Introdução
No presente artigo, compartilhamos alguns resultados de nossa pesquisa de mestrado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal de Santa Maria, realizada no período de 2016 a 20181. O objetivo geral, que mobilizou o estudo, foi realizar uma análise das produções discursivas acerca do ensino da filosofia, quais sejam: políticas públicas educacionais e textos acadêmicos2. Diante de tal objetivo, o problema de pesquisa configurou-se da seguinte forma: como o discurso das políticas públicas e das produções acadêmicas, para o ensino da filosofia, vem conduzindo formas de ser professor(a) de filosofia?
Nesse artigo, em especial, será apresentada a parte da pesquisa que se refere às políticas públicas educacionais compreendidas a partir da seguinte materialidade: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2000), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências Humanas e suas Tecnologias/PCN+ Ensino Médio (BRASIL, 2002) e as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006)3. A materialidade da pesquisa obedeceu ao seguinte critério: estar inserida em um momento de desenvolvimento de políticas públicas para o ensino da filosofia no Brasil, quando, consequentemente, circulavam saberes sobre tal temática. Assim, os documentos legais elencados, constituídos entre os anos de 1996 e 2006, enunciam objetivos para o ensino da filosofia no Ensino Médio, bem como um modo de ser professor(a) no mesmo nível de ensino4.
Para empreender a pesquisa, escolhemos o referencial teórico-metodológico foucaultiano e lançamos mão dos conceitos de governamentalidade, enunciado e discurso. Desse modo, passamos, então, a discorrer sobre alguns elementos do referencial teórico-metodológico foucaultiano, do qual nos apropriamos para realizarmos nossa analítica.
Abrindo a caixa de ferramentas foucaultiana
Inicialmente, foi considerado importante, na escrita da pesquisa, tecermos algumas observações sobre as seguintes perguntas: Por que Foucault? Por que nos filiarmos a um autor que não explorou, especificamente, questões relativas à educação e tampouco a respeito do ensino da filosofia?
Vislumbramos uma primeira aproximação entre Foucault e a educação em decorrência do próprio modo como esse autor, assim como outros pensadores considerados pós-estruturalistas, concebeu a noção de sujeito. Caso seja correto afirmar que a educação, de um modo geral, é marcada pelo que se costumou denominar de sujeito racional, autônomo e reflexivo, igualmente é correto que representantes do pós-estruturalismo tenham indicado o descentramento do sujeito moderno. No entanto, não se pode negar as marcas que ainda persistem nas teorias educacionais, bem como nas políticas educacionais, as quais se valem da noção de sujeito embebido, fortemente, nas tradições Humanista e Iluminista. A aproximação entre Foucault e a educação se fez importante ao considerarmos o esfacelamento do sujeito moderno, o qual tantos efeitos produziu, e ainda produz, na educação, assim como no ensino da filosofia.
Ademais, encontramos possíveis respostas para essa aproximação, entre Foucault e a educação, não tanto nos objetos de estudo do autor, mas sim em seus procedimentos de investigação e nas ferramentas conceituais que ele nos oferece para problematizar o campo educacional e o ensino da filosofia. Na esteira dessa discussão, Freitas (2012), ao se referir ao Foucault professor, salienta que essa relação se dá em uma face menor, incerta, contudo, potente na criação de ferramentas conceituais metodológicas que disponibiliza aos pesquisadores. Passemos, então, a apresentar algumas características do procedimento teórico-metodológico ao qual nos filiamos.
O procedimento teórico-metodológico foucaultiano pode ser compreendido em três fases, que não se dissociam necessariamente: o período arqueológico, o período genealógico e o período em que o autor desenvolve suas problematizações acerca da ética. Em cada momento da pesquisa foucaultiana, está em jogo a prevalência constitutiva de um determinado domínio. O período arqueológico corresponde à constituição do saber, o período genealógico, por sua vez, corresponde ao domínio das relações saber-poder e o período ético relaciona-se à constituição do indivíduo em sujeito de sexualidade, a partir de processos de subjetivação.
Desse modo, tem-se, como procedimento de pesquisa, o que muitos estudiosos da obra de Foucault vão denominar de procedimento arquegenealógico ou arqueogenealógico, em que se ressalta a não separação estanque entre as esferas do saber, poder e ética, ou seja, no momento em que essas podem ser compreendidas de forma interrelacionada. O que pode ocorrer, de forma pontual, no processo de pesquisa, é a mudança no enfoque que cada pesquisador(a) dará em cada fase dos estudos foucaultianos, na medida que se mostre preciso acionar determinados conceitos da obra do filósofo. Desse modo, pode-se explicitar as características de cada procedimento teórico-metodológico sem a pretensão de fixá-las linearmente. De nossa parte, foi preciso caracterizarmos, pontualmente, as fases arqueológica e genealógica, das quais extraímos os procedimentos analíticos para nosso estudo.
A pesquisa de cunho arqueológico tem, como uma de suas principais características, atribuir ao saber importância central, o que significa afirmar que o saber não é privilégio ou exclusividade da ciência. O saber, face ao conhecimento científico, mantém uma relação de independência. Dessa forma, o deslocamento da arqueologia diz respeito à compreensão do saber como um nível de conhecimento mais básico que o conhecimento científico, pois temos que: “Essa trajetória [arqueológica], pode-se logo dizer, é o deslocamento de uma região de conhecimento para o saber, pensado como um nível de conhecimento mais elementar que a ciência” (MACHADO, 2007, p. 10).
Nesse sentido, a arqueologia distingue-se da epistemologia, dado que, enquanto a primeira expande sua compreensão dos modos pelos quais o saber é produzido, a segunda pretende-se estar à altura das ciências, considerando a racionalidade como central. A epistemologia compreende a racionalidade como um processo em constante aperfeiçoamento. Já a arqueologia, por sua vez, procura realizar a crítica da própria noção de racionalidade e, como consequência procedimental, tem-se que a arqueologia, nas palavras de Foucault (2012, p. 221), busca sua materialidade em territórios diversos:
Os territórios arqueológicos podem atravessar textos “literários” ou “filosóficos”, bem como textos científicos. O saber não está contido somente em demonstrações; pode estar também em ficções, reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas.
No que concerne ao período genealógico dos estudos foucaultianos, podemos considerar, como algumas das principais obras dessa fase, a Ordem do discurso (FOUCAULT, 2014a), Vigiar e Punir: nascimento da prisão (FOUCAULT, 2014b) e História da sexualidade: a vontade de saber (FOUCAULT, 2018). Sabemos que Foucault nunca tematizou acerca da escola especificamente. Contudo, em seu livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão (FOUCAULT, 2014b), o autor descreve o exercício do poder e suas microrrelações estabelecidas com a massa dos corpos informes, com o corpo individualizado, com o indivíduo e suas sujeições no espaço do quartel, da fábrica, da prisão e do colégio. O filósofo evidencia toda uma maquinaria produtiva e controladora, a qual tem espaço e tempo como suas noções fundamentais. Uma das peculiaridades do procedimento genealógico reside no fato de que o poder é compreendido não como algo da ordem da repressão, mas em sua positividade, ou seja, com capacidade de produção: “O discurso veicula e produz poder” (FOUCAULT, 2018, p. 110).
Além da abordagem do poder como algo da ordem da produção e não da repressão, o procedimento genealógico observa a existência de outro modo de fazer história. Foucault toma a genealogia nietzschiana como inspiração e, desse modo, esse estudioso, acompanhado de Nietzsche, recusa a abordagem da história que privilegia um ponto inicial, uma origem. A genealogia desenvolve procedimentos de abordagem histórica nos termos da proveniência (Herkunft) e da emergência (Entestehung). No livro Microfísica do poder (FOUCAULT, 1979), o filósofo faz referência a Nietzsche no que toca ao seu modo de pesquisar a história, destacando os três modos apresentados pelo filósofo. O primeiro método de se proceder, em uma pesquisa histórica, seria por meio da busca das origens (Ursprung), que é recusada, por Nietzsche, em certas ocasiões, uma vez que a busca pela origem supõe a existência de uma essência. Dessa maneira, segue Foucault (1979, p. 20), em sua leitura sobre Nietzsche: “[...] termos como Entestehung ou Herkunft marcam melhor do que Ursprung o objeto próprio da genealogia”. Assim, temos que a Herkunft (proveniência) busca:
[...] manter o que se passou na dispersão que lhe é própria: e demarcar os acidentes, os ínfimos desvios- ou ao contrário as inversões completas- os erros, as falhas na apreciação, os maus cálculos que deram nascimento ao que existe e tem valor para nós; é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos- não existem a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente (FOUCAULT, 1979, p. 21).
Posteriormente, Foucault (1979, p. 32) explica como se dá a história genealógica nos termos da emergência: “[...] isto é de fato o próprio de Entestehung: não é o surgimento necessário daquilo que durante muito tempo tinha sido preparado antecipadamente; é a cena em que as forças se arriscam e se afrontam, em que podem triunfar ou ser confiscadas”. A genealogia é o deslocamento realizado por Foucault, pois ele entendeu que apenas a arqueologia não seria suficiente para as suas análises com relação à investigação acerca do poder. Em decorrência disso, deu-se a conhecida justaposição arqueogenealogia, termo, geralmente, empregado por estudiosos do filósofo.
Destarte, ao especificar a tarefa da genealogia, Foucault (1979, p. 171) pontua que:
Trata-se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns. As genealogias não são, portanto, retornos positivistas a uma forma de ciência mais atenta ou mais exata, mas anti-ciências. Não que reivindiquem o direito lírico à ignorância ou ao não-saber; não que se trate da recusa de saber ou de ativar ou ressaltar os prestígios de uma experiência imediata não ainda captada pelo saber. Trata-se da insurreição dos saberes não tanto contra os conteúdos, os métodos e os conceitos de uma ciência, mas de uma insurreição dos saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa. Pouco importa que esta institucionalização do discurso científico se realize em uma universidade ou, de modo mais geral, em um aparelho político com todas as suas aferências, como no caso do marxismo; são os efeitos de poder próprios a um discurso considerado como científico que a genealogia deve combater.
Desse modo, temos que o procedimento genealógico, inicialmente, libera os saberes não legitimados das instâncias teóricas unitárias, os quais, por sua vez, buscam depurar, hierarquizar e ordenar sob a justificativa de um conhecimento verdadeiro e científico. A genealogia reivindica a insurreição dos saberes ante os efeitos centralizadores do poder. Assim, concebe-se o poder em duas vias: em sentido positivo (não mais como repressão) e não mais como algo centralizado e unificador (poder da política tradicional). Logo, toma-se o poder como algo que se dá nas relações entre diferentes e variadas instituições e entre indivíduos. A genealogia, em síntese, combate o discurso científico, na medida em que esse desqualifica, deslegitima e hierarquiza os saberes, tendo a racionalidade como seu suporte.
Assim, foi tomada como empréstimo, no desenvolvimento de nossa pesquisa, a expressão “caixa de ferramentas” do filósofo Gilles Deleuze (1979), quando esse se referiu ao procedimento analítico foucaultiano como uma caixa de ferramentas, a qual recorremos quando precisamos de um conceito que sirva, que nos possibilite problematizar, o qual nos force a pensar e, também, a agir em face aos problemas nos quais nos vemos inseridos. Precisamente, nas palavras de Deleuze, o procedimento analítico foucaultiano está à altura de uma caixa de ferramentas na medida em que:
[...] uma teoria é como uma caixa de ferramentas. Nada tem a ver com o significante... É preciso que sirva, é preciso que funcione. E não para si mesma. Se não há pessoas para utilizá-la, a começar pelo próprio teórico que deixa então de ser teórico, é que ela não vale nada ou que no momento ainda não chegou. Não se refaz uma teoria, fazem-se outras; há outras a serem feitas (DELEUZE, 1979 apudFOUCAULT, 1979, p. 71).
A partir dessa caracterização do procedimento analítico foucaultiano, elencamos alguns conceitos-ferramentas para problematizarmos a materialidade da nossa pesquisa. Os conceitos-ferramentas selecionados foram: discurso, enunciado e governamentalidade.
Dessa forma, foi preciso explicitar, para efeito de sequência em nosso estudo, o que vem a ser o discurso pela via analítica arqueogenalógica. A maneira como o discurso é concebido, por esta via analítica, aponta para uma abordagem radicalmente diferente. Na concepção de Foucault, tal abordagem:
[...] consiste em não mais tratar os discursos como um conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (FOUCAULT, 2012, p. 60).
Se, por um lado, a análise do discurso pode ser entendida como análise de texto (signos, significantes, representação de algo); por outro, a analítica do discurso de cunho arqueológico trata o discurso como uma prática que forma, de modo sistemático, os objetos dos quais se fala. Sem desconsiderar o nível dos signos e dos significados (das frases e das proposições), a arqueologia reivindica uma abordagem do discurso que busca não somente escapar ao âmbito da representação, mas sim afirmar a produção de objetos. Nesse sentido, a arqueologia descreve as regras de condição de existência que possibilitam, aos indivíduos, referirem-se a determinados objetos.
Esse modo de conceber o discurso colocou em destaque o conceito de enunciado e seu modo de operação no interior da ordem discursiva. O enunciado destaca-se, na analítica do discurso, de tal maneira que Foucault define o próprio discurso como um conjunto de enunciados:
Chamaremos de discurso um conjunto de enunciados, na medida em que se apoiem na mesma formação discursiva; ele não forma uma unidade retórica ou formal, indefinidamente repetível e cujo aparecimento ou utilização poderíamos assinalar (e explicar, se for o caso) na história; é constituído por um número de enunciados para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência (FOUCAULT, 2012, p. 143).
O enunciado não se reduz à frase ou proposição, mas ocorre nas frases e nas proposições também. Diante disso, para que uma frase ou proposição seja considerada enunciado, é preciso que satisfaça algumas exigências, as quais diferem das exigências da gramática, por exemplo. “Examinando o enunciado, o que se descobriu foi [...] um sujeito (não a consciência que fala, não o autor da formulação, mas uma posição que pode ser ocupada, sob certas condições, por indivíduos indiferentes)” (FOUCAULT, 2012, p. 140-141). Desse modo, pela perspectiva arqueológica, o enunciado, diferentemente das frases e proposições, convoca os indivíduos a se tornarem seus sujeitos a partir de certas condições.
Por fim, outro conceito que utilizamos, na pesquisa, foi o de governamentalidade, para o qual Foucault (2008, p. 143-144) nos oferece, ao menos, três vias de compreensão:
[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por governamentalidade entendo a tendência, a linha de força que em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde a muito, para a preeminência deste tipo de poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros- soberania, disciplina- e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de uma série de saberes. Enfim, por governamentalidade, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”.
A governamentalidade coloca, no contexto moderno, pela primeira vez, o problema político da população. A partir dessa via analítica, a população não é entendida como a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos por direito ou categoria geral da “espécie humana”. A população é compreendida como objeto constituído pela gestão política global da vida dos indivíduos. Em entrevista concedida a Dreyfus e Rabinow, Foucault (2013, p. 288) afirma que governamentalidade:
[...] não se referia apenas às estruturas políticas e à gestão dos Estados, mas designava a maneira de dirigir a conduta dos indivíduos ou de grupos: governo das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes. Ele não recobria apenas formas instituídas e legitimas de sujeição política ou econômica, mas modos de ação mais ou menos refletidas e calculadas, porém todos destinados a agir sobre as possibilidades de ação dos indivíduos. Governar, neste sentido, é estruturar o eventual campo de ação dos outros.
O conceito de governamentalidade, assim caracterizado, permitiu-nos descrever o conceito de governamento (que diverge da noção de governabilidade), posto em jogo na materialidade escolhida para nossa investigação. Por essa perspectiva, a materialidade de nossa pesquisa fora compreendida não como textos tão somente, mas sim como uma produção discursiva que se distribui e se organiza, socialmente, a partir de diferentes e complexas formas de exercício de conduta. Tomamos a produção discursiva de uma fração da sociedade em que se exerce a conduta ou na qual se busca exercer a conduta da ação de professores(as) de filosofia do ensino médio.
Ensino de filosofia e governamento dos(das) professores(as): enunciado que emerge no discurso das políticas públicas educacionais
Após a abertura da caixa de ferramentas foucaultiana e da apropriação dos conceitos já mencionados, nossa analítica se centrou no governamento exercido entre professores(as) de filosofia do ensino médio. Isso foi realizado a partir do modo como esse(a) mesmo(a) professor(a) é enunciado(a) no discurso das políticas públicas educacionais.
Dessa maneira, um segundo movimento de nossa pesquisa foi realizar a analítica da materialidade escolhida: Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) - Lei nº 9.394/1996 (BRASIL, 1996), os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2000), as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências Humanas e suas Tecnologias/PCN+ Ensino Médio (BRASIL, 2002) e as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006).
O critério utilizado, para a escolha da materialidade, deu-se por essa se inserir em um contexto de produção de políticas públicas para o ensino da filosofia no Brasil. Isso fez com que se produzisse e circulasse saber sobre tal temática. Com isso, consideramos importante descrever, a partir da produção da discursividade materializada nos textos supramencionados, enunciados e o governamento posto em jogo; um governamento que enuncia modos de ser professor(a) de filosofia no ensino médio brasileiro. Dessa forma, ao longo da pesquisa, os artigos e textos oficiais foram compreendidos como engrenagens, as quais colocam em prática mais do que sentidos linguísticos para o ensino da filosofia e para o(a) professor(a). Trata-se de engrenagens que, sobretudo, colocam em prática campos de atuação dos professores e das professoras de filosofia no ensino médio.
Tomamos a LDBEN (Lei n. 9.394/1996) como uma das engrenagens a produzirem discurso sobre a filosofia e seu ensino. Nessa normativa, a filosofia se enuncia como “III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (BRASIL, 1996, p. 33). Como enunciado, a cidadania que depende dos conhecimentos de filosofia estabelece um conjunto de condições de existência, tanto no nível do saber, quanto no nível de uma posição a ser ocupada por diferentes indivíduos, ou seja, os(as) professores(as) de filosofia. Para Garcia (2002, p. 35-36), a produção do cidadão é um enunciado recorrente no discurso educacional brasileiro:
O esclarecimento, ou a produção do cidadão e do sujeito crítico e esclarecido e da classe social consciente e esclarecida, é certamente um dos enunciados mais recorrentes desses discursos. O sujeito crítico é o indivíduo ou a classe social esclarecida, ativos, autorreflexivos, plenamente desenvolvidos, emancipados e autorresponsáveis por suas condutas e ações no mundo e na história.
Por um lado, a filosofia é considerada como um saber necessário à produção do cidadão, uma disciplina que, segundo as pedagogias críticas5, mantém relação de continuidade com os ideais da modernidade, pois visa à transformação dos indivíduos em sujeitos esclarecidos, emancipados. Por outro lado, esse mesmo saber convoca professores e professoras de filosofia a se posicionarem ante o enunciado, de modo a desenvolverem habilidades e competências que ajudem a forjar, no estudante, características provenientes do saber moderno. Na esteira dessa discussão, Prestes (1993), ao realizar uma análise mais ampla sobre o projeto escolar e suas relações com os princípios modernos, destaca que:
Enraizada nas aspirações do projeto da modernidade, com o enunciado de uma razão esclarecedora, a escola encontra a fundamentação de sua ação na racionalidade e no princípio da subjetividade. Assim, os diversos discursos sobre racionalidade compõem o conteúdo normativo da educação e a justificação para a formação do sujeito e sua pretendida emancipação (PRESTES, 1993, p. 15).
Assim entendido, o projeto da modernidade enuncia a característica do(a) estudante como cidadão(ã), com sua racionalidade e emancipação a serem desenvolvidos por meio do processo educacional. Tais características importam, na medida em que compõem os diversos discursos normativos da educação, os quais fundamentam a escola, conforme Prestes (1993). Dessa maneira, o discurso educacional estabelece um registro que produz um modo de pensar, de fazer e de dizer a escola, ou seja, uma prática discursiva que se organiza com base na racionalidade moderna. O enunciado “III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” convoca professores e professoras de filosofia a assumirem a posição proveniente dos saberes modernos. A governamentalidade, isto é, o governo da eventual ação do outro se exerce, nesse caso, na medida em que tais saberes são alcançados, a partir de certas habilidades e competências específicas, que são desenvolvidas nas aulas de filosofia.
Outra engrenagem a enunciar o ensino da filosofia, assim como posicionar professores e professoras de filosofia, foram os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM), de 2000, divulgados pelo Ministério da Educação, por meio da Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC). Esses são dispostos divididos em quatro áreas de conhecimento, das quais sublinhamos, aqui, a área de Ciências Humanas e suas tecnologias, visto que é nela que se encontram os saberes relacionados à filosofia no ensino médio.
O PCNEM/2000, ao responder questões como: “[...] (a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia?” (BRASIL, 2000, p. 46), explicita que tais questionamentos exercem o governamento do/da professor(a) de filosofia, na medida em que as respostas estão inseridas em determinados registros de saber:
Nesse sentido, já quando os primeiros pensadores apontaram-na na direção da verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros, possibilidades de pensar que, supostamente, trazem a verdade à razão de quem pensa ou, se preferirmos, faz a razão desvelar a essência por trás das aparências [...] nenhuma filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão com a qual ela mesma veio ao mundo sem, ao mesmo tempo, contradizer exatamente aquilo que faz, a saber, tentar, com os meios de que dispõe, lançar luz onde a compreensão não parece alcançar, enxergar para além das aparências... (BRASIL, 2000, p. 46-47, grifo nosso).
A centralidade da filosofia é dita por intermédio da razão e da verdade. Quando a filosofia se diz no registro da razão, assim como no registro da verdade, consequentemente, devemos buscar a maneira adequada para acessar tais requisitos. Nesse intento, o que está em jogo não é negarmos a razão e a verdade como constituídas e constituidoras de uma dada tradição filosófica. Na verdade, buscamos sublinhar que essa tradição filosófica (razão-verdade), registrada em um saber ocidental, exerce uma governamentalidade, a qual conduz professores e professoras de filosofia a não estabelecerem outras relações para com a filosofia; relações com a experiência, por exemplo. Jorge Larrosa (2017, p. 39), no referente à experiência e sua relação com a razão, esclarece que:
A razão tem de ser pura, tem de produzir ideias claras e distintas, e a experiência é sempre impura, confusa, muito ligada ao tempo, à fugacidade e à mutabilidade do tempo, muito ligada a situações concretas, particulares, contextuais, muito ligada ao nosso corpo, a nossas paixões, a nossos amores e a nossos ódios. Por isso, há de se desconfiar da experiência quando se trata de fazer uso da razão, quando se trata de pensar e falar e de atuar racionalmente.
A experiência, como possível relação com a filosofia, fica, assim, completamente interditada. Isso, por sua vez, é especialmente interessante quando pensamos os saberes filosóficos arraigados na pureza e na verdade, sendo que a filosofia e o (a) professor(a), na escola básica, depara-se, muitas vezes, com o inesperado, com a fugacidade do tempo e com as particularidades que a escola apresenta.
Os PCNEM/2000 destacam, também, os conhecimentos necessários para se transmitir, aos estudantes, no que tange à disciplina de filosofia: “Que o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado conteúdo filosófico, significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um método de acesso a esse conteúdo” PCNEM/2000 (BRASIL, 2000, p. 50): [grifo nosso]. Sob essa perspectiva (consciência-método), coloca-se em jogo, para o ensino da filosofia no ensino médio, um registro de saber filosófico enraizado no ocidente do globo terrestre, um saber que fora reelaborado na modernidade e que produz modos de se conceber a filosofia, assim como se produz modos de se exercer o seu ensino. Quanto maior a eficácia no método, mais as chances do desenvolvimento da consciência do/da estudante. Desse modo, o governamento, na prática do/da professor (a), exerce-se, uma vez que o discurso produzido por meio dos ditos relativos ao ensino da filosofia ativa domínios de saberes filosóficos (saber moderno), assim como desperta, igualmente, determinado(a) estudante de filosofia a ser produzido; um(a) estudante consciente, tendo em vista o melhor método.
Além disso, temos a engrenagem discursiva publicada em 2002, por intermédio do Ministério da Educação (MEC) e da Secretaria de Educação Média e Tecnológica (SEMTEC), os Parâmetros Curriculares Nacionais Mais Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais - Ciências Humanas e suas Tecnologias. Com a publicação dessas normativas, objetivou-se contribuir para a implementação das reformas educacionais, definidas pela LDBEN e regulamentadas por Diretrizes do Conselho Nacional de Educação. Assim, os PCNEM (+) apresentam, dentre seus objetivos, facilitar a organização do trabalho da escola.
Os PCN+ (BRASIL, 2002, p. 42) indicam aspectos relacionados ao trabalho do filósofo-educador ou da filósofa-educadora e da finalidade das habilidades e competências a serem desenvolvidas nos estudantes, pontuando que:
Assim, no presente documento discutiremos o trabalho do filósofo-educador e suas intenções pedagógicas - nesse caso, intencionais e pragmáticas - de proporcionar a ocasião oportuna para seus alunos desenvolverem determinadas competências e habilidades que os tornem sujeitos autônomos e cidadãos conscientes. [grifo nosso]
O discurso do ensino da filosofia posiciona o (a) professor(a) em um registro de saber quando menciona que, ao desenvolver determinadas habilidades e competências, os estudantes se tornarão sujeitos autônomos e conscientes. Logo, ativa-se, mais uma vez, o discurso educacional moderno, que valoriza o método como garantia da autonomia e da consciência do(a) estudante. Ao se explicitar esse registro de saber, faz-se importante lembrar Larrosa (2002, p. 28) no que diz respeito à concepção de método no registro de saber moderno da ciência e suas implicações relativas à experiência:
A ciência moderna, a que se inicia em Bacon e alcança sua formulação mais elaborada em Descartes, desconfia da experiência. E trata de convertê-la em um elemento do método, isto é, do caminho seguro da ciência. A experiência já não é o meio desse saber que forma e transforma a vida dos homens em sua singularidade, mas o método da ciência objetiva, da ciência que se dá como tarefa a apropriação e o domínio do mundo. Aparece assim a idéia de uma ciência experimental. Mas aí a experiência converteu-se em experimento, isto é, em uma etapa no caminho seguro e previsível da ciência. A experiência já não é o que nos acontece e o modo como lhe atribuímos ou não um sentido, mas o modo como o mundo nos mostra sua cara legível, a série de regularidades a partir das quais podemos conhecer a verdade do que são as coisas e dominá-las.
Quando o discurso materializado, nos textos oficiais, aborda uma determinada prática do professor (a) de filosofia, isso não se reduz apenas a frases ou a proposições, mas sim se refere a um jogo que se exerce também no domínio dos saberes filosóficos e de suas relações com a prática de seu ensino. Com isso, a discussão estabelecida, no registro de saber, entre o menosprezo da experiência e a sobrevalorização do método, faz-se importante, pois é recorrente a afirmação de que há um distanciamento, às vezes intransponível, entre o mundo da escola (possibilidade da experiência) e os saberes filosóficos (primazia do método). A insistência no método mais adequado resolveria, por sua vez, grande parte dessa dificuldade. A própria noção de problematização está em jogo nesse cenário. Se a experiência é aquilo que nos acontece, como problematizar sem experienciar? Os PCNEM/2000 (BRASIL, 2000, p. 50) relacionam a contribuição específica da filosofia à apropriação significativa e consciente dos conteúdos, do método, e à problematização:
[...] o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um método de acesso a esse conteúdo. Apropriar-se do método adequado significa, primariamente, portanto, construir e exercitar a capacidade de problematização. Nisto consiste, talvez, a contribuição mais específica da Filosofia para a formação do aluno do Ensino Médio: auxiliá-lo a tornar temático o que está implícito e problematizar o que parece óbvio. Portanto, a competência de leitura significativa de textos filosóficos consiste, antes de mais nada, na capacidade de problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo. [grifo nosso].
Dessa maneira, método e problematização se configuram como consequência um do outro. Quando se enuncia que o exercício filosófico, para o ensino médio, é a busca consciente de um método que leva, por consequência, à problematização, o/a professor/a de filosofia é posicionado/a discursivamente, na organização dos saberes filosóficos e das práticas de ensino, como aquele/aquela que assume uma herança moderna. Nesse sentido, a questão que emerge, na superfície discursiva, é a figura do sujeito moderno, com suas implicações para a filosofia e seu ensino. Nesse diapasão, Rodrigo Gelamo (2009, p. 132) observa que:
O pensamento filosófico ocidental constituiu-se, precisamente, a partir de uma referência quase obsessiva a essa figura [sujeito] e, consequentemente, a partir dessa figura foi sendo criada uma concepção de ensino e de aprendizagem que passou a nortear o ensino da Filosofia.
Depreende-se, então, que o ensino da filosofia, no Brasil, de modo geral, a partir e com base nas políticas públicas educacionais, ativa essa mesma obsessão pelo sujeito centrado, autônomo, consciente e/ou racional. Através desse saber filosófico legitimado e instituído, é exercido um governamento da conduta dos professores e das professoras de filosofia do ensino médio. Mais do que isso, tal governamento interdita outras relações possíveis com a filosofia e com seu ensino na escola básica. Do mesmo modo, interdita outras relações possíveis com aquilo que entendemos por história da filosofia, como veremos na próxima engrenagem discursiva.
Por fim, a última engrenagem discursiva considerada em nosso estudo fora publicada no ano de 2006, por meio do MEC e da SEMTEC: as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCNEM). As OCNEM/2006 estão compostas por três volumes: Linguagem, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias. No que se refere aos conhecimentos de filosofia, o texto está disposto em seis partes: a primeira trata da identidade da filosofia; a segunda discute os objetivos da filosofia no ensino médio; a terceira explicita as habilidades e as competências a serem trabalhadas no ensino da filosofia no ensino médio e a quarta parte discute a metodologia do ensino da filosofia.
É preciso destacar a centralidade que as OCNEM/2006 dão à história da filosofia e sua importância no ensino médio. Com referência à história da filosofia, as OCNEM/2006 (BRASIL, 2006, p. 27) destacam que:
É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. [grifo nosso].
Ainda que o texto enfatize a centralidade da história da filosofia, ele não indica qual história da filosofia deve ser ensinada. Se nos é permitido pensar que há tantas filosofias quanto filósofos, assim como sugerem as OCNEM/2006, entendemos que o mesmo raciocínio é válido, também, para a história da filosofia, ou seja, para possíveis outras histórias dessa disciplina. No entanto, o que ocorre, a partir dos conteúdos apresentados nas OCNEM/2006, é um exercício de governamento que conduz a uma história da filosofia sustentada em saberes ocidentais eurocentrados, tais como: “filosofia pré-socrática, teoria das ideias em Platão, idealismo alemão”. A respeito de tais temáticas, as OCNEM/2006 ressaltam que:
A sequência de temas acima perpassa a História da Filosofia. Desse conjunto, o professor pode selecionar alguns tópicos para o trabalho em sala de aula. É importante ter em mente que tal elenco propicia uma unidade entre o quadro da formação e o quadro do ensino, desenhando possíveis recortes formadores, agora bem amparados em um novo arranjo institucional. (BRASIL, 2006, p. 35).
Dessa forma, notamos que o modo como se configura a organização discursiva dos saberes da história da filosofia, ou seja, em temáticas eurocentradas, convoca um posicionamento do (a) professor(a) a uma abordagem única da história da filosofia. Desse modo, filosofias latino-americanas, africanas, indígenas, dentre outras, ficam à margem de uma ordem discursiva que se coloca como verdadeira do ensino da filosofia. Compreender outras tradições filosóficas seria e é de grande valia se observado o intento das políticas públicas educacionais, o qual consiste em apostar na transformação dos (as) estudantes em cidadãos(ãs) conhecedores(as) da sua própria história, cultura e sabedoria.
Considerações finais
Ao compartilharmos alguns resultados da nossa pesquisa, buscamos descrever de que maneira o discurso das políticas públicas, para o ensino da filosofia, governa formas de ser professor (a) de filosofia no ensino médio. Com isso, não desconsideramos a existência de tantos outros exercícios de governamento concorrentes entre si, dispersos em diferentes níveis discursivos. Entretanto, a partir dos conceitos desenvolvidos, ao longo da pesquisa, foi possível descrever dois exercícios de poder que não se dissociam: (1) o governamento que se exerce no nível do saber e (2) o posicionamento do/da professor(a) de filosofia, o qual se exerce no nível do enunciado que aborda o ensino da filosofia.
A analítica realizada nos possibilitou descrever a regularidade discursiva do sujeito moderno descrito em sua soberania, autonomia, criticidade e eurocentrismo. O enunciado desse saber moderno eurocêntrico posiciona o professor ou professora de filosofia em uma condição daquele/daquela que produz um estudante consciente e autônomo. Mais do que isso, o enunciado descrito posiciona o professor (a) como quem produz um (a) estudante de filosofia a partir de determinada consciência metodológica, que, por sua vez, garante a capacidade de problematização. Diante da descrição de tal governamento, buscamos tensionar outros caminhos para a filosofia, assim como para o seu ensino, considerando a experiência como possibilidade6.
Dessa maneira, os resultados da pesquisa, nesse texto apresentados, conduzem-nos a outros questionamentos, tais como: se ao professor(a) de filosofia se exerce um governamento desde um discurso de saber moderno, eurocentrado e que se distancia da possibilidade da experiência, como tornar viável um ensino atravessado pela experiência aos moldes que nos propõe Larrosa (2002; 2017)? Dito de outro modo: Como colocar em marcha governamentos para a filosofia e para seu ensino de modo a expor-se ao imprevisível do acontecimento, ou seja, expor-se à imprevisibilidade da experiência? Pensamos que a emergência discursiva de outras concepções filosóficas, para além da filosofia eurocentrada, seriam um convite à imprevisibilidade da experiência.
Por fim, consideramos que essas questões sejam de suma importância para o campo educacional e para o ensino da filosofia em particular, na medida em que convocam outros saberes; convidam outros enunciados; convocam outras posições a serem assumidas, ou não, por professores e professoras de filosofia; convidam saberes e enunciados, que, até então, ficaram ou ficam de fora de uma ordem discursiva dominante e homogeneizadora, que, justamente por ser dominante, produz “saberes marginais”, “saberes marginalizados”. Salientamos as disputas e as nuances produzidas no âmbito discursivo, em que o discurso aparece “como um bem [...] um bem que coloca, por conseguinte, desde sua existência a questão do poder; [...] um bem que é, por natureza, objeto de uma luta, e de uma luta política” (FOUCAULT, 2012, p. 147-148).
Nesse sentido, a filosofia africana e a filosofia afro-brasileira são saberes que se constituem nesse registro de “saber periférico”. Essas filosofias, a partir da Lei nº 10.639/2003, tem sua entrada lenta e gradual no discurso educacional e do ensino da filosofia resultante de luta política. Tais saberes se abrem, ao nosso ver, para uma possível experiência para com a filosofia e seu ensino para além, ou aquém, de um registro de saber moderno. O registro dos “saberes periféricos” diz de uma insurreição dos saberes, ou seja, de uma insurreição dos saberes contra os efeitos de poder centralizadores, que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico organizado. Diante do exposto, cabe-nos perseguir, em outros projetos, questões que versem sobre: como conservar a potência dos saberes insurgentes diante do instituído?