Introdução
O artigo desvela o movimento e os efeitos da política de valorização remuneratória dos professores da rede municipal de ensino de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, no contexto de implantação do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN), aprovado pela Lei n. 11.738/2008. (BRASIL, 2008).
O processo de implantação dos direitos docentes decorrentes da aprovação dessa Lei, em contexto federativo, tem sido desigual desde 2008, e foi fortemente judicializado por governadores estaduais. O resultado final da contenda jurídica deu-se somente em 2020, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), com ganho de causa aos professores da educação básica de todo o país (FERNANDES; BASSI; ROLIM, 2022).
Entre a aprovação da Lei n. 11.738/2008 e a decisão definitiva do STF sobre a constitucionalidade da reserva de um terço da carga horária para atividades extraclasse (BRASIL, 2008, 2020), em cada unidade federativa, a depender do grau de organicidade e organização dos professores e do apoio de setores da sociedade, a luta, os movimentos reivindicatórios, as denúncias e as manifestações docentes tentam garantir os direitos estabelecidos, principalmente em relação ao pagamento do PSPN em início e incidindo na carreira, porque tal fato depende, sobretudo, dos orçamentos disponíveis em prefeituras e estados.
É fato que, até então, como informa o Relatório do Quarto Ciclo de Monitoramento das Metas do Plano Nacional de Educação (BRASIL, 2022), a Meta 17, que dispôs sobre a equivalência salarial entre o magistério e demais profissionais com mesma formação e jornada de trabalho para o ano de 2020, encontrou-se, em 2021, ainda distante, sem ser cumprida: enquanto o salário bruto dos demais profissionais foi de R$ 5.175,31, o do magistério foi de R$ 4.271,03, equivalendo a 82,5% do primeiro, na média nacional. O mesmo Relatório explicita, também, que “o crescimento do Indicador 17A2, nesse período, deve-se, em grande parte, ao decréscimo do rendimento bruto médio mensal dos demais profissionais, que correspondeu a uma perda real de 16,0% do seu poder de compra efetivo ao longo dos anos analisados entre 2016 A 2021”. (BRASIL, 2022, p. 372).
No contexto federativo brasileiro, de alto grau de descentralização da política educacional, de múltiplos sistemas de ensino e de orçamentos desiguais disponíveis para a remuneração docente, este texto expõe a inovação produzida pelos professores da rede municipal de ensino de Campo Grande, organizados, no movimento sindical, pela Associação Campo-Grandense dos Profissionais da Educação Pública (ACP)3, pela implantação do PSPN para 20 horas em nível local.
A Lei 11.738/2008 dispôs o PSPN para o professor formado em nível médio, com jornada de 40 horas semanais (BRASIL, 2008). No caso do município de Campo Grande, tanto os concursos quanto os contratos temporários para o cargo de professor são normatizados para a jornada de 20 horas, ainda que conste, nos Planos de Cargos, Carreira e Remuneração (PCCR), a jornada de 40 horas semanais (CAMPO GRANDE, 2012). Aqui se encontra a justificativa da categoria docente para o pleito inovador do pagamento do PSPN pela jornada de 20 horas semanais.
Além da introdução, o artigo discute a interseção da política nacional com a local, no contexto federativo brasileiro, sobre a remuneração docente; na sequência, aborda a mediação sindical entre o Poder Executivo Municipal e a categoria laboral docente para a materialidade dos seus direitos; na seção seguinte, endereça o processo educativo da greve para a categoria e a sociedade; por último, tece as consideração finais. Trabalhou-se com a legislação e documentos educacionais de âmbitos federal e local, material da imprensa, documentos e imprensa do movimento sindical docente.
Do nacional ao local: a interseção da política de valorização remuneratória federal com a municipal
No município de Campo Grande, a aprovação da Lei 11.738/2008 (BRASIL, 2008) teve assunção tardia por parte do Poder Executivo Municipal, que se utilizou da judicialização promovida por governadores estaduais para prorrogar a implantação dos direitos docentes dispostos pela lei federal. Assim, somente em 2012, na conjuntura político-eleitoral da eleição para prefeito, o Poder Executivo Municipal aprovou a Lei n. 5.060/2012 (CAMPO GRANDE, 2012). A negociação para o pagamento, principalmente do PSPN, iniciou em nível estadual, quando a Federação dos Trabalhadores em Educação de Mato Grosso do Sul (FETEMS) e o governo estadual selaram o “Pacto de Valorização dos Trabalhadores em Educação e Modernização do Estatuto dos Profissionais da Educação Pública de Mato Grosso do Sul” (FEDERAÇÃO DOS TRABALHADORES EM EDUCAÇÃO DE MATO GROSSO DO SUL, 2012, p. 01). Tal Pacto deu-se com o mesmo governador4 que impetrou a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) 4.167/2008 e que alegou, na peça jurídica, quebra de autonomia federativa pelo governo federal, ao aprovar a Lei 11.738/2008 (BRASIL, 2008). Devido à estrutura e à organização sindical dos trabalhadores em educação no estado, pois a Federação congrega todos os sindicatos municipais onde estão filiados professores e trabalhadores em educação das redes públicas estaduais e municipais, o Pacto conciliado entre o governo do estado e a FETEMS teve repercussão e orientou as negociações em âmbito municipal, com vistas ao pagamento do PSPN e à implantação da jornada de trabalho de 1/3 extraclasse.
Com a assinatura do Pacto, o governador5 tratou de tentar angariar apoio político do magistério e demais trabalhadores para o seu candidato no munícipio de Campo Grande. Para a FETEMS, foi a oportunidade de materializar, no estado e nos seus municípios, a ampliação de direitos docentes, mediante a aplicação da Lei Federal. (FERNANDES; FERNANDES, 2016).
Foi nessa conjuntura que, no município de Campo Grande, o magistério pleiteou sua inovação: uma proposta de Piso Salarial para 20 horas, que inserisse o reajuste definido pelo PSPN nacional, que era para 40 horas e formação de ensino médio. As solicitações da categoria obtiveram êxito com a aprovação da Lei municipal n. 5.060, de 03 de abril 2012 (CAMPO GRANDE, 2012). Essa Lei determinou, em seu artigo 4º, que o vencimento do profissional do magistério do nível I (formação em nível médio), classe A (início de carreira), com carga horária de 20 horas semanais, seria equiparado ao piso salarial nacional, conforme o artigo 2º da Lei Federal, e que deveria ser pago no ano letivo de 20136. (CAMPO GRANDE, 2012; BRASIL 2008).
O Prefeito Alcides Bernal, do Partido Popular (PP), assumiu o executivo municipal da capital do estado em janeiro de 2013. Sob a sua responsabilidade, estaria o orçamento deixado pelo prefeito anterior, mediante a aprovação da Lei n. 5.060/2012, que faria a interseção da Lei Federal com a municipal, para o pagamento do PSPN aos docentes (CAMPO GRANDE, 2012). O prefeito preferiu retomar as negociações com o movimento sindical de professores e aprovar nova Lei para a matéria, substituindo a Lei n. 5.060/2012 pela de n. 5.189/2014 (CAMPO GRANDE, 2012; 2014), dispondo a revisão geral da remuneração dos servidores do poder executivo, escalonando para outubro de 2014 o pagamento da integralização do Piso para 20 horas, conforme o artigo 2º:
Art. 2º Os vencimentos dos cargos de Professor e de Especialista de Educação serão reajustados, com incidência sobre os valores vigentes em abril de 2013, a partir de:
I - 1º de maio de 2013, em 8% (oito por cento), que corresponde a 82% (oitenta e dois por cento) do valor do piso nacional;
II - 1º de outubro de 2013, corresponderá a 84,40% (oitenta e quatro vírgula quarenta por cento) do valor do piso nacional;
III - 1º de maio de 2014, corresponderá a 92,20% (noventa e dois vírgula vinte por cento) do valor do piso nacional;
IV - 1º de outubro de 2014, corresponderá a 100% (cem por cento) do valor do piso nacional. (CAMPO GRANDE, 2013).
Além de protelar mais uma vez, em nível local, os efeitos das decisões de âmbito federal de ampliação dos direitos docentes, a aprovação da Lei n. 5.189/2014 ainda não garantiu os reajustes estabelecidos na própria Lei (CAMPO GRANDE, 2014). A situação construída pelo Poder Executivo Municipal em torno da questão remuneratória protelada foi acirrando as tensões na esfera sindical. Para agravar ainda mais a conjuntura, o Prefeito Alcides Bernal sofreu um processo de impeachment e foi cassado pela Câmara Municipal em 12 de maio de 2014 (DA MATA, 2014).
Segundo nota veiculada pela ACP (2014), houve diversas mobilizações por parte do Sindicato para que o diálogo com o poder legislativo e o poder executivo, agora sob o comando do Vice-Prefeito Gilmar Olarte (PP), ocorresse e o piso local fosse equiparado ao piso nacional, como dispôs a Lei municipal n. 5.189/2013 (CAMPO GRANDE, 2013).
Sem resposta positiva às solicitações pleiteadas pela categoria, os professores decidiram pela greve, deflagrada em 06 de novembro de 2014, que foi encerrada no dia 19 de novembro, devido a pressões e sanções por parte do poder executivo. Entre as ações, ganhou destaque uma ação de tutela antecipada, que exigia que 80% dos docentes voltassem ao trabalho, além do ajuizamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a Câmara de Vereadores, pedindo a suspensão e a inconstitucionalidade do artigo 2º da Lei municipal n. 5.189/2013 (ACP, 2016).
Uma nova proposta do Poder Executivo Municipal foi, então, encaminhada aos dirigentes sindicais e à categoria, para que o valor de integralização do PSPN para 20 horas semanais fosse parcelado durante os quatro meses subsequentes. A proposta foi aceita pela categoria e sancionada em lei aprovada pela Câmara dos Vereadores no dia 04 de dezembro de 2014. Assim, o arcabouço jurídico-legal construído até então foi novamente substituído, agora pela Lei Municipal n. 5.411/2014, protelando, mais uma vez, a integralização do pagamento do PSPN local para março de 2015. (CAMPO GRANDE, 2014). As principais alterações no tocante à matéria foram:
Art. 1º Altera a redação do inciso IV e acrescenta os incisos V, VI e VII ao art. 2º da Lei n. 5.189, de 24 de maio de 2013, que passam a ser o seguinte:
Art. 2º [...]
IV - 1º de dezembro de 2014, corresponderá a 93,20% (noventa e três vírgula vinte por cento) do valor do piso nacional;
V - 1º de janeiro de 2015, corresponderá a 96% (noventa e seis por cento) do valor do piso nacional;
VI - 1º de fevereiro de 2015, corresponderá a 99% (noventa e nove por cento) do valor do piso nacional;
VII - 1º de março de 2015, corresponderá a 100% (cem por cento) do valor do piso nacional.” (NR)
Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeitos a contar de 1º de dezembro de 2014. (CAMPO GRANDE, 2014).
De acordo com nota publicada pela ACP, até fevereiro de 2015, o município cumpriu os prazos de integralização do PSPN e os docentes chegaram a receber até 96% do valor do piso nacional, conforme a Lei municipal n. 5.411/2014, pela jornada de 20 horas semanais.
Em 2015, o reajuste do PSPN em âmbito nacional foi de 13,01% (BRASIL, 2015). Diante disso, os professores da rede municipal de ensino de Campo Grande precisavam, para integralizar o pagamento do PSPN, do percentual de 4%, além do reajuste nacional. Na negociação entre o Poder Executivo Municipal e a ACP, com a pauta do reajuste do PSPN, a Prefeitura alegou que não teria condições de pagar a integralização e o reajuste do piso, pois poderia ferir a Lei de Responsabilidade Fiscal. Assim, haveria um “[...] comprometimento excessivo do Tesouro com a folha de pagamento”. (ACP, 2015a).
Como não houve acordo entre a categoria representada pelo Sindicato e diante de várias negativas do Poder Executivo Municipal, os docentes do município iniciaram uma série de mobilizações, para que a política salarial regulamentada fosse cumprida.
O Poder Executivo Municipal, no entanto, não atendeu às reivindicações da categoria, dando início a um novo conflito, que culminou na maior greve docente da categoria já realizada no município (a segunda greve da categoria), iniciada em 25 de maio de 2015, com duração de 92 dias.
A principal reivindicação dos profissionais do magistério não era somente o reajuste, mas também o cumprimento da Lei n. 11.738/2008 e da Lei municipal n. 5.411/2014, que garantiriam o pagamento do PSPN para a jornada de trabalho de 20 horas. Segundo o Sindicato, os docentes do município entendiam que era importante cobrar o cumprimento de uma lei elaborada pela Prefeitura e aprovada por unanimidade pelos vereadores de Campo Grande. (ACP, 2015b).
No transcorrer da greve, o executivo municipal acusou a categoria docente de transformar o movimento grevista em movimento político-partidário, contando com a adesão de vereadores opositores ao prefeito. A informação foi contestada pelo Sindicato, que informou que os professores optaram por se manifestar na Câmara Municipal porque a Lei que previa a equiparação do Piso local ao nacional havia sido votada naquela Casa. (MIDIAMAX, 2015a).
A luta dos professores da rede municipal de ensino de Campo Grande pela integralização do piso salarial para 20 horas ainda se encontra no horizonte. A pauta ainda não foi vencida, embora o Poder Legislativo Municipal tenha aprovado legislações tratando da matéria para garantir, na esfera local, a ampliação de direitos promovida em âmbito nacional.
A mediação sindical na relação entre o Poder Executivo Municipal e a categoria laboral
O movimento sindical docente, ao se organizar, ao mesmo tempo em que mantém as características gerais da luta em defesa dos direitos da classe trabalhadora, também detém as singularidades próprias e inerentes ao seu ramo de atividade:
Os docentes são uma entre as grandes categorias profissionais da atualidade. Um segundo argumento para considerar a autonomia do sindicalismo em educação provém da capacidade do pessoal do campo de promover greves e movimentos sociais com o objetivo em favor da própria categoria ou com objetivos em favor do conjunto da sociedade. (DAL ROSSO, 2011, p. 18).
Certamente, quando o movimento sindical docente aspira a objetivos em favor da própria sociedade, demonstra uma de suas singularidades, que é a defesa da qualidade do ensino. Por isso, a pauta da qualidade de ensino no movimento sindical docente está sempre presente, explícita ou implicitamente.
A expansão da educação pública no Brasil ainda é uma tarefa no devir (BRASIL, 2022). A política educacional para materializar o direito à educação encontra-se fortemente descentralizada. As expensas de orçamentos estaduais e municipais, com grandes responsabilidades e competências na esfera municipal, como dispõem a Constituição Federal de 1988 e a legislação infraconstitucional (BRASIL, 1988, 1996), requereram, por parte dos municípios, aumento significativo de contratação da força de trabalho docente, seja por concursos públicos, seja por contratos temporários.
Tal dinâmica federativa também alçou essa força de trabalho a novos patamares de organização sindical em nível municipal. Ainda que a ACP seja uma organização que completa 70 anos de existência em 2022, e que sua trajetória esteja marcada pelo trânsito em modelos de organização definidos pelo Estado (de associação a sindicato a partir de 1988)7, na disputa local pela implantação dos direitos docente instituídos pela Lei n. 11.738/2008 (BRASIL, 2008), na qualidade de entidade representativa dos interesses e demandas dos profissionais da educação, atuou como propositora, condutora e mediadora da greve aqui mencionada e da judicialização da questão. Manteve, assim, uma das características estruturantes, vinculada ao papel mediador na relação entre o capital e a classe trabalhadora (FERRAZ, 2012). Assim:
A circunscrição, portanto, do direito do trabalho como o conjunto de direitos que devem desfrutar os trabalhadores; e do sindicato como ator social legítimo para fazer valer esses direitos, definem um campo de ação política que delimita simbólica e concretamente a classe como efetividade identitária e histórica (FERRAZ, 2012, p. 22-23).
A ACP conduziu um processo que deveria ser exclusivo do Poder Executivo Municipal. Seria esse o Poder a garantir a materialidade da interseção federativa das legislações para a promoção dos direitos docentes, entre eles o pagamento do PSPN e da jornada de trabalho extraclasse.
A omissão e a recusa do Poder Executivo Municipal em fazer a interseção de ampliação de direitos docentes, ainda que com Leis municipais aprovadas, uma se sobrepondo à outra, a cada prefeito eleito, revelam um dos obstáculos ao federalismo cooperativo brasileiro, quando é compreendido como “um equilíbrio de poderes entre a União e os Estados membros, estabelecendo laços de colaboração na distribuição das múltiplas competências por meio de atividades planejadas e articuladas entre si, objetivando fins comuns” (CURY, 2007, p. 115), como é o caso da política educacional, entre outras políticas sociais. De forma que, quando há desequilíbrio nas relações mencionadas por Cury (2007), as políticas sociais com vistas à coordenação das assimetrias regionais ficam comprometidas, como se evidencia no município de Campo Grande, ao tratar da reprodução da força de trabalho docente.
Neste caso em particular, os fatos patentearam que, por um lado, as Leis municipais aprovadas não foram capazes de materializar os direitos docentes; por outro, mostraram quão dura pode ser a disputa pelo orçamento público, entre capital e trabalho.
Foi no contexto de disputa pelo orçamento público que o movimento sindical docente conduziu um processo educativo e a greve assumiu o caráter pedagógico de organização da categoria, uma parcela relevante da classe trabalhadora.
O processo educativo da greve docente na rede municipal de ensino de Campo Grande em 2015
Na luta pelo pagamento integral do PSPN com jornada de trabalho de 20 horas semanais, apesar das leis aprovadas, como já mencionado, a categoria docente da rede municipal de ensino de Campo Grande decidiu pela greve como instrumento de pressão ao Poder Executivo Municipal, por um lado e, por outro, para angariar apoio de setores da sociedade para a causa.
A greve é um direito constitucional da classe trabalhadora. Trata-se de um instrumento tanto de defesa de direitos conquistados, como também de direitos que ainda estão no horizonte do porvir.
Nesse caso em particular, a greve foi utilizada para garantir direitos garantidos na lei, mas não garantidos de fato. O momento histórico da greve e os movimentos criados por ela e contra ela, todavia, constroem processos educativos que revelam tanto as ações do Estado Educador8 que, neste caso, educa para manter o status quo, e que foi representado pelo Poder Executivo Municipal, quanto as ações da direção sindical e de sua base, que indicam outro sentido para a educação, sob a perspectiva da organização coletiva, visando à garantia de direitos trabalhistas e sociais.
Torna-se pedagógico, portanto, no processo de correlação de forças sociais, verificar as ações do Estado Educador em nível local e o ataque aos professores e à sua organização, em busca de manter a hegemonia para a recusa de desconcentrar o orçamento público para essa parcela da classe trabalhadora. Da mesma forma que é pedagógico verificar as tensões, os desafios, os limites e o grau de organicidade e organização produzidos pelos professores durante a condução da greve em 2015.
No transcorrer da greve, o executivo municipal acusou a categoria docente de transformar o movimento grevista em movimento político-partidário, porque contou com o apoio de vereadores que se opunham ao prefeito. Tal fato, que revela as composições político-partidárias, demonstra também disputas por projetos distintos em âmbito local. Mas, sobretudo, foi aquela ação que intentou desqualificar o movimento dos professores que os levou a agir na defensiva. Naquelas circunstâncias, isto foi recorrente, dado que um dos locais de maior presença dos professores durante a greve, como espaço de manifestação e de denúncia, foi a Câmara Municipal, para cobrar a materialidade das Leis aprovadas por aquela casa. (MIDIAMAX, 2015a).
Como também é comum aos municípios brasileiros no processo de correlações de forças sociais, realça-se o apoio da mídia, que se comporta como uma extensão do poder em curso e soa como sua porta-voz. Assim, para desacreditar o movimento grevista, as matérias jornalísticas apuravam, à época, entre outras notícias: “Greve dos professores da Reme atinge menos de 50% das escolas”, e “Pais se desdobram com greve parcial e lamentam danos ao ensino” (CAMPO GRANDE NEWS, 2015), “Professores da Reme têm salários de até R$ 17 mil, explica Prefeitura da Capital” (MIDIAMAX, 2015b). O governo municipal disponibilizou links de acesso e listas aos jornais do município, com os salários somente da categoria docente, com valores fora de contexto, conforme denunciado pela ACP, com a justificativa do acesso da população à Lei de Transparência, em clara tentativa de punir os docentes grevistas.
Além disso, o executivo municipal efetuou demissões e remanejamentos de professores. Em notas, declarou que as manifestações do movimento grevista pela cidade abusavam do direito à greve, pois impediam o trânsito e utilizavam carros de som, autofalantes e apitos, agredindo diretamente os cidadãos, além de o Sindicato ter uma postura intransigente. Pediu que os servidores docentes que ainda mantinham a paralisação voltassem às suas atividades (ACP, 2015c).
O Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) concedeu uma liminar à Prefeitura, para os trabalhadores não fazerem protestos em ruas próximas ao Paço Municipal. Ademais, na liminar, o município pedia que a ACP mantivesse distância de, pelo menos, 200 metros dos prédios públicos. Não poderiam bloquear as vias públicas, promover apitaços, panelaços e nem fazer panfletagens ou fixação de cartazes em vias públicas (G1, 24/08/2015), em claro cerceamento à liberdade de manifestação.
O Sindicato protocolou, no Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul (MPE-MS), duas representações, acusando o Prefeito Gilmar Olarte de improbidade administrativa e por crime de responsabilidade, em decorrência do não cumprimento da Lei Municipal n. 5.411/2014 e da Lei Federal n. 11.738/2008 (CAMPO GRANDE, 2014; BRASIL 2008).
Em 24 de agosto de 2015, após 92 dias de greve, o Sindicato noticiou que a categoria havia deliberado pelo fim da mobilização grevista. Informou, também, que, após a Assembleia da categoria ter feito um balanço do movimento, na ausência de acordo em uma última audiência de conciliação e com a sinalização do TJMS em marcar a data para o julgamento da ação sobre a Lei municipal n. 5.411/2014 (CAMPO GRANDE, 2014), a categoria docente decidiu pelo encerramento da greve.
O término da greve na data foi uma tática para abrir negociações. Em 25 de agosto de 2015, o Prefeito Alcides Bernal, que havia sido cassado em 2014, foi reconduzido ao cargo, trazendo a promessa de abrir diálogo com os professores. Segundo o portal de notícias do Sindicato (2015d), o prefeito reconduzido reuniu-se com os representantes da ACP no dia 10 de dezembro de 2015, porém não apresentou a proposta de cumprimento do percentual de reajuste de 13,01% e manteve o questionamento sobre a legalidade da greve, impetrado pelo prefeito anterior.
No dia 8 de outubro de 2015, o Tribunal de Justiça do estado de Mato Grosso do Sul (TJMS) concluiu o julgamento da ação ajuizada pela Prefeitura Municipal de Campo Grande, que questionava a legalidade da greve, e do pedido de reconvenção encaminhado pelo Sindicato, cobrando da Prefeitura o cumprimento da Lei municipal n. 5.411/2014. A decisão do Tribunal, por 8 votos a 3, foi de manter a multa sindical e a ilegalidade da greve.
Nessas disputas, em que a luta deixa de ser a luta política e passa também a ser jurídica, segundo Rafahim (2012), a relação entre o poder judiciário e os sindicatos pode ser de via dupla. Ao mesmo tempo em que esse poder tem a capacidade de dirimir as tensões no campo jurídico, faz parte do Estado Educador - e uma das suas funções é manter o status quo da classe trabalhadora.
O dia do julgamento da ação foi marcado por tensões, pois o TJMS barrou a entrada dos professores e permitiu que apenas 20 representantes da categoria assistissem ao julgamento,
Por meio da assessoria de imprensa, o Tribunal de Justiça confirmou a restrição no acesso ao plenário. A corte justificou a medida porque houve tumulto no primeiro julgamento, quando os desembargadores já manifestavam-se favoráveis à prefeitura ( BITENCOURT; CAMPOS JR, 2015, s/p).
Nove meses após o final da greve de 92 dias, em maio de 2016, foi assinado um Termo de Acordo Administrativo (TAA) entre a Prefeitura Municipal de Campo Grande e a ACP, pois o conflito ainda não havia sido solucionado e nem havia avanços nas reivindicações dos docentes. Diante disso, ocorreu a terceira paralisação dos professores, por um período de nove dias.
Para dirimir o conflito, os Termos de Acordos indicavam a aplicação de 3,31% de reajuste, que deveria ocorrer retroativo a 1º de maio de 2016 ao vencimento do nível 1 (formação magistério) em início de carreira, para 20 horas, conforme o artigo 7º da Lei municipal n. 5.189/2013 (CAMPO GRANDE, 2013), o que equivaleria ao percentual de 82,11% do PSPN (ACP, 2016). Os Termos registravam, ainda, que até a primeira quinzena de fevereiro de 2017 deveria ocorrer a revisão dos vencimentos, conforme havia sido prevista a integralização, primeiro para 2014 e, posteriormente, para 2015.
Segundo a ACP (2016), na prática, o acordo previa que a integralização da equiparação do piso municipal do magistério ao PSPN nacional, já acrescido dos reajustes nacionais de 2015 (13,1%) e de 2016 (11,36%), somente seriam definidos em proposta a ser divulgada até a primeira quinzena de 2017. Como se tratava do último ano do mandato do Prefeito Alcides Bernal, o acordo da integralização foi postergado para a nova administração, que assumiria em 2017.
Em 2017, assumiu a Prefeitura de Campo Grande o Prefeito Marcos Marcello Trad, eleito pelo Partido Social Democrata (PSD). A integralização do PSPN municipal estava disposta pela Lei municipal n. 6.026/2018, no artigo 1º, inciso III: o município daria 1% de reajuste no vencimento base de abril de 2018, “[...] como forma de iniciar o fiel cumprimento da Lei n. 5.411/2014” (CAMPO GRANDE, 2018).
Em 2022, a Lei municipal n. 6.796/2022 foi sancionada pelo prefeito, alterando a redação do art. 1º da Lei n. 5.411/2014, dispondo sobre a nova integralização do Piso. No novo cronograma, o piso para 20 horas será integralizado em 2024:
Art. 2º A previsão contida no artigo 4º da Lei n. 5.060/2012, de que o valor do vencimento do nível 1, classe A, carga horária de 20 horas semanais do magistério municipal, corresponderá ao valor do piso salarial nacional para os profissionais do magistério público, de que trata o art. 2° da Lei Federal n. 11.738/2008, será integralizada de forma escalonada nos seguintes termos, e atendendo aos artigos 16 e 17 da Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000:
I - em abril de 2022 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas, será equivalente à 57,84% do valor PISO NACIONAL.
II - em novembro de 2022 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 63,85% do valor PISO NACIONAL.
III - em dezembro de 2022 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 66,91% do valor PISO NACIONAL.
IV - em Maio de 2023 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 73,98% do valor do PISO NACIONAL.
V - em outubro de 2023 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 81,80% do valor do PISO NACIONAL.
VI- em maio de 2024 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 90,44% do PISO NACIONAL.
VII - em outubro de 2024 o vencimento base do NÍVEL 1-CLASSE A-20 horas será equivalente à 100% do valor do PISO NACIONAL”. (CAMPO GRANDE, 2022).
O quadro a seguir mostra as leis e as normas aprovadas sobre a matéria, entre os anos de 2012 e 2022, e as sucessivas prorrogações dos prazos, de acordo com as diferentes negociações produzidas pelos diferentes prefeitos que assumiram o executivo no período em tela.
Documentos | Prazo para a Integralização 100% | Origem do Documento |
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Lei n. 5.060/2012 | Ano letivo de 2013 | Executivo Municipal |
Lei n. 5.189/2013 | Outubro de 2014 | Câmara Municipal |
Lei n. 5.411/2014 | Março de 2015 | Executivo Municipal |
Termo de Acordo Administrativo (TAA)- 2016 | Concede 3,31% de reajuste e posterga para a primeira quinzena de 2017 nova Lei para a integralização | Executivo Municipal e ACP |
Lei n. 6.026/2018 | Concede 1% de reajuste em dezembro de 2018 para iniciar o fiel cumprimento da Lei n. 5.411/2014 | Executivo Municipal |
Lei n. 6.796/2022 | Outubro de 2024 | Executivo Municipal |
FONTE: Elaborado pelas autoras a partir das Leis: n. 5.060/2012; n.5.189/2013; n.5.411/2014; n. 6026/2018 e n. 6796/2022. Termo de Acordo Administrativo 11/03/2016 (CAMPO GRANDE, 2012; 2013; 2014; 2016; 2018; 2022).
No ano de 2022, foi integralizado para 20 horas o percentual de 57,84% do piso nacional. No início da luta pela integralização, em 2013, o percentual seria de 100% em 2014, conforme previsto em lei. No início de 2015, a integralização correspondeu a 96% do Piso nacional. No entanto, conforme já informado, com os reajustes anuais do PSPN, encontra-se no horizonte a integralização para 2024, caso não haja novos desdobramentos.
Considerações Finais
O artigo desvela, em processo de correlações de forças sociais, marchas e contramarchas da categoria docente do município de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, organizadas pelo movimento sindical e representadas pela ACP, na disputa pela materialidade dos direitos instituídos pela Lei Federal 11.738/2008 (BRASIL, 2008).
A categoria laboral e seu sindicato introduziram, no contexto local, uma inovação, que foi a demanda pelo pagamento do PSPN para a jornada de trabalho de 20 horas semanais.
O Poder Executivo Municipal, ao longo dos anos aqui registrados, utilizou-se de contenda federativa criada por govenadores estaduais para judicializar direitos constantes na Lei Federal, para protelar o pagamento do PSPN, promovendo uma “fuga para a frente” (FIORI, 2003, p. 46), em âmbito local.
Assim, os docentes formados em nível superior, que é a formação da força de trabalho no município9, que não obtiveram o pagamento do PSPN pela jornada de trabalho de 40 horas semanais, colocaram-se em marcha também pelo pagamento do PSPN para 20 horas semanais. Ao mesmo tempo em que tentavam ampliar seus direitos, disputavam também, no município, seu fundo público com o Poder Legislativo Municipal.
Em conjuntura política conturbada no município, com Chefias do Poder Executivo Municipal que aproveitaram o último ano de mandato para aprovar Lei local referente à matéria,
a mandato cassado, as Leis locais, para fazer a interseção com a Lei Federal, foram sendo aprovadas e se sobrepondo umas às outras, sem, contudo, materializar os direitos docentes, sobretudo quanto ao pagamento do PSPN e à garantia da jornada de trabalho extraclasse.
O movimento sindical docente, entre manifestações, denúncias e paralisações coordenadas por períodos previamente informados com início e fim, decidiu pela greve por tempo indeterminado, como uma das possibilidades de materializar direitos conquistados na esfera federal, mas que dependem, sobretudo, dos orçamentos municipais disponíveis.
A greve, ao mesmo tempo em que demonstrou o grau de organicidade e disposição para a luta dos professores, mostrou também como atua o Estado Educador em nível local, para educar pelo status quo, utilizando-se, inclusive, da imprensa, para reforçar o espectro ideológico, a fim de desmoralizar o movimento paredista docente, colocando a sociedade contra o movimento. Por seu turno, o movimento sindical docente cumpriu, também, uma função educativa contra-hegemônica, ao manter os professores na maior greve da categoria em todos os tempos. Ainda assim, o êxito de ter, em nível local, a interseção com a Lei Federal para o pagamento do PSPN, tanto para a jornada de trabalho de 40 horas como para a de 20 horas, permanece no horizonte do porvir. Os valores têm sido pagos de forma escalonada, sem ainda atingir a totalidade, para os professores do município, principalmente para aqueles formados em nível superior. De forma que não se paga o PSPN de forma integral no início, e nem incide na carreira docente.
Tal fato promove fissuras no federalismo brasileiro, porque tais ações na esfera do poder local diluem sua capacidade cooperativa. As políticas sociais, neste caso, as condições materiais de existência docente, perdem a sua capacidade de serem políticas de coordenação federativa, com vistas à redução de desigualdades regionais.