos dados levou em conta a sequência proposta por Minayo (2006): a) ordenação dos dados: mapeamento de todos os dados obtidos por meio da leitura/releitura do documento; b) classificação dos dados: identificação de categorias de análise; e c) análise final: estabelecendo articulações entre os dados e os referenciais. Para a nossa análise identificamos duas categorias que se relacionam diretamente: relação formação docente - ethos profissional e relação valorização - engajamento profissional.

Relação formação docente - ethos profissional

Em dezembro de 2017 a BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental foi homologada. Em 2018, alinhada à lei 13.415 de 16 de fevereiro de 2017, se deu a homologação da BNCC do Ensino Médio. Ainda em 2018 o MEC lançou o Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular, o ProBNCC, que destinava recursos financeiros aos estados com o objetivo de induzir a adequação dos currículos locais.

Nessa direção o CNE promulgou a Resolução n.º 2, de 20 de dezembro de 2019, definindo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e instituindo a BNC-Formação. O parágrafo único do artigo 1.º estabelece que:

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial em Nível Superior de Professores para a Educação Básica e a BNC-Formação têm como referência a implantação da Base Nacional Comum Curricular da Educação Básica (BNCC), instituída pelas Resoluções CNE/CP n.º 2/2017 e CNE/CP n.º 4/2018 (BRASIL, 2019).

A Resolução CNE/CP n.º 2/2019 está estruturada em 30 artigos, nove capítulos e um anexo, do qual consta a proposta de BNC-Formação, cujo foco é a formação inicial de professores. A nova Resolução e a BNC-Formação evidenciam o objetivo principal de implementação da BNCC nas etapas da Educação Básica no país e são marcadas pelo caráter autoritário e prescritivo, o que resultou em avaliações negativas da comunidade acadêmica no que diz respeito “[...] ao modelo centrado em competências e uma concepção redutora e esvaziada de currículo que sonega a pluralidade e desrespeita a diversidade cultural, de público e instituições, ferindo o princípio da gestão democrática e da liberdade de ensinar e aprender” (ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM EDUCAÇÃO, 2020).

Na análise de Silva (2020) as Diretrizes para a formação inicial de professores e a BNC-Formação foram criadas para “treinar professores” e alinhar a formação docente à BNCC, como pode ser observado nos artigos 2.º e 3.º da Resolução CNE/CP n.° 2/2019:

Art. 2.º A formação docente pressupõe o desenvolvimento, pelo licenciando, das competências gerais previstas na BNCC-Educação Básica, bem como das aprendizagens essenciais a serem garantidas aos estudantes, quanto aos aspectos intelectual, físico, cultural, social e emocional de sua formação, tendo como perspectiva o desenvolvimento pleno das pessoas, visando à Educação Integral.

Art. 3.º Com base nos mesmos princípios das competências gerais estabelecidas pela BNCC, é requerido do licenciando o desenvolvimento das correspondentes competências gerais docentes (BRASIL, 2019).

Silva (2020, p. 108) argumenta que esses artigos evidenciam a concepção de professor a ser formado, a saber: “as competências gerais da BNCC e as aprendizagens essenciais para a educação básica”. Nesse sentido, a formação visa o domínio de competências e habilidades com os quais o docente estará “[...] capacitado para realizar de forma eficaz o processo de ensino, num processo de formação diretamente na prática, isto é, na área de atuação profissional”.

O capítulo IV da Resolução CNE/CP n.º 2/2019, que se estende do artigo 10.º ao 18.º, prescreve que todos os cursos de licenciatura devem apresentar a carga horária mínima de 3.200 horas e ser organizados em três grupos que têm como pressupostos o desenvolvimento das competências gerais e específicas da BNC-Formação.

O Grupo I dedica 800 horas à base comum, que compreende os conhecimentos pedagógicos que fundamentam a prática docente. O Grupo II é composto por 1.600 horas aplicadas ao domínio dos conhecimentos específicos das áreas ligadas às unidades temáticas e aos objetos de conhecimentos da BNCC. No Grupo III 800 horas são empregadas à prática pedagógica, 400 horas ao estágio e 400 horas à prática como componente curricular, a qual deve estar presente em todo o percurso formativo do licenciado e articulada à instituição de ensino na qual ele irá atuar.

É importante destacar que 50% da carga horária prescrita no grupo II é devotada especificamente para o treinamento do licenciando com vistas à implementação da BNCC, denotando uma formação dirigida apenas aos pressupostos curriculares da Base. Uma formação uniforme, padronizada e homogeneizante, que segue apenas uma direção e não corresponde aos contextos específicos, plurais e diversos da prática educativa. Além disso ela desconsidera a diversidade e a heterogeneidade dos ambientes escolares, fruto da desigualdade nas trajetórias sociais, econômicas e culturais dos estudantes, e assim negligencia o desenvolvimento da autonomia docente e sua capacidade de responder aos desafios encontrados na escola.

O grupo III destina 25% da carga horária às práticas profissionais relacionadas ao “saber fazer” associado ao cotidiano escolar e dissociado da relação teoria-prática, o que reduz a formação docente ao aspecto técnico-profissional e limita a função docente à operacionalização da BNCC, ou seja, uma formação pragmática, padronizada e simplificadora, focada na resolução de problemas do cotidiano escolar sem levar em conta a complexidade do fazer docente e do processo de ensino-aprendizagem. Ressaltamos também o caráter prescritivo que busca explicitar o que os professores devem saber fazer para executar o currículo, o que denota uma tentativa de estabelecer controle sobre o que se ensina e como se ensina.

A BNC-Formação adota o desenvolvimento de competências gerais e específicas como eixo estruturante da formação dos professores nos aspectos prescritos no artigo 4.º e no anexo da resolução: conhecimento profissional, prática profissional e engajamento profissional. A formação baseada em competências visa introduzir um ethos profissional ligado ao imaginário liberal, uma vez que busca produzir na subjetividade dos docentes a cultura da performatividade, o que responsabiliza estritamente o indivíduo pelo seu desenvolvimento e desempenho profissional.

A BNC-Formação intenta induzir um percurso formativo que individualiza os sujeitos e os insere em ambiente competitivo próprio do universo empresarial e estranho ao processo coletivo e colaborativo da prática educativa. As competências docentes restringem-se às habilidades necessárias para planejar, ensinar e avaliar os objetos do conhecimento e as competências e habilidades da base. Ela procura ainda estimular um engajamento dos professores através do comprometimento e do desempenho individual e meritocrático, desligado das condições necessárias para o desenvolvimento de sua atividade.

Relação valorização e engajamento profissional

A BNC-Formação é composta por competências gerais e específicas que são requeridas dos licenciandos. As Competências Gerais são: a) conhecimento profissional; b) prática profissional; e c) engajamento profissional (BRASIL, 2019). Silva (2020, p. 116) aponta que as mudanças provocadas pelas novas Diretrizes para formação de professores abandonam “[...] a questão do trabalho docente como categoria de formação e valorização profissional”.

O parágrafo 3.º do artigo 4.º da Resolução CNE/CP n.º 2 de 2019 ressalta que:

As competências específicas da dimensão do engajamento profissional podem ser assim discriminadas: I - comprometer-se com o próprio desenvolvimento profissional; II - comprometer-se com a aprendizagem dos estudantes e colocar em prática o princípio de que todos são capazes de aprender; III - participar do Projeto Pedagógico da escola e da construção de valores democráticos; e IV - engajar-se, profissionalmente, com as famílias e com a comunidade, visando melhorar o ambiente escolar (BRASIL, 2019).

Diante do exposto verificamos a relativização da ideia da formação continuada como direito a ser garantido pelas políticas públicas e o reforço de uma perspectiva meritocrática e empreendedora de formação, ou seja, o professor engajado que se compromete com sua formação é aquele que está em constante aperfeiçoamento, independentemente das suas condições materiais de existência, além da própria realidade concreta da escola pública.

Assim, conforme Dardot e Laval (2016, p. 15), é fundamental discutirmos essa política de formação, levando em consideração o contexto neoliberal do atual período do capitalismo, que estrutura e organiza “não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados”. Além disso, a exaltação de uma cultura empreendedora e sua incorporação nos modos de vida e nos processos pedagógicos são ratificadas por uma “subjetivação contábil e financeira”, ou seja, “a empresa é promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e um capital que deve se fazer frutificar” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 372).

Ademais, é importante dizer que as novas Diretrizes para a formação de professores rompem com a organicidade da Resolução CNE/CP n.º 02/2015 e com os ganhos substanciais para a formação docente no que diz respeito à formação inicial, à formação continuada e à valorização de professores. No que se refere à valorização profissional, diferentemente da resolução de 2015, que dedicou um capítulo (Capítulo VII) com quatro artigos para tratar da valorização dos profissionais do magistério, na atual resolução a valorização foi reduzida a um inciso.

A resolução de 2015 expressa um comprometimento com a valorização profissional (plano de carreira, garantia do piso salarial) - nos termos dos artigos 18.º a 21.º da Resolução do CNE/CP n.º 2 de 1.º de julho de 2015, aspecto esse que foi considerado inovador e uma conquista histórica para os profissionais de educação (GONÇALVES; MOTA; ANADON, 2020). Entre as proposições da resolução para a valorização dos profissionais do magistério, destacamos o artigo 18.º:

Compete aos sistemas de ensino, às redes e às instituições educativas a responsabilidade pela garantia de políticas de valorização dos profissionais do magistério da educação básica, que devem ter assegurada sua formação, além de plano de carreira, de acordo com a legislação vigente, e preparação para atuar nas etapas e modalidades da educação básica e seus projetos de gestão, conforme definido na base comum nacional e nas diretrizes de formação, segundo o PDI, PPI e PPC da instituição de educação superior, em articulação com os sistemas e redes de ensino de educação básica (BRASIL, 2015).

Assim, a noção de valorização do magistério foi assumida em 2015 como uma dimensão constitutiva e constituinte da formação inicial e continuada e incluiu a garantia de construção, definição coletiva e aprovação de planos de carreira e salário, com a condição de garantia da jornada de trabalho, com dedicação exclusiva ou tempo integral, a ser cumprida em uma única instituição de ensino (BRASIL, 2015).

No caso da Resolução de 2019, a valorização profissional foi retomada de forma incipiente no inciso II do artigo 6.º, que prevê de forma resumida a valorização da profissão docente e inclui o reconhecimento e o fortalecimento dos saberes e práticas específicas de tal profissão (BRASIL, 2019). As novas Diretrizes forjaram uma concepção de valorização profissional “[...] a partir do entendimento da meritocracia individual, referenciada nas competências desenvolvidas” (SILVA, 2020, p. 116).

Diante disso, a BNC-Formação requer do profissional um comprometimento docente ao priorizar o debate acerca das competências, sem garantir, no entanto, as condições necessárias para o desenvolvimento da atividade educativa e a valorização adequada. Nesse sentido, ela desvaloriza o trabalho docente e não contempla aspectos necessários para a valorização, a saber: concurso público (estabilidade) e dedicação exclusiva (em uma única escola); salários dignos e planos de cargo e carreira; infraestrutura; salas de aulas com menos alunos; apoio pedagógico da coordenação da escola; existência de materiais de apoio pedagógico e tecnológico, entre outros (SILVA, 2020). Além disso, entendemos que essa estratégia não está à altura dos desafios educacionais a serem enfrentados no Brasil, especificamente os da formação docente.

Considerações finais

À guisa de conclusão, consideramos que a principal análise por nós empreendida diz respeito ao alinhamento da nova resolução com o receituário neoliberal, limitando a formação a aspectos técnicos e pragmáticos ajustados a uma perspectiva economicista. Fica explícito que essa resolução expressa uma padronização das políticas para a formação docente centrada em competências que atendam aos pressupostos da BNCC. Entendemos também que a lógica na qual está baseada negligencia a valorização profissional como um projeto coletivo e passa a ser associada a critérios meritocráticos de desempenho individual ligados ao ideário liberal.

Por fim, consideramos ser imprescindível que debates sobre as políticas aqui discutidas continuem a ser realizados entre os pesquisadores e professores de nosso campo de investigação, e corroboramos Lavoura, Alves e Santos Junior (2020) quanto à necessidade de construção de uma forma de resistência ativa e coletiva em torno de dois elementos centrais: 1) “no plano pedagógico, agindo no interior de nossas instituições de ensino para disputar cada elemento do processo formativo”, seja na construção de projetos político-pedagógicos, nas atividades de ensino, pesquisa e extensão, “lutando pela ampliação dos horizontes culturais dos alunos, pela elevação de suas capacidades de pensar e refletir a realidade, por um trabalho educativo que esteja dirigido para o efetivo desenvolvimento das individualidades como um todo”; 2) “no plano político, onde se postula a necessidade do fortalecimento dos organismos de luta dos trabalhadores da educação de forma organizada” (LAVOURA; ALVES; SANTOS JUNIOR, 2020, p. 572-573).

Destarte, é fundamental ampliarmos nossa capacidade de unidade política com os demais setores populares na luta por uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade, lutando contra a precarização e a privatização do Ensino Superior, e construindo formas de mudar a correlação de forças tal qual ela se apresenta hoje, marcada pelo retrocesso e pela destruição das poucas conquistas já obtidas.

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Recebido: 07 de Agosto de 2022; Aceito: 26 de Janeiro de 2023

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