Iniciando
“Em História, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira” (CERTEAU, 2002, p. 81).
A epígrafe de abertura escrita por Certeau (2002) inspira na escrita desse texto que objetiva apresentar o dossiê Processos Migratórios e História da Educação em perspectiva transnacional. A inspiração nos traz a possibilidade de refletir sobre as dimensões entre a História das Migrações e a História da Educação com a emergência de novos e diferenciados objetos investigativos, abordagens distintas ao tema da História da Educação, bem como a possibilidade de diálogos interdisciplinares que iluminem análises com referenciais teórico-metodológicos rigorosos. A complexidade dos processos humanos que envolvem os processos migratórios relacionados com a Educação é relevante em países como o Brasil, amplamente marcados em sua história com migrações. Reconhecemos que ao longo de diferentes tempos e espaços, os seres humanos migraram e ao fazê-lo vivenciaram a intensidade de aprendizagens vinculadas à língua, aos modos de vida e nas formas de significar, conviver e organizar a própria existência mediante diferentes culturas. Migrar como promessa, escolha ou refúgio produziu aprendizagens e, no confronto com o outro, novos modos de ser, compreender e (sobre)viver.
Desse modo, o presente dossiê reúne artigos que resultam de investigações mais amplas que miram os deslocamentos de diferentes grupos humanos, atentando para os processos educativos vividos e suas formas em perspectiva transnacional, pois investigam a complexidade da história dos processos educativos, formativos, dos processos escolares e das culturas escolares capazes de iluminar dimensões geralmente inexploradas nas relações entre migrações e educação no Brasil e América Latina. São textos que produzem uma história que se move em diversas grandezas de escala para verificar a presença de circulação transnacional de ideias, movimentos, experiências de caráter pedagógico e escolar, culturas materiais e práticas que produzem conotações de múltiplas formas de educação de migrantes no ultramar.
Não podemos deixar de considerar que, como observou o historiador italiano Emilio Franzina, a pesquisa histórica sobre migrações internacionais ocupa um lugar de destaque na produção de ensaios literários, cinematográficos e musicais (FRANZINA, 2015; 2022). No entanto, as pesquisas parecem menos precisas quando o ângulo de investigação se move para questões que vinculam migrações e processos educacionais. Mesmo neste aspecto, no entanto, podemos ver um aumento interessante nas contribuições na última década, o que nos mobilizou a organizar o presente dossiê, também com o desejo de sensibilizar outros pesquisadores para o conjunto de documentos e possibilidades de objetos, de abordagens possíveis e que venham a complexificar o que conhecemos sobre a história da educação entrelaçada com aquela dos processos migratórios.
Os sinais do relançamento do interesse dos historiadores da educação nos processos educacionais dos contextos de emigração/imigração são diferentes e suas raízes estão fundadas no quadro da renovação mais ampla que caracterizou a disciplina nas últimas décadas, cada vez mais orientada para uma História social e cultural da educação. Para a investigação na História da Educação é fundamental a constituição de corpus documentais. Podemos então questionar: Quais documentos temos elegido para a pesquisa que desenvolvemos? Como organizamos e interpelamos esses documentos com as questões de pesquisa? Pensamos com Certeau (2002) que “fazer História” é uma prática e por entendê-la assim, consideramos que as investigações ganham contornos distintos quando historiadores com formações e tradições peculiares e, ao mesmo tempo, distintas, elegem um mesmo objeto de análise, a educação entre imigrantes e descendentes numa perspectiva transnacional.
O convite para olhar além das fronteiras nacionais não significa abandonar dimensões e dinâmicas nacionais ou mesmo locais de análise, mas colocar a nação e os fenômenos sociais que as caracterizaram, como a migração e a educação, em um quadro mais amplo, de interconexões. No caso da História da Educação, como indicou Lawn (2014) há dificuldade de superar essa visão nacional, pois está ligada à condição de ‘nacionalismo metodológico’ que acompanhou o trabalho de pesquisadores das ciências sociais. Considerar a educação escolar e a não-escolar vivenciada por sujeitos que migraram, saídos de diferentes países e estabelecidos, em especial, no Brasil e América Latina, perscrutando os movimentos humanos em recortes geracionais, de gênero e de classe social, associado ao étnico-racial torna-se potente. No caso da História da Educação brasileira, há diversas singularidades, a exemplo de escolas criadas e mantidas por grupos de imigrantes, como italianos, alemães, japoneses, poloneses, entre outros. Nessas situações, os processos educativos são marcados por nuances étnicos, que repercutem nas identidades, pois esses sujeitos carregam consigo entre o lá e o aqui, as experiências vivenciadas. Seus processos identitários são forjados entre as experiências e modos de pensar e viver de um país para outro. Tornam-se outros.
Na investigação da história da educação, com atenção para as escolas de imigrantes e descendentes consideramos que os (e/i)migrantes em terras estrangeiras são constituídos pelos contatos, pelas apropriações de novas culturas e práticas. Seus processos identitários são forjados entre as experiências e modos de pensar e viver de um país para outro. Eles não se mantêm como saíram. Tornam-se outros. Sujeitos híbridos em seus processos identitários, que recriam as tradições, adaptando-se e reinventando modos de viver, em meio a jogos de poder. E investigar a complexidade desse processo educativo e cultural exige que os historiadores atentem para a diversidade documental e para além do que foi preservado no contorno das fronteiras nacionais (LUCHESE et al., 2021).
Entendemos que ao migrar, entre o final do século XIX e primeiras décadas do século XX, uma das épocas marcantes das migrações transoceânicas, por exemplo, aqueles sujeitos promoveram transferências culturais (Espagne, 2017), pois ao contatarem outros grupos sociais precisaram negociar sentidos, modos de vida e de pensamento. No aprofundamento historiográfico, pensamos no conjunto de corpus documentais mobilizados para adensar a narrativa histórica sobre tal objeto. E é no movimento de aprofundamento e sinalização a amplitude e diversidade de possibilidades investigativas que se fundamenta o conjunto de artigos presentes no dossiê Processos migratórios e história da educação em perspectiva transnacional.
Histórias de processos educativos e migrações, pontuando algumas possibilidades teórico-metodológicas
Sabemos que as escolas de imigrantes foram organizadas a partir da ausência de um sistema escolar público no Brasil, ou seja, como resposta a uma necessidade das famílias de migrantes, de um lado. De outro, como decorrência - em muitos casos - das políticas externas de acompanhamento dos emigrados por parte de alguns países, ou mesmo de instituições religiosas. As formas de organização dessas escolas variaram no tempo e no espaço e perseguir os indícios que foram preservados para compreender essas histórias é possível considerando-se uma diversificação da base documental constituída por documentos preservados em acervos variados. Não é demais lembrar com Chartier que (2012, p. 168) “o ponto fundamental é encontrar, construir um objeto histórico, se possível um que ainda não tenha sido realmente analisado ou, se foi analisá-lo de forma diferente, ou seja, mobilizar recursos, a começar pelas fontes e pelas abordagens que permitam explicá-lo”.
Na delimitação de objetos que tomem em consideração as relações ente migrações e história da educação, importante considerar a ponderação proposta por Burke (2017, p. 18):
Transplantar-se da terra natal para o que seria conveniente chamar de “terra acolhedora” envolve o trauma do deslocamento e a ruptura na carreira, sensações de insegurança, isolamento e nostalgia, além de problemas práticos, como desemprego, pobreza, dificuldades com o idioma estrangeiro, conflitos com outros exilados e com algumas das pessoas do local (pois o medo e o ódio contra os imigrantes não são novidade) [...]. O choque do exílio também inclui a perda da antiga identidade individual.
Consideramos que os documentos podem ser pensados como registros das práticas culturais humanas no tempo e que “traduzem em atos, as maneiras plurais como os homens dão significação ao mundo que é o seu” (CHARTIER, 2004, p. 18). Assim, na diversidade de tipologias documentais, compreendemos que “os objetos e as imagens, as escritas e as vozes, todos os testemunhos que transmitem o legado do passado da educação são materiais semióticos, que emitem sinais e simbologias, construindo solidariedade entre os praticantes do ofício e entre as gerações de cidadãos que os utilizaram” (ESCOLANO BENITO, 2017, p. 275-276).
Para Hartog (2017, p. 15) são os humanos que contribuem para o fazer “uma história que por certo lhe escapa, mas que não por isso precisa menos de seu concurso para realizar. E, no fundo, quanto mais ele sabe disso, melhor ele a faz, pois assim está devidamente advertido de seus limites e de suas ignorâncias”. Nesse sentido, compreendemos os muitos limites que existem, independentemente dos esforços invitados na pesquisa histórico-educacional que realizamos, a despeito das potencialidades e inúmeras possibilidades analíticas. Quando se trata de pensar a relação entre migrações e educação, como situa Demartini (2004, p. 221), “os significados atribuídos à escola e ao conhecimento escolar pelos diversos grupos que vieram a compor a sociedade brasileira nem sempre foram os mesmos e, também, variaram ao longo da história”. Assim, a teia de significados da experiência migratória em interface com a educação pode ter sido bem distinta.
Consideramos que os contatos, as trocas culturais e a convivência com outros grupos étnico-culturais produziram dinâmicas e apropriações de novas culturas e práticas. Por fim, pensamos que o encontro da história da educação com a história dos processos de migração abre novas oportunidades no contexto da pesquisa histórico-educativa, permitindo elaborar noções ampliadas dos processos singulares de educação e, também, de escolarização. Podemos questionar: quais formas/tipologias escolares emergiram e com que culturas? As escolas de imigrantes tinham marcas étnicas? Quais? Como foram produzidas? Que relações estabeleceram com as culturas nacionais? E com o país de origem - existiram interlocuções? Como as atividades escolares e não-escolares fomentaram a manutenção de vínculos com a Pátria-Mãe? E com a Pátria de adoção? Que outras agências educativas? Também com marcadores de pertencimento étnico? Ao pensar nas experiências migratórias e as ressonâncias profundas produzidas nos indivíduos, como pensar a dimensão educacional? Em pesquisas anteriores já produzidas pelos organizadores do presente dossiê, em diálogo entre Brasil e Itália, mobilizamos importantes interlocuções acerca do tema que demandam aprofundamentos, novas análises e possibilidades investigativas e que desejamos adensar e alargar, pensando em outros grupos étnicos e indo além dos limites nacionais.
São inúmeras as fontes que o historiador da educação pode mobilizar para buscar as evidências, localizar os indícios que lhes são significativos em sua investigação, bem como os locais em que os acessa (BARAUSSE, 2022). Podemos mencionar, considerando o conjunto documental que temos mobilizado e que partilhamos para pensar a história da educação e migrações:
a) Documentos arquivísticos preservados em espaços públicos nacionais, estaduais ou municipais em que localizamos livros de atas, relatórios de cônsules, de inspetores escolares, de autoridades políticas, correspondências diversas. Alguns deles preservam também Livros de atas de Associações, em especial as de Mútuo Socorro. Também as hemerotecas com jornais, revistas e ou impressos pedagógicos que tratavam ou noticiavam temas relacionados à pesquisa. Tais documentos, como mostram alguns dos artigos mobilizados nos artigos do presente dossiê podem constituir, ao mesmo tempo, fonte e objeto da investigação.
a) Documentos provenientes de acervos mantidos nas instituições escolares ou arquivadas em espaços públicos em que localizamos documentos como cadernos escolares, diários de professores, livros didáticos, fotografias, correspondências, registros escolares de um modo geral.
a) Bancos de Memória com acervos de história oral ou a realização de entrevistas são outro caminho potente para a investigação.
a) Não podemos deixar de considerar os importantes acervos familiares ou pessoais com diários, cadernos, cartas, fotografias, livros escolares, objetos...
a) Ainda documentos como Livro de Tombo, cartas, relatórios, publicações e outros documentos vinculados a acervos religiosos, como aqueles mantidos nas paróquias pela Igreja Católica e/ou por Congregações. Também todo o conjunto documental produzido e arquivado em diferentes instituições religiosas.
a) Documentos oficiais produzidos por governos. No caso específico do italiano, podemos mencionar as fontes estatísticas apresentadas nos Anuários das escolas italianas no exterior, que são uma possibilidade de vislumbrar mapas estatísticos da escolarização entre essas comunidades. Ou os boletins oficiais publicados pelo Ministério das Relações Externas são riquezas documentais para a História da Educação. Ainda, para outros grupos étnicos, a busca por documentos enviados para o país de saída e que incluem correspondências, relatórios consultares e telegramas, por exemplo.
a) Documentos produzidos por viajantes como jornalistas, intelectuais, políticos e outros que, provenientes de diferentes países que percorreram o país de acolhida, a exemplo do Brasil e que em seus relatos, publicados ou não, permitem entrever muitas possibilidades para pensar a educação.
O cruzamento e uso de fontes documentais de diferentes tipologias tem propiciado colocar em evidência o processo de construção de uma memória coletiva. O acréscimo das contribuições de biografias, autobiografias e narrativas memorialísticas representa enriquecimento para a narrativa da história da educação entrecruzada com processos migratórios. Este tipo de documentos de ‘ego-história’ como referiu Vinão Frago (2005) há alguns anos, permite aproximar o historiador das representações cotidianas vividas e registradas por diferentes sujeitos. Certamente, o aprofundamento investigativo e uso de um repertório documental mais rico, permite perceber a diversidade de formas de organizar a escola entre os grupos de e/imigrantes, bem como a coexistência de propostas semelhantes, mas não necessariamente iguais de escolarização, o que é possível perceber também no conjunto de artigos presentes no dossiê.
O artigo que abre o dossiê, de autoria de Michela D’ Alessio é intitulado A “Dante” para a “perene italianidade” dos emigrantes no exterior. O trabalho da “Comissão de livros” desde a primeira década do século XX até à ascensão do fascismo. Mobilizando fontes documentais diversificadas a “Dante” é colocada em evidência, analisando a difusão de livros gratuitos para os emigrantes italianos e as ações relacionadas à abertura e manutenção de escolas no exterior, bem como o desejo de difundir a língua e a cultura italiana, uma busca por evitar a ‘desnacionalização’ dos expatriados. O artigo atenta ao movimento de circulação transnacional dos livros italianos considerados um instrumento de proteção e integração dos emigrados da península itálica, bem como perscruta a associação Dante Alighieri e suas relações com outras instituições e órgãos governamentais italianos, com editoras e outras associações, sinaliza para a organização de bibliotecas a bordo de navios a vapor, a distribuição de milhares de livros nos diversos países aos emigrados, todas estratégias de manutenção dos vínculos com a Pátria-Mãe, a Itália.
Xosé Manuel Malheiro-Gutiérrez escreve Caciques and repression facing the secular model of the schools founded from America by the Galician emigration (1923-1936). No ensejo das migrações de massa do final do século XIX e as primeiras décadas do XX, Xosé mapeia a migração de galegos e galegas que se deslocaram para regiões da América situando o movimento migratório, caracterizando-o e, em especial, focando no trabalho das sociedades de instrução, membros da Federação das Sociedades Galegas, Agrícolas e Culturais de Buenos Aires (Argentina). Analisa a repressão e de que foram vítimas os promotores dos projetos de escolarização bem como os professores, alunos e respectivas famílias. No contexto da Argentina, mas em diálogo transnacional com a Itália, o artigo “L’Educatore”: uma revista semanal educativo entre didáctica, política y estrategias institucionales del asociacionismo italiano en Buenos Aires (1880) escrito por Paula Alejandra Serrao e Paolo Bianchini analisa um periódico publicado no ano de 1880 em Buenos Aires. Um periódico que veio a lume a partir do trabalho de dois professores italianos Pietro Bertazzoni e Lorenzo Fazio. A análise das estratégias dos docentes em relação ao bilinguismo, ao currículo e mesmo ao posicionamento republicano e laico expresso nas publicações das nove edições investigadas, permite pensar as conexões entre a educação em dois contextos, aquele da Itália e o da Argentina entre o final do século XIX e início do XX.
O quarto artigo, de autoria de Cláudia Panizzolo está intitulado Piccolo Mondo de Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni: um estudo sobre a produção, circulação, materialidade e conteúdo (1901-1938). A autora parte da análise de duas autoras italianas, Fanny Romagnoli e Silvia Albertoni buscando compreender a produção e a circulação dos livros de leitura Piccolo Mondo, aprovados para serem adotados nas escolas elementares da Península e escolas italianas no Brasil no início do século XX. Panizzolo analisa em detalhes a obra intitulada Sillabario, operando com a categoria transnacional ao pensar na circulação das obras entre Itália e Brasil. E como refere a autora, pelas obras do Piccolo Mondo se constituiu um projeto de um ‘novo homem’, cidadão integrante de um Estado em busca da modernidade.
O Método de Castilho nas Páginas da “Revista Da Instrução Pública Para Portugal e Brasil” (1857-1858) escrito por Cesar Castro e Carlota Boto analisa o referido método na Revista da Instrução para Portugal e Brasil, que foi publicada entre os anos de 1858 e 1859 com objetivo de estreitar as relações pedagógicas entre os dois países. Considerando a Revista da Instrução como objeto e fonte, sua materialidade foi perscrutada, assinalando a produção e a circulação de discursos educacionais, em especial com as correspondências entre os redatores, António Feliciano de Castilho e Luiz Felipe Leite com professores brasileiros e publicadas na Revista. Tratando de uma revista também, Patrícia Weiduschadt e Elias Krüger Albrecht são autores do artigo Circulação e estratégias da revista “O Jovem Luterano”: perspectiva transnacional e das histórias cruzadas (1950-1970). “O Jovem Luterano” (1929-1970) foi um periódico juvenil produzido pelo Sínodo de Missouri, atual Igreja Evangélica Luterana do Brasil, para educar e orientar a vida social e religiosa dos seus jovens. O referido periódico foi responsável por mediar a interlocução e as conexões de diferentes realidades juvenis luteranas, pois em suas páginas disseminaram-se estratégias: planos de leituras, círculo de amizades, viagens de jovens, enfim, possíveis conexões entre jovens de diferentes partes do mundo. A instituição luterana do Sínodo de Missouri, por meio dos intercâmbios e práticas adotadas, a exemplo da Revista analisada buscou homogeneizar a formação cultural, educativa e moral das uniões juvenis, mas essas práticas foram recebidas e adaptadas de acordo com o contexto local.
A escola italiana em Pelotas durante as décadas de 1920 e 1930: entre contextos locais, nacionais e internacionais é o título do artigo escrito por Renata de Castro Brião que investiga a escola italiana em Pelotas nas décadas de 1920 a 1930 mobilizando um conjunto diversificado de documentos como aqueles consulares italianos, relatórios de comissões encarregadas da reestruturação da escola italiana no exterior, relatórios da sociedade italiana de Pelotas e de intendentes municipais em Pelotas. A autora identifica que a escola italiana em Pelotas foi, no período temporal da análise, influenciada pelas políticas italianas fascistas do governo de Mussolini e, por outro lado, pelo contexto municipal do governo de Pelotas com a abertura de novas escolas públicas, bem como pelo contexto brasileiro com as políticas nacionalistas do governo de Getúlio Vargas. Tal instituição, assim como as demais escolas étnicas do contexto gaúcho foram fechadas por decreto em 1938.
No diálogo com escolas com marcas étnicas, o artigo Magistério imigrante: professores e professoras nas colônias eslavas e italianas no Paraná (1878-1938) de autoria das pesquisadoras Elaine Falcade Maschio e Valquiria Elita Renk versa sobre os diferentes perfis dos professores das escolas étnicas italianas e eslavas no Paraná, entre o final do século XIX ao ano de 1938, quando, como referido, as escolas étnicas foram fechadas. As autoras investigam quem eram os docentes e quais foram as perspectivas dos Governos e da Igreja com relação a sua atuação profissional, quais as tensões estabelecidas no ofício do magistério e a incorporação dos preceitos legais. As autoras concluem que foram diferentes os perfis docentes, apresentando que desde membros eleitos pela comunidade sem formação pedagógica até aqueles com qualquer formação profissional como os padres, as religiosas e os intelectuais ocuparam funções de docência. Identificaram que no decorrer da década de 1920, o governo do Paraná intensificou o processo de nacionalização das crianças por meio da escola, o que gerou mobilização das associações escolares étnicas que buscaram enfrentar as ações estatais e qualificar os professores.
As pesquisadoras Manuela Ciconetto Bernardi e Eliana Rela apresentam um recorte microhistórico no artigo Domenico Caon e o Amor pela Obra A Divina Comédia. No texto, elas apresentam uma narrativa da vida de Domenico Caon, nascido em 1876 na província de Pádua, Itália e emigrado ao Brasil ainda jovem, com família. Estabelecidos onde hoje se situa o atual município de Nova Roma do Sul/RS, Caon vivenciou práticas de leitura no percurso de vida, em especial, da obra “Divina Comédia” . As autoras concluem que as práticas de leitura desenvolvidas por atores sociais, assim como as de Domenico, permitem abrir possibilidades investigativas e examinar as singularidades que envolvem os processos históricos da alfabetização fora do ambiente escolar.
“Senhor, se eu sou a escolhida, abra o caminho”: Willie Ann Bowman e a circulação metodista transnacional (1895-1906), artigo de Vitor Queiroz Santos e Sérgio César da Fonseca que de alguns traços biográficos de Willie Ann Bowman, missionária vinculada à Methodist Episcopal Church, South que atuou no Brasil entre 1895 e 1906, investiga a circulação transnacional de pessoas, saberes e práticas viabilizada pela denominação protestante norte-americana. Os autores embasam a análise com documentos oficiais produzidos pela Igreja e focaliza o protagonismo feminino e o transnacional, entre Estados Unidos e Brasil.
Finalizando
No programa de pesquisa que construímos é relevante reconhecer que muitos documentos se conservam inéditos e podem ser inovadores também os cruzamentos documentais que consideram - não apenas a diversidade de tipologias, mas para além delas - questionam-nas, perscrutam evidências, contrapõem discursos. Como afirmou Luchese,
Na análise documental considero relevante perguntarmo-nos: Qual o contexto social, cultural, econômico e político em que esse documento foi produzido? Quem o escreveu? De que lugar social? Para quem escreveu? Quem foram os seus interlocutores? Quais opiniões, informações e discursos são colocados? Que indícios discursivos são reforçados? No atravessamento dos documentos, perceber as recorrências, os indícios como formas de pensar a educação e as múltiplas relações sócio-político-econômicas, que produzem os discursos (LUCHESE, 2014, p. 151).
Desse modo, na construção dos contornos metodológicos da prática de pesquisa os documentos não são dados a priori, mas no fazer é que são tecidos, constituídos e pensados. E como sugere Rogers (2014), ao tratar das congregações femininas francesas numa abordagem transnacional, é no diálogo entre historiadores provenientes de diferentes comunidades e percursos formativos que podemos constituir narrativas potentes para pensar objetos de investigação que superem as fronteiras nacionais. É preciso confrontar narrativas com os registros locais, com a diversidade documental produzida por aqueles que viveram, em diferentes papeis, a escolarização e demais processos educativos. Não se trata de estabelecer comparações, mas de confrontar documentos, cruzá-los e mostrar as diferentes representações que circularam sobre o processo [e projeto] educativo entre e/imigrantes nos diferentes contextos de acolhida.
Na perspectiva de Seigel (2005) a comparação impõe limites, assim é preciso compreender a necessidade de superar as fronteiras do Estado-Nação para pensar as relações, as conexões e outras espacialidades-temporalidades no jogo de análise histórica, sendo esse um caminho potencializador para o objeto de investigação que estamos trabalhando. Uma história conectada, superando fronteiras nacionais. Uma história que pensa a circulação de pessoas nos processos migratórios, que carregam consigo modelos educativos e que, nos contatos com outros grupos sociais, com outros contextos culturais, negociam, se apropriam e tensionam modos de ser e viver. Entendemos que quando os emigrantes saem de sua terra natal e carregam discursos, muitos deles experiências escolares que demarcam modos de pensar currículo, organização do tempo e espaço escolar, bem como memórias de práticas pedagógicas vividas como estudantes ou mesmo, em alguns casos, também como professores. A complexidade dos contatos culturais internacionais para serem perscrutados pelos pesquisadores exigem a ampliação de nossas trocas como investigadores. Assim, considerar o contexto em que as trocas culturais se constituem é fundamental - de que territorialidades saíram os emigrantes e para onde se dirigiram, no caso do Brasil, se para áreas urbanas ou rurais, para colonizar e tornar-se proprietário de pequena gleba de terras ou para trabalhar em parceria em fazendas de café... Para as cidades ou o interior. Diferenças que, marcadamente, distinguem itinerários. Questões de classe social, geração, gênero e grupos étnicos também precisam ser consideradas ao analisar os documentos mobilizados na pesquisa.
Uma história transnacional da escola entre e/imigrantes sugere pensar em conexões, interações, uso de chaves interpretativas mais complexas e aprofundadas, um exercício interpretativo que produz uma narrativa histórica que considera, para além da diversidade documental, os acúmulos de experiência que cada pesquisador1 possui, a partir das suas especificidades e da bagagem cultural. Para Gruzinski (2001, p. 178) “o processo de globalização está mudando inelutavelmente os quadros do nosso pensamento e, por conseguinte, as nossas maneiras de revisitar o passado”, desse modo, o diálogo entre historiadores da educação provenientes de comunidades distintas é potencializador de olhares e narrativas que, conectadas, podem narrar o processo histórico tomando o alerta de Hartog em sua prática
trabalho de identificar as regularidades, apreender as continuidades ou atualizar as fendas, as roturas, de enfatizar, de acordo com os momentos, uma história mais atenta às séries e às continuidades ou mais interessada pelas rupturas e o descontínuo; de privilegiar os modelos socioeconômicos ou a abordagem biográfica; e de colocar e recolocar, de novo e de novo, a questão da mudança na história e em história (HARTOG, 2017, p. 24).
São muitas as rupturas, as fendas, o contínuo e o descontínuo que podemos identificar ao perscrutar nosso objeto investigativo a partir da diversidade tipológica de documentos que sinalizamos anteriormente, mas também de modos de ler e interpretá-los. Assim, a análise dos documentos é enriquecida e complexificada quando a interpretação considera as experiências acumuladas pelos pesquisadores. Ou seja, ao operar com o documento histórico fica claro, como procedimento metodológico que “do mesmo conjunto de textos, com efeito, várias leituras podem ser propostas e nenhuma delas pode pretender esgotar a totalidade de suas compreensões possíveis” (CHARTIER, 2004, p. 381) afinal pensamos a história como uma “escritura desdobrada que tem, então, a tripla tarefa de convocar o passado, que já não está num discurso no presente; mostrar as competências do historiador, dono das fontes; e convencer o leitor” (CHARTIER, 2009a, p. 15).
Como historiadores da educação, munidos de nossas formações teórico-metodológicas, da construção de um conjunto documental ensejamos, com o rigor necessário para a construção de uma versão interpretativa plausível, possível, com certezas provisórias e que estabeleçam relações de verossimilhança, contribuir efetivamente para narrar no presente, a história das escolas com marcas étnicas.