Introdução
A historiografia social da Amazônia invisibilizou e silenciou o lugar ocupado pelas mulheres na vivência nas comunidades. Essa invisibilidade e esse silenciamento assume outras características a partir de uma nova historiografia construída por autoras feministas, como Perrot, Rago, Del Priori e outras tantas que privilegiam a narrativa e o protagonismo das mulheres em suas investigações. Em suas abordagens, as autoras não evidenciam as mulheres como passivas e submissas, mas, sim, como sujeitos que se apropriam de miséria, opressão e dominação que lhes são impostas para romper os limites da ordem social criando tensionamentos, possibilidades e emancipação inscritas em suas histórias pessoais. É nessa contradição entre emancipação e subalternidade, elaboradas a partir da história de vida e organizada em narrativa, que foram pensados os alinhamentos teóricos utilizados neste artigo, associando as teorias feministas de gênero à perspectiva histórico-cultural de Vygotsky.
A teoria histórico-cultural evidencia que o ser humano é tecido nas relações com o meio social. O desenvolvimento humano funciona como se fosse uma espiral passando pelo mesmo ponto em cada nova etapa, sendo particularizado para cada indivíduo, considerando o conjunto de condições materiais que o cercam (ANDERY, 2012). Isso implica compreender que o ser humano, à medida que modifica aspectos internos, tem potência para alterar o ambiente externo que, por sua vez, também altera aspectos interiores; e, assim, sucessivamente. As mudanças nas condições históricas e materiais determinam as oportunidades para a experiência humana e criam variáveis únicas para os aspectos internos e externos do desenvolvimento. Não haveria, com isso, uma natureza humana inata, fixa e universal, mas, sim, indivíduos que adquirem infinitas formas de existência a partir das condições materiais e simbólicas que dispõem (GUIMARÃES, 2018).
Nos estudos de gênero, observam-se condições concretas desiguais entre homens e mulheres, o que implica redes de significações culturais repletas de tabus, preconceitos, sanções, entre outros, em desfavor das mulheres (FONSECA, 1996). Esses estudos exigem não somente compreender da relação entre as experiências masculinas e femininas no passado, mas também o laço entre a história do passado e as práticas históricas atuais (SCOTT, 1995). Se os significados, que são sociais, são apropriados pelas pessoas a partir de sua atividade ― que, por sua vez, também foi construída no social ― temos, então, um indivíduo que se particulariza no social (SANDRI, 2001). Fazer parte de um gênero consiste em significar as normas, os preceitos, as regras, entre outros dispositivos sociais, de forma a reproduzi-los e organizá-los novamente, atribuindo novos sentidos às relações (SAFFIOTI, 1992). No processo de subjetivação humana, a pauta de gênero é constantemente ressignificada, atravessando todas as relações sociais e construindo novos modos de se constituir no mundo.
Assim, reconhece-se que a condição histórica de mulheres amazônidas se transforma em possibilidade de emancipação e autonomia quando essas se tornam professoras; uma vez que há características sociais comuns, como: condição de vida, acesso à educação, saúde, lutas e resistências de professoras, o que não está desconectado da vivência mais ampla da constituição de vida de mulheres ribeirinhas. Considerando esse contexto, organizou-se o problema da pesquisa na intenção de compreender como meninas e mulheres, que foram por muito tempo excluídas do mundo da escola, passaram a assumir a função de professoras e de que forma a ocupação desse lugar se articula com processos sociopolíticos mais amplos? Traçou-se como objetivo compreender a trajetória e a constituição de ser professora ribeirinha na região do Rio Negro, no Amazonas, evidenciando o sentido e o significado das relações de gênero nesse processo.
A proposta metodológica deste estudo foi qualitativa, por meio do estudo de caso, com a utilização das entrevistas de narrativa aberta, semiestruturadas e móveis. A entrevista narrativa aberta foi produzida a partir da pergunta inicial: Fale-me um pouco sobre sua trajetória de professora? Na entrevista semiestruturada, a fala foi encorajada em um esforço consciente para criar um roteiro que contasse uma história de vida, passando por momentos-chave, como a chegada na comunidade e o início da trajetória de professora, as dificuldades enfrentadas ao longo do caminho e as estratégias utilizadas para lidar com essas limitações, bem como o significado de ser professora. Já a entrevista móvel consistiu em um momento no qual a participante e a pesquisadora caminharam pela comunidade, em locais escolhidos pela participante. Nessa ocasião, foram narrados os episódios significativos da história de vida da participante e a organização e os desafios da comunidade. Interrupções e quebras de fluxo de consciência foram evitadas ao máximo. A entrevista ocorreu na própria comunidade, durou cerca de 90 minutos e foi transcrita e analisada usando o método dialético.
O sujeito da pesquisa foi dona Saracá (nome fictício), 75 anos de idade, professora aposentada, parteira, rezadeira e evangélica; nasceu em Lábrea, interior do Amazonas, e foi fundadora da Comunidade Saracá. Teve dois filhos adotivos e seis netos, sendo que um deles criou como filho. Seu pai era seringueiro e sua mãe dona de casa. Era a única filha mulher de nove irmãos. Estudou até o 5º ano e saiu de casa aos 13 anos de idade para se casar, mas o relacionamento durou pouco tempo e ela foi deixada como mãe solo e com filho pequeno. A comunidade visitada chama-se São Sebastião do Saracá; foi fundada em 1983 pela moradora e líder comunitária dona Saracá. A comunidade está localizada na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, no município de Iranduba, distante duas horas da capital Manaus. Nela, habitam, aproximadamente, 26 famílias que vivem de turismo, artesanato, pesca e agricultura familiar. O acesso pode ser realizado por terra ou em barco comercial saindo do porto do São Raimundo em Manaus. Na comunidade, existe telefone rural comunitário, antena parabólica, energia elétrica do programa Luz para Todos, poço artesiano, três igrejas (sendo uma católica e duas evangélicas: Presbiteriana e Adventista do 7º dia) e uma escola municipal oferecendo apenas o ensino fundamental até o 9º ano.
No que diz respeito à organização da comunidade, existe uma associação de moradores cujos membros se reúnem uma vez ao mês, para tratarem de assuntos relativos às necessidades locais. As mulheres vêm assumindo a liderança, principalmente na representação sociopolítica. Em São Sebastião do Saracá, 11 artesãs fazem parte do grupo “Formiguinhas do Saracá’’, que foi fundado em 2011. Elas participam de cursos de capacitação e aperfeiçoamento, feiras de exposições em Manaus e outras cidades. Atualmente, a maioria dos moradores vive da pesca artesanal, porém, em períodos de defeso, outras fontes de renda são evidenciadas, como a produção de farinha, o artesanato, o trabalho de professores, os benefícios sociais do governo e as aposentadorias.
O período em que esta pesquisa ocorreu foi marcado por momentos críticos relacionados ao distanciamento social impostos pela pandemia da Covid-19. A coleta das informações implicou a ida ao território. Ainda não existiam vacinas, exigindo que todas as medidas de proteção e cuidados fossem tomadas de maneira a evitar uma possível disseminação do vírus no território. A comunidade fica em uma área mais isolada e, na oportunidade da coleta das informações, não havia relatos de contaminação. Contudo, nada disso impediu que, em janeiro de 2021, em Manaus-AM ― no episódio conhecido como “apagão do oxigênio” ― dona Saracá falecesse vítima de Covid-19. Sua família permanece na comunidade e boa parte dos serviços disponíveis é resultado de melhorias buscadas por ela, seus filhos e familiares. O nome Saracá significa “formiga brava” em Tupi Guarany, o apelido foi dado porque existia essa espécie de formiga no local onde hoje é a comunidade. Em homenagem a elas, a localidade foi batizada por esse nome e nossa personagem também.
Para criar uma história de vida, quando possível, as informações foram organizadas em ordem cronológica. Ao mesmo tempo, a narrativa permitiu idas e vindas no tempo para destacar eventos e fatos importantes e criar significados transversais. Desse modo, quatro categorias na história de Saracá ficaram evidentes. São elas: Ser Mulher Amazônida: Vida e Sobrevivência; Tornar-se Professora: Trabalho e Formação; Empoderamento Feminino na Floresta; Estratégia de Resistência Ribeirinha.
Ser mulher amazônida: vida e sobrevivência
Com a perspectiva de dar voz às mulheres na região do Rio Negro, no Amazonas, a narrativa da história de vida busca evidenciar a resistência e as lutas vividas por mulheres ribeirinhas. O principal eixo é a aproximação do fenômeno de investigação proposto por Perrot (2017; 2005) ao explicar sobre a história dos excluídos (operários, mulheres e prisioneiros), trazendo à tona a narrativa dos silenciados. Para essa autora, é necessário inverter as perspectivas historiográficas tradicionais e mostrar a presença real das mulheres na história cotidiana das sociedades. Inspirada nessa direção, fomos até a comunidade São Sebastião do Saracá conhecer a história de Dona Saracá.
Depois de sair de casa, aos 13 anos, passou a trabalhar em casa de família e em seu período de férias começou a frequentar a região, onde hoje é a comunidade, para participar de festas comunitárias que ocorriam naquele período de sua juventude. A comunidade não existia. O ano foi final dos anos 60 e início dos anos 70. Conta que sua vida foi marcada por muito trabalho e muita luta por sobrevivência na roça.
Neste pequeno fragmento de história de vida, observa-se que as características do distanciamento geográfico da Amazônia em relação aos grandes centros urbanos e à proximidade com a floresta impõe condições de vida limitadas no que diz respeito a saúde e educação. Isso favorece apenas atividades econômicas de subsistência, como a pesca, o extrativismo e a agricultura familiar (LOUREIRO, 2012). Ao mesmo tempo, percebe-se que determinados padrões de comportamento, como precocidade sexual e gravidez adolescente, são prevalentes (RODRIGUES; BARROS; SOARES, 2016; CABRAL; CELLA; FREITAS, 2020) e muito próximos do comportamento reprodutivo observado no início do século XX (GUPTA; LEITE, 2001). Há aí um marcador importante na relação entre o indivíduo e o meio, as limitações nas condições materiais colaboram na constituição dos sujeitos ribeirinhos. Sendo esse sujeito mulher, as condições de acesso a políticas de saúde e educação impõe fatores determinantes na composição dos arranjos sociais da história de vida delas.
Pesquisas realizadas por Scott (2007), que fazem alusão aos espaços rurais no Brasil, indicam que é preciso pensar a professora a partir das condições econômicas e de sobrevivência, uma vez que essas têm-se revelado primordiais para compreender as populações amazônicas. O fato de dona Saracá desenvolver trabalhos de doméstica ― associados às suas vivências como parteira e rezadeira ― evidencia uma lógica esperada na vivência de mulheres da região amazônica. Até meados dos anos 1950, havia um quantitativo expressivo, cerca de 45% da população economicamente ativa, formado por mulheres que se ocupavam tão somente de tarefas domésticas não remuneradas ou exerciam atividades remuneradas nas poucas escolas existentes (LOUREIRO, 2007). Corroborando essa trajetória histórica, mulheres ribeirinhas assumiram um papel fundamental na organização sociocultural da comunidade. Na maioria das comunidades, as mulheres realizam o trabalho doméstico e se ocupam de atividades como plantar e fazer artesanato. Também demonstram enorme capacidade de se ligarem às vidas cotidianas de indivíduos, famílias e comunidade a partir do envolvimento com as problemáticas locais. Essa ligação torna possível a interrelação entre os processos subjetivos sociais e individuais, em uma combinação altamente potente e capaz de integrar a pessoa à condição de protagonista de suas experiências de vida. Ao mesmo tempo, quando isso ocorre no âmbito coletivo, há um aumento exponencial na constituição de sentidos e significados vividos pelos sujeitos em coletividade, tornando a comunidade autônoma, identitária e enraizada em sua própria história de emancipação e cuidado.
Os saberes tradicionais (parteira e benzedeira da região) de nossa protagonista também eram reconhecidos pelos moradores. Como não existia posto de saúde próximo, Saracá ajudou as mulheres a dar à luz a maioria das crianças da comunidade. Fazia trabalhos de cura através de plantas e benzeduras em crianças. Todos na região a reconheciam por seus préstimos e pela disponibilidade em ajudar os comunitários. Isso lhe permitia ser detentora de um “saber-fazer” próprio, construído a partir da relação com o lugar em que viveu, com as tradições orais e com suas próprias características individuais (RODRIGUES, 2009). Sua ligação com o contexto local, seja nas relações individuais ou nas interações comunitárias, apresentava forte influência social, o que lhe possibilitou construir diferentes formas de participação política (CAMPOS, 2009). Pode-se dizer que, na cultura cabocla ribeirinha, mulheres como Saracá representam o elemento-chave (RODRIGUES et al., 2015) na constituição sociopolítica da comunidade, ao mesmo tempo em que lutam para se libertarem do papel social de subalternidade imposto historicamente.
Foi nessa configuração, repleta de tensionamentos e complexidades, que dona Saracá, sonhou em ser professora. Como uma mulher pobre, ribeirinha, historicamente inscrita no contexto da educação no Amazonas dos anos 1960 e 1970 iniciou sua trajetória ao mesmo tempo em que foi construindo sua inserção comunitária. Nesse período, a educação era marcada pelas necessidades de grupos sociais ligados ao sistema produtivo: o extrativismo. As atividades de plantar e colher garantiam o sustento e o alimento da família. As mulheres que se interessavam em desenvolver uma vida profissional tinham como sonho tornarem-se professoras. Ser mulher nesses tempos era pertencer a um homem, obedecer e ter poucas possibilidades de mudança da própria história (CHAVES; CÉSAR, 2019). Estudar para ter uma profissão honrada como professora constituía uma estratégia de ascensão social, melhoria de renda familiar e dignidade social.
Tornar-se professora: trabalho e formação
Na continuidade da narrativa sobre a história de vida de Saracá, o fio condutor de toda sua trajetória gira em torno de sua nomeação como professora na comunidade:
Explica que em 1983, após articulação e participação política na eleição do prefeito de Novo Airão conseguiu criar uma escola na comunidade e foi nomeada professora “leiga” da comunidade, numa visita feita pelo prefeito eleito. Evidencia que não “se empolgou” porque não era efetivamente professora, porém, ao final da visita o prefeito, solicitou ao secretário de educação, que o acompanhava na visita que instruísse dona Raimunda para matricular e dar aula para as crianças da comunidade. Explica que na época, matriculou 64 crianças e que não tinha nem escola e nem professor em nenhuma região próxima a sua comunidade e que ser professora sempre foi seu “fraco”. Saracá, que estudou até a 5ª série, tinha vergonha de falar de havia terminado os estudos primários. Ao chegar na comunidade dizia para as pessoas que possuía apenas o 3º ano primário. Explica que mal as aulas iniciaram o dono da casa que foi alugada para funcionamento da escola, chegou bêbado e expulsou a professora e os alunos.
As configurações culturais marcadas pela história local são fundamentais para compreender as práticas de trabalho desenvolvidas por mulheres em áreas não urbanas. Os estudos realizados por Maneschy (1999) com mulheres pescadoras, os realizados por Simonian (1995) com mulheres seringueiras e por Nascimento (1995) com mulheres da juta demonstraram que as oportunidades de trabalho estavam ligadas às atividades do extrativismo, uma vez que os rios e as florestas não exigiam altos níveis de escolarização. A educação era distante das reais necessidades da população, principalmente das mulheres. O ensino restringia-se aos quatro primeiros anos do ensino primário. Nos povoados ribeirinhos, as professoras cuidavam de “desemburrar” os alunos com algumas poucas cartilhas (LOUREIRO, 2007).
Outras pesquisas sobre a condição da mulher e a história da política colonial de Portugal, no Brasil, são retratadas nos trabalhos de Silva (2002), Souza (1986), Domingues (2001) e Boxer (1977), dentre outros, evidenciando os silenciamentos e os sofrimentos vividos por mulheres de classes subalternizadas. Essas vivências foram moldando estratégias de sobrevivência e autoproteção engendradas pelas mulheres, como formas de lidar com as adversidades e os sofrimentos. Como consequência, era comum o fato de professoras ribeirinhas desenvolverem suas práticas em sala de aula em meio a relações sociais orientadas, de um lado, pelo compadrio, afiliação e prestância, de outro, na resistência silenciosa e no trabalho árduo da docência, aliado a outras atividades produtivas de sustentação econômica familiar (ARAÚJO, 2010).
Essa realidade fortalece a ideia de que elas (professoras ribeirinhas) constituem uma categoria bastante heterogênea, indicando a necessidade de compreender a pluralidade de suas existências (negras, indígenas, quilombolas, brancas), analisando em que medida essa pluralidade pode indicar caminhos possíveis para garantir a memória dessas vidas e como intervir na realidade local, sobretudo, naquelas em que as violências de gênero e o abuso sexual estão presentes.
Considerando o fragmento da narrativa, percebe-se o tensionamento entre a expectativa da condição da mulher, dona de casa e voltada para os afazeres domésticos, e a função de professora. Dona Saracá explicou que o dono da casa era tio do seu marido, um homem muito machista que, quando bebia, batia em mulher. Mulheres que habitam regiões remotas costumam sofrer discriminações por sua condição econômica, em uma lógica patriarcal e machista que impõe subalternização e ocultamento de suas presenças na atuação da esfera político-social. É importante reconhecer as narrativas de professoras ribeirinhas para (re)contar a história social e explicar as práticas por elas engendradas na comunidade. Mais ainda, as narrativas dessas histórias podem descortinar a relação que a história social da Amazônia tem com a história particular das diferentes mulheres amazônidas e (re)escrever toda uma dinâmica de inter-relação entre a cultura e a educação (ARAÚJO, 2010, p. 3).
Dava aulas nos três turnos: manhã, tarde e noite. A tarde tinha 15 alunos jovens e a noite cerca de 25 adultos. Conta que chegou a ter 72 alunos, pela manhã, em uma única turma multisseriada. Precisou finalizar os estudos, porque só tinha cursado até o 5º ano do ensino fundamental, no município de Novo Airão. Esse momento foi o mais difícil em sua formação, narra que sofreu muito. Ministrava aulas de segunda a quinta, manhã, tarde e noite. Precisava estar nas aulas presenciais no município de Iranduba que iniciavam sexta a tarde, sábado o dia todo e domingo pela manhã. Expressa que só lhe restava o domingo à tarde. Conta que quase desistiu, porque era tudo muito pesado, chegou a chorar algumas vezes, porque na maioria dos dias só tinha o dinheiro da passagem, não tinha dinheiro para comer e tinha vergonha de dizer isso para os colegas, evitava o lanche. Explica que nessa época, eram 180 professores matriculados nessa formação e que ela era a única da região do Rio Negro. A formação durou três anos e três meses e que após um ano de formada, foi solicitada a cursar a faculdade de pedagogia na universidade. Porém quando fez vestibular não passou e isso lhe deixou muito mal. Descobriu que sua fragilidade era o Português. Ficou muito triste consigo mesma e não buscou mais a continuidade dos estudos. (Saracá)
As condições de trabalho de dona Saracá refletem a realidade da educação nas escolas ribeirinhas até os anos 1990. Sua composição era de apenas uma sala de aula, na beira do rio, com classes multisseriadas e sob a tutela de um único professor. Muitas funcionavam na casa do professor, geralmente leigo, sem nenhum suporte ou orientação pedagógica (LOUREIRO, 2007, p. 26). Ressalta-se que, nesse período, também houve a exigência de que professores ingressassem em cursos superiores (SOUZA, 2013).
Ampliando um pouco mais a noção sobre os ambientes escolares de ribeirinhos, consideramos as observações de Mota Neto e Oliveira (2004) quando dizem que as escolas apresentam condições precárias, tanto físicas como pedagógicas; dificuldades no acesso e continuidade nos estudos provocados pela distância do deslocamento até os lugares das aulas; constante rotatividade dos docentes; falta de professores e organização pedagógica em classes multisseriadas que abrangem desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental. Costumam funcionar em espaços como salões comunitários, residências e centros paroquiais e, geralmente, fazem parte do sistema municipal de ensino.
A formação de professoras é um processo a longo prazo. A sala de aula costuma ser o lócus de estágio e prática, onde se integram diferentes tipos de oportunidades e experiências promovendo o crescimento e o desenvolvimento profissional (GARCIA, 2009). Certamente, características individuais vão sendo fortalecidas ou enfraquecidas para compor a identidade de cada professora. Com isso, o processo de formação docente (formação de profissionais de ensino) é um processo de aprendizagem profissional ao longo da vida (ANDRÉ, 2010). Ao mesmo tempo em que essa formação se desenvolve há a construção da identidade profissional e pessoal da professora reconhecendo-se enquanto ser singular, histórico e social, capaz de transformar e ser transformada e de se constituir enquanto sujeito na realidade (VYGOTSKY, 2009).
É necessário destacar, também, no fragmento de narrativa apresentado, que a realidade material influencia diretamente na formação e na construção da identidade de professores, muitas vezes, sobrepondo papéis sociais e pessoais que tornam as vivências cansativas e ao mesmo tempo abertas à transformação. Isso implica considerar que os conhecimentos teóricos aprendidos nos cursos de formação por si só não se constituem em efetiva atividade docente. Precisam estar alinhados aos conhecimentos práticos, que são viabilizados através das atividades práticas. Essa indissociabilidade entre teoria e prática é fundamental para a execução do trabalho do professor. A práxis é a atitude (teórico-prática) humana de transformação da natureza e da sociedade. Não basta conhecer o mundo, é preciso transformá-lo (MARX; ENGELS, 2007).
A maioria dos professores de sala de aula sabe que a docência é exigente e se constitui muito mais uma atividade prática do que teórica. Tudo que ocorre em sala de aula é a ponta de um iceberg teórico. Professores se interessam mais pela prática do que pela teoria e, apesar de todo o fundamento teórico existente, a maioria das pesquisas em educação não é de muita ajuda nas horas mais agitadas da sala de aula concreta. Professores sobrecarregados têm necessidade de construir alternativas concretas para atuar em contexto (FREIRE; SHOR, 2011). Por isso, é fundamental conhecer as condições de trabalho e suas implicações nas necessidades de formação.
Outro ponto importante diz respeito à faculdade. Para professores leigos, constitui um desafio enorme começar uma graduação. Isso não diz respeito apenas às suas capacidades intelectuais ou cognitivas que estão ligadas historicamente a um processo de má qualidade da educação recebida. É uma proposta que deve ser encarada a partir dos determinantes históricos que ocultam e negligenciam o ensino público de uma escola voltada para a população ribeirinha. Enquanto nos anos 1980 buscava-se uma formação de nível médio como horizonte possível para a maioria da população brasileira, hoje, a estratégia é universalizar o nível superior como ideal a ser perseguido.
Contudo, desconsidera-se que, nas comunidades ribeirinhas, professoras enfrentam dificuldades da ordem do isolamento, precisando de grandes deslocamentos para os centros urbanos, para poder assistir as aulas. Não se observa os desdobramentos do distanciamento familiar e da ligação afetiva com a comunidade que, em muitos casos, se convertem em processos de adoecimento mental. É a concepção contínua de trabalho, uma vez que a atuação como professora não se restringe à sala de aula e aos dias letivos, mas estende-se por todos os dias da sua vida. É preciso delinear políticas educativas integrais que possibilitem formação inicial e processos de formação continuada, associados a uma atenção sensível à profissionalização da carreira docente, permitindo ascensão na categoria sem sair da escola na qual atua e promovendo condições de trabalho e saúde (BENTO et al., 2013).
Empoderamento feminino na floresta
Não seria possível contar a história dessa mulher sem considerar seu papel de liderança na comunidade. As narrativas seriam como chão para contar a história e o leitor o pensamento/escuta necessária para trilhar o caminho (BENJAMIM, 2013). As histórias de mulheres amazônidas importam, apesar de muitas delas terem sido contadas apenas evidenciando um lado. Porém, assim como se construiu narrativas únicas para falar da vida dessas mulheres, também podemos utilizar o mesmo recurso para construir narrativas potentes e (re)organizar ou mesmo subverter a lógica construída colonialmente (ADICHIE, 2019). É o que nos interessa nesse trecho de narrativa da história de Saracá:
Início dos anos 80, não existiam escolas e nem professores nas proximidades. Após tornar-se professora negociou a lugar provisório e escolheu a futura sede da escola tornando-se uma referência na comunidade. Explica que precisou mobilizar os comunitários para limpar o terreno da escola e deixá-lo pronto para receber os alicerces. Várias pessoas da região ajudaram no mutirão de limpeza da área. Ela ficou como responsável pela supervisão do serviço. Após finalizada a construção da escola, Saracá vai até o prefeito para avisá-lo do término das obras e este solicita que ela aguarde a ida do prefeito a comunidade, para fazer a inauguração da escola. Porém, duas semanas após a conclusão das obras, ela ouviu no rádio que a esposa do prefeito havia matado ele, com um tiro no peito, em um crime passional. Decidiu abrir a escola por conta própria e colocar as três turmas que ministrava aulas. Nesse período, a comunidade deixou de pertencer a Novo Airão e passou a fazer parte do município de Iranduba, após um plebiscito local. A nova prefeita de Novo Airão fez uma proposta para dona Saracá ficar com ela em outra comunidade, com casa, emprego para ela e para o marido, escola para os filhos e despesas de água e luz custeadas pela prefeitura, porém, ela recusou. Diante da recusa, a prefeita retirou todos os equipamentos, materiais e recursos que a prefeitura havia doado a escola. Narra que depois desse episódio, decidiu entrar na política. Concorreu a cargo público, ganhou o pleito, porém, no dia seguinte descobriu que quem entrou na vaga tinha sido a irmã do prefeito eleito, deixando a professora muito chateada com a política. Explica que o prefeito era seu adversário político, mas que respeitava sua liderança na comunidade. (Saracá)
As lutas das mulheres por uma sociedade mais igualitária tiveram diferentes expressões e heterogeneidades próprias do feminismo. Nas lutas pelo voto feminino e pelo acesso das mulheres à educação, assim como na exigência de direitos iguais no casamento e do direito ao divórcio, do direito das mulheres à integridade física e a controlar sua capacidade reprodutiva, mulheres pressionaram os limites da ordem estabelecida e as formas de pensar o mundo que as legitimavam (BIROLI; MIGUEL, 2015).
O empoderamento feminino é um conceito complexo, oriundo de diversos campos do conhecimento. Tem suas raízes nas lutas pelos direitos civis, no movimento feminista e na ideologia da “ação social” das sociedades de países desenvolvidos, a partir da segunda metade do século XX. Nos anos 1990, recebe a influência de movimentos que buscam afirmação do direito à cidadania em distintas esferas da vida social como saúde, educação e meio ambiente. É um conceito que se organiza na esfera pessoal, intersubjetiva e política, em um continuum em que só é possível reconhecer essa categoria quando ela perpassa todas as relações mútuas entre as macroestruturas e os sujeitos coletivos e individuais (CARVALHO, 2004).
Neste artigo, optou-se pelo uso do termo “empoderamento” ao invés de “liderança”, devido às diferenças entre os constructos que dizem respeito não apenas à ocupação de uma posição social (liderança), mas também de uma consciência crítica da necessidade de desconstrução das relações sociais de poder por meio de uma ação libertadora. Certamente, não se ignora que existe uma experiência particular e subjetiva de empoderamento, mas, essa é sempre incluída em contexto político amplo. Ainda que as pessoas possam desenvolver níveis de independência, transformações mais estruturais são necessárias para se falar em empoderamento (FREIRE; SHOR, 2011).
É nesse universo teórico que se insere a atuação política de dona Saracá. A chegada do período eleitoral, em comunidades do interior da Amazônia, dispara novas possibilidades de arranjos e melhorias comunitárias. Isso implica considerar que a própria realidade concreta de sujeitos ribeirinhos também se configura como prática para a libertação (BERTH, 2019). É impossível descolar a esfera privada da pública, a vida social da vida política, uma vez que essas encontram-se imbricadas em “tempos” e “lugares” diferentes na vida dos indivíduos, compondo arranjos de poder e direitos que se refletem mutuamente (BIROLI; MIGUEL, 2015).
A liderança de mulheres, em comunidades ribeirinhas, sinaliza a construção de subjetividades instituídas em diferentes instâncias sociais, capazes de manejar os desafios que o espaço político da floresta impõe e, as constituições identitárias próprias dessa região. Como protagonistas na liderança comunitária, as professoras ribeirinhas são fundamentais na luta contra a hegemonia social, dominante e simbólica do masculino, e na colonização histórica que pesa sobre os ombros de pessoas que vivem essas realidades. Elas desenham (re)arranjos singulares e coletivos, tanto para as atuais mulheres como para as futuras gerações.
Neste sentido, as narrativas de nossa protagonista tecem uma trama social e individual revelando um panorama repleto de sentidos e significados enraizados nas suas próprias vivências de escolarização, condição de vida, experiências políticas e saberes tradicionais. Isso significa dizer que a subjetividade individual resulta das imbricações de determinações coletivas compostas pelas vivências sociais, econômicas e culturais de nossa protagonista. Argumenta-se que a condição da mulher, historicamente inferiorizada, transforma-se em possibilidade de emancipação e autonomia ao se tornar professora. Isso porque o significado desse papel social se configura em processos simbólicos e emocionais compartilhados coletivamente, atuando recursivamente e produzindo sentidos subjetivos para a própria pessoa e para a comunidade.
Desse modo, o desenvolvimento de uma participação feminina comunitária, em posição de liderança, é capaz de inspirar e servir de modelo de empoderamento para meninas e mulheres, gerando identificação com suas origens e possibilitando outras formas de relação com o mundo em que vivem, alimentando-as da experiência de vida, não apenas para o momento presente, mas também para os sentidos e significados históricos e o futuro da comunidade. É a produção singular que dá sentido subjetivo e evidencia a marca histórica cunhada nas mulheres e nos contextos sociais de suas vidas. Daí a necessidade de ampliar a discussão sobre a pauta de mulheres no contexto amazônico, como dispositivo de abertura e construção de uma sociedade mais igualitária que oportuniza a emergência de sujeitos mais autônomos e protagonistas de si mesmo.
Estratégias de resistência ribeirinha
O poder é a habilidade não apenas de contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva (ADICHE, 2019). O conceito de “resistência” está diretamente relacionado ao lugar em que ocorre o poder, podendo ser na relação familiar, na comunidade ou em outros espaços (FERRER, 2011). Esse conceito está relacionado ao caráter coextensivo de resistência ao poder, o que não significa que há uma unidade dialética de contrários, mas sim, que existem na mesma materialidade de corpos históricos (SAMPAIO, 2006).
Não existem relações de poder sem resistência. O poder não é algo que capturaria os indivíduos como em uma espécie de escravidão. Onde há uma relação de poder há a possibilidade de resistência. Resistir define o campo de forças que apresenta estratégias cambiantes e múltiplas, analisáveis e inteligíveis. No entanto, não se está propondo uma relação binária dominantes/dominados, mas sim, uma relação que compõe um tecido espesso que atravessa aparelhos e instituições sem fixar-se exatamente neles. (FOUCAULT, 2015).
Resistir é a própria vida das mulheres que lutam contra um sistema que insiste em mantê-las na subalternidade histórica (MACHADO; PALUDO; CASTRO, 2018). A influência da perspectiva feminista e marxista, na qual a mulher estaria submetida ao poder dos homens e à violência, é naturalizada e percebida como uma expressão dessa lógica relacional e apresenta correlação com o processo de socialização da mulher dentro de uma cultura machista (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2018).
No entanto, a mulher, enquanto sujeito social autônomo, é capaz de lidar com relações de poder que circulam, ainda que desigualmente, entre homens e mulheres. Não se faz alusão, aqui, a um negacionismo da vulnerabilidade histórica e social das mulheres. Antes, ratifica-se as desvantagens sócio-históricas inventadas para as mulheres e, ao mesmo tempo, reconhece-se sua capacidade subjetiva de produzir resistências, evitando o reducionismo de produzir lugares estáticos e destituídos de tensões e ambivalências (OLIVEIRA; ARAÚJO, 2018).
Orientadas por essas observações, destacamos a estratégia utilizada por dona Saracá para lidar com os conflitos entre comunitários e as violências de gênero que eram perpetradas contra meninas e mulheres. Silenciamentos, acusações, preconceito, discriminação e sexismo eram algumas das problemáticas vivenciadas cotidianamente na comunidade.
A partir da construção das moradias próximo a escola, a disputa pela ocupação das casas tornou-se acirrada e os conflitos entre comunitários começaram a ocorrer. Narra que quando começou a dar aulas também criou um time de futebol comunitário e quando as brigas se intensificaram usou as partidas como estratégia para diminuir as dificuldades, incentivando a participação de dois times de futebol, nas modalidades masculino e feminino. Deu o nome de Cruzeiro e o Guaraní, por influência de um amigo torcedor cruzeirense. Para crianças e adolescentes, criou o Cruzeirinho, time de base nas disputas locais. Explica que ganhou “muito boi para a comunidade” e que boa parte das comunidades da região do Rio Negro, que hoje tem times de futebol, seguiram o exemplo da comunidade Saracá. Narra que também precisou enfrentar o preconceito com a participação de mulheres no futebol. No início as mulheres não podiam usar calça comprida, nem usar shorts e nem blusa sem manga. Para as meninas jogarem futebol, precisou confeccionar calções escondidos dos pais e distribuía para elas durante as aulas. Porém, um dia esqueceu o horário de término da aula e os pais viram as meninas jogando de calção. Saracá precisou explicar para os comunitários que mulheres não podiam jogar de saia, que jogar de calção era mais adequado e foi aos poucos convencendo a comunidade permitir que suas filhas participassem do time. Com essa estratégia conseguiu desenvolver um vínculo de confiança e respeito para conversar com meninas e mulheres ribeirinhas sobre métodos contraceptivos, abuso sexual e outras violências que as mulheres sofrem na comunidade.
A participação de mulheres em práticas esportivas, durante muito tempo, esteve associada a uma ameaça de desonra e prostituição. O uso de roupas que desnudassem seus corpos as tornava impuras, obscenas e associadas ao universo pagão (GOELLNER, 2005). Esse cenário conservador e moralista inquietava Saracá, que estava disposta a subverter a ordem social dos papéis de gênero na comunidade. Provavelmente, sua iniciativa estava associada à própria experiência de enfrentamento aos preconceitos sociais, uma vez que era casada com um homem 17 anos mais novo. Ela explica que, no início do relacionamento, precisou desafiar alguns parentes e amigos de sua comunidade que a olhavam com suspeição devido à diferença de idade.
A estratégia de criar um time de futebol, como forma de participação comunitária, defendida por Saracá foi intencional. Buscou criar outra mentalidade sobre as mulheres, principalmente sobre as meninas e futuras gerações comunitárias. Explica que muito cedo as meninas largavam os estudos para se casar e ter filhos. Decidiu condicionar a participação no time de futebol com a presença em sala de aula. Ressalta, também, que a criação do time ajudou a diminuir a incidência de casos de abuso sexual de meninas e a gravidez na adolescência, uma vez que, ao viajar com as meninas para jogar em outras localidades, fazia um trabalho de “conscientização” sobre gênero e sexualidade, falando sobre métodos de contracepção e uso do corpo.
A inserção das mulheres no futebol, na comunidade Saracá, proporcionou diferentes apropriações de si mesmas. De um lado, a ideia demonstrava uma atitude transgressora, com a qual as mulheres questionaram seu lugar social nessa comunidade; por outro lado, precisaram se adaptar aos valores e práticas comuns desse esporte, que incluem o cuidado e um olhar atento à erotização do corpo (GOELLNER, 2005). As meninas passaram a ser olhadas e seus corpos cobiçados, daí nasceu a necessidade da construção do diálogo sobre os cuidados e uso do corpo como dispositivos de produção de subjetividades possíveis. A organização do time, além de oferecer referência a outras possibilidades de subjetivação feminina para a comunidade, trouxe o prestígio e o sentimento de pertencimento aos comunitários, uma vez que se tornaram referência de organização de futebol para outras comunidades.
Considerações finais
As comunidades ribeirinhas da Amazônia são marcadas pela presença feminina e pelo papel da mulher na configuração da comunidade. Muitas delas assumem um papel de referência e de organizador da convivência comunitária. Foi no entrelaçamento entre o desejo de ser professora, suas características individuais, o tempo histórico e as condições materiais do espaço concreto que se tornou possível compreender a trama complexa, singular e subjetiva repleta de sentidos e significados da história de dona Saracá.
Os desafios de ser professora ribeirinha estão atravessados por rupturas políticas e abertura a novas possibilidades que seguem o curso dos cenários historicamente constituídos. A influência social e a liderança de nossa protagonista seguem atuantes, mesmo em situações de exclusão comunitária e limitações marcadas pela desigualdade social entre espaços urbano e ribeirinho, e de gênero homem e mulher. Há uma necessidade ética e afetiva configurada na e pela figura de líder comunitária que as mulheres representam. Certamente os sofrimentos inerentes a essa constituição subjetiva permitem configurar o sujeito potente, sem, contudo, desviar o olhar de uma observação estrutural e ativa nos espaços configurados geopoliticamente.
A mulher ribeirinha, detentora de um saber singular, assume uma forte presença e constrói diferentes formas de participação comunitária porque está imbricada individual e coletivamente com o lugar que vive. A constituição do cuidado e diligência com as necessidades dos contextos funda-se em uma perspectiva ético-política capaz de fundar novas formas de participação social e arranjos subjetivos. Por isso, a construção de estratégias de resistência na história de vida de nossa personagem permite-nos pensar criticamente, e de modo geral, o percurso de potência e limitações da trajetória de professoras ribeirinhas. Pensar a constituição dessas trajetórias, além do diálogo em contexto, nos convida a compreender criticamente sobre os caminhos que levam meninas e mulheres a se tornarem professoras na floresta, compreendendo os sentidos e os significados construídos no entrelaçamento entre história de vida e práticas cotidianas, trabalho e lutas travadas no contexto familiar, social e político.
Saracá afirmou que ser docente foi a grande missão de sua vida e que, ao se tornar professora, sua vida mudou completamente. Referindo-se ao sentido de ser professora, explicou que era “[...] dar tudo de si, era retribuir saber para iluminar o outro, era ir além” (sic). Afirma que sua alegria era sair pelos rios levando seus times de futebol para jogar. Explica que no início da carreira tinha a intenção de ajudar as pessoas carentes, até dar-se conta de que também era carente. Demonstrava profunda inquietação com o futuro da comunidade, no entanto, permaneceu atenta às diferentes oportunidades que surgiam, ao longo da beirada do rio, que pudessem, de algum modo, trazer melhorias efetivas para a vida em comunidade.
A partida tão inesperada de dona Saracá gerou a necessidade de compor a narrativa da sua história de vida como um último ato de homenagem. Uma mulher simples que, na confluência de relações contraditórias ― marcadas por uma realidade social e por um tempo histórico singular ― foi muito além do que poderia imaginar.