Introdução
Em 24 de janeiro de 1862 nasceu Willie Ann Bowman. Filha de um casal pobre, converteu-se ainda criança ao metodismo na Eighth Street Methodist Church de Saint Louis -Missouri, Estados Unidos da América. Segundo seu próprio relato, foi durante um culto e mediante a falta de condições para doar um valor em dinheiro à Igreja, que sua mãe, certamente sensibilizada pelo avivamento religioso, ofertou: “Não tenho dinheiro para dar, mas dou minha filha ao Senhor” (JOHN, 1899, p. 75). Mal sabia ela que, mais de um século depois, o nome da pequena Willie batizaria o museu do Instituto Metodista de Educação em Ribeirão Preto, no Brasil. As histórias de uma jovem missouriana e do interior de São Paulo se conectaram através das ações missionárias engendradas pelos metodistas sulistas norte-americanos na segunda metade do século XIX (SUBRAHMANYAM, 1997). É sobre isso que esse artigo trata.
A análise aqui pretendida caminha por duas vias paralelas que se complementam. Parte da biografia de uma missionária é o foco principal e, ao mesmo tempo, um caso concreto que revela um processo mais amplo e complexo. De um lado, nos orientamos pelas reflexões de Dana Robert1 (1996), segundo a qual entre as inciativas da historiografia contemporânea das missões religiosas cristãs está a investida em dar visibilidade às atuações femininas. Robert (2006) chega a argumentar que a própria construção do cristianismo mundial no século XX foi, em larga medida, um desdobramento dos esforços das mulheres. Nessa perspectiva, o presente artigo evidencia a diversificação de atuações de uma categoria social que esteve fortemente vinculada ao casamento e à maternidade, sendo, inclusive, apagada da produção documental elaborada ao longo de anos pelos metodistas estadunidenses. Para além de ressaltar o protagonismo, a produção historiográfica centrada nas mulheres tem também a intenção de desvelar esse silenciamento (SOIHET; PEDRO, 2007). O deslocamento do olhar para um sujeito histórico feminino que se constitui educadora no interior de uma instituição organizada fora do aparato estatal norte-americano, demonstra, como propõe Soihet (2003), o vigor da produção de espaços ocupados por mulheres na sociedade civil.
O início da empreitada missionária feminina metodista no Basil se deu com a chegada de Martha Hite Watts. Ela era natural de Louisville (Kentucky) e, em 1881, assumiu a organização do Colégio Piracicabano (MESQUITA, 2001). Após Watts, entre o final do século XIX e o início do XX, dezenas de outras mulheres aportaram e se tornaram as principais responsáveis pelas práticas educacionais desenvolvidas pela instituição protestante (RIBEIRO, 2008; ALMEIDA, 2016), além de participarem da circulação de informações no plano transnacional através de periódicos como o Woman’s Missionary Advocate2 (SILVA, 2017). É exatamente dentro desse cenário que se insere Willie Ann Bowman, cuja atuação como missionária ocorreu entre 1895 e 1906. Trabalhando, incialmente, no Rio de Janeiro, ela também passou por Piracicaba e Ribeirão Preto, no interior estado de São Paulo. Se, em 1881, a instituição feminina metodista contava como apenas uma mulher no campo da missão brasileira, em 1906 elas totalizavam 21 (WMA, jul. 1906, p.47).
Apesar do relevante protagonismo de Willie Ann Bowman, sua trajetória ainda não foi explorada de maneira mais profunda pela historiografia especializada. Entendemos que os traços biográficos da missionária ajudam a encaixar mais uma peça no complexo panorama das atuações educacionais metodistas engendradas por mulheres no Brasil. Ao mesmo tempo, acreditamos que esse caso particular possa subsidiar de maneira concreta a análise de uma face das circulações transnacionais que viabilizaram a chegada de um amplo repertório cultural no Brasil entre o final do século XIX e início do XX. O objetivo é conseguirmos extrair elementos que permitam a reflexão entorno de uma vigorosa dinâmica institucional protestante que fazia do Brasil um dos campos de missão sobre os quais atuações educacionais foram utilizadas como estratégia de propagação religiosa. O pretexto biográfico alimenta, de maneira indutiva, uma análise que se distancia das abordagens que compreendem a educação metodista a partir de categorias sociológicas operadas no registro da cópia ou transplante cultural. Ao contrário, ao enfatizarmos a circulação de repertórios, localizamos os componentes socioculturais no campo dos circuitos transnacionais os quais permitiram a ancoragem de atuações que visavam à educação da infância (SANTOS, 2021).
A História Transnacional da Educação tem se convertido em uma abordagem que privilegia sujeitos e objetos culturais em circulação, demonstrando conexões entre diferentes espaços que até então estiveram apartados pela historiografia tradicional. O termo “transnacional” entrou na área da educação na década de 1990 e tem servido de parâmetro teórico-metodológico para compreender a ação de instituições dissociadas do aparato oficial dos Estados nacionais (FUCHS; VERA, 2019). A preocupação nesse campo de análise é compreender como as fronteiras eram cruzadas pelas ações de diversificados sujeitos, revelando que as entidades estatais não se constituíram como organismos fechados em si mesmos. É nesse sentido que entendemos que a reconstrução dos fios transnacionais tecidos pelo movimento metodista mostra que a agência missionária conseguiu desenvolver suas operações em função dessa porosidade. Se, de um lado, a análise da instituição protestante revela a pujança da circulação na medida em que pessoas e repertórios diferenciados eram introduzidos no tecido sociocultural de países como o Brasil, de outro, não se pode perder de vista o fato desse movimento ter se dinamizado através do suporte da infraestrutura técnica construída pelo processo de expansão do capital na gênese da modernidade, por meio de ferrovias, telégrafos, transportes a vapor, casas de impressão e correios (SANTOS; FONSECA; NARITA, 2019).
Portanto, o artigo, se servindo principalmente das publicações oficiais da instituição metodista sulista norte-americana3, busca compreender de que maneira se deu a circulação de pessoas e repertórios pedagógicos que conectavam os Estados Unidos ao Brasil através da análise da atuação da missionária Willie Ann Bowman. Demonstraremos, assim, o protagonismo de uma mulher que, inscrita em um movimento institucionalmente organizado no plano transnacional, contribuiu para a territorialização de práticas entre as quais estavam ações educativas no Brasil.
Entrada nos caminhos metodistas transnacionais
A edição de 11 de maio de 1895 do Birmingham age-herald, periódico publicado e distribuído no estado do Alabama, Estados Unidos da América, divulgava a realização de uma reunião metodista que ocorrera em Meridian, cidade localizada no estado do Mississippi:
A Junta das missões estrangeiras da mulher da Methodist Episcopal Church, South, foi convocada para realizar suas reuniões por cerca de uma semana em Meridian. Esta Junta é composta por quadros oficiais, gerentes e delegados de trinta e quatro Conferências domésticas4 e é o comitê executivo da Woman’s Foreign Missionary Society, que tem seus obreiros localizados no México, Brasil, território indígena e China (BIRMINGHAM AGE-HERALD, 11 maio 1895, p. 1).
A Methodist Episcopal Church, South5 era uma denominação fundamentada na teologia de John Wesley que havia surgido em 1844 nos Estados Unidos após a cisão da Methodist Episcopal Church - entre as questões que estiveram no cerne do cisma, estava a presença ou não de proprietários de escravos entre o bispado da instituição (BUYERS, 1945). Desde a fundação, foi-se desenvolvendo dentro da MECS a criação de sociedades missionárias com o objetivo de projetar trabalhos para dentro e fora dos Estados Unidos - as chamadas missões domésticas e estrangeiras. Durante a década de 1850, por exemplo, destacou-se internamente o envio de pregadores às populações imigrantes, nativas e afro-americanas que não haviam se convertido ao cristianismo protestante. Externamente, a Libéria e a China eram as principais regiões que ganhavam importância como destino dos metodistas (SLEDGE, 2005). Entretanto, o movimento missionário não se desenvolveu como esperado em função do abalo causado pela Guerra Civil que assolou o país entre 1861 e 18656. Foi em meio à Reconstrução norte-americana que um grande vigor de expansão transnacional religiosa ocorreu de modo a alocar trabalhos de evangelização em diversas regiões do mundo (CANNON III, 1926). Segundo Dana Robert (1995), nesse processo, o protagonismo de mulheres missionárias contribuiu para a instalação de ações educacionais, sobretudo em colégios e escolas dominicais, além da criação de sociedades de ajuda. No final do século XIX, como sugere a notícia de 1895, a presença da MECS em terras estrangeiras já era sentida em territórios mexicanos, chineses e brasileiros7.
Entre as organizações dos metodistas sulistas que foram criadas com a intenção de dinamizar o trabalho missionário estava a Woman’s Foreign Missionary Society8. Criada em maio de 1878, foi constituída a partir dos esforços de lideranças femininas que colocaram no quadro das disputas institucionais da MECS demandas próprias, as quais, segundo Noreen Dunn Tatum (1960), envolviam a necessidade de dar autonomia e ampliar a participação das mulheres nas atividades missionárias. A organização se justificava a partir do argumento de que as mulheres eram mais eficientes no trabalho de evangelização das mulheres que habitavam os campos de missão. Isso significava integrar de maneira contundente um setor social o qual, até então, participava do trabalho, quase que exclusivamente, em função de laços de casamento. A primeira edição do Woman’s Missionary Advocate explicita essa perspectiva:
Não há nada mais aparente, até mesmo para uma mente insensata, do que a marca da mão da mulher sobre o trabalho no tempo presente; e, em nenhuma parte, isso está mais claramente visto do que na iniciativa conhecida como “trabalho da mulher para a mulher”. Resta, às mulheres do século XIX, fazer aquilo que nunca foi realizado antes - que é, através da organização em sociedades de seu próprio sexo, obter os sentidos para começar o trabalho de cristianização das mulheres em terras pagãs (WMA, jul. 1880, p. 13).
O evento organizado em Meridian tratava-se da décima sétima reunião anual da Junta que compunha a WFMS. Era o momento no qual diversos quadros diretivos debatiam sobre as articulações acerca da manutenção e ampliação das atuações missionárias, tanto domésticas quanto estrangeiras. Sob a liderança das mulheres que administravam a alta hierarquia institucional, na reunião, segundo as minutas oficiais, “vinte e duas Conferências foram representadas por seus secretários, três por delegados de reserva e dez não tinham representação” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 69). Somando trinta e cinco metodistas presentes, dos itens da pauta que orientou a reunião destacam-se os debates a respeito dos relatórios das missões, os balanços financeiros da instituição, o alcance das publicações religiosas e as avaliações dos trabalhos desenvolvidos.
O ímpeto missionário transnacional indicado pela notícia do Birmingham age-herald é comprovado pelo décimo sétimo relatório anual da WFMS, também publicado em 18959. Reverberando a importância das atuações femininas, o documento é aberto argumentando que a “mulher é o clímax da energia criativa de Deus” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 5) e diz que, das “38 missionárias empregadas pela Woman’s Foreign Missionary Society da Methodist Episcopal Church, South, 15 estão trabalhando na China, 14 no México, 8 no Brasil e 1 na missão indígena” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 6). Segundo consta, a instituição apoiava 12 internatos e 40 escolas espalhadas pelo mundo, dentro das quais estudavam 4.379 mulheres e crianças. Desse total, 1.266 eram atendidas na China, 1.789 no México e apenas 308 no Brasil. Uma questão imediatamente sobressai. Qual motivo explica o baixo alcance do trabalho no Brasil quando comparado com os campos de missão na China e no México?
Uma constatação das circunstâncias era possível graças aos relatórios enviados pelas missionárias que atuavam no país - naquela altura, as cidades que contavam com trabalhos educacionais eram Piracicaba (fundado em 1879), Rio de Janeiro (fundado em 1888) e Juiz de Fora (fundado em 1891). Os documentos chegavam aos Estados Unidos e eram recebidos pela alta hierarquia da WFMS, alimentando a instituição com informações que, de maneira geral, descreviam a infraestrutura precária nas escolas, a falta de quadros e a sobrecarga de trabalho das missionárias no Brasil (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895).
Segundo as minutas oficiais, no terceiro dia da reunião anual realizada em Meridian, a senhorita Trueheart, que à época ocupava o cargo de secretária de assuntos domésticos e compunha o corpo diretivo da Junta que liderava a WFMS, proferiu um discurso com o panorama descrito pelas metodistas em relatório. Na sequência, a palavra foi dada à senhorita Mary W. Bruce. Ela era uma missionária da instituição que havia chegado ao Brasil em 1884 (JOHN, 1899), trabalhava no Colégio Mineiro em Juiz de Fora e estava de licença nos Estados Unidos naquele ano. Segundo consta nas minutas: “Ela fez um breve relato da origem da escola em Juiz de Fora, falou muito bem de seu sucesso e insistiu em suas necessidades; acerca das sobrecarregadas e fiéis professoras que tanto exigem reforço” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 88). A importância da participação da senhorita Bruce no evento ganhou capilaridade nas publicações metodistas do período. Comprovando a centralidade de sua fala para o pedido de ajuda à missão no Brasil, o periódico Woman’s Missionary Advocate repercutiu: “A importância de reforços para o Brasil foi planejada. Na conclusão do relatório, a senhorita Bruce foi chamada à frente para falar do trabalho em Juiz de Fora. Suas observações foram cheias de interesse” (WMA, jun. 1895, p. 364).
O debate que extrapolou a reunião anual de Meridian deixa evidente a teia de conexões transnacionais engendrada pela MECS que viabilizava um significativo fluxo de informações e pessoas entre os Estados Unidos e o Brasil no fim de século. O envio de relatórios dos campos de missão à sede institucional se revertia em documentos impressos que, por sua vez, circulavam pela rede metodista (SANTOS, 2021). A propósito, naquela conjuntura, os religiosos já possuíam uma casa de impressão própria, localizada em Nashville (Tennessee), onde, aliás, também estava a sede do quadro diretivo da WFMS. A cidade era o destino dos documentos, cartas e missivas que eram selecionadas, diagramadas e compunham os relatórios anuais e periódicos (como o Woman’s Missionary Advocate) que eram distribuídos transnacionalmente pela WFMS. Dessa forma, os campos de missão também se destacavam como locais produtores de conteúdo que alimentavam uma espécie de conglomerado de mídia, como definiu David William Scott (2016). Esses canais de comunicação, ao se servirem da experiência da aceleração viabilizada pela técnica difundida no século XIX, permitiam com que a sede institucional estivesse conectada às fronteiras do trabalho missionário. Essa pujante circulação transnacional foi a condição que possibilitou a sensibilização dos quadros diretivos da WFMS. Na reunião de Meridian, o comitê executivo, além de aprovar a liberação de uma soma total de US$ 17.905, percebeu “a necessidade imperiosa de reforços para o Brasil” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 113). Dessa forma, deliberou-se:
Os nomes de sete candidatas a missionárias aceitas foram apresentados a este comitê. Cinco jovens senhoras da Training School apareceram diante de nós pessoalmente, e ficamos muito favoravelmente impressionados com sua atitude modesta e gentil, sua fervorosa piedade e consagração e seu ardente desejo de entrar no trabalho “para o qual foram chamadas”. Após muita consideração em oração, seu comitê respeitosamente recomenda o seguinte:
1. Que a senhorita Willie Bowman, da Conferência de St. Louis; a senhorita Eliza Perkinson, da Conferência do Missouri; e a senhorita May Umberger, da Confrerência de Holston, sejam indicadas para trabalhar no Brasil (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 110).
Foi através das articulações da WFMS em Meridian que começou a vida missionária de Willie Ann Bowman e sua conexão com o Brasil. O encaminhamento da Junta ocorreu por ela compor o quadro das alunas em processo de conclusão do curso de preparação para as missões oferecido pela Scarritt Bible and Training School. Seu ingresso na instituição se deu mais de vinte anos após o presságio de sua mãe, como exposto na introdução do presente artigo. Alguns anos antes, retomando a memória de quando criança, foi em meio à criação de uma sociedade missionária na Immanuel Methodist Church, ainda em Saint Louis, que ela descreve ter recebido “o chamado”:
Naquele momento, parecia que uma mão estava colocada sobre minha cabeça como havia vinte anos antes, e uma voz disse que eu seria a escolhida. Respondi: “Senhor, se eu sou a escolhida, abra o caminho”, o que Ele fez logo, dois anos depois entrei na Scarritt Bible and Training School, onde permaneci dois anos para treinar (...) (JOHN, 1899, p. 75).
Segundo uma publicação religiosa, a “Union League de St. Louis assumiu os custos da senhorita Willie Bowman na Scarritt Bible and Training School por um ano” (THE MISSIONARY REVIEW OF THE WORLD, jan. 1896, p. 75). Nesse sentido, Bowman compunha o complexo tecido social das mulheres metodistas norte-americanas que, por meio de vários esforços institucionais, fizeram parte de um processo de preparação antes de serem encaminhadas aos campos de missão. Parecia importante para os quadros diretivos que elas possuíssem uma formação específica que permitisse uma atuação mais eficiente no trabalho evangélico nas Igrejas, sociedades, escolas dominicais e colégios metodistas.
A Scarritt Bible and Training School foi criada em setembro de 1892 em Kansas (Missouri) e tinha o objetivo, segundo o décimo sétimo relatório anual da WFMS, de promover “a educação de missionários e outros obreiros cristãos” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 132). De acordo com o documento:
A instituição está em operação bem-sucedida e promete cumprir os objetivos almejados - ou seja, instrução prática no estudo da Bíblia e treinamento em métodos de ensino, o estudo da história de Missões e dos diferentes campos missionários, e treinamento prático na obra missionária da cidade, nas escolas industriais e na enfermagem, que podem tanto formar quanto testar os candidatos a missionários antes de iniciar seu trabalho (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 132).
A diretora, Maria Layng Gibson, esteve na reunião anual em Meridian e leu publicamente o relatório de trabalho da Training School como uma espécie de prestação de contas institucionais. De acordo com as minutas oficiais, o alunado era constituído por “moças sérias e de coração sincero” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 90), que eram expostas a um curriculum diversificado. Três livros fundamentavam as aulas no Departamento de Evidências do Cristianismo e Filosofia Moral: History of the Christian Church e Manual of Christian Evidences, de George Park Fisher e o Witnesses to Christ escrito pelo Bispo metodista Alpheus Waters Wilson. O estudo religioso também enfatizava os quatro evangelhos, a biografia do profeta Ezequiel, Hermenêutica e leituras sobre a Criação e os milagres de Cristo (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 93-94).
Além das questões religiosas, de acordo com as minutas, dois outros saberes também compunham a grade: “contabilidade e o estudo dos campos missionários” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 90). Preparar as futuras obreiras através de conhecimentos de contabilidade e economia doméstica era uma questão importante para o gerenciamento dos recursos quando estivessem in loco, afinal, a manutenção de uma receita financeira saudável era condição para a continuidade do trabalho evangélico. Nesse sentido, é como se a instituição se preocupasse em reproduzir um ethos empresarial entre suas alunas (SANTOS, 2021). Ademais, para que houvesse um estudo preciso dos campos missionários era fundamental o envio de informações daquelas que já estavam na frente de atuação. Para contribuir nesse sentido, a instituição contava com um periódico próprio, o Evangel. Segundo a diretora Gibson, ele era “publicado mensalmente” e constituía “um valioso meio de comunicação com o mundo exterior” (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 93).
Do ponto de vista pedagógico, as futuras missionárias aprendiam sobre métodos primários ilustrados pelo ensino em classe, música e sobre o trabalho nas escolas dominicais. A pedagogia estava associada principalmente, mas não exclusivamente, ao ensino religioso. Ao mesmo tempo, conhecimentos na área de enfermagem faziam parte do curriculum. O interessante é que o curso não ficava restrito às aulas teóricas. Estudar e treinar domesticamente o que seria praticado nos campos estrangeiros era uma das premissas que orientavam a formação. Uma melhor percepção acerca do lugar que o trabalho prático assumia na preparação missionária pode ser obtida através das estatísticas expostas nas minutas oficiais da décima sétima reunião anual de Meridian. Segundo consta, no curso que durou entre 1894 e 1895, do qual a senhorita Bowman fez parte, o número de crianças atendidas na escola industrial de Kansas foi de 1.097. Já aquelas ensinadas nas escolas dominicais somavam 8.428. Se considerarmos, ainda, as visitações que distribuíam alimentos, Bíblias, cópias do Novo Testamento, brinquedos no Natal, buquês de flores, roupas, livros, além das visitas a asilos, ofertas de jantares de ação de graças, orações em comunidade, leitura de trechos da escritura e o número de chamados religiosos feitos, devemos somar mais, aproximadamente, 4.000 ações junto à comunidade local (SEVENTEENTH ANNUAL REPORT..., 1895, p. 91-92). O ímpeto da missão era o meio e o fim da formação na Training School.
Mais que uma simples preparação de futuras missionárias, estamos diante de uma das pontas do problema aqui investigado. O deslocamento de pessoas e saberes, a partir do encaminhamento feito pela WFMS em Meridian e da preparação bienal em Kansas, foi possível em função das tramas construídas pela MECS em seu processo de expansão religiosa. Como demonstraremos, o repertório apropriado pela senhorita Bowman no curso de formação subsidiou sua atuação no Brasil, demonstrando a complexidade da tecitura das circulações transnacionais engendradas pela instituição missionária. A décima sétima reunião anual da WFMS terminou no dia 15 de maio de 1895. Em 22 de junho, Bowman embarcou em New York com destino ao Brasil, acompanhada das senhoritas Perkinson e Umberger, em uma viagem a vapor que duraria 20 dias até o Rio de Janeiro.
Percorrendo o caminho: protagonismo nas circulações transnacionais
Após chegar ao Brasil no dia 12 de julho de 1895 (JOHN, 1899, p. 75), Willie Ann Bowman e suas companheiras de viagem foram recebidas no Rio de Janeiro por quadros da Igreja Metodista, entre os quais estava a senhorita Amelia Elerding10. Um relatório escrito por ela mostra uma perspectiva da recepção e do direcionamento de Bowman ao trabalho.
(...) nossos corações se encheram de alegria com a chegada de nossas três novas missionárias. Depois de passar alguns dias no Rio e uma semana em Petrópolis, a senhorita Bowman retornou ao Rio, para ser minha companheira de trabalho, a senhorita Perkinson foi para Juiz de Fora e a senhorita Umberger permaneceu em Petrópolis. Eu estava encantada com a distribuição das jovens moças feita pela senhorita Watts11, especialmente por ter enviado a senhorita Bowman ao Rio. Ela é o tipo de trabalhadora que precisamos muito, e eu me sinto bem recompensada após ter ficado mais de dois anos sozinha (WMA, out. 1895, p. 110).
A descrição da senhorita Elerding mostra que, tão logo Bowman aportou, seu trabalho já evidenciava a importância da formação obtida na Scarritt Bible and Training School: “A senhorita Bowman começou a estudar a língua portuguesa imediatamente. Ela presta uma valiosa ajuda na economia doméstica e, em certos dias, acompanha a senhoria Hamilton em suas visitas” (WMA, out. 1895, p. 110). No ano seguinte, a jovem missouriana já encaminhava à sede norte-americana seus próprios relatórios. O décimo oitavo anuário da WFMS publicado em 1896 corrobora, a partir das palavras da própria Bowman, a descrição do início do seu trabalho:
Deixei minha casa e os amigos para o Brasil em 18 de junho de 1895, depois de uma agradável viagem pelos Estados Unidos e pelo Atlântico cheguei ao Brasil em 12 de julho de 1895, passei uma semana agradavelmente em Petrópolis e voltei ao Rio para começar a trabalhar em 22 de julho. (...) Comecei imediatamente com o idioma, tendo três aulas por semana, auxiliando nas tarefas domésticas, encarregando-me da contabilidade da casa, cuidando dos suprimentos, fazendo as compras e aliviando a senhorita Elerding sempre que podia (EIGHTEENTH ANNUAL REPORT..., 1896, p. 63).
A dificuldade no domínio da língua limitava a atuação de Bowman. Mesmo tendo uma pequena experiência pedagógica com “uma turma de crianças de língua inglesa na escola dominical” (EIGHTEENTH ANNUAL REPORT..., 1896, p. 63), seu trabalho entre 1895 e 1900 esteve, enquanto se desenvolvia no aprendizado do português, associado, sobretudo, às visitações direcionadas à pregação evangélica na comunidade anglófona carioca. Nesse sentido, ela reportava:
Antes de a senhorita Elerding partir [de licença aos Estados Unidos], eu cuidava da economia doméstica e a ajudava nas tardes com as visitas; desde então, fiz tudo o que pude para continuar o trabalho sozinha, fiz cento e cinquenta chamados, li a Bíblia e orei em dezoito casas, distribuí três Bíblias, três hinários, um livro e vinte jornais religiosos (TWENTIETH ANNUAL REPORT..., 1898, p. 70-71).
Apesar de não comporem institucionalmente a alta hierarquia da Igreja Metodista e articularem suas ações ainda a partir do ambiente doméstico, local muito vinculado à função social da mulher para a sociedade brasileira oitocentista (DEL PRIORI, 1997), as metodistas encontravam mecanismos de atuação através da mobilização de práticas e construção de espaços próprios que favoreciam às pregações evangélicas. É nessa direção que caminhavam os trabalhos construídos através de sociedades de ajuda, entre as quais se destacava a versão local da Ladies’ Aid Society12. Seu objetivo era “promover os interesses espirituais, sociais e financeiros da Igreja e, ao mesmo tempo, dar às irmãs algo definitivo para fazer no sentido de conduzir e se desenvolver como ativas trabalhadoras cristãs” (WMA, abr. 1897, p. 304). Como uma das artífices da circulação transnacional, a própria Bowman relata os resultados desse trabalho junto à sociedade de língua inglesa no Rio de Janeiro:
Nossas tarefas e quaisquer doações especiais que as senhoras dão são ofertadas à caridade ou à reparos e melhoramentos na Igreja. Contribuímos com algumas doações a cada mês durante dois anos para manter um menino no Colégio Granbery [de Juiz de Fora], filho de uma viúva membro da nossa Igreja. Compramos cortinas novas para o órgão, panos e mesas de comunhão, tapetes para os corredores e ajudamos os senhores no pagamento de três luminárias a gás novas para o centro da Igreja (WMA, jul. 1897, p. 26).
O vigor do trabalho desenvolvido por Bowman no Rio de Janeiro pode ser dimensionado através do seu relatório sobre a atuação no ano de 1899. Segundo a missionária: “Durante o ano, fiz quinhentas e doze visitas entre as pessoas e sempre procuro fazê-las sentir que venho em nome do Senhor, levando-lhes sua mensagem de amor e vida” (TWENTIETH-SECOND ANNUAL REPORT..., 1900, p. 66). Nesse contexto, após um curto tempo de atuação no Colégio Piracicabano, em função do adoecimento de uma das missionárias, Bowman se retirou de licença e retornou à sua terra natal. Apesar do período se constituir, na prática, como uma espécie de férias, ela se manteve ativa na causa das missões e, literalmente, ajudou a tecer a circulação transnacional que conectava os Estados Unidos ao Brasil.
Eu passei sete meses do ano nos Estados Unidos, não descansando como planejei, mas indo de lugar a lugar falando sobre as necessidades do trabalho no Brasil. Durante os sete meses, fiz sessenta falas públicas em diferentes lugares, participei da Conferência Geral Missionária da nossa Igreja em New Orleans em abril e participei da reunião anual da nossa Junta em Asheville, N. C., em junho (TWENTIETH-FOURTH ANNUAL REPORT..., 1902, p. 84).
Uma das falas públicas foi divulgada pela edição de 7 de julho de 1901 do The St. Louis Republic. De acordo com o periódico missouriano: “A senhorita Willie Bowman, deste condado, voltou do trabalho missionário no Brasil para passar umas curtas férias. Ela deu uma palestra no último domingo à noite na Fifth Street Methodist Church [de Saint Louis]” (THE ST. LOUIS REPUBLIC, 7 jul. 1901, p. 11). Associado à exibição dos trabalhos evangélicos, o nome da missionária também é encontrado nos papéis da Conferência Geral Missionária, ocorrida entre 24 e 30 de abril de 1901 em New Orleans (Louisiana). Segundo consta: “A mesa do Brasil continha lindos laços, crucifixos, colares, etc., que foram expostos pela senhorita Willie Bowman (...)” (MISSIONARY ISSUES..., 1901, p. 557). No mesmo sentido se deu sua presença na vigésima terceira reunião anual da Junta que administrava a WFMS. Realizada em 6 de junho de 1901 na cidade de Asheville (North Carolina), Bowman expôs aos quadros diretivos sobre seu trabalho de “visita a pessoas que vivem em cortiços e estão amontoadas em ignorância, pecado e sujeira” (WMA, jul. 1901, p. 11-12).
De volta ao Brasil em agosto de 1901, após um período no Rio de Janeiro, ela foi deslocada para atuar no Colégio Metodista de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, inaugurado em 1899. Foi nesse momento que seu trabalho esteve mais diretamente vinculado às ações educacionais. Escrevendo sobre o encerramento do trimestre escolar em 30 de setembro de 1902, Willie Ann Bowman relatava que as “crianças parecem gostar do estudo da Bíblia” (WMA, jan. 1904, p. 258) e dava um preciso panorama pedagógico: “(...) no entanto [o trabalho é] bem difícil por não termos ajuda nem explicações em língua portuguesa, e somente usar a Bíblia. Isso dobra meu trabalho, pois tenho que fazer todo meu estudo em inglês e, depois, traduzir para o português” (WMA, jan. 1904, p. 258). Do ponto de vista do curriculum, Bowman relatava, em publicação de 1904, que possuía “seis aulas bíblicas - três sobre o Velho e três sobre o Novo Testamento - cada qual sobre uma parte diferente, o que demanda tanto estudo como se cada turma estivesse aprendendo um assunto diferente” (WMA, jul. 1904, p. 31). Essas atuações eram fundamentadas no curso de formação norte-americano e demonstravam a pujança da circulação transnacional pelas redes missionárias. Segundo Bowman: “Minhas turmas estão todas estudando a vida de Cristo. Eu sigo o Harmony of the Life of Christ usado na Scarritt Training School e acho de grande ajuda” (TWENTIETH-FIFTH ANNUAL REPORT..., 1903, p. 82). De acordo com Mary L. Hargrove, professora responsável pelo ensino bíblico oferecido em Kansas, “The Life of Christ, conforme organizada em Harmony of the Gospels de Stevens e Burton, tem sido uma porção das Escrituras estudadas em ambas as classes [da training School]” (TWENTIETH-FIRST ANNUAL REPORT..., 1899, p. 108). Publicado, inicialmente, em 1892, o manual era destinado ao uso “não apenas em faculdades e escolas teológicas, mas em clubes de estudo particular e em aulas bíblicas de todos os graus” (STEVENS; BURTON, 1892, p. 3). Orientando a utilização de métodos mnemônicos para o ensino do contexto da vida de Jesus, o livro compreendia que uma educação cristã “revela seu verdadeiro significado apenas para aquele que vem ao seu estudo com a mente aberta à beleza e ao poder da vida, e para a grandeza de seu plano de longo alcance para a redenção de nossa raça” (STEVENS; BURTON, 1892, p. 36).
A incorporação de Ribeirão Preto aos trabalhos da WFMS sugere que a fronteira religiosa se expandia em direção ao interior de São Paulo ao mesmo tempo em que configurava o novo espaço sociologicamente (SANTOS; FONSECA; NARITA, 2019). Mais que circulação, a descrição aponta para possíveis transferências culturais (ESPAGNE, 2013), pois as traduções realizadas por Bowman evidenciam o campo de missão como um local de produção cultural, na medida em que o repertório apropriado nos Estados Unidos era reelaborado, em função da ausência de suportes pedagógicos adequados, a partir da necessidade de se construir estratégias didáticas que fossem efetivas. A atuação educacional missionária pressupunha o social como um campo aberto a intervenções, as quais tinham a finalidade de galvanizar um amplo repertório moral na conduta das crianças através do ensino bíblico (NARITA, 2017). A educação era claramente compreendida como um mecanismo através do qual a religião protestante era propagada. Descrevendo os resultados de seu trabalho junto às meninas do internato do colégio em Ribeirão Preto, Bowman constatava em 1903:
Meu trabalho em nossa escola nesse momento, a Escola Methodista, é um pouco de tudo. Tomo conta da economia doméstica e de parte do ensino. Tenho cinco aulas bíblicas e uma aula de aritmética. Além disso, faço visitas três tardes na semana. (...)
Em nossa vida doméstica temos muitas oportunidades de trabalho cristão entre as crianças. Alguns dias atrás, uma de nossas pequenas meninas comprou três Bíblias para enviar ao seu pai, mãe e um primo em casa. Ela as trouxe até mim e pediu para que as marcasse; ela quis certas passagens marcadas para que eles tenham certeza de lê-las. Fiquei muito satisfeita com algumas passagens que ela me pediu para marcar, pois mostraram que ela sabia o que estava fazendo - ela só possui doze anos de idade. Mandou as Bíblias para casa e escreveu uma carta dizendo para seu pai que gostaria que eles lessem e aceitassem Jesus como seu salvador. É ensinado às crianças que esperamos alcançar seus pais, pois eles geralmente idolatram seus filhos (WMA, abr. 1903, p. 371).
No mesmo sentido estava um relatório assinado em 28 de março de 1905. Nele, podemos observar a repercussão do treinamento em economia doméstica e como essas ações também serviam como momentos de educação religiosa. Bowman afirmava: “Enquanto as ensino costura simples ou como fazer bolos, tortas e pães fáceis, tento pregar o evangelho a elas, e estou feliz em dizer que já posso ver bons resultados do meu trabalho” (WMA, jun. 1905, p. 463). Nesse contexto, a escola possuía pouco mais de uma dezena de alunas no internato, sob responsabilidade de Bowman e da senhorita Ada May Stewart13. Em uma publicação de 1904 sobre o trabalho das missionárias em Ribeirão Preto, fica evidente a circulação de métodos pedagógicos, nesse caso, o ensino mútuo. Trata-se de mais uma evidência de que a atuações pedagógicas locais eram construídas tendo em vista uma complexa circulação no plano transnacional.
Das nossas 12 pensionistas, oito são pagadoras integrais e uma é aluna-professora. A maioria delas são de lares influentes e esperamos que, dessa forma, a escola seja mais conhecida. Uma das primeiras coisas que uma menina nova aprende quando entra é cantar hinos, as meninas mais velhas agem como professoras. Elas se reúnem no quintal ou no dormitório, e eu temo que nossos vizinhos muitas vezes as desejem longe. Esses hinos são levados aos lares e, de lá, para outros lares, e outras famílias estão se tornando interessadas através da influência de suas crianças que vêm a nossa escola. Dois anos atrás havia uma família aqui que era amargamente contra nós e toda forma de protestantismo. Agora, suas crianças são alunas na escola e frequentam a escola dominical e a Igreja. Mais e mais estou convencida de que, através das crianças, alcançamos os pais (WMA, ago. 1904, p. 54. Grifo nosso).
Em geral, a denominação “ensino mútuo” está associada a uma forma de organização do ensino escolar desenvolvida no final do século XVIII atribuída por alguns a Joseph Lancaster, um religioso e professor inglês, e por outros a Andrew Bell, missionário e professor que, numa escola situada na Índia sob o controle colonial britânico, elaborou procedimentos para organizar a sala de aula, o conteúdo e as lições. O objetivo era ensinar vários agrupamentos de alunos, com a propagandeada vantagem de despender menos esforços com o controle da disciplina a partir da aplicação de um ciclo contínuo de exercícios e lições, num sistema de recompensas e, sobretudo, com base no trabalho de alunos/monitores escolhidos em razão de sua aptidão e adiantamento, cuja função era a de acompanhar seus colegas, vigiá-los e apoiá-los na realização das tarefas ditadas por um único mestre. A despeito da autoria reivindicada por Lancaster e por Bell e os simpatizantes de ambos, outras apropriações dessa forma de organização do ensino surgiram e se popularizaram na Europa entre o final do século XVIII e o início do século XIX, sempre adotando o princípio-base de organizar a sala de aula e a aula a partir da forma simultânea de ensinar. No Brasil, a lei geral sobre instrução pública de 1827 (que veio para suprir a exiguidade de conteúdo do texto constitucional de 1824 em matéria de educação) previa o método do ensino monitorial como o método oficial das escolas públicas brasileiras tendo em vista a sua promessa de economia de recursos, pois um único professor cuidaria de muitos alunos se amparado por monitores, o que parecia indicar uma ferramenta bastante útil para criar escolas pelo país sem o vultoso aporte de recursos estatais. No entanto, no próprio século XIX, como reconhece Maria Helena Câmara Bastos (1997), ficou provado que não era viável concretizar a criação e a continuidade das escolas fazendo uso do ensino mútuo, de sorte que sua existência no meio escolar foi de declinante ao desaparecimento até o final do século XIX. Curiosamente, no caso dos metodistas, como destacado na fonte supracitada, um fragmento das práticas gerais do método de ensino mútuo ainda compunha o repertório das atuações pedagógicas escolares no início do século XX, uma vez que o recurso a alunas que se convertiam em monitoras das demais (“as meninas mais velhas agem como professoras”) seguia como uma prática usual e assumida pelas professoras no trabalho em sala de aula na neófita escola do interior paulista.
Um último dado que reforça a análise aqui pretendida envolve a epidemia de febre amarela que afetou Ribeirão Preto entre 1902 e 1903, período em que Bowman e Stewart eram as representantes da WFMS no Colégio Metodista. De acordo com a jovem missouriana: “A senhorita Stewart e eu decidimos que se pudéssemos ajudar de alguma forma, nós estávamos dispostas. Então, oferecemos nossos serviços para o comitê e fomos aceitas de imediato” (WMA, nov. 1903, p. 170). A atuação no combate à doença, novamente, mostra a circulação transnacional que conectava Kansas a Ribeirão Preto. Segundo Bowman: “O trabalho era novo para mim e encontrei uso para todas as lições e palestras sobre enfermagem que eu tinha tido na Training School” (WMA, nov. 1903, p. 170).
A última referência que o periódico Woman’s Missionary Advocate faz a Bowman enquanto missionária é em novembro de 1906. A edição de dezembro do mesmo ano revela o motivo. De acordo com o impresso, no segundo semestre daquele ano ela havia visitado a Scarritt Bible and Training School para apresentar seu marido, Henry M. Blackwell. Nessa altura, a missionária já assinava como Willie Ann Bowman Blackwell (WMA, dez. 1906, p. 266). O casamento a fez se retirar do campo missionário em terras brasileiras, onde atuou por 11 anos. A memória de seu trabalho junto à comunidade de Ribeirão Preto foi o fator motivador para o Instituto Metodista de Educação intitular, na década de 1990, seu museu com o nome da jovem missouriana.
Considerações finais
Desde o século XIX, antes até da Guerra Civil norte-americana, a MECS definiu como horizonte importante de sua atuação levar a palavra e a pregação aos confins do mundo, efetivando o chamado de John Wesley: “o mundo é minha paróquia”. Em franca coincidência com os ciclos de expansão capitalista e seguindo pelas rotas dos circuitos econômicos internacionais, os metodistas estadunidenses integraram desde cedo a sua autoproclamada vocação para a pregação e conversão de variados povos em terras distantes como um elemento estruturante de sua Igreja (SANTOS, 2001). Assim, a MECS construiu um tipo de missionarismo que colocava a educação escolar como uma das suas frentes de atuação a serviço da pregação e conversão religiosa.
As mulheres missionárias lideradas pela WFMS estavam aclimatadas a ter o mundo como uma seara de pregação, de modo que desde a formação até o direcionamento aos campos de trabalho, uma complexa articulação institucional viabilizava sua dinâmica transnacional. Justamente nesse quadro é que atuaram as missionárias metodistas que vieram ao Brasil, como é caso de Willie Ann Bowman. A geração de Bowman revela, de um lado, o vigor de um movimento que conectou os Estados Unidos ao Brasil e, de outro, o protagonismo de mulheres que trabalhavam a favor da evangelização dos povos através de uma diversidade de ações. Alguns traços biográficos da missionária demonstram como os sentidos educacionais locais eram construídos tendo em vista uma ampla rede transnacional. Para além de um caso isolado, o trabalho de Bowman reflete o vigor do movimento de pessoas e repertórios que compuseram um dinâmico e complexo cenário de circulação cultural que conectou os Estados Unidos ao Brasil entre o final do século XIX e início do XX.