Introdução
O presente artigo tem como objetivo analisar os sujeitos da inspeção da Instrução Pública na Comarca de Macapá (1852-1886). A comarca de Macapá1 estava localizada na foz do rio Amazonas e a sua criação teve como objetivo o povoamento e a defesa do território imperial brasileiro. Faziam parte da referida Comarca, inicialmente, a Vila de Mazagão, criada em 1769, a Vila de São José de Macapá2, criada em 1789 (elevada à condição de cidade em 6 de setembro de 1856) e, posteriormente, a Colônia Militar Pedro II3, criada no século XIX, em 1840, às margens do rio Araguari.
Diante desse contexto, levantamos o seguinte problema de investigação: quem eram os sujeitos da inspeção da Instrução Pública Primária na Comarca de Macapá?
Com a expansão da instrução pública no Brasil império, na segunda metade do século XIX, para além das capitais das províncias foi implantado um aparato de controle e inspeção escolar, chegando aos interiores do País, com o objetivo de colocar em prática o projeto civilizatório de crianças, jovens e adultos.
Ao analisarmos a documentação pesquisada, observamos que todos os sujeitos da pratica educativa ou que ocupavam os cargos de inspeção da Instrução Pública na província do Pará e na Comarca de Macapá foram nomeados, indicando a existência de determinadas relações de interesse e de poder na definição dessa posição; pertenciam a famílias influentes naquela localidade, proprietárias de fazendas ligadas à criação de gados, às casas de comércio, à Guarda Nacional com militares de altas patentes e ao poder executivo, legislativo e judiciário.
Na aparelhagem da prática educativa e de inspeção da Instrução Pública da Província do Pará e da Comarca de Macapá, havia cinco categorias de agentes de inspeção: presidente da província, diretor de instrução pública, inspetor geral das escolas, delegados, visitadores e professores. Destacamos que o presidente da província era nomeado pelo imperador; o diretor de instrução pública e o inspetor geral das escolas, pelo presidente; os delegados e visitadores eram escolhidos pelo diretor de instrução pública com a anuência do presidente. Os diretores de instrução pública, nomeados na segunda metade do século XIX, eram figuras proeminentes da sociedade paraense e macapaense.
A presidência da província, por meio dos seus administradores locais, também buscou marcar as suas posições na Comarca de Macapá, produzindo uma rede de significados por meio da nomeação de professores e inspetores para levantarem a situação das cidades e vilas no que se refere à saúde e à Instrução Pública (PARÁ, 1860). Os discursos de presidentes da Província do Pará, nos anos de 1830 a 1870, são carregados de afirmações que demonstram a preocupação de controlar a instrução do povo, garantir o processo de civilização e o progresso da nação, sendo, para isso, imprescindível realizar, entre outras medidas, a inspeção e o controle sistemático do ensino.
Delegar sujeitos em nome do governo provincial para examinar o estado das escolas, dos alunos e dos professores era uma medida reclamada por diversas vozes interessadas na prosperidade da instrução no País. No caso da Província do Pará, era uma necessidade reivindicada com vigor, visto que a distância das escolas do interior em relação à capital tornava impossível a fiscalização pelos diretores da instrução pública.
Diante disso, consideramos relevante investigar quem eram os sujeitos da prática educativa e da inspeção da instrução pública na Comarca de Macapá no período de 1852 a 1886, contribuindo para a compreensão da história da educação brasileira e da Amazônia.
Delegados da instrução pública primária na comarca de Macapá
A atuação dos Diretores de Instrução Pública configurava-se como importante componente para o bom funcionamento da engrenagem do Estado como um órgão vital em boas condições e contribuiu aumentando as chances para o corpo desenvolver-se de maneira saudável. Além do caráter fiscalizador, podemos destacar o aspecto regulamentador e atuante para a estruturação da educação sob o devido controle do Estado.
No caso dos Delegados de Instrução Pública, que atuavam no interior da Província do Pará, geralmente quem ocupava esses cargos eram os párocos locais, bacharéis, médicos e militares da Guarda Nacional. Na Comarca de Macapá, o Delegado era o Tenente Coronel da Guarda Nacional, Procópio Antonio Rolla, responsável pelo quartel da Fortaleza de São José de Macapá, conforme quadro a seguir.
Local | Nome | Profissão |
---|---|---|
Macapá | Procópio Antonio Rolla | Tenente Coronel da Guarda Nacional de Macapá |
FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil Industrial e Noticioso do Pará (1869).
A influência e a penetração de valores da cultura europeia na sociedade brasileira dos séculos XIX processavam-se em um campo bastante amplo; no entanto, foi por meio da Instrução Pública e da Guarda Nacional que, na Província do Pará e na Comarca de Macapá, isso se tornou mais evidente. A Guarda Nacional auxiliou as autoridades locais e seus subordinados a prestarem serviço ao Império e, ao mesmo tempo, a estarem defendendo seus interesses. Um exemplo típico dessa união de interesses entre o poder central e o local era a atuação da milícia na repressão à resistência escrava, visto que ambos se beneficiavam desta repressão: sob o ponto de vista do Estado, estava-se garantindo a ordem social escravista; sob a ótica dos poderosos locais, defendia-se a sua propriedade (NUNES, 2013).
Em cada localidade da província do Pará, em que havia uma escola, era nomeado pelo governo um delegado e um suplente, sendo que esses não recebiam nem gratificação nem ordenado. Os delegados eram incumbidos de executar as leis e os regulamentos e dar ordens em nome do presidente da província e do diretor da Instrução Pública. Além de fiscalizar e visitar as escolas uma vez por semana, os delegados deveriam elaborar e encaminhar ao diretor de Instrução Pública a remessa de mapas de frequência e os orçamentos do material escolar dos meninos pobres.
Essa política de nomeação, acrescida do fato de que certos cargos não eram remunerados, aponta a existência de uma política de troca de favores que remete a outros interesses, como era o caso dos delegados de Instrução Pública. Segundo Villela (2000, p. 125), o “[...] caráter não remunerado do cargo evidenciava a intenção de cooptar esses indivíduos como forma de garantir sua adesão ao acenar com possíveis benesses no futuro”.
LOCAL | ANO | DELEGADO | PROFISSÃO |
---|---|---|---|
Macapá | 1854 | Procópio Antonio Rolla | Militar, tenente coronel da Guarda Nacional |
Mazagão | Henrique de Sousa Prego | Militar, capitão de infantaria | |
Macapá | 1869 | Dr. Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto | Advogado, Juiz da Comarca |
Mazagão | Thiago Porfirio d’ Araujo | Militar, tenente da Guarda Nacional | |
Macapá | 1878 | Procópio Antonio Rolla Sobrinho | Advogado, Juiz da Comarca |
FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil Industrial e Noticioso do Pará (1869).
Os delegados deveriam ter uma formação adequada a fim de que pudessem exercer uma fiscalização inteligente e orientar pedagogicamente os professores diante da falta de uma formação da escola normal. Ou seja, uma inspeção “científica” e profissionalizada, constituída por fiscalizadores habilitados que exercessem mais eficientemente a vigilância.
Foram identificados bacharéis em direito que acumulavam os cargos de juiz e de delegado da Instrução Pública em Santarém, Porto de Moz e Macapá. Esses bacharéis foram utilizados na inspeção escolar por conta da sua formação moral que poderia contribuir para a eficiência na fiscalização da instrução e, assim, garantir o funcionamento de um projeto civilizatório via escola.
Visitadores da instrução pública primária na comarca de Macapá
A circulação geográfica de bacharéis em direito que exerciam diferentes cargos pelo País no século XIX e, no caso desse estudo, na Comarca de Macapá, segundo Carvalho (2007), era para aquisição de experiência administrativa. Esses deslocamentos eram uma estratégia utilizada para formação e aquisição de experiência profissional e política a partir da circulação territorial. A importância dos bacharéis em direito na construção do Estado Nacional passava pela ocupação de cargos privilegiados na administração da burocracia estatal, bem como pela ocupação de cargos que, da mesma forma, atuavam em setores significativos na construção da nação como o setor de Instrução Pública Primária.
Outra categoria de sujeitos da Instrução Pública na Comarca de Macapá eram os visitadores, geralmente bacharéis em contabilidade.
ANO | NOME | FORMAÇÃO | REGIÃO |
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1852 | Martinho Izidoro Pereira Guimarães | Contador, Inspetor do Tesouro Provincial. | Macapá |
FONTE: Relatórios do Presidente da Província do Pará (1852).
Os visitadores estavam inseridos no degrau dos “empregados públicos de alta categoria”. Diante disso, eram exigidos os predicados próprios à sua posição hierárquica e ao seu papel específico, tais como: inteligência, conhecimentos acerca das matérias da instrução primária, saúde robusta e probidade (PARÁ, 1874, p. 14). O visitador da Comarca de Macapá era filho do negociante português José Antônio Pereira, que chegou ao Pará em 1803, onde estrategicamente se casou com dona Alexandrina Gumeria de Souza Cunha, filha do administrador da antiga Companhia de Comércio, Manoel José da Cunha (GUIMARÃES, 2016).
Os visitadores, por sua vez, deveriam: visitar uma vez por ano todas as escolas e aulas do seu distrito, tanto públicas como particulares, examinando minuciosamente o seu estado físico e material, além do método seguido no ensino e a educação religiosa; avaliar o grau de aproveitamento dos alunos e informarem-se da assiduidade e do procedimento dos professores relativos às suas obrigações.
Deveriam, em qualquer tempo, extraordinariamente, visitar as escolas e às aulas do seu distrito, por ordem do diretor. Além disso, deveriam remeter ao diretor, até o fim do mês de fevereiro, um relatório circunstanciado sobre as necessidades das escolas, indicando os melhoramentos que lhes parecessem convenientes.
Os visitadores fiscalizavam um grande número de escolas, geralmente em uma única viagem, que podia durar de um a três meses. A exemplo, tem-se a viagem do diretor da Instrução Pública do Pará, o médico Joaquim Corrêa de Freitas que, em pouco mais de três meses, visitou 83 escolas em quatro comarcas no ano de 1875. Corrêa de Freitas, em seu relatório, lamenta não poder ter um visitador remunerado para cada comarca, onde havia mais de 20 escolas para inspeção, o que demonstra a necessidade de contratações para atender as escolas do interior (PARÁ, 1877, anexo 3).
Semestralmente, os visitadores deveriam remeter à Diretoria Geral de Inspeção Pública um relatório sobre as escolas inspecionadas no interior, enquanto o da capital o faria semanalmente. Essa diferença temporal evidencia a dissonância entre as escolas do interior e as escolas de Belém, cujo acesso era difícil por conta da geografia da Província. Esse dado geográfico comprometia a aplicação dos regulamentos da Instrução Pública Primária junto à população por conta de uma série de fatores, como a falta de infraestrutura para o funcionamento das escolas, tal qual demonstra o visitador Corrêa de Freitas. (PARÁ, 1877).
O diretor da Instrução Pública do Pará, Joaquim Pedro Corrêa de Freitas, que também visitou as escolas do interior da Província, relata que as escolas eram pouco frequentadas devido à estação da colheita da borracha, quando os povoados eram abandonados por muitos de seus habitantes.
Domingos Soares Ferreira Penna, em passagem pela Comarca de Macapá também registrou a situação da Instrução Pública Primária e a relação da dinâmica de coleta extrativista que influenciava diretamente no calendário escolar:
Desde o começo até o fim do verão ficam fechadas até o início do inverno (final de janeiro e início de fevereiro), quando os pais começam a regressar a povoação trazendo consigo os filhos que muitos fazem logo a matrícula nas escolas. O professor ou professora faz a inscrição no livro de matrículas, abrem-se as aulas e os discípulos as frequentam 3, 4 ou 5 meses. No fim deste período, os pais que na forma habitual tem que se preparar para safra da borracha, vem pedir dispensa dos filhos e filhas para ajudarem a fazer farinha, juntar caroços de urucuri necessários para defumação da borracha. Os professores dão sempre a dispensa pedida, porque se a recusassem não só os discípulos abandonariam a sala de aula, como também correriam o risco de não voltarem no ano seguinte. Deste modo antes mesmo de chegar a época da partida para os seringais os professores fecham as aulas por não terem já a quem ensinar (FERREIRA PENNA, 1874).
O calendário escolar da Comarca de Macapá não levou em consideração as especificidades históricas, culturais, ambientais e socioprodutivas dos alunos, no qual suas atividades cotidianas não seguiam o tempo cronológico, mas o tempo das águas e das florestas, de onde tiravam o sustento de suas famílias por meio das práticas de caça, pesca e extrativismo da Borracha. A educação na Amazônia, historicamente, tem-se caracterizado em meio a processos de luta e resistência em torno dos seus territórios e modos de vida.
De acordo com os regulamentos de Instrução Pública da província do Pará, as casas que deveriam ser alugadas para funcionar as escolas primárias deveriam ter as condições ideais de capacidade, salubridade e situação favorável para o maior número possível de alunos. No entanto, na prática, segundo o diretor da Instrução Pública da Província do Pará, Padre Felix Barreto de Vasconcelos (1858), as escolas mal acomodavam os alunos durante o dia. Nas localidades do interior da província, as escolas funcionavam nas igrejas, palhoças ou casas acanhadas, pois, em muitos lugares, só existia a casa do pároco, conforme atestou o diretor da instrução pública.
Embora o espaço escolar, em sua dimensão física, seguisse uma caracterização doméstica em função de as aulas serem realizadas na casa dos mestres, em meio ao seu convívio particular, ainda assim, o espaço simbólico da escola primária da província do Pará apresentava-se como lugar público. Diante disso, nota-se que a instrução pública superava o simbolismo doméstico em detrimento de sua afirmação como espaço que estava sendo utilizado para fins educacionais e/ou instrucionais.
Nas escolas de Macapá e Mazagão, foi constatada a falta de móveis adequados para a realização das aulas do ensino primário, já que, apesar de os professores serem zelosos, o governo provincial não conseguia equipar as escolas com mobiliários escolares e materiais pedagógicos. Diante disso, os professores tinham que pedir móveis aos vizinhos para acomodar as crianças em suas casas e oferecer o mínimo de conforto para realização das aulas e para que os alunos não tivessem que se sentar no chão.
O artigo 40 da lei 669 de 1871 manda fornecer as escolas os móveis necessários. Esta disposição como outras idênticas dos regulamentos anteriores, não tem tido execução satisfatória, do que há resultados, acharem-se todas as escolas que visitei tão desprovida de mobília, que os professores mais zelosos têm a necessidade de mendigar um banco aqui, uma cadeira acolá, uma mesa do vizinho etc., para uso de suas escolas. O professor de Mazagão por exemplo incomodou os conhecidos, pedindo 4 cadeiras para a aula; o de Porto de Moz fez tantos outros para a sua; na escola de meninas desta vila, não havendo se não um banco velho e já quebrado, a professora que ali fora nomeada teve que pedir emprestada uma mesa e alguns bancos para as lições, a fim de não ver o desgosto de ver suas discípulas sentadas ao chão! (FERREIRA PENNA, 1874).
Era nítido o descaso do governo provincial com as escolas da Comarca de Macapá, uma vez que, apesar de os professores terem solicitado a remessa de móveis que já tinham sido pagos e se encontravam na capital, não foram atendidos por causa de certas dificuldades administrativas como dificuldade de transporte e falta de disponibilidade orçamentária do tesouro do estado, que se esquivava da obrigatoriedade prevista nos regulamentos da Instrução Pública (SOUSA, 2019).
De acordo com Ferreira Penna (1874), a matrícula dos alunos na Comarca de Macapá era uma ficção, ou simples formalidade oficial, pois, apesar de todo aparato de inspeção e fiscalização das escolas e todos os mapas de frequência, o Estado desconhecia o verdadeiro estado da Instrução Pública Primária no interior da província, pois muitos professores utilizavam os mesmos mapas todos os anos, o que garantia os seus vencimentos pelo tesouro provincial.
De acordo com Faria Filho, Neves e Caldeira (2005, p. 234), as estatísticas conformam modos de representar e, portanto, produzir e controlar a realidade e as maneiras de classificar e ler o mundo, profundamente comprometidas com os princípios da racionalidade moderna e com os modos de governo das pessoas e da realidade social.
As práticas estatísticas são, também, práticas escriturísticas que, segundo Veiga (2005), transformam a página em branco em um lugar de produção para o sujeito e cujas marcas podem subsistir ao tempo. Constrói-se um texto que articula simbolicamente práticas heterogêneas de uma sociedade, exibindo-se como linearidade, sistema e homogeneidade. E permite acumular o passado, fabricando o presente. As estatísticas produzem, enquanto escrita, uma realidade sócio-histórica e a registram para o futuro no discurso enunciado pelo Estado e servem, também, aos professores ao preencherem os mapas de frequência, renovando, nas estratégias da escrita, táticas de sobrevivência profissional, como a manutenção das escolas e o recebimento de salários, como observou Ferreira Penna (1874) ao analisar os livros de frequência da escola primária de Mazagão:
Entrando na escola de Mazagão na hora das lições, deu-me o professor todos os esclarecimentos que pedi, inclusive o livro da matrícula, onde lançava regularmente a matrícula dos alunos. Fiquei, porém, surpreendido ao ler a data de 1853, lançada neste livro que era ainda o mesmo que ano fora remetido para a matrícula dos alunos da escola de Mazagão, há 20 anos, pelo Sr. Leitão da Cunha, que era então Diretor da Instrução Pública, e que depois de remeter o dito livro, já foi Juiz de distrito, Chefe de Polícia, Presidente de três Províncias, Deputado e Senador. E maior foi a minha admiração vendo que o livro não havia sido escriturado, senão em uma 8º ou 10ª parte estando tudo o mais em Branco (FERREIRA PENNA, 1874).
Os dados escolares, divulgados pelas diretorias de instrução, baseavam-se nos mapas enviados pelos professores públicos e foram considerados, quase unanimemente, irreais, pois, muitas vezes, o professor anotava o número de alunos matriculados, mas não os que efetivamente frequentaram as aulas, como era esperado. Não era ocorrência incomum professores e professoras fraudarem os mapas de forma a manter o número mínimo exigido por lei para manter a escola em funcionamento ou para conservar a sua posição na hierarquia escolar, sobretudo nos lugares mais distantes onde as visitas escolares aconteciam esparsamente. Por outro lado, a não contagem do número total de alunos, nos casos de professores que não enviavam seus mapas, incidia costumeiramente sobre as estatísticas escolares, a despeito das punições previstas nos regulamentos (RIZZINI, 2011).
Professores da instrução pública primária na comarca de Macapá
Sobre os professores, a maioria das escolas do interior da Amazônia, no século XIX, era regida por padres, militares ou por professores interinos que eram aqueles contratados por um período de três a seis meses pelo governo para substituir os professores aprovados em concurso público, por motivo de moléstia, suspensão ou qualquer outro. O jornal Treze de Maio publicou ofícios e portarias de nomeação de professores interinos para Comarca de Macapá nos anos de 1855 e 1856.
Ofício: Nomeando o Padre Joaquim Manoel de Jesus, para reger interinamente a cadeira de instrução primária do segundo grau da Vila de Macapá, comunicou ao inspetor do Tesouro Público Provincial em resposta ao Diretor da Instrução Pública (TREZE DE MAIO, 1855, p. 1, 27 de março, grifo nosso).
Portaria: Nomeando Anna da Silva Rolla, para reger interinamente a cadeira de instrução primária do sexo feminino da Vila de Macapá. comunicou ao inspetor do Tesouro Público Provincial em resposta ao Diretor da Instrução Pública (TREZE DE MAIO, 1856, p. 4, 19 de maio, grifo nosso).
O Padre Joaquim Manoel de Jesus exercia o papel de vigário da Paróquia de São José de Macapá e, também, de professor interino da cadeira de Instrução Pública Primária masculina. A professora que foi nomeada para a cadeira de Instrução Pública Primária feminina foi Anna da Silva Rolla, que pertencia à família mais influente da Comarca de Macapá, formada por militares, políticos e proprietários de fazendas de engenhos e de criação de gado, conforme demonstrado no Almanack Administrativo, Mercantil e Industrial da Província do Pará, publicado em 1869.
NOME | DESCRIÇÃO |
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Procópio Antonio Rolla | Tenente Coronel da Guarda Nacional, faleceu em 1856 e sua morte foi noticiada no Jornal Treze de Maio de 7 de fevereiro de 1856 e no Jornal Estrella do Amazonas de 15 de março de 1856. Foi delegado da Instrução Pública de Macapá em 1854. |
Paulino Antonio Rolla | Vereador, suplente do juiz municipal Dr. Alfredo Sergio Ferreira, bem como 3º suplente do delegado de polícia, Feliciano de Souza Gil Vaz, ele acumulava também outras ocupações públicas em Macapá. |
Francisca de Almeida Rolla | Proprietária do engenho de aguardente e mel da região do Curiaú. |
Alexandre Antonio Rolla | Proprietário da criação de rebanho de gado vacum e cavalar na localidade de Santo Antonio. |
Procópio Antonio Rolla Sobrinho | Proprietário da criação de rebanho de gado vacum na localidade de Santo Antonio. Foi delegado da instrução de Macapá no ano de 1878. |
Anna da Silva Rolla | Professora interina da cadeira de instrução pública feminina da cidade de Macapá em 1856. |
FONTE: Almanack Administrativo, Mercantil Industrial e Noticioso do Pará (1869).
Essa elite política e econômica da Comarca de Macapá também era a elite educacional, pois ocupava os principais cargos públicos referentes à Instrução Pública, como o cargo de delegado de Instrução Pública, visitadores e professores. Essa elite política, econômica e educacional, presente na Amazônia no século XIX, Rizzini (2004) denominou “mandões d’aldeia”, que eram os chefes locais ricos, representantes do poder do Estado, tais como, militares, políticos e juízes.
Uma vez que as mulheres letradas da elite tinham poucas opções de trabalho, o cargo do magistério foi uma forma encontrada pelos governantes para suprir temporariamente a carência de mestres, haja vista que os salários pagos eram pouco atrativos, levando alguns professores a complementarem seus pagamentos com outras atividades. Os professores eram divididos em quatro classes e tinham ordenados diferentes de acordo com essas classes, mas todos ganhavam a mesma gratificação no valor de cem mil réis pelo seu trabalho; além disso, a fim de que as obrigações fossem executadas comodamente, esses recebiam abonos diferenciados para os pagamentos do aluguel dos seus imóveis para realização das aulas.
LOCAL | ANO | PROFESSOR | NÚMERO DE ALUNOS | SALÁRIO |
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LOCAL | ANO | PROFESSOR | NÚMERO DE ALUNOS | SALÁRIO |
Macapá | 1840 | Guilherme de Seixas | 84 | 100$000 |
1841 | Fernando Rodrigues de Carvalho | 84 | 100$000 | |
1842 | ||||
1843 | ||||
1848 | Padre Felippe Santiago de Vilhena | 10 | 300$000 | |
1849 | 14 | |||
1852 | - | 25 | - | |
1854 | Emília Sanches de Barros Moraes | - | - | |
1855 | Padre Joaquim Manoel de Jesus | 51 | 400$000 | |
1856 | Anna da Silva Rolla | - | - | |
1859 | Altair da Silva Rolla | - | - | |
1869 | Fernando Alvares da Cosia | - | - | |
D. Anna do Couto Toninha | - | - | ||
1871 | Manoel José Pinho | - | - | |
1872 | Capitão Fernando Alvares da Costa | - | - | |
1875 | Leopoldo Gonçalves Machado | - | - | |
1876 | Joaquim Francisco de Mendonça | - | - | |
1877 | - | - | ||
1878 | - | - | ||
1882 | Idalina Augusta de Novaes Faria | - | - | |
1883 | - | - | ||
1884 | - | - | ||
Mazagão | 1842 | João Pereira da Nóbrega | 75 | - |
1848 | Padre José Marispa da Penha | 12 | 300$000 | |
1849 | 17 | |||
1852 | - | 45 | - | |
1853 | - | 21 | - | |
1855 | Padre José Marispa da Penha | 26 | - | |
1869 | Rofino Valente de Loureiro | - | - | |
1881 | Joaquim Francisco de Mendonça Junior | - | - |
FONTE: Relatórios da Província do Pará (1840-1881).
Caso os professores não cumprissem com suas obrigações, o Diretor da Instrução Pública da capital deveria repassar ao Presidente da Província o ocorrido para que tomasse as devidas providências, e fora da capital, e os Delegados repassavam a ocorrência dos fatos ao Diretor. Na Comarca de Macapá, várias denúncias foram feitas nos jornais contra professores sobre a situação precária das casas onde estavam implantadas as escolas.
Solicitados: Macapá - Chamamos a atenção do Sr. Excl. presidente da província do fato escandaloso do Sr. Dr. Inspetor do Tesouro provincial, o fato é o seguinte: o professor público desta cidade, Joaquim Francisco Mendonça, recebeu do tesouro por intermédio da coletoria 145:833 réis mensais, sendo 125$000 réis de seu ordenado e 20$000 réis para o aluguel da casa da escola pública em que reside de propriedade de seus netos dos quais é tutor. Paga de aluguel da mesma casa seis mil réis, segundo atesta o delegado de polícia, porém a casa onde funciona a escola é um pardieiro imundo e indecente, insalubre onde chove como na rua, coberto de palha, sem ladrilho nem assoalho. A sala deve ter cerca de 25 palmos de largura e 25 de fundos. A lei não quer nem a decência permite que em uma cidade o professor público tenha sua escola em semelhante casa, somente com o intuito de lesar os cofres os públicos. A parte moral do ensino deve talvez corresponder a parte material. O professor que não tem zelo pela casa da escola, não pode ter pela instrução de seus discípulos. Acresce que o mesmo professor em vez de ocupar-se dos deveres da sua profissão de magistério, ocupa seu tempo em audiências sendo procurador e defensor em juízo, no tempo que devia ocupar na escola. Os fatos mencionados se acham todos comprovados em documentos, para que não se possam contestá-los, por quanto nosso fim é que se estabeleça naquela localidade o império da lei e da moralidade (A CONSTITUIÇÃO, 1878, 9 de novembro, p. 01).
De acordo com a denúncia publicada no jornal A Constituição4, simpatizante do partido conservador, a escola da cidade de Macapá, de responsabilidade do professor Joaquim Francisco Mendonça, era semelhante a um pardieiro imundo e indecente, cheia de goteiras, coberta de palha com piso sem revestimento. Na ocasião, foi objeto de reclamações o fato de que o professor quase não parava na escola para estar presente em audiências públicas como procurador do Juízo de Órfãos, cargo existente desde o período colonial.
No século XIX, o Juízo dos Órfãos era uma instituição importante na dinâmica das Comarcas provinciais e como uma das formas de acesso tanto às carreiras públicas de prestígio como na política regional ou nacional. O cargo de Promotor Público de Órfãos era exercido por indivíduo que não necessariamente tinha que ser bacharel em Direito, mas poderia ser professor, como era o caso da Comarca de Macapá. A função dos promotores públicos era zelar pelos interesses dos menores nos trâmites que corressem pelo Juízo dos Órfãos.
O papel desempenhado pelos promotores de Órfãos era muito importante para o andamento das ações, uma vez que, por lei, ele era obrigado a dar “Vistas” em todos os processos. Caso contrário, a decisão sobre o caso não teria validade. Em termos práticos, a função era uma atividade mais burocrática, pois sua opinião, quando solicitada, não suplantava a decisão do Juiz de Órfãos. Sua função, pela leitura dos processos de tutela, era a de auxiliar o Juiz para que este não cometesse nenhuma incúria, sem que lhe fosse facultado decidir ou alterar uma sentença. Mesmo assim, era considerado o “Advogado dos Órfãos” por pleitear os interesses dos órfãos e incapazes nos processos que corriam pelo Judiciário.
Outra denúncia contra um professor da Instrução Pública da Comarca de Macapá foi registrada no Jornal O Liberal do Pará, dessa vez contra o professor Manoel José Pinho, em relação às condições estruturais da sua casa ― que também servia como escola ― que estava prestes a desabar.
Macapá, 5 de Junho de 1871.
Esta é a terceira vez que viemos a imprensa para lembrar ao Sr. Diretor da Instrução Pública, as justas acusações que temos feitos por este jornal contra o atual professor desta cidade, Manoel José de Pinho, que resumimos nos seguintes pontos principais. 1º) Funcionar a aula na casa de moradia de professor que se acha com a cumieira quebrada e por momentos a desabar, podendo esse acontecimento dar-se em ocasião em que os meninos se achem na aula e ficarem todas vítimas dessa catástrofe (O LIBERAL DO PARÁ, 1871, p.3, 14 de junho, grifo nosso).
A expressão “casa escola”, consagrada na literatura pedagógica, sugere a dupla imagem de alojamento para o professor e de salas organizadas para receber os alunos na hora das lições. É a partir dessa perspectiva que Brullet (1998) introduz o conceito de “domesticidade” para explicar o processo de transformação de um espaço doméstico em um espaço especificamente pensado para o ensino. A dicotomia escola/habitação configura uma “resistência” ao processo de separação do local de trabalho e local de morada, iniciado pela Revolução Industrial. Desse ponto de vista, a interioridade e o intimismo do lar ‘contaminaram’, durante largo período, o ambiente da escola (NERY, 2021).
Os castigos escolares praticados em casas escolas também foram objetos de denúncias contra o professor primário de Macapá, Manoel José Pinho, assim como alguns conflitos entre o professor e os familiares dos alunos:
Abuso do dito professor pela indisposição com muitos pais de família, que em razão tem deixado de mandar seus filhos para aula, sendo a ocasião do ensino, a que julga mais própria para derramar sua bílis contra os seus desafetos nas pessoas de seus filhos, já por meio de palavras e castigos e até empurrando-os pela porta afora (O LIBERAL DO PARÁ, 1871, p.3, 14 de junho, grifo nosso).
O sadismo pedagógico [violência pedagógica], de acordo com Manacorda (2004), foi uma das características básicas do processo educativo ao longo da história da Educação, não sendo exclusividade de um povo específico; também acometera o Brasil, tendo tido grande representatividade no século XIX, quando a postura autoritária e violenta de alguns professores era uma estratégia para compensar sua falta de habilidade para o magistério. No âmbito das províncias, os castigos físicos eram praticados de forma natural para educar crianças, seja na relação professor/aluno, seja na relação pais/filhos. O uso da violência era legítimo não apenas no universo escolar, mas em todo o processo que envolvesse relações humanas, fossem elas entre senhor e escravo, entre marido e esposa ou entre pais e filhos (VEIGA, 2012).
Outras reclamações dos pais de alunos eram referentes ao horário variável de aula para os alunos da Comarca de Macapá, que não eram atendidos todos no mesmo momento pelo professor Manoel José Pinho, o que levava alguns alunos a gazetearem ou ficarem pela vizinhança pedindo água para beber devido à sede causada pelo calor intenso na parte da tarde, pois quando havia água na escola essa era de péssima qualidade, retirada de um igarapé que logo ficava putrificada. Nesse sentido, os pais reivindicavam que pelo menos fosse oferecida água dos poços públicos de boa qualidade para os alunos.
Irregularidade no ensino como temos anunciando em nossas anteriores reclamações, sendo uma das maiores as faltas de hora certa para a abertura da aula, constando-nos que os pais dos alunos entram uns as duas e três horas e outros ainda mais tarde, de forma que estes entram quando os outros estão por sair, além disso pouco estudam porque os que não andam mendigando água para saciar a sede, andam a gazetear e fumar seu cigarrinho (O LIBERAL DO PARÁ, 1871, p.3, 14 de junho, grifo nosso).
A normatização do tempo pelo Estado significou colocar em ação um dispositivo de racionalização do ensino e de controle sobre a infância e sobre os professores. A legislação foi um dos instrumentos amplamente utilizados para reformar os sistemas de ensino e adequar a escola aos interesses das elites locais, regionais e nacionais, assim como as necessidades de nova ordem social nas províncias e comarcas do império (SOUZA, 1999). Em que pesem as diferenças entre o tempo formal e os usos e práticas do tempo real nas escolas, é preciso reconhecer que a lei também foi uma forma discursiva e uma forma de intervenção social nos modos de vida das populações locais da Comarca de Macapá, mas, em algumas situações, formas de resistência, seja por parte dos alunos ou dos professores, como podemos observar no relato de Ferreira Penna, ao visitar uma escola na Comarca de Macapá, às 8h da manhã, e ser surpreendido com a falta de alunos e com o fato de o professor ainda estar dormindo.
[...] Não assisti a aula de meninas por estar a professora impedida por motivo de parto. Entrei, porém, na sala da escola do sexo masculino para assistir às lições às 8 horas da manhã e procurei pelo professor, que recebendo meu recado sem resignação do meu nome, mandou de dentro, em troca outro recado, para que eu dissesse o que pretendia, por que ele ainda estava acomodado! [...] O aspecto indecoroso da sala de aula tinha me dado suficiente ideia do que seria o professor que às 8 horas da manhã ainda estava dormindo [...] (FERREIRA PENNA, 1874, grifo nosso).
Como podemos perceber, o tempo escolar não conseguiu se impor totalmente nas comarcas do interior, pois tanto o tempo quanto os espaços escolares, apesar de fazerem parte da ordem social e escolar, são sempre pessoais e institucionais, individuais e coletivos e a busca de delimitá-los, controlá-los deve ser compreendida como um movimento que teve ou propôs múltiplas trajetórias de institucionalização da escola, dentre eles a força educativa e as práticas de resistências dos sujeitos da ação educativa.
De acordo com a denúncia publicada no jornal O Liberal, as crianças, ao gazetearem, também fumavam cigarros. Em um primeiro olhar, pode parecer absurdo; no entanto, no século XIX, essa era uma prática recorrente, conforme podemos observar em relatos de viajantes, como, por exemplo, os alemães Spix e Martius [1817-1820], que registraram esse hábito de fumar na primeira metade do século XIX; eles apontam para o fumo disseminado entre as classes mais pobres, ressaltando ser hábito até mesmo entre os eclesiásticos. No livro Cenas da Vida Amazônica, José Veríssimo (1857-1916) resgata o hábito do fumo de uma mulher ribeirinha na Amazônia em uma passagem de cena noturna.
Ela ficava fumando devagar, compassadamente, o cotovelo agudo especado nos joelhos, a mão aguentando o tubo do cachimbo com os olhos fitos num trecho do terreiro que aparecia pela porta aberta em frente da rede, batendo os beiços um no outro a chupar as fumaças, em uma posição indolente de vadiação satisfeita (VERÍSSIMO, 2011, p. 79, grifo nosso).
Apesar de o fumo ser um hábito comum entre os habitantes da Província do Pará e da Comarca de Macapá, no âmbito das escolas era uma prática condenada, inclusive mensagens médico-higienistas estiveram presentes em compêndios da Instrução Pública Primária que circularam na Comarca de Macapá, em que repreenderam o hábito de fumar, como por exemplo o Livro do povo, de Antonio Marques Rodrigues. Esse compêndio era utilizado em disciplinas como Leitura e escrita, Instrução moral e religiosa; no tópico “Sensações e Paixões”, o autor enfatiza a necessidade do respeito ao próximo, o barulho, a crença em bruxas, sonhos, agouros etc. Na seção generalidade, o autor apresenta alguns rifões rimados para orientar as crianças sobre os cuidados com a higiene pessoal e os prejuízos do vício do ato de fumar.
Nunca durma com os gatos, nem passos dês sem sapatos. [...] Reter a urina em rapaz, dor de pedras e areia faz. [...] Se as unhas usar roer, podes os dedos perder. Lerás a luz natural, mas pouco a artificial. Muito cuspir é um vício, que nunca fez benefício. Outro vício é o fumar, que te há de prejudicar [...]. Faz quando manda o Doutor, quando não será pior [...]. Não finjas doentes estar, pode-te Deus te castigar (RODRIGUES, 1865, p. 235, grifo nosso).
A reprovação de alguns hábitos, como roer as unhas, cuspir e fumar denota uma preocupação não apenas com a saúde dos alunos, mas também a condenação de costumes considerados não civilizados.
Nesses termos, cabia ao professor evitar hábitos prejudiciais em seu horário de trabalho: “Ao professor é expressamente vedado: [...] infligir castigos físicos aos alunos [...] fumar, mascar tabaco [...] satisfazer, enfim, qualquer vício, durante as horas de aula” (PARÁ, 1890, art. 9, p. 51). A constante preocupação em afastar os alunos dos vícios prejudiciais à moral e à saúde era um papel de todos os agentes da Instrução Pública, mas principalmente dos professores, em especial aqueles que estavam atuando nas escolas primárias das Comarcas do interior da província.
No entanto, essa moralidade por parte do professor Manoel José Pinho, na Comarca de Macapá, estava em falta por conta dos conflitos e desgastes com os pais de alunos e outras pessoas daquela localidade, materializada em calúnias e injúrias verbais pelas quais foi condenado a seis meses de prisão pelo Juiz municipal Major José Vasques Melo, por não se comportar de forma adequada em audiência pública naquela comarca onde estavam presentes as principais autoridades da cidade de Macapá.
A raposa tanto vai ao moinho que lá deixou o focinho.
Com o referir-lhe o presente provérbio, só quero meu caro redator contar-lhe o fato que se deu nesta cidade com o professor público de primeiras letras, Manoel José de Pinho, que tão acostumado estava em caluniar e injuriar a todos não poupando ao menos a coisa mais sagrada de uma família. Lembrado estará das muitas vezes que os pais de família tem recorrido as colunas do seu bem conceituado jornal, “Diario do Gram-Pará” e “Santo Oficio” para por meio da imprensa denunciaram os atos praticados e imorais praticados pelo dito professor Pinho, pedindo ao Excl. Sr. Presidente e ao Diretor de Instrução Pública, as mais prontas providências a tal respeito, porém estas duas autoridades zombando do clamor geral dos habitantes desta cidade, providência nenhuma tem dado, e vendo o Sr. Pinho, a impassibilidade de seus superiores entendeu que deveria ir além daquilo que estava praticando. No dia 15 do mês passado, estando o Sr. Juiz municipal, o Major José Vasques Melo, dando audiência no passo da Câmara Municipal e ali comparecendo o mesmo Pinho, como uma das parte contendentes de uma ação de liberdade, que move no foro desta cidade, o Capitão Fernandes Alvares da Costa, a favor do preto João, que foi vendido condicionalmente, naquele auditório público seu cartel de descomposturas do costume, sendo neste dia seu alvo principal a pessoa do Sr. Capitão Alexandre Antonio Rolla, e iria adiante se o juiz não o chamasse a ordem. O Sr. Capitão Alexandre queixou-se formalmente a autoridade competente e no dia 13 do corrente mês, foi condenado a seis meses de prisão pelos crimes de calunia e injurias verbais. O que dirão agora o Sr. presidente e o Dr. Diretor da Instrução Pública, a quem tantas vezes pedimos providência? Dirão ainda que serão coisa do Liberal do Pará, Diario do Gram-Pará e Santo Ofício, a que não se presta a menor atenção. Resta vermos qual o procedimento das duas autoridades a que nos referirmos.
Macapá, 18 de Maio de 1872, um Pai de Família, (O LIBERAL DO PARÁ, 1872a, p. 2, 23 de maio, grifo nosso).
É impossível e até desnecessário entrar no mérito do que era verdadeiro ou falso nas denúncias publicadas nos jornais; a publicação das cartas indica que tais ocorrências, algumas relacionadas a questões íntimas das vidas desses atores, eram possíveis e pertenciam à construção da experiência escolar na província. O fato de tornar público os conflitos do cotidiano escolar sugerem que as vivências e as questões pertinentes à instrução pública eram de interesse de um grupo mais extenso do que o dos representantes do Estado, pois repercutiam nas famílias e fomentavam os embates partidários, quando a divulgação das denúncias tinha o claro propósito de demonstrar a decadência da instrução promovida pelo governo opositor (RIZZINI, 2005).
Após a repercussão negativa nos jornais sobre as atitudes do professor Manoel José Pinho, na Comarca de Macapá, esse solicitou ao presidente da província remoção para escola primária de Mojú, alegando estar sofrendo problemas de saúde em razão da situação de insalubridade da cidade de Macapá.
Expediente do Governo: Dia 18 de julho de 1872, Portaria. O presidente da província, atendendo os motivos alegados por Manoel José de Pinho, de estar sofrendo muito em sua saúde em consequência da insalubridade da cidade de Macapá, onde é professor e tendo em vista a informação do Diretor de Instrução Pública, resolve conceder ao mesmo professor, a remoção que pediu da categoria de ensino primário de 2ª entrância para 1º da vila do Mojú, que está vaga (O LIBERAL DO PARÁ, 1872b, p. 1, 8 de agosto, grifo nosso).
Os presidentes de província exerciam um papel articulador no âmbito dessa situação com o objetivo de gerar dividendos eleitorais nas comarcas do interior. O apadrinhamento constituía o principal instrumento de cooptação de partidários leais ao gabinete, levando os presidentes a intervirem em numerosos assuntos, pequenos como esse do professor da Comarca de Macapá. O professor era um agente importante na dinâmica do clientelismo na Instrução Pública, pois era apresentado como acionador do patronato, muitas vezes como vítima do partidarismo; ou seja, ele era uma peça sensível às condições políticas do momento, podendo mover-se ou ser movimentado de acordo com o jogo político em ação.
Considerações finais
Neste estudo, tivemos como objetivo analisar os sujeitos da inspeção da instrução pública primária na Comarca de Macapá (1852-1886) por meio dos estudos dos sujeitos e práticas da ação educativa, extraídas de diversas fontes históricas localizadas nos arquivos públicos de Macapá, Belém e Rio de Janeiro (Biblioteca Nacional).
A constituição do aparato de fiscalização e inspeção da Instrução Pública Primária foi criada com o objetivo e a garantia do projeto civilizador, por meio do controle sistemático do ensino e a formação de múltiplas hierarquias, divididos em cinco categorias de agentes de inspeção: presidente da província, diretor de instrução pública, delegados, visitadores e professores.
Os sujeitos da ação educativa e da inspeção escolar na Comarca de Macapá, em um primeiro momento, estavam ligados às elites locais descendentes de colonos portugueses, militares, políticos, religiosos e bacharéis. Posteriormente, com a criação de escolas normais na província para formação de professores e criação de concursos públicos, professores de outras Comarcas da província e de outras classes sociais circularam pelas escolas de Macapá, assim como se permitiu que mulheres também exercessem a profissão docente e criassem escolas primárias femininas ou mistas.
Diante dos resultados alcançados na pesquisa, acreditamos que este estudo irá contribuir para o campo da História da Educação da Amazônia, em termos de pesquisa e ensino de história da educação nos cursos de formação de professores no estado do Amapá, haja vista que temos poucos trabalhos acadêmicos histórico-educacionais sobre o referente período histórico e devido à dificuldade de acesso às fontes que nem sempre estão disponíveis na própria região ou nos arquivos públicos.