1 INTRODUÇÃO
O direito à educação para crianças de 0 a 6 anos foi reconhecido legalmente, no Brasil, a partir da Constituição Federal de 1988. Considerado marco nacional, este documento apresenta, no Artigo 208 do Capítulo III - Da Educação, da Cultura e do Desporto, na Seção I, que um dos deveres do Estado com a educação nacional consiste no “atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos” (BRASIL, 1988, p. 35).
Nas instituições de Educação Infantil, as crianças passam a maior parte do tempo convivendo com outras crianças, o que permite que essa interação ocorra de uma forma não centrada no adulto. De acordo com Finco (2010), na escola, o protagonismo da criança ganha força e novas relações podem ser ali estabelecidas.
Corsaro (2009), estudioso na área da Sociologia da Infância, desenvolveu uma abordagem sobre a socialização infantil na qual considera que as crianças têm uma atuação mais interativa do que passiva ou meramente reprodutiva, o que ele mesmo denomina de reprodução interpretativa. Em suas palavras:
O termo interpretativa captura os aspectos inovadores da participação das crianças na sociedade, indicando o fato de que as crianças criam e participam de suas culturas de pares singulares por meio da apropriação de informações do mundo adulto de forma a atender aos seus interesses próprios enquanto crianças. O termo reprodução significa que as crianças não apenas internalizam a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e a mudança social. (CORSARO, 2009, p. 31).
Nessa perspectiva, as crianças são consideradas atores sociais. Sarmento e Pinto (1997, p. 20), por sua vez, consideram que definir meninos e meninas como atores sociais implica no reconhecimento da “capacidade de produção simbólica por parte das crianças e a constituição das suas representações e crenças em sistemas organizados, isto é, em culturas”. Assim, constata-se que, a partir das afirmações, no contexto das relações, crianças vivenciam as mais diversas experiências, o que inclui as de gênero, quando desde de bem pequenas já aprendem a diferenciar atributos ditos femininos dos masculinos.
Observa-se, na produção acadêmica brasileira no campo da educação, especialmente no relativo à Educação Infantil, que as instituições escolares, através da organização dos seus espaços, da distribuição do tempo, normas e regras, constituem-se em importantes espaços para a formação dos pequenos:
As crianças aprendem o sexismo na escola ao se defrontar com a hierarquia do sistema escolar, onde os papéis feminino e masculino estão determinados. Tal sistema define que, no futuro, os homens serão dirigentes no mundo do trabalho, enquanto às mulheres está destinado o segundo lugar nos processos de decisão. Isto imprime no inconsciente e no consciente das meninas um limite para suas ambições. (ALAMBERT apud GALLARDO; VALENZUELA, 1999, p. 25).
As diferenças de gênero se apresentam de maneira constante na infância, pois desde muito cedo as crianças aprendem, por exemplo, que meninos são fortes e meninas sensíveis, que meninas brincam com meninas e gostam da cor rosa, meninos brincam com meninos e gostam da cor azul, além de crescerem assimilando a “falsa” ideia de que tarefas domésticas são atributos essencialmente femininos.
De acordo com Bourdieu (2005), a escola é uma instituição reprodutivista e acaba por transmitir modelos ideais de uma cultura, especialmente da cultura elitista. Esses modelos representam, para o autor, uma “violência simbólica” ou constrangimento à criança, ao impor, por exemplo, padrões de beleza ideais, moldando as crianças a estereótipos, civilizando seus corpos e retirando delas a possibilidade de ser livre para criar e recriar. Em uma de suas críticas, o mesmo autor enfatiza: “O que os indivíduos devem à escola é sobretudo um repertório de lugares-comuns, não apenas um discurso e uma linguagem comuns, mas também terrenos de encontro e acordo, problemas comuns e maneiras comuns de abordar tais problemas comuns” (BOURDIEU, 2005, p. 207); ou seja, ao cultivar padrões, a escola acaba desfavorecendo a cultura de cada um, o saber, as vivências, e a diversidade.
Souza, M. (2010) diz que professoras e professores apresentam em seus discursos concepções de gênero e sexualidade pautadas no senso comum, remetendo-se ao corpo, à natureza humana, apontando apenas alguma ênfase ao respeito à diversidade. Desse modo, percebe-se que não há, nas escolas, preocupação em superar desigualdades de gênero, pois, de forma geral, reproduz-se concepções e estereótipos do que é ser menino e menina, naturalizando características tidas como ideias para cada sexo.
Gênero é um conceito bastante explorado entre estudiosas feministas, mas ainda pouco discutido na área da Educação. Em seus estudos sobre as teorias de gênero, a feminista estadunidense Joan W. Scott faz uma crítica às teorias que limitam “o conceito de gênero à esfera da família e à experiência doméstica [...] aproximando o conceito a outras esferas”, isto é, “os sistemas sociais, econômicos, políticos ou de poder” (SCOTT, 1995, p. 81). Nesse sentido, gênero passa a representar uma categoria de análise social, que possibilita o debate e a problematização a respeito dos papeis estabelecidos para homens e mulheres/ meninos e meninas na sociedade. A autora apresenta o seu conceito considerando duas proposições importantes: a primeira afirmando que o “gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e a segunda, que o “gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p. 86).
Louro (2014) aponta que o conceito de gênero começou a ser utilizado na década de 1980 e sofreu transformações. Em seu livro Gênero, sexualidade e educação - uma perspectiva pós-estruturalista, propõe uma discussão que rompa com a dicotomia feminino em oposição ao masculino e trata o gênero como uma categoria de análise, incentivando um pensamento plural que analise, em profundidade, as representações sociais, fugindo de argumentos biológicos e culturais que tenham apenas o masculino como referencial. Atualmente, a temática está implicada com situações de exclusão, preconceito e estereótipos, o que torna pertinente a discussão do assunto nos campos da ciência, da política, especialmente na área da educação.
Objetivando embasar a discussão sobre gênero, foram consultadas teses e dissertações, uma vez que esses estudos abordam a temática referida e constituem-se fontes atuais de informações sobre de que forma professoras e professores têm lidado com as relações de gênero no ambiente educacional. Ressalta-se que dissertação de mestrado e tese de doutorado referem-se a trabalho final dos cursos de pós-graduação stricto sensu.
De acordo com a NBR 14724 (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS, 2005, p. 2-3), dissertação é o
Documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um estudo científico retrospectivo, de tema único e bem delimitado em sua extensão, com o objetivo de reunir, analisar e interpretar informações. Deve evidenciar o conhecimento de literatura existente sobre o assunto e a capacidade de sistematização do candidato. É feito sob a coordenação de um orientador (doutor), visando a obtenção do título de mestre;
E tese é o
Documento que representa o resultado de um trabalho experimental ou exposição de um estudo científico de tema único e bem delimitado. Deve ser elaborado com base em investigação original, constituindo-se em real contribuição para a especialidade em questão. É feito sob a coordenação de um orientador (doutor) e visa a obtenção do título de doutor, ou similar.
Essas definições estão de acordo com os pareceres 977/65 e 77/69 do antigo Conselho Federal de Educação, podendo-se destacar que a principal diferença entre os tipos de trabalho consiste no grau de profundidade e originalidade com que os temas de pesquisa são abordados (LUBISCO; VIEIRA; SANTANA, 2008). Logo, a pesquisa desenvolveu-se por meio da metodologia do estudo bibliográfico que, segundo Gil (2010), se constitui, a partir de material já elaborado, em uma forma de conhecer o panorama de determinada área e também na possibilidade de abarcar uma quantidade de fenômenos que seria inviável em uma pesquisa empírica.
Dessa forma, neste estudo, as fontes utilizadas foram os relatórios de pesquisa disponíveis no banco de teses e dissertações da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), cujo objetivo foi realizar um estado do conhecimento para identificar como as questões de gênero, expressas nas pesquisas, entre os anos de 2010 e 2015, têm sido tratadas nas escolas de Educação Infantil. Ressalta-se que estado do conhecimento se refere a uma pesquisa que toma por base a produção do conhecimento acerca de determinada área em um setor específico de publicações (ROMANOWSKI; ENS, 2006); por se tratar de um levantamento que leva em conta, exclusivamente, teses e dissertações, este estudo se constituiu em um estado do conhecimento e não em um estado da arte.
O propósito do presente estudo foi o de elaborar um referencial que contribua para que outros pesquisadores, posteriormente, possam identificar de forma mais rápida e precisa o que tem sido discutido e, por que não, o que ainda precisa ser pesquisado sobre as questões relativas a gênero na Educação Infantil. Nesse sentido, comunga-se com Charlot (2006, p. 17) a respeito da necessidade de se construir uma “memória da educação”, especialmente na pesquisa educacional, pois, segundo o autor, “nossa disciplina não tem uma memória suficiente, e isso freia o progresso da pesquisa em educação”.
2 MÉTODO
O estudo, como dito anteriormente, consistiu na caracterização e análise de teses e dissertações sobre gênero e Educação Infantil no Brasil encontrados no portal da Capes. Esses relatórios foram selecionados a partir da ferramenta de busca: “Portal brasileiro de publicações científicas em acesso aberto”, acessada por meio do endereço eletrônico <http://oasisbr.ibict.br/vufind/>.
Foi realizada uma busca de teses e dissertações sobre a temática, usando as palavras-chave: “Gênero e Educação Infantil”. Após essa busca, foram refinados os resultados, através das opções: Bibliotecas Digitais de Dissertações e Teses (BDTD), tipo de acesso: “Open Acess”; idioma: Português, ano da publicação: 2010 a 2015. Como resultado foram encontrados 86 trabalhos, sendo 57 dissertações e 29 teses. Todas as dissertações e teses encontradas com as palavras de busca tiveram os títulos, palavras-chave e os resumos lidos. Entretanto, só foram selecionadas aquelas que possuíssem como foco de investigação gênero na Educação Infantil, e que contemplassem, no título e/ou no resumo, os seguintes descritores: creche, pré-escola, Educação Infantil, criança, infância, relações de gênero e gênero.
3 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Realizado o levantamento, finalmente foram selecionadas, para leitura na íntegra e posterior análise, 16 dissertações e 4 teses, conforme Tabela 1. Para chegar a esse número, alguns critérios de exclusão foram necessários, a saber:
a) não constar nos títulos, resumos ou palavras-chave os termos “gênero, Educação Infantil”;
b) terem sido realizadas ou publicadas fora do Brasil;
c) Pesquisas fora do período estabelecido;
d) Relatórios que contemplassem apenas a temática “gênero” ou apenas a temática “Educação Infantil”.
ANO | TESES | DISSERTAÇÕES | TOTAL |
---|---|---|---|
2010 | 2 | 4 | 6 |
2011 | 1 | 2 | 3 |
2012 | 1 | 3 | 4 |
2013 | 0 | 2 | 2 |
2014 | 0 | 4 | 4 |
2015 | 0 | 1 | 1 |
TOTAL | 4 | 16 | 20 |
Fonte: Adaptado de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (2016).
Referente à frequência de produções, ao considerar o recorte temporal de seis anos, é possível perceber que são escassas as produções que abordam gênero na Educação Infantil, que apresenta uma média de 2,6 trabalhos por ano, no caso das dissertações, e menor ainda é o número de pesquisas de doutorado (média de 0,6 por ano).
Observa-se, ainda, que a referida temática tem sua maior concentração nas dissertações de mestrado, sendo 16 produções, representando 80% do total das pesquisas e apenas 4 teses de doutorado, representando 20% do total de pesquisas, tendo, no ano de 2010, o maior número de produções: 4 dissertações e 2 teses, representando, assim, 30% do total destas.
Assim, no que diz respeito à frequência das produções, pode-se perceber que as dissertações de mestrado não seguem uma linearidade, apresentando número de produções diferentes em cada ano. Entretanto, as produções de pesquisas de doutorado aparecem de forma decrescente, com duas pesquisas em 2010, uma em 2011 e 2012, respectivamente, e nenhuma nos anos demais anos pesquisados.
Através da análise dos dados, buscou-se perceber como a temática de gênero na Educação Infantil aparece nas teses e dissertações desenvolvidas pelos pesquisadores em Programas de Pesquisa e Pós-Graduação do país. Para isso, foi realizada uma análise das perspectivas teóricas predominantes nos estudos e, assim, evidenciou-se que os pesquisadores, de modo geral, têm dedicado atenção ao aprofundamento do conceito de gênero.
Nos estudos teóricos referente a gênero foram utilizados autores de referência como Ana Lúcia Goulard Faria, Cristina Bruschini, Joan Scott, Guacira Lopes Louro, Fúlvia Rosemberg, Dagmar Estermann Meyer, Jane Felipe, Judith Buttler, Marília Pinto de Carvalho, Tomaz Tadeu Silva, e Michel Foucault. Nestes estudos foram explorados conceitos e categorias apropriadas para compreensão das determinações sobre as relações de gênero e da educação de crianças pequenas.
Com relação à área educacional, especialmente no que se refere à Educação Infantil, o embasamento teórico dos estudos se deu através de diversos autores que discutem a infância de forma contextualizada em suas diferentes dimensões, entre os quais destacamos: Moisés Kuhlmann Júnior, Sônia Kramer, Tizuko Kishimoto, Manuel Jacinto Sarmento, Flúvia Rosemberg, Felipe Ariés, Willian Corsaro, Sandra Corazza, Anete Abramowicz, Pierre Bourdieu, Walter Benjamin, Jean Piaget, Paulo Freire e Miguel Arroyo.
Outro aspecto, igualmente importante, referente às pesquisas diz respeito à natureza dos estudos (empírico ou bibliográfico). Das 20 produções catalogadas no recorte temporal de 2010 a 2015, 14, ou seja, 70%, são pesquisas empíricas, enquanto apenas 30%, isto é, 6 produções, são estudos bibliográficos. Isto significa que, nos últimos 6 anos, grande parte dos autores dedicou-se a pesquisas de campo com intervenções diretas, observações e registros, havendo uma preocupação, sobretudo, por captar a voz, o discurso ou as concepções dos envolvidos na ação/relação educativa.
Do ponto de vista dos estudos empíricos, especialmente os que colocam a criança como objeto de estudo, destaca-se a influência da abordagem da sociologia da infância, que de acordo com Sarmento (2005, p. 363),
A sociologia da infância propõe-se a constituir a infância como objeto sociológico, resgatando-a das perspectivas biologistas, que a reduzem a um estado intermédio de maturação e desenvolvimento humano, e psicologizantes, que tendem a interpretar as crianças como indivíduos que se desenvolvem independentemente da construção social das suas condições de existência e das representações e imagens historicamente construídas sobre e para elas.
Conclui-se, pois, que a sociologia da infância é um campo de estudo relevante para as análises de gênero na Educação Infantil, haja vista a forte percepção da infância como categoria social, que acredita na criança como produtora de cultura. Além de Sarmento (2005), Corsaro (2011), Jenks (2002) e Qvortrup (1993) apresentam importantes contribuições para o debate sobre o desenvolvimento infantil à luz da Sociologia. Eles corroboram a ideia de que a infância é um constructo social. Portanto, “as diferentes imagens e representações da criança são fruto dos diferentes mundos sociais e teóricos que habitamos” (JENKS, 2002, p. 214).
Qvortrup (1994) argumenta, ainda, que é totalmente pertinente conceber a infância como unidade de análise no campo da sociologia, ao estudar a criança a partir do seu ponto de vista. Logo, considerada parte da sociedade, a criança deve ser estudada e compreendida como outros fenômenos sociais. Nesse sentido, a participação da criança sempre terá algo para acrescentar à sociedade, e assim como outras instâncias, terá o poder de transformá-la.
3.1 Autoria e filiação institucional
A partir da análise dos relatórios de pesquisa, pode-se constatar que dos 20 estudos realizados, 15 foram escritos por mulheres, ou seja, 75% do total de autores, e apenas 5 trabalhos foram realizados por homens, representando 25% do total. Ressalta-se que todos os trabalhos realizados por homens foram de mestrado. Este dado evidencia que a tendência para estudar temas relacionados ao gênero e também à Educação Infantil é majoritariamente feminina. Esta constatação pode ser considerada reflexo tanto do magistério, carreira exercida em grande número por mulheres, quanto da história da presença feminina na educação de crianças pequenas, que durante muitos anos esteve fortemente associada às identidades de mãe-professora.
Ressalta-se que a própria Educação, enquanto área do conhecimento, tem sido um campo de estudo com participação feminina significativa. Segundo Melo e Oliveira (2006), em seu estudo A produção científica brasileira no feminino, a quantidade de mulheres realizando pesquisas tem crescido consideravelmente, superando a participação masculina. Ao considerar a área de atuação, “a participação das mulheres, comparada aos homens, aponta para uma concentração da produção nas Ciências Humanas e Linguística, Letras e Artes” (MELO; OLIVEIRA, 2006, p. 321), sendo menor a participação das mulheres na área de Engenharia. Segundo essas autoras, isto reflete um maior engajamento das mulheres na carreira científica e ensino superior, apesar dessa maior participação concentrar-se em áreas historicamente marcadas pelo estereótipo do papel do “cuidar” e do “educar”, associado às áreas da educação, saúde e assistência social.
Quanto ao vínculo institucional em que os autores realizaram suas pesquisas, podemos observar a distribuição na Tabela 2 a seguir.
Instituição | Frequência |
---|---|
USP | 4 |
UFRGS | 4 |
UNICAMP | 3 |
UMESP | 2 |
PUC-SP | 2 |
UNIFOR | 2 |
UFRJ | 1 |
UEL | 1 |
PUC-GO | 1 |
TOTAL | 20 |
Fonte: Adaptado de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (2016).
De acordo com os dados na Tabela 2, percebe-se que a maior parte dos trabalhos foram publicados em universidades públicas. Isto significa que, dentre as 9 instituições relacionadas, 5 são públicas, representando, assim, 63,3% destas. Entre os autores, 7 deles, ou seja, 37,7% dos estudiosos, estavam filiados a 4 instituições particulares de ensino superior do país, ou seja, 33% do total, demonstrando, assim, que a produção científica brasileira, neste tema, tem sua maior concentração nas instituições de ensino superior públicas. Estes dados corroboram os dados da pesquisa de Melo e Oliveira (2006, p. 314), que constataram que “a pesquisa brasileira se processa nas Universidades Públicas e nos Institutos de Pesquisa (públicos): as Instituições de Ensino Superior (IES) públicas são responsáveis por 54% dos periódicos indexados no SciELO”.
3.2 Localização geográfica das instituições às quais os autores estão vinculados
Quanto à localização geográfica das instituições representadas no Gráfico 1, observa-se que a Região Sudeste concentra o maior número de produções, 12 (60%) no total, seguida da Região Sul com 5 (25%), Região Nordeste com 2 (10%) e a Região Centro-Oeste com apenas 1, representando 5 % das pesquisas. A Região Norte foi a única que não apresentou nenhuma produção, em termos de dissertação e tese, referente à temática de gênero na Educação Infantil, no recorte temporal e banco de dados delimitado por esta pesquisa.
A Região Sudeste concentra o maior número de instituições, tendo suas 12 publicações distribuídas em cinco universidades: 4 na Universidade de São Paulo (USP); 3 na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); 2 na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp); 2 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e 1 na Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ).
Em seguida está a Região Sul, com seus 5 estudos distribuídos em apenas 2 instituições, representando 20% destas: 4 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e 1 na Universidade Estadual de Londrina (UEL). Já a Região Centro-Oeste, com apenas 1 produção, oriunda da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO), representa 5% do total das instituições.
Sendo assim, é possível concluir que, das 20 produções encontradas, 17 destas, ou seja, 85% do total, se concentram em 7 universidades, situadas predominantemente no eixo Sudeste/Sul do país, sendo a Região Sudeste hegemônica. Este dado também foi identificado por Melo e Oliveira (2006, p. 327), que constataram que:
Nos últimos vinte anos a produção científica brasileira cresceu extraordinariamente, mas é uma produção concentrada na região Sudeste do Brasil, onde se localiza a maior parte das instituições universitárias, programas de pós-graduação e os (as) pesquisadores (as) nacionais.
Rocha e Buss-Simão (2013) também realizaram uma análise das pesquisas em Educação Infantil produzidas no âmbito dos programas de pós-graduação da Região Sul do Brasil, no período entre 2007 e 2011. Os autores utilizaram como corpus as dissertações e teses disponíveis nos sites dos Programas Integrantes da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) Sul. O levantamento localizou um total de 169 pesquisas, sendo 26 teses e 143 dissertações realizadas nos Estados que compõem a região (Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul). Logo, este dado ratifica os achados das pesquisas sobre gênero na Educação Infantil, em que contempla maior número das produções nas regiões Sul-Sudeste, revelando, conforme dizem os próprios autores, uma consolidação da área da educação na infância.
Muito embora tenhamos considerado, até aqui, escassos os estudos que relacionam gênero e Educação Infantil, este é outro dado revelado na pesquisa de Rocha e Buss-Simão (2013) sobre a produção acadêmica, considerando a infância:
Houve uma significativa recorrência, principalmente, teses de doutorado versando sobre: conceito de infância na produção acadêmica; infância e subjetividade; ser criança; infância, experiência e cuidado; direitos e cidadania das crianças; corpo, sexualidade, embelezamento corporal e geração; erotização infantil; gênero; alimentação das crianças e criança e mídia. Nesse grupo, são privilegiadas as bases filosóficas, psicológicas e sociológicas na interlocução com a educação, com destaque para as apropriações conceituais da filosofia e da sociologia da infância. (ROCHA; SIMÃO, 2013, p. 9, grifo nosso).
Na mesma direção, Silva, Luz e Faria Filho (2010) assinalam que as Regiões Sudeste e Sul do país concentram o maior número de grupos de pesquisa da área da Educação sobre infância, criança e Educação Infantil, sendo 56 (37,3%) e 34 (22,6%), respectivamente, do total de 150 grupos encontrados, representando, somadas, aproximadamente, 60% dos grupos. Em seguida vem a Região Nordeste com 25 grupos, correspondendo a 16,6%.
3.3 Frequência por área do conhecimento
Os 20 estudos que compõem o corpus de análise deste artigo se distribuem em 5 áreas do conhecimento, como podemos observar na Tabela 3 a seguir.
Área do conhecimento | Frequência | Percentagem |
---|---|---|
Educação | 13 | 65% |
Psicologia | 4 | 20% |
Linguística | 1 | 5% |
Educação Física | 1 | 5% |
Antropologia | 1 | 5% |
Fonte: Adaptado de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes (2016).
Conforme apresentado acima, as produções que envolvem gênero e Educação Infantil se concentram, majoritariamente, na área da Educação, com 13 trabalhos, representando 65% do total. Seguida por Psicologia, com 4 trabalhos (20%), e Linguística, Educação Física e Antropologia, com apenas 1 produção (5%) em cada área, respectivamente.
4 CATEGORIZAÇÃO DOS CONTEÚDOS
Após a leitura dos 20 relatórios de pesquisa, foi possível elaborar as categorias de produção de estudos sobre a temática de gênero na Educação Infantil, elencadas a seguir. É importante deixar claro que as categorias se complementam e um trabalho pode ser atribuído a mais de uma categoria.
Categorização a partir da frequência por objeto de estudo:
Questões de gênero tendo como objeto de estudo representações e discursos de professoras e de professores da Educação Infantil;
Questões de gênero tendo como objeto de estudo o professor da Educação Infantil;
Questões de gênero tendo como objeto de estudo a educação de meninos e meninas da Educação Infantil;
Questões de gênero relacionadas ao embelezamento na Educação Infantil.
Cabe destacar que apenas uma das pesquisas do corpus analisado não se concentra especificamente nas categorias acima estabelecidas, que é o trabalho de Urra (2011), intitulado Concepção de creches em revistas brasileiras de Pediatria: uma interpretação a partir da ideologia. O foco do autor foi problematizar o que dizem alguns periódicos de pediatria, publicados entre 1988 e 2009, acerca da construção social da infância a partir da análise de discursos de adultos sobre cuidados e educação de bebês.
Ademais, a principal pergunta que a pesquisa se propôs a responder foi se a sociedade brasileira concebe o bebê como cidadão. Como resultado do estudo afirmou-se que a creche foi classificada como local de risco para crianças (referindo-se a possíveis enfermidades), e utilizada essencialmente para suprir a ausência da mãe, principalmente das famílias de baixa renda, logo, a creche não aparece, via de regra, como um direito da criança à educação. Embasado nas teorias de gênero e estudos sociais sobre a infância, Urra (2011) considerou a idade um dos fatores que constroem as desigualdades sociais e, portanto, configura-se em uma categoria útil de análise. Sendo assim, concluiu que os discursos produzidos, identificados nos periódicos que abordam a pediatria contemporânea, sustentam relações de dominação tanto de gênero quanto de idade.
A partir da análise do Gráfico 2, percebe-se a disposição dos objetos de estudo dos 19 relatórios de pesquisa nas quatro categorias, que se encontram em ordem crescente de representatividade: as questões de gênero ligadas ao embelezamento na Educação Infantil (2 trabalhos - 11%); as questões de gênero e o professor na Educação Infantil (5 trabalhos - 26%); as questões de gênero associadas à educação de meninos e de meninas (5 trabalhos - 26%) e as questões de gênero envolvendo discursos e representações de professoras e de professores na Educação Infantil (7 trabalhos - 37%).
É possível assegurar, ao tomar-se conhecimento dessas informações, que as questões de gênero na Educação Infantil apresentam aspectos multidimensionais, ou seja, podem ser abordadas a partir de diferentes óticas e perspectivas, a depender do que se pretende colocar como objeto de estudo.
Categoria 1 - Questões de gênero envolvendo discursos e representações de professoras e professores da Educação Infantil: Castro, N. (2010); Castro, F. (2014); Lopes (2010); Mariano (2010); Souza (2014); Vasconcelos (2014); Venzke (2010), totalizando sete trabalhos.
Nessa categoria as pesquisas problematizaram as relações de gênero e docência na Educação Infantil, evidenciando as repercussões da relação de educadoras e educadores com as crianças.
A pesquisa realizada por Tex Venzke (2010) discute as representações de docência, entre as décadas de 40 e 60 do século XX, expressas nos documentos das instituições privadas ou públicas, identificando que as representações de professora estiveram atreladas ao discurso religioso, vocação e missão. Foi constatado, inclusive nos cursos de formação para professoras, dentro do recorte temporal estabelecido, a prevalência de princípios religiosos, que preparavam a mulher para a vida doméstica e para a docência.
Esse dado nos faz refletir que, mesmo no século XXI, ainda é possível encontrar atributos semelhantes aos evocados na época, como podemos perceber, através do estudo de Vasconcelos (2014), ao afirmar a necessidade emergente de se discutir o quanto os requisitos para a docência na Educação Infantil estão atrelados à educação e ao cuidado materno, além de alertar para o fato de que os documentos oficiais normatizadores da Educação Infantil, no Brasil, mesmo atentos ao contexto social de reivindicações feitas pelos movimentos sociais e feministas, permanecem fomentando competências de ordem de gênero.
Rosemberg (2001) e Saparolli (1997), ao pesquisarem o papel de educadora e de educador de uma creche, embasaram-se nos estudos de uma pesquisadora chamada Izquierdo (1994) e constataram que “a profissão de educador infantil” não constitui um trabalho feminino pelo fato de encontrarmos, nesses espaços, uma quantidade maior de mulheres, mas sim porque estas exercem uma função de gênero feminino, que está atrelada à esfera da vida reprodutiva, ou seja: “cuidar e educar crianças pequenas”.
Observa-se, também, que as construções simbólicas em torno do masculino e do feminino ainda sustentam e reforçam a ideologia da superioridade do masculino sobre o feminino e, no discurso de professoras e de professores, concepções de gênero e sexualidade são pautados no senso comum, remetendo-se ao corpo e à natureza humana. Nessa direção, portanto, professoras e professores estimulam a separação de meninos e meninas, oferecendo-lhes incentivos diferentes durante as atividades propostas.
Os estudos sinalizam para o fato de que a entrada dos homens na Educação Infantil tem impulsionado novas problematizações acerca da feminização da docência e que a reintegração de homens no exercício docente, apesar de ainda causar estranheza e preconceito, pode trazer uma nova concepção para a área da Educação Infantil.
Por outro lado, Ferreira (2008), ao realizar uma pesquisa em escola rural, conclui que a presença de homens na Educação Infantil não rompe com as categorias de gênero, entretanto, a entrada desses profissionais na Educação Infantil tem impulsionado novas discussões e problematizações acerca da “feminização” da docência.
Finalmente, constatou-se que é unanime a necessidade de ampliação de estudos sobre a temática referida e a falta de discussão e debates nas escolas, já que boa parte dos professoras e professores não recebe formação sistematizada acerca das temáticas de gênero e sexualidade, para apoiar a ação educativa (CASTRO, N., 2010; CASTRO, F., 2014; LOPES, 2010; MARIANO 2010; SOUZA, K., 2014).
Categoria 2 - Questões de gênero tendo como objeto de estudo os professores da Educação Infantil: Alves (2012); Nunes (2013); Rosa (2012); Silva (2014); Souza, M. (2010), totalizando cinco trabalhos.
De modo geral, as pesquisas desta categoria tiveram por objetivo compreender como os professores se percebem em um espaço essencialmente feminino e o que sofrem por assumirem esta posição, frente aos demais profissionais, alunos e familiares envolvidos.
Derivou-se da análise dos dados que a docência segue balizada por ideias regulatórias heteronormativas, e a construção da docência, na Educação Infantil, quando se tem um homem atuando no cuidado com crianças, não é discutida no cotidiano das escolas. Assim, as diferenças entre os sexos vão sendo acentuadas e vão se reproduzindo e reafirmando desigualdades. Por essa razão, é necessário discutir o quanto os requisitos para a docência, na Educação Infantil, estão atrelados aos cuidados maternos e é preciso trazer cada vez mais essas questões para o interior da escola (ALVES; 2012; SILVA; 2014; VASCONCELOS, 2014).
Bruschini e Amado (1988) esclarecem que, em meados do século XIX, foram criadas as instituições destinadas a preparar professores para o exercício docente. Na época, as chamadas escolas Normais recebiam homens, entretanto, desde então, o público frequentador era predominantemente feminino. As autoras chamaram atenção para as correntes de pensamento que consideravam que, pelo fator biológico, a mulher era mais apta ao trabalho com crianças pequenas, acabando por ocasionar, por consequência, a forte imagem associativa do magistério à vocação e não à profissão docente.
Castro, F. (2014) constatou em seu trabalho que os homens passam por tentativa de influência e dominação feminina devido ao conhecimento e experiência que elas têm sobre a Educação Infantil, e Alves (2012), por sua vez, afirmou que homens têm dificuldade em se manter ensinando crianças pequenas em razão da concepção tradicional de masculinidade e heterossexualidade impregnadas na sociedade, com pensamentos estereotipados recorrentes. Nessa mesma direção, Rosa (2012) sinaliza que todos os discursos analisados em sua pesquisa revelam que esses sujeitos são produzidos para culturas masculinas hegemônicas. No entanto, segundo Souza (2010), a experiência de inserção do homem como professor de creche é positiva e recomendável, e, normalmente, caminha do estranhamento inicial ao estabelecimento de uma relação de confiança.
Nunes (2013) deixa claro que o professor é bem quisto na Educação Infantil quando atua tendo sua posição previamente demarcada, ou seja: respeitando masculinidades, respeitando padrões que são socialmente reconhecidos. “De modo geral, os professores pesquisados parecem temer a experiência do “cuidar” de crianças na Educação Infantil” (NUNES, 2013, p. 9), e, assim, finaliza o seu estudo sugerindo a formulação de políticas públicas para a educação que contemplem as relações de gênero na atividade docente da Educação Infantil.
Por fim, é necessário evidenciar que os trabalhos analisados apontam para a necessidade de ampliação dos estudos que envolvem o homem na docência da Educação Infantil, incluindo emergente necessidade de formação continuada dentro das escolas.
Categoria 3 - Questões de gênero tendo como objeto de estudo educação de meninos e meninas na Educação Infantil: Aird (2015); Finco (2010); Garcia (2013); Moraes (2012); Sostisso (2011), totalizando cinco trabalhos.
Neste grupo de estudos, nota-se uma preocupação, sobretudo, com as vozes e comportamentos das crianças, especialmente durante o período de brincadeiras, a respeito de como se caracterizam as questões relacionadas ao gênero produzidas pelas próprias crianças.
Seja através de observações diretas dos meninos e meninas, em atividade escolar, ou de documentos/currículos e livros de literatura, há significativa preocupação com a prática pedagógica na Educação Infantil, sempre associando conclusões com indicações para a melhoria da formação inicial e continuada de professoras e professores. Outro aspecto a ser destacado refere-se à reformulação de políticas educacionais dirigidas a essa etapa da educação das crianças.
Sobre a pesquisa com crianças, Silva, Barbosa e Kramer (2005, p. 55) apresentam suas contribuições, revelando que é “[...] fundamental analisar os discursos as interlocuções tanto nas entrevistas quanto em outras situações de interação (observação de brincadeiras, conversas, diálogos entre crianças e adultos, experiências culturais no cotidiano)”, pois, dessa forma, é possível captar desejos, necessidades, resistências e interesses revelados pelas crianças durante as interações cotidianas.
De acordo com Aird (2015), todo arranjo pedagógico parece centrar-se na manutenção de uma ordem, passando pela organização de materiais, gestos, posturas, comportamentos e habilidades, destacando, inclusive, inúmeras brincadeiras que alertam, em um discurso velado, para comportamentos aceitos e “perigos” existentes nas transgressões de regras e normas.
A tese de Finco (2010) representa uma investigação bastante minuciosa sobre as interações de professoras e professores com crianças em geral, especialmente aquelas que transgridem os padrões de gênero que lhes são impostos. Ao analisarmos o estudo da mencionada autora, percebemos que meninos e meninas encontram brechas no gerenciamento do dia a dia na pré-escola para fugir dos padrões considerados adequados para cada sexo. Isto significa que, ao “transgredirem”, as crianças problematizam suas vidas e criam novas relações, apesar de toda uma bagagem de estereótipos e preconceitos.
Olhando-se o conjunto de trabalhos é possível afirmar, assim como relatou Finco (2010), que crianças dão pistas sobre o lugar que ocupam e sobre o jeito de ser menina e menino, fortemente presentes nas relações sociais estabelecidas na sala de aula e nos espaços sociais pelos quais circulam. Nesses espaços é possível perceber as relações de gênero e de poder, especialmente nos modos como as crianças se organizam e resolvem conflitos, resistindo a normas e comandos que são destinados às meninas e aos meninos. Assim, a escola segue “fabricando” o lugar da menina e do menino, tal qual destaca Louro (2014) em seu estudo.
A organização dos tempos e dos espaços na Educação Infantil caracterizam-se por uma disciplina heteronormativas de controle, regulação e normatização dos corpos e dos desejos das crianças, ou seja: existe uma intencionalidade pedagógica que tem sexo como um critério para a organização e usos dos tempos e espaços (FINCO, 2010). Isto significa que professores, muitas vezes, acabam reproduzindo práticas sexistas na sala de aula.
Ainda que as pesquisas destaquem sinais de evolução e transformação, professoras reforçam, no cotidiano escolar, valores da sociedade que oprimem as mulheres, além da prática pedagógica seguir fortemente influenciada pela formação do magistério tradicional.
Os estudos desta categoria são unânimes na ratificação da necessidade de estudos mais abrangentes sobre o cotidiano da escola, já que as práticas são tão naturalizadas e aparecem de forma velada em torno das demarcações de gênero.
Categoria 4 - Questões de gênero tendo como objeto de estudo as práticas de embelezamento na Educação Infantil: Beck (2012) e Guizzo (2011), totalizando dois trabalhos.
O estudo de Guizzo (2011) discute em que medida as representações de beleza e de feiura, compreendidas pelas crianças de uma turma de Educação Infantil, afetam a forma como as meninas lidam e investem nos seus corpos, delineando suas feminilidades. Beck (2012) definiu como objeto de estudo a produção das identidades de gênero femininas infantis, escolarizadas, analisando as práticas de uniformização escolar.
De forma geral, nesta categoria, aspectos relacionados à vaidade das crianças foram bastante explorados. Ressalta-se que meninos e meninas têm se preocupado, de forma excessiva, com suas aparências e que essa preocupação advém das representações e imagens às quais têm acesso, através de diversos meios, como a televisão, as revistas, a família e a escola. Ademais, as pesquisas discutem o forte desejo de consumo entre crianças, sinalizando que meninas são constantemente encorajadas a investirem em seus corpos, o que acaba por colaborar para a construção de suas identidades, já que buscam, a todo tempo, estratégias (nas formas de se vestir e se comportar no espaço escolar) para se enquadrar na lógica de embelezamento vigente.
Beck (2012) problematiza as questões referentes à erotização dos corpos buscando responder de que forma as práticas de uniformização escolar infantil interferem no modo como as meninas investem, em seus corpos, padrões de embelezamento e consumo difundidos na sociedade e propagados pela escola, e sinaliza que as práticas de embelezamento entre as crianças vão além do uso de uniformes (já que elas utilizam vários acessórios, além do uniforme, denominados pela autora de “artefatos culturais”).
Guizzo (2011) considera que meninas, muitas vezes, almejam ter corpos perfeitos e por isso investem em práticas que escondam seus “defeitos” a fim de que se pareçam com celebridades que admiram. Ressalta-se que essas práticas foram analisadas pela autora como parte de uma construção histórica, social e cultural e não como comportamentos femininos “naturais”.
“Nosso tempo é [...] um tempo em que importantes segmentos econômicos [mídia, indústrias etc.] se sustentam fabricando e vendendo representações de determinados corpos, definidos como ‘bonitos e saudáveis’” (MEYER; SOARES, 2004, p. 6). Logo, a construção de noções a respeito da aparência ideal e de beleza parece ser elemento fundamental da vida cultural e social moderna (BECK, 2012; GUIZZO, 2011).
Sem dúvida, permanecem os desafios de superação de estereótipos e desigualdades envolvendo a construção das identidades de gênero, tal como tem-nos indicado Beck (2012), ao considerar que as concepções de corpo, moda, embelezamento e consumo são reforçadas pela escola, por meio de situações práticas, aparentemente inocentes, que se encontram imersas nas mais diversas relações.
Por fim, Guizzo (2011) aponta para a retomada da pedagogia da escuta e afirma haver uma espécie de “adultização das crianças” quanto aos modos de vestir, produzir e investir em seus corpos. Apesar disso, as autoras comungam da ideia de que, mesmo devagar, as escolas parecem se inserir na construção de uma sociedade menos desigual.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, pode-se constatar, ao examinar teses e dissertações nacionais publicadas no período compreendido entre 2010 e 2015, que a produção acadêmica acerca das questões de gênero e Educação Infantil ainda são escassas; e, ainda, que há um polo produtor de pesquisas na região Sudeste, no qual as pesquisas concentram-se nas universidades públicas, foram produzidas, majoritariamente, por mulheres, além de terem sido publicadas, em maior número, na área da Educação.
Evidencia-se, a partir da análise, uma importante lacuna no conhecimento: a maioria dos estudos que se propõem a tratar gênero na Educação Infantil não se preocupam em abordar aspectos relacionados ao desenvolvimento da criança, não se debruçam sobre como ela pensa, sente ou vê o mundo sob a sua ótica. Esta lacuna é também lembrada por Faria (2006), quando afirma que grande parte das pesquisas que tratam das relações de gênero não abordam as especificidades das diferentes idades e fases da vida, especialmente aquelas que dizem respeito às crianças. O mesmo é indicado por Rosemberg (2001, p. 57) ao afirmar que raríssimos estudos parecem ter ido em busca do lugar da infância na construção social das relações de gênero no sistema educacional.
Uma constatação que confirmaria a escassez de interesse de estudos de gênero relacionados à Educação Infantil decorre da pesquisa da própria Rosemberg (2001). A mencionada autora, ao estudar a produção apresentada nos últimos anos nas reuniões da ANPEd, conclui que apenas 3% das produções abordam gênero. Ao tentar compreender a ausência do tema educação e gênero, a autora discorre sobre a autorreferência das pesquisas sobre a mulher e relação de gênero, isto é, o que ela chama de adulto-centrismo nas pesquisas: mulheres adultas investigam sobre mulheres adultas; o foco continua sendo a mulher adulta ou as relações de gênero sob a ótica da vida adulta.
Essa evidência equivale aos achados deste artigo, pois, ao somar as pesquisas da categoria 1, “Questões de gênero envolvendo discursos e representações de professoras e professores da Educação”, com a categoria 2, “Questões de gênero tendo como objeto de estudo os professores da Educação Infantil”, tem-se 63% das produções voltadas para a discussão e problematização da temática de gênero no mundo adulto.
Outra lacuna que pode ser evidenciada na análise dos relatórios de pesquisa refere-se à ausência de discussões que abordem a influência e/ou o comportamento das famílias frente às questões de gênero na Educação Infantil. Faltam, nos estudos, aspectos que evidenciem como as práticas educativas parentais interferem na construção da identidade de gênero na infância. É possível afirmar, ainda, que a relação família-escola, nos trabalhos que envolvem as questões de gênero e Educação Infantil, é negligenciada. Ou seja: não é possível perceber de que forma essa relação interfere na educação de meninos e meninas e como a escola se posiciona frente a esses aspectos.
Tendo em vista os dados aqui apresentados, o artigo pretende contribuir para a prática pedagógica e pesquisas futuras traçando um panorama das contribuições das pesquisas de gênero na área da Educação Infantil. Identificar e discutir os temas mais frequentemente estudados, constitui-se em uma ferramenta importante para uma ciência com pressupostos teóricos sólidos. Cabe às professoras e aos professores, e demais interessados na temática referida, utilizarem esses dados e discussões para enriquecer suas práticas profissionais, contribuindo para a promoção da equidade e desconstrução de estereótipos de gênero que envolvem tanto a construção da identidade do professor e da professora da Educação Infantil quanto a educação e o desenvolvimento de meninos e meninas.