Introdução
O presente artigo visa descrever em linhas gerais como desenvolvemos e analisamos os dados encontrados na pesquisa de pós-doutorado intitulada: Dispositivos para a formação docente que consideram a subjetividade (DINIZ; PEREIRA, 2018), realizada em 2018/2019 junto ao Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (FaE-UFMG), Linha de Pesquisa: Psicologia, Psicanálise e Educação, e que contou com a bolsa de financiamento da Capes no Programa Nacional de Pós-Doutorado/Capes (PNPD) 2018.1
O ponto de partida para o recorte da pesquisa realizada foi o banco de dados da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP),2 que identificou os/as pesquisadores/as brasileiros/as do campo Psicanálise e Educação que são professores/as de instituições de ensino superior e que desenvolvem investigações, extensões e orientações de graduandos e de pós-graduandos. O referido banco de dados3 considerou: 1) localização dos cursos e os programas de pós-graduação de psicologia, de educação e de áreas afins dos estados ou regiões em que o GT tem representantes (São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro-Espírito Santo, Sul, Centro-Oeste, Nordeste 1 [Ceará, Maranhão e Piauí] e Nordeste 2 [Rio Grande do Norte, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe e Bahia]); 2) análise das páginas eletrônicas dos cursos e dos PPGs, bem como os currículos Lattes de seus professores-pesquisadores-orientadores; 3) as variáveis como projetos, temas das publicações e temas das orientações, registrando aqueles que trabalham ou trabalharam com pesquisa (e/ou extensão) relacionada à psicanálise e educação;4 4) a identificação nominal desses professores-pesquisadores-orientadores que compuseram, cada um/a, um pequeno quadro com seus emails, projetos, temas de orientação e de produção; 5) os currículos de seus alunos orientandos e pós-doutorandos, buscando localizar o maior número possível de pesquisadores e de assuntos do campo, garantindo uma maior consistência à cartografia organizada. O resultado desse trabalho demonstrou uma razoável diversidade de temas e de pesquisadores em todas as regiões geográficas do país (KUPFER et al., 2010; PEREIRA; SILVEIRA, 2015),5 nas quais identificaram 157 profissionais que trabalham diretamente com Psicanálise e Educação ou têm este campo entre as abordagens que desenvolvem. À época do levantamento dividiram o campo em seis temas e apontaram o número de profissionais em cada um: 1) Adolescência, violência e socioeducação (21); 2) Infância, impasses com o saber, sofrimento e inclusão (58); 3) Docência e mal-estar na educação (40); 4) Linguagem, literatura e psicanálise (10); 5) Psicanálise, educação e conexões (20); e 6) Transmissão, ensino e aprendizagem (8).
Tal iniciativa seguiu as diretrizes do plano proposto pelo GT Psicanálise e Educação da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP), que visa mostrar o que tem sido produzido na literatura científica do campo desde a década de 1980, na qual o campo Psicanálise e Educação ganha no Brasil um recorte disciplinar independente da Psicologia do Desenvolvimento.6 O que o grupo de pesquisadores/as da ANPEPP concluiu é que o campo cresceu em número absoluto de pesquisadores/as e de produções, e que vem se consolidando. Assinalam a importante contribuição político-acadêmica do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI-USP) e do Lugar de Vida, considerando que a fundação do LEPSI, em 1998, e a realização de seus colóquios internacionais (anuais e depois bianuais) fez com que o número de profissionais se multiplicasse no campo. O LEPSI desdobrou-se e hoje reúne pesquisadores/as da UFMG e da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Minas, que se somam aos da USP e da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), além de agregar em seus colóquios pesquisadores/as de todo o Brasil. O grupo ainda destaca que outros diretórios do CNPq indicam trabalhos de pesquisa direta ou indiretamente associados ao GT Psicanálise e Educação da ANPEPP e também contribuem para o crescimento do campo, como o Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Cultura, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NUPPEC/UFRGS), o Grupo de Estudos em Psicanálise, Educação e Representações Sociais, da Universidade do Estado da Bahia (GEPPE-RS/UNEB), o Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NIPIAC/UFRJ), o Grupo de Pesquisa Caleidoscópio, da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Outrarte (Unicamp, USP, UFMG, UFG, UdelaR), entre tantos outros.7
Para a pesquisa de pós-doutorado em tela, destacamos os/as profissionais atrelados à terceira temática indicada pela pesquisa de Pereira e Silveira (2015): “docência e mal-estar na educação”, grupo que conta com 40 profissionais. Destes, elegemos o subgrupo que discute mais especificamente a docência, não considerando nesse trabalho a questão do mal-estar docente por já ter sido objeto de pesquisas realizadas em outras circunstâncias.8 Interessava-nos no pós-doutorado buscar os dispositivos que nós, professores/as psicanalistas, temos usado na formação docente considerando a subjetividade. Do grupo de 40 pesquisadores/as chegamos a 15;9 enviamos um formulário para 13 psicanalistas professores/as, contendo duas perguntas básicas: 1) Em que medida os psicanalistas estão inventando novos operadores para atingir a transmissão de uma formação que considere o sujeito do inconsciente? 2) Como você, professor/a psicanalista está implicado nessa conduta de formação? Obtivemos quatro respostas que servirão de mote para a discussão e análise do que encontramos na literatura e nas produções de pesquisadores/as dessa temática no Brasil e fora dele.
Também buscamos em outros grupos de psicanálise inscritos na ANPEPP os rastros e pistas sobre a questão da docência, ainda que estivessem fora do escopo Psicanálise e Educação, mas não encontramos nenhuma produção nesses outros grupos que fizesse referência à docência e à formação, indicando que a produção acerca da temática em questão é ainda tímida, embora vários psicanalistas sejam professores/as universitários. Fonteles (2015) aponta que em algumas categorias profissionais a docência encontra-se ligada a uma prática, como é o caso da Medicina e do Direito, por exemplo, na qual os psicanalistas terminam por restringir sua presença na universidade apenas a momentos de ministrar aulas, dirigindo o restante de sua carga horária para o escritório, consultório ou instituição privada de formação. Segundo essa autora, alguns professores-psicanalistas beneficiam-se do contato com estudantes para atrair clientela para sua clínica e para sua formação paralela em instituições ou associações de psicanálise; e afirma que as consequências mais diretas desse desvio de função (quando o regime é de dedicação exclusiva) são: ausência das reuniões de colegiado, sobretudo no nível da graduação; rara intervenção em debates acadêmicos relativos à reorganização curricular e político-acadêmica; impedimento de assumir cargos de gestão, o que, por sua vez, provoca pouca interferência nas questões relativas ao curso, no acompanhamento e supervisão dos estudantes e em decisões estratégicas decisivas, como distribuição de vagas para concurso. Tais aspectos são apontados por Fonteles (2015) como justificativa para uma certa invisibilidade da psicanálise na universidade.
Antes de apresentarmos a análise das perguntas endereçadas a psicanalistas-professores/as acerca dos dispositivos que utilizam na formação docente, é importante assinalar que a pesquisa no campo da psicanálise, entendida como um território de disputas de verdades e saberes, apresenta princípios e orientações que interrogam o discurso científico strito sensu.
O campo de pesquisa em Psicanálise: teoria, clínica e método
A pesquisa em psicanálise coincide com a própria gênese do campo e se confunde com a práxis analítica, na medida em que a clínica, para Freud, é também pesquisa. O método psicanalítico e sua aplicação têm sido objeto de polêmicas acerca do sentido e do real significado das pesquisas ditas psicanalíticas na universidade. A pergunta que geralmente fazemos é: como considerar a lógica do trabalho clínico orientado pelo inconsciente na pesquisa?
O conceito de inconsciente, trazido pela psicanálise para o âmbito das ciências e uma nova forma de pesquisa com método próprio, caracteriza a especificidade deste campo que, desde o início de sua constituição, pleiteia - e realiza - inserção no ambiente universitário, juntamente com as demais disciplinas científicas. De acordo com Coutinho e outros (2013, p. 106): “A proposta de Freud para a sua ‘jovem ciência’ [...] compreende os seguintes elementos integrados: modelo de pesquisa e de tratamento, método e rede conceitual e de vocabulário.”
Ao longo da história, a psicanálise encontra seu lugar perante as outras ciências, e é deste lugar que ela pode interrogar e ser interrogada, estando em posição de interlocutora e fazendo avançar as pesquisas por meio de seus conceitos, da clínica e seu método, embora inúmeras sejam as discussões em relação a seu estatuto, gerando posicionamentos diferentes entre psicanalistas e interlocutores. Sauret (2003) destaca diferentes tipos de pesquisa em psicanálise: a) a que visa responder a questões colocadas pela psicanálise; b) a que busca responder a questões colocadas à psicanálise; c) a que constrói uma teoria a partir da doutrina e da experiência; d) a que visa ampliar o campo da experiência analítica; e) a que se orienta pelo saber e, eventualmente, pela ética da psicanálise.
A utilização da teoria freudiana não visava apenas ao tratamento nos anos de 1920 e 1930, sendo compreendida como uma teoria aplicável à cultura e apropriada por diversos campos científicos.10 Podemos destacar aqui a relação da psicanálise com a psiquiatria, com a filosofia, com a literatura, com o direito, com a psicologia e com a educação.
Boddin (1998) relata que a psicanálise começou a ser divulgada no Brasil desde o final do século XIX por meio de psiquiatras das faculdades de medicina, destacando-se, entre eles, Juliano Moreira,11 Durval Marcondes,12 Porto-Carrero.13 A universidade foi o primeiro lugar ao qual chegaram as ideias inaugurais de Freud, sendo defendido, em 1914, na Faculdade Nacional de Medicina no Rio de Janeiro, o primeiro trabalho acadêmico em psicanálise no país, escrito pelo médico Genserico de Souza Pinto (1914).14
No Brasil, as relações da psicanálise com a literatura são particularmente importantes, pois historicamente uma das formas de difusão das ideias psicanalíticas no início do século XX deu-se por meio de movimentos literários, como o Modernismo, e de obras de escritores que se utilizavam da psicanálise.
De acordo com Fontenele (2015), as primeiras relações entre psicanálise e educação datam de 1927, com o livro de Deodato de Moraes, A psicanálise na educação. Em 1928, Porto-Carrero começa um curso sobre psicanálise aplicada à educação, enfatizando a ideia de que uma educação orientada pela psicanálise seria importante na formação de indivíduos saudáveis. Também a obra de Arthur Ramos,15 psiquiatra que desde o início de sua carreira faz articulações entre psicanálise e educação, com ideias inovadoras sobre a educação de crianças com déficit intelectual e problemas emocionais, escreve um livro em 1934, intitulado Educação e Psicanálise, com o objetivo de demonstrar a validade e eficácia da psicanálise no campo da educação escolar, além de enfatizar a necessidade da formação dos educadores orientados por este referencial (SIRCILLI, 2006). Ideias psicanalíticas estão presentes no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, movimento ocorrido nos anos 1930 que pretendia reformular as bases da educação brasileira, baseando-se em ideias de igualdade e autonomia do educando, com uma escola laica e pública para todos (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO; FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO, 2010).
Em relação à psicologia, destacamos que após a criação do curso, em 1956, disciplinas como Psicologia do Desenvolvimento e Estágios Supervisionados representaram um dos primeiros lócus institucionais a partir dos quais as ideias psicanalíticas puderam desenvolver-se, tendo como professores vários psicanalistas da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e do Rio de Janeiro.
Na década de 1970 ocorre o boom das psicoterapias com a divulgação de diversas correntes da psicologia e, sobretudo, da psicanálise, destacando-se a chegada do pensamento lacaniano no Brasil por meio de psicólogos que ainda não eram aceitos pela International Psychoanalytical Association (IPA), fato que só acontece em 1979, de acordo com Boddin (1998). Os psicanalistas acabam aproximando-se da universidade, onde encontram acolhimento para o estudo das novas teorias, já que, por outro lado, a fragmentação dos espaços institucionais decorrentes de cisões nas escolas enfraquece o movimento lacaniano.
Para Mezan (1998), um segundo momento nas relações psicanálise e universidade ocorre na década de 1980 com a inserção nos cursos de Pós-Graduação, no Rio de Janeiro e depois em São Paulo, destacando-se, na década de 1970, o curso de Especialização em Psicologia Clínica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) que visava à formação de psicólogos psicanalistas. Oliveira (2005) destaca que na USP a psicanálise marca em 1954 a formação de psicólogos clínicos no Curso de Especialização em Psicologia Clínica e surge nos primeiros Mestrados em Psicologia do país (PUC-RJ, em 1966) com dissertações, defendidas, sobretudo, após a década de 1970. Ainda na década de 1960, a USP implanta seus Programas de Pós-graduação (PPGs) em psicologia, incluindo um doutorado em 1974. Desta forma, a universidade passa a figurar como um primeiro lócus de formação para psicólogos, pois, segundo Anzieu (1979), a psicanálise fornecia à psicologia clínica o suporte teórico que lhe faltava, e esta última garantia a entrada e permanência da psicanálise na universidade. Esta inserção na universidade não foi sem críticas, polêmicas e disputas com as instituições psicanalíticas e diversos psicanalistas que se posicionaram contra a presença da psicanálise na universidade, sendo alguns até mesmo malvistos ou rejeitados por seus pares por serem professores universitários. A crítica maior recai sobre a pós-graduação, uma vez que surge, de modo sistematizado, a proposta de pesquisa em psicanálise, trazendo a clínica ao contexto universitário, ou de doutorado em psicanálise, provocando desconfiança de associações psicanalíticas que até então eram as detentoras da formação.
Portanto, medicina, filosofia, literatura, direito, psicologia e educação são as áreas que concentram a maior parte das teses psicanalíticas, sendo campos que sempre estabeleceram relações com a psicanálise. Mais que encontrar respostas, a psicanálise busca discutir questões, mostrando a ruptura epistemológica que promove, diretamente relacionada à sua forma de compreender a pesquisa e sua transmissão, sobretudo na universidade, se colocando no campo da contingência, apontando para a impossibilidade de um saber universal, contrária à forma de operar da ciência que recalca este contingente e busca ingressar no campo do necessário, do determinismo, de acordo com Pinto (2005).
A psicanálise ainda encontra dificuldades no cenário acadêmico, considerando que a forma de fazer pesquisa empreendida por psicanalistas vai de encontro aos ideais de ciência vigentes nas universidades, bem como à exacerbação da lógica produtivista presente nas universidades de forma geral, e não só no Brasil. Para Birman (2013), a pesquisa seria, de forma indiscutível, elemento estruturante da universidade, deslocando a posição dos/as docentes e dos/as estudantes e instaurando-se um espaço de trocas, com lugares menos personalizados ou centrados na figura do mestre. A pesquisa coloca o saber em uma posição terceira na relação ensino-aprendizagem, favorecendo uma postura ativa pela construção e apropriação do conhecimento, tanto do docente quanto do discente, desempenhando um importante papel no cenário político-acadêmico, de acordo com Fontenele (2015). A pesquisa pode interrogar tanto o conhecimento quanto a relação com o saber, este materializável na medida em que é incorporado por alguém que, em relação, produz e interroga a teoria, relançando as bases de novos conhecimentos e marcando o importante lugar vazio da estrutura significante.
Para alguns autores (CASTRO, 2010; LO BIANCO, 2003, ZANNETI; KUPFER, 2006), desde os primórdios da psicanálise, a direção da pesquisa psicanalítica é dada pela experiência clínica; portanto, o relato do caso e seus desdobramentos são instrumentais na construção do método e da pesquisa em psicanálise. O caso não é usado para confirmar a teoria ou para demonstrar e exemplificar. Trata-se de um conjunto teórico que sustenta relações com a clínica e o que emerge dela. Por meio dessas análises, obtém-se a renovação da teoria. O caso interroga o pesquisador e essa singularidade não diz respeito somente ao analisando e suas questões, mas à própria relação com o analista. A pesquisa não se reduz à observação, tampouco ao registro para posterior análise, mas diz respeito a uma elaboração do trabalho na clínica. Mesmo pesquisas teóricas estariam relacionadas com tal dimensão.
Lo Bianco (2003) afirma ainda que investigações teóricas são necessárias para revisão dos conceitos e, consequentemente, para a prática clínica. Seu exame permite conhecer elaborações já realizadas, mas que não se esgotam. O retorno aos textos fundadores deve ser tomado num movimento de vai e vem, das questões clínicas para a teoria e vice-versa. Além disso, o pesquisador escreve a partir de sua experiência com a psicanálise, seja sobre sua análise pessoal, seja das análises que conduz. Esses aspectos colocam não só a clínica, mas também a cultura como lócus importante de incidência da interrogação psicanalítica.
Para Aires (2013, p. 34, grifo do autor),
podemos supor que cada analista ocupa e exerce de modo singular um lugar na universidade, um modo de transmissão da psicanálise no lugar em que se encontra e nesse sentido, ao falar como psicanalistas no âmbito da universidade, não falamos desde um lugar comum [...]. Para que uma fala tenha efeito de transmissão, deve necessariamente implicar o reconhecimento da alteridade.
Destacamos algumas pesquisas no meio psicanalítico que já fazem interlocuções com outros métodos e formas de avaliação, como a pesquisa Indicadores Clínicos de Risco para o Desenvolvimento Infantil (IRDI), em que um instrumento com 31 indicadores clínicos de risco do desenvolvimento foi elaborado a partir da psicanálise e aplicado em 727 crianças em um estudo longitudinal (KUPFER et al., 2010). Destacamos também a pesquisa Pre-Aut na França e em diversos países, entre eles o Brasil, para diagnóstico precoce do risco de autismo em bebês. Alguns testes e avaliações, baseados na teoria psicanalítica, levam a avanços na clínica do autismo, inclusive estabelecendo diálogos com áreas como as neurociências (FONTENELE, 2015).
Green (2007) defende um pluralismo de concepções de ciências, na psicanálise, com diferentes tipos de pesquisa (para ele seriam: clínica, conceitual e empírica), o que nos faz pensar em termos de um complementarismo. O que seria importante numa pesquisa psicanalítica é o modo de pensar psicanalítico que vem da experiência do analista/pesquisador com a psicanálise.
No campo Psicanálise e Educação alguns psicanalistas afirmam que, para serem aceitos no campo restrito da educação, acabam por tornar a psicanálise irreconhecível, adaptando-se a áreas diversas, no dizer de Aires (2013). Por outro lado, em algumas universidades, a Psicanálise e Educação torna-se um gueto formado pelos próprios psicanalistas que, por vezes, não deixam de adotar uma postura de superioridade em relação aos outros saberes e em alguns casos até entre si mesmos, reproduzindo as divisões de suas associações, cada uma defendendo suas próprias verdades. O grande risco para o campo Psicanálise e Educação está posto na não transmissão do saber a partir de sua ética e do discurso que lhe é próprio (AIRES, 2013).
Consideramos que o campo Psicanálise e Educação pode ser visto como uma dimensão entre disciplinas, um “entrelugar”, de acordo com Blanchard-Laville (2001, p. 209):
Reconhecemos como que cada professor, através do ato de fala singular que constitui uma aula, impõe ao aluno um cenário pessoal implícito. Trata-se de uma construção que identifica o professor quase da mesma maneira que uma assinatura, assim como pensamos encontrar nas memórias a assinatura de seu posicionamento quanto às relações conhecimento e saber.
Vale destacar que, no estudo de Pereira e Silveira (2015), no eixo temático denominado “Formação de professores”, aparecem dois subtemas principais: as possíveis contribuições da inserção da psicanálise e da psicologia nos cursos de formação, cujos títulos tendem a concluir que o aporte psicanalítico pode fornecer algum preenchimento de lacunas, muitas vezes deixadas em aberto pela área da educação; e os questionamentos e impasses subjetivos de professores participantes dos cursos de formação continuada, entre o que é apresentado no curso e a realidade vivida por elas. Diante desse cenário, e pelo fato de sermos professores psicanalistas atuando na formação docente em cursos de pedagogia e de licenciatura, buscando transmitir a ética da psicanálise em tais formações, é que nos interessa apurar como se desvelam os dispositivos metodológicos de formação na docência.
Métodos e dispositivos usados por psicanalistas na formação docente
Neste tópico buscaremos elencar alguns dispositivos e métodos utilizados na pesquisa em Psicanálise e Educação, com base na atuação de docentes orientados pela psicanálise em disciplinas que incluem temas como: infância, inclusão escolar, relação professor/aluno, prática docente, violência escolar, fracasso escolar, dificuldades de aprendizagem, aquisição da leitura e escrita e psicopedagogia, especialmente na formação docente, que é o recorte da pesquisa que realizamos no pós-doutorado. Professores/as em sala de aula têm usado diversos dispositivos como elementos que possam promover a formação, seja por meio da análise de entrevistas ou casos clínicos, filmagens, relatos de caso, grupos focais, observação participante, relato de histórias de vida, narrativas, método clínico, escuta flâinerie, conversação, entre outros.
A pesquisa Dispositivos de formação docente que consideram a subjetividade (DINIZ; PEREIRA, 2018) buscou elucidar os dispositivos que professores/as-psicanalistas dispõem e podem incidir sobre a subjetividade de docentes em situação de formação, e apurar de que maneira nós professores/as psicanalistas temos transmitido um saber em sala de aula na formação de futuros/as professores/as. É importante ressaltar que dos treze professores/as identificados inicialmente, três responderam que por estarem aposentados não se sentiam aptos neste momento a responder às questões. Dois professores/as assinaram o termo de livre consentimento esclarecido afirmando que enviariam as respostas, mas estas não chegaram no prazo previsto para o encerramento da pesquisa. Quatro professores/as não deram nenhuma resposta. A seguir analisaremos as respostas dos quatro psicanalistas que responderam às duas questões, nomeando-os como Henrique (homem, branco, trabalha no ensino superior privado), Isabel (mulher, branca, trabalha em uma universidade pública), Pedro (homem, branco, trabalha em uma universidade pública) e Elisa (mulher, branca, trabalha em uma universidade pública).
Ao ser perguntado: “Em que medida os psicanalistas estão inventando novos operadores para atingir a transmissão de uma formação que considere o sujeito do inconsciente?”, Henrique assim respondeu:
Questão interessante. Primeiro por que considero o par ensino-transmissão marcado pelo real do inconsciente e, portanto, marcado por certa impossibilidade estrutural. Isso não significa cair em uma posição niilista em face à formação dos sujeitos, mas implica a saber que os resultados esperados de uma formação não irão coincidir com os objetivos postos a priori. Em segundo, em se tratando de formação docente, considero tão-somente a formação do inconsciente, e menos o semblante em jogo a partir do discurso da universidade. Mais ainda, tomo todo cuidado em não pensar a transmissão de uma formação a partir de modelos ou metodologias, como atualmente está em moda dizer ‘metodologias ativas’, pois isso se trata apenas de uma das caras do mercado no campo educacional, no meu entender, passo a considerar que um educador afetado pelo saber que aporta a psicanálise, para pontuar a dimensão singular dessa tarefa, está afetado pelo desejo que o habita face ao campo epistêmico, um desejo que não se confunde com a necessidade de reconhecimento (narcísico e infantil), pois é do reconhecimento de seu próprio desejo que se trata, enfim, um desejo de formar professores, por exemplo. Obviamente, um desejo advertido, pois impossível. Portanto, sem tal condição, não acredito que se possa tocar ao não saber que possa advir do laço educacional. Essa questão, na minha opinião, consiste no que fazemos com isso que advém do Outro e do outro como semelhante, de modo a reconhecer uma diferença, ao mesmo tempo que damos testemunho de nossa castração. A dívida simbólica e a filiação que advém da mesma são da ordem da transmissão do desejo. Não há como planejar ou controlar o que se transmite, do mesmo modo que não se trata de um saber sabido passível de ser colocado em signos, mas a própria relação com a falta. Nesse sentido, considero fundamental o como damos testemunho de nossa castração em face ao não saber e a falta, em que um objeto de conhecimento pode bem ser apenas um objeto fetiche, ou, como defendo, inscreve-se como filiação simbólica a uma tradição epistêmica, isso que mobiliza o desejo de professar como um dever frente às novas gerações.
Podemos assinalar no enunciado acima que aquilo que se pode transmitir do que se ensina é um desejo de saber e esse desejo só pode ser transmitido como falta no saber, para que cada um/a possa fazer sua produção, marcando assim um estilo próprio.
Não há um único saber que dê conta de todas as questões. É necessário que o educador aceite, acolha e reconheça a falta inerente a qualquer saber de si, do outro. O saber como algo que se tece com o outro, a muitas mãos, é algo que vaza, é não todo, não há uma captura total, nos escapa. A informação não é saber, ela só faz semblante de saber. Formar é diferente de informar, formar diz respeito à construção de um lugar psíquico para suportar a falta de informação ou seu excesso: “considero fundamental o como damos testemunho de nossa castração em face ao não saber e a falta”.
Isabel respondeu:
Penso que, como professores, precisamos partir justamente do conceito de inconsciente para pensar seus efeitos na aprendizagem e, consequentemente, nos processos formativos. Nesse sentido, incluir essa concepção na minha prática pedagógica requer um constante questionamento sobre as estratégias utilizadas em sala de aula, no modo como os alunos estabelecem laço comigo e com os conteúdos, e também nas avaliações propostas em disciplinas que leciono. Incluir a noção de sujeito do inconsciente implica suportar e sustentar modos outros dos alunos estabelecerem laços com os conteúdos ministrados, laços esses que se estabelecem ancorados em outros modos de pensar e se colocar em sala de aula aquém ou além da razão, da cognição. Para as aulas proponho temáticas, textos, vinhetas de situações ou filmes a serem analisados a partir da teoria. Acolho e insiro nas disciplinas sugestões dos alunos de textos, filmes, séries. Ao comentar um texto e/ou conceito, tento fazer após um momento de escuta dos alunos, sobre o que a leitura os provocou, persigo associações, proponho novas perguntas, instigo a irem em busca de outros materiais… instigo a escreverem e se inscreverem no que escrevem. Geralmente o semestre vai se construindo ao sabor do encontro com cada turma e, nos momentos em que lecionei uma disciplina para duas turmas diferentes, ao final recolhi como resultado um processo singular tecido com cada um dos grupos. Sensibilizar a escuta, fazer o exercício de escutá-los para fomentar que eles façam isso nas suas atuais ou futuras salas de aula. Provocá-los a pensar sobre o que ser professor e tornar-se professor implica, atualizar marcas de suas constituições como sujeitos. Ao ler o que escrevi até aqui penso que os operadores são menos estratégias (que não são tão novas assim ou tão diferentes de outras práticas interacionistas), mas o modo como me posiciono frente ao que ensino e aos meus alunos. É lidar sempre com o que sei, suportar a minha ignorância e dar espaço para que cada aluno retire de nossos encontros algo que também diga de si.
De acordo com Lo Bianco (2003), o inconsciente, objeto da psicanálise, é apreendido por meio da práxis. Sua especificidade está no fato de que, ao tempo em que é elaborado, o objeto constitui-se na formalização da investigação. O professor(a)/pesquisador(a) está diretamente implicado na emergência do material de pesquisa: “É lidar sempre com o que sei, suportar a minha ignorância e dar espaço para que cada aluno retire de nossos encontros algo que também diga de si”. Há que se ter um desejo decidido de dar lugar de protagonista ao aluno/a em formação, tecendo desta forma a relação teoria/prática no campo da psicanálise, o que revela o fazer clínico como lugar de investigação, a qual, por um lado, possibilita a construção de generalizações teóricas e, por outro, exige sua reconstrução tendo em vista a transferência singular que se atualiza na relação de cada aluno/a em particular.
Pedro assim se posicionou:
Eu tomo minha prática em sala de aula na formação de futuros professores como testemunho de um trabalho analítico meu, o que para mim implica ‘numa possível bricolagem’ entre o que já elaborei e consigo transmitir e a falta. Incentivo meus alunos a fazerem um inventário escrito do enxame de recomposições identitárias, de novas fabricações de alteridades e de análise dos processos de metamorfose, hibridização e invenções das referências que eles vivenciam em seus contatos com a formação, com o outro, com a escola, com o social e a cultura. A aposta é que no a posteriori algo se elabore. Após leituras por alguns discentes em sala de aula, e comentários gerais destes escritos, minha posição é a de interrogar a escrita de cada um/a e também a de situar o risco das radicalizações e das clivagens observadas em seus enunciados e assim vou configurando paralelamente a minha própria pesquisa.
A pesquisa/intervenção pode ser aplicada tanto para problemas teóricos e/ou metodológicos, quanto nas vivências e nas narrativas decorrentes dessas vivências; neste excerto podemos supor que o psicanalista se coloca nesta posição que o desloca ao deslocar os/as discentes. Estabelecer “a própria pesquisa” a partir da experiência da docência pode ser uma possibilidade de, a posteriori (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986), ele poder verificar a relação de temporalidade e da causalidade psíquica: as experiências, impressões e traços mnêmicos podem ser ulteriormente modificados em função de novas experiências ou do compartilhamento de vivências, podendo adquirir, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica, tanto para si quanto para o outro. A marca registrada da temporalidade a posteriori localiza o analista/formador/pesquisador na condição de um sujeito implicado e a escuta flutuante permite que alguns achados se revelem, pois o retroagir de um traço sobre outro, que já se encontrava inscrito, cria novo sentido para ambos, na medida em que possibilita novas configurações dos elementos em questão.
Elisa assim respondeu:
Busco propor e analisar, nas Rodas de Conversa que fazemos em sala, como estas rodas podem contribuir para a formação de futuros professores em uma disciplina que trata da inclusão. Oferto condições para que as futuras professoras narrem suas experiências cotidianas com alunos que apresentam alguma deficiência (elas já fazem estágio) e, por meio dessas narrativas, faço uma aposta na construção de um saber singular acerca de seu futuro fazer docente. A interrogação que norteia esta escuta é: ‘é possível que se produzam movimentos nas narrativas e, nas posições discursivas das discentes por meio das Rodas de Conversa?’ A metodologia utilizada por mim como professora na condução e a análise do material colhido em sala de aula é inspirada na escuta psicanalítica - a atenção flutuante, por um lado, e, por outro, a associação livre, na fala dos/as alunos/as. A aposta é que se produzam deslocamentos e construção do saber a partir das trocas de experiência de vários discentes em sala com crianças ditas especiais.
Podemos destacar que a pesquisa clínica por excelência abarca necessariamente a escuta em sua dimensão de quem enuncia e do que se enuncia. A professora psicanalista vislumbra o ensino na graduação como possibilidade de diferenciar a psicanálise de outras disciplinas, apostando na transferência como mote da transmissão, e destaca a importância de promover uma escuta aos discentes que serão futuros(as) educadores(as) e que, decerto, irão se ocupar cotidianamente da difícil tarefa de transmissão dos elementos de nossa cultura às crianças, ainda que consideradas “especiais”. A escuta, neste sentido, indica tornar-se uma aposta que poderá contribuir sobremaneira no modus operandi nas escolas. A roda de conversa seria então o dispositivo que tentaria colocar a escuta como central para que o/a futuro/a educador/a se torne protagonista de um saber-fazer.
Sabemos que os modos de formar docentes apenas pela via da informação, em detrimento de uma ênfase na experiência que cada sujeito traz consigo, pouco tem contribuído junto ao trabalho efetivo de docentes que se dedicam ao trabalho com crianças deficientes, como de resto também para as outras crianças. Possibilitar aos docentes na escola e aos discentes em situação de formação espaços nos quais possam falar sobre suas experiências com essas crianças é a chance de estabelecer a escuta que os permita construir uma forma de acolher e trabalhar com os alunos especiais.
Segundo Miller (2005 apud MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006), a conversação seria um dispositivo que tem sido utilizado nas escolas bastante semelhante às rodas de conversa. A conversação tem como objetivo o convite para cada um se autorizar como sujeito. Nessa modalidade, nenhum participante ocupa lugar de mestre, o que permite que a palavra circule, favorecendo uma série de associações livres. “Por conseguinte, uma ‘conversa’ pressupõe, em um primeiro plano, o uso da fala, com todas as modulações que nos permitem as palavras” (MIRANDA; VASCONCELOS; SANTIAGO, 2006, p. 5).
Pensamos que uma das contribuições que a interface Psicanálise e Educação pode trazer às escolas é justamente a possibilidade de o/a professor/a ter outra relação com o saber. O/a educador/a precisaria apostar um pouco mais no seu aluno/a, navegar pelo não saber sobre si, pois o saber sobre o aluno/a não está cifrado no diagnóstico e demais certezas que lhe são dadas, principalmente no trato com crianças ditas especiais. Esta formação de futuros/as educadores/as mostra que, inúmeras vezes, o/a educador/a permanece em um circuito de gozo, numa espécie de discurso de queixas, paralisando o pensamento, fixando-se em um circuito de impotência. A aposta então se coloca numa outra direção, num outro circuito, na circulação da palavra e sua escuta, na transmissão da experiência como um modo de se erguer o novo do sujeito e encontrar nele uma posição de mestre possível dentro do impossível do educar.
Sintetizando as quatro falas, acerca da pergunta “Em que medida os psicanalistas estão inventando novos operadores para atingir a transmissão de uma formação que considere o sujeito do inconsciente?”, e desprezando algum possível tom idealizado das respostas, podemos destacar a fala da professora-pesquisadora Isabel: “penso que os operadores são menos estratégias (que não são tão novas assim ou tão diferentes de outras práticas interacionistas), mas o modo como me posiciono frente ao que ensino e aos meus alunos”. Afirmarmos que, provavelmente, o mais importante não seja tão somente o dispositivo em si, mas a posição de quem dirige o dispositivo, uma posição desejosa, ética, implicada e que a partir do encontro professor/a-aluno/a e de seus efeitos pode-se apurar e depurar os restos que se produzem como o traço que marca o estilo do sujeito. Para tal, faz-se necessário despojar-se de um saber prévio capaz de decifrar todo e qualquer sujeito e apostar que a posteriori este saber será construído a partir do trabalho com a fala, a escrita, a pontuação no momento exato, levando-se em conta o não-saber, os pontos cegos e uma certa paixão pela ignorância.
Em relação à questão 2: “Como você, professor/a psicanalista, está implicado nessa conduta de formação?”, destacamos as seguintes respostas:
Não tenho nenhuma conduta de formação QUE NÃO SEJA implicar o sujeito em sua própria formação. Isso que não posso fazer por ele, obviamente. Do mesmo modo que estou sujeito ao campo da palavra e da linguagem, entendo que A IMPLICAÇÃO COM O ATO DE EDUCAR se mostra no ato de enunciação, isto é, como tomo a palavra no sentido de interrogar o saber que mobiliza uma formação: o que você quer? Por que se o professor for mais um burocrata de plantão, apenas irá piorar as coisas. Mas, se a enunciação da palavra conduz a efeitos inesperados, podemos acolher esse efeito ou retorno de modo a mobilizar mais uma vez o sujeito (do desejo), de modo a conduzir uma formação subjetivante. Caso contrário reproduzimos uma formação alheia às questões que realmente interessam aos formadores, questões que passam por conhecimentos, obviamente, mas também implica a questões que envolvem conflitos, angústias, prazeres etc. Nesse sentido, sempre me interrogo, em nome do que formamos esses professores? Há uma dimensão simbólica que enlaça o sujeito no discurso, ou somos todos impostores? Assim, penso que um modo heurístico de lidar com a formação, mais do que hermenêutico, pode conduzir a novas questões ou mesmo interrogar o sujeito quanto ao seu papel na própria formação. (HENRIQUE, grifo do autor).
A psicanálise realiza sua investigação científica por um método que não é diverso daquele pelo qual ela põe em curso um tratamento e ambos respondem ao critério da transferência. Além disso, ressaltamos que toda a pesquisa em psicanálise é uma pesquisa clínica, não no sentido de utilizar o espaço do setting, mas por considerar a premissa de que as produções do inconsciente, estejam em um espaço terapêutico ou não, são passíveis de investigação. A pesquisa em psicanálise tem norteadores que são os mesmos postulados para o exercício clínico, pois se trata da construção de um campo de experiência no qual os fundamentos epistêmicos e metodológicos não são diversos daqueles que sustentam a ética em questão, a ética da psicanálise: o Henrique aponta “que um modo heurístico de lidar com a formação, mais do que hermenêutico, pode conduzir a novas questões ou mesmo interrogar o sujeito quanto ao seu papel na própria formação”.
Segundo Elia (2009), qualquer que seja uma metodologia de pesquisa em psicanálise, ela deve incluir a transferência entre as condições estruturantes (e estruturais) do estudo. A psicanálise, pelo dispositivo da transferência, subverte o sujeito da ciência, reinserindo a experiência do inconsciente na pesquisa. Desta forma, a formação não se constrói pelo acúmulo de cursos, de técnicas, de conhecimentos, mas sim pelo saber construído pela via da experiência. Daí, perguntas do tipo: “O que eu tenho a ver com isso?” ou “Qual a minha implicação nos impasses que ocorrem no encontro com meus/minhas alunos/as?” apostam que, no momento em que o/a educador/a possa narrar suas experiências acerca do trabalho com seus alunos/as, talvez ele possa igualmente se dar conta de que não existe um conteúdo formal de alguma formação que solucione os impasses que ocorrem no encontro educador/aluno. O/a educador/a precisa intervir experimentando, acreditando, mobilizando, inventando, a partir da construção diária com seus alunos/as. O nosso desafio consiste em como fazer essa transmissão nos cursos de formação.
Voltolini (2006) diz que normalmente pensamos que “ensinar” é um gesto intencional, e de fato é (a raiz etimológica da palavra ensinar, en-signar, significa colocar em signos); e é por isso que se torna necessário chamar de “transmissão” o que se passa no âmbito do que não se sabe, no equívoco da palavra. No dizer desse autor, quando escutamos, quando falamos, jogamo-nos na aventura da palavra diante de um outro, produzimos atos falhos, nem sempre dizemos o que tínhamos programado (aliás, uma aula, por exemplo, sempre se descontrola do planejamento e a palavra fica desbussolada diante de um outro).
A transmissão se dá não pelo conteúdo passado, mas por aquilo que falta, que se dá a partir da marca de castração no Outro que permite ao sujeito constituir seu desejo de conhecer. “Lembremos que a castração despeja o sujeito da posição da certeza para, ao final, devolver-lhe o enigma inicialmente formulado” (LAJONQUIÈRE, 1997, p. 228). Ao não encontrar uma resposta pronta e totalizante no Outro, permite-se que o sujeito se interrogue e produza um conhecimento enquanto resto. Lacan (1985), em O Seminário, livro 20, passou a definir o sintoma não mais como um enigma a ser decifrado, mas como um resto, que não pode ser apreensível, totalmente capturado e simbolizado na palavra. É o real que não cessa de não se inscrever. Na transmissão, entra em jogo a produção de algo que inclui o sujeito e o outro num mesmo movimento. Embora a interrogação seja singular, ela incorpora traços compartilhados, significantes, que no coletivo permitem que cada um elabore sua própria produção.
Isabel assim respondeu:
Penso que a análise pessoal é de suma importância nesse processo. Olhar para o percurso de cada semestre em um tempo a posteriori, aprender com cada semestre e cada turma que finaliza para começar cada semestre diferente. Sustentar que a formação se faz em outros espaços para além da sala de aula, mas que nesses encontros eles (alunos) também precisam se implicar. Afirmar que a formação requer responsabilidade partilhada e que um/a precisa constituir o seu caminho, retirando do que aprendem o que lhes diz respeito, de forma ética e comprometida. Algo que não se ensina, mas tento transmitir a partir do meu testemunho sobre a minha relação com os conhecimentos e a minha própria formação.
Rinaldi e Alberti (2009) acreditam que toda pesquisa em psicanálise é clínica, mas no sentido de clínica ampliada, inclusive a metapsicologia, pois é voltada para o sujeito. Isabel, em sua resposta, busca articular o trabalho na universidade com seu próprio processo analítico e, por suposição, as questões da sala de aula e da análise a atravessam, colocando-a em posição de testemunho.
Correr o risco de sustentar-se a partir do desejo em sala de aula é se deparar com a falta, com a castração, com um saber não todo, que está fora das formações prescritivas e desta maneira possibilitar que cada educador/a se implique com a sua palavra. As várias vozes, palavras, escutas, experiências, podem ser entrelaçadas visando constituir um tecido de criação e invenção nos modos de acolher e trabalhar com as crianças.
No presente excerto Isabel busca a produção de um saber singular e o método utilizado para este fim é o da implicação que ela enuncia a partir de seu próprio testemunho. Ao ensinar ela traz a marca do desejo do sujeito do inconsciente e da relação transferencial que se estende ao trabalho com os/as discentes de forma compartilhada, como nos diz Poli (2008).
Não há uma única forma de pensar a psicanálise, mas partimos do pressuposto de que a experiência analítica faz com que o sujeito interrogue o saber. Se o analista não se coloca como tal na universidade, não há transmissão nem produção de saber. É justamente este interrogar que abre espaço para o singular do sujeito que incomoda as ciências tradicionais. No entendimento de Alberti (2009), o professor psicanalista pode instrumentalizar o discurso universitário para fazer valer a psicanálise na universidade, já que no discurso universitário todos os saberes se equivalem, diferentemente de outros campos. Podemos supor que a psicanálise seria como o sujeito recalcitrante da universidade, ou seja, aquele que é persistente, que refuta as exigências do pesquisador colocando para ele outras questões, interrogando-o, fazendo com que ele se questione, o que também o leva a correr riscos. A psicanálise teria esta característica da persistência e da recalcitrância e, portanto, seria aquela que interroga a ciência e os modos de fazer pesquisa, mas também que interroga a si própria.
Pedro respondeu:
Busco desconstruir representações reificadas nos discursos dos discentes. Para tal situo os acontecimentos de forma histórica e política e vou contextualizando cada fala e cada comentário em sala, situando-os de forma singular e coletiva; favoreço a troca de ideias e os confrontos em torno de tais ideias. Tento desta forma fazer emergir a produção e novos discursos e intervir nos processos de produção de sentidos, e, portanto, no pensamento universalizante, geral. A escrita tem sido o mote e o convite à singularização e eu mesmo também a faço como exercício.
O analista na função docente, no campo Psicanálise e Educação, precisa sustentar um lugar de questionamento, permitindo um “fora-dentro”, uma “exclusão interna”, um lugar “(des)conhecido”, de acordo com Aires (2013, p. 36), sem se deixar assimilar. Ao que parece, o pesquisador/formador forja para si esta posição do dentro-fora ao se permitir também fazer o exercício da escrita. Como Freud (2010, p. 331) já dizia em O estranho, o Unheimlich seria aquilo que desperta angústia e horror, “aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” ou, ainda, o que deveria permanecer oculto, mas apareceu.
Trata-se aqui da produção de um saber e não da aplicação de um saber, dada a posição implicada do docente, ainda que sua técnica recaia mais sobre a interpretação, a qual incide sobre o sentido.
Elisa respondeu da seguinte forma:
Não há fórmula mágica, a não ser falar, ou melhor, deixar falar... Falar sobre si próprios, sobre o seu ofício, ou o que se espera dele, sobre as dificuldades que vivem ou que ouvem falar por aí sobre a escola, a sala de aula, as crianças que não aprendem, e menos sobre as teorias e técnicas de aprendizagem e motivação (esta é a disciplina que leciono). Do lado de cá, suportar a ‘pedagogia da angústia”, aquilo que não terei controle no meu ensino, ou seja, o que posso fazer é apenas buscar descortinar o estilo de cada um/uma, buscar trazer à tona a implicação subjetiva de cada um; buscar trazer à tona os obstáculos do inconsciente que atravessam a produção de e apropriação de saber primeiro para eles... na torcida de que consigam fazer o mesmo em sua sala de aula.
Para Benjamin (1987) - mestre na relação entre experiência e narrativa -, uma vivência pode se transformar em experiência ao ser narrada e transmitida, ou seja, ao ser compartilhada. Nas suas análises, o filósofo tentou demonstrar o quanto o sujeito moderno vivia uma experiência esvaziada de significação compartilhável. Ele destacava o valor da discussão em torno da articulação do par conceitual experiência/vivência. Para Benjamin (1987), já na década de 1930 a experiência estava em liquidação, pois via o seu declínio como correlato da intensificação da vivência. Esse autor conceitualizou, então, a Erfahrung como o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga e se desdobra, tal qual uma viagem. Esse seria o caso de um sujeito integrado numa comunidade que dispõe de critérios que permitem sedimentar as experiências no tempo. Em contraponto à Erfahrung, estaria a Erlebnis, que seria a vivência do indivíduo privado, isolado, a impressão forte que precisa ser assimilada às pressas e que produz efeitos imediatos (BENJAMIN, 1987). Nesse sentido, Gurski (2015), que aproxima as ideias de Benjamin à psicanálise, vai dizer que a experiência seria como atravessar um caminho durante uma viagem quando os rumos ainda não estão definidos, ou seja, a ideia do risco, da aventura, o advento do novo, portanto daquilo que pode nos transformar.
Elisa, nossa respondente, parece apostar que a recordação e recolocação das questões vividas, sua repetição e possível elaboração seriam suficientes para a produção de novas associações que ampliem as construções subjetivas e que forjem um possível estilo. Essas narrativas ganham força por estarem sendo reconhecidas e compartilhadas como uma ação pedagógica.
O que depuramos dessas quatro falas que respondem à questão “Como você, professor/a psicanalista, está implicado nessa conduta de formação?” recai na inexorabilidade da conduta clínica. Tal conduta exige a implicação do professor/a-aluno/a e, se há possibilidade de formar alguém, esta possibilidade estaria posta na condição compartilhada desta formação no possível (des)encontro entre aquele que transmite um saber-não-saber conforme sua própria experiência e as (im)possibilidades dos/as discentes em colocarem-se em posição de escritores e leitores de si mesmos. Concordando com Guski (2015, p. 109), “a experiência dos pesquisadores-psicanalistas nos faz perceber que a oferta de um espaço de fala e escuta traz a possibilidade de forjar uma abertura ao inusitado, como em um convite àquilo que do silêncio pode se transformar em algo novo para o sujeito-professor”.
Considerações finais
“[...] sempre me interrogo, em nome do que formamos esses professores?” (HENRIQUE).
As relações entre psicanálise e universidade hoje buscam a marca da inserção de vários psicanalistas que querem ocupar certo espaço social para além da clínica. Anteriormente ao atual governo de ultradireita (2019-2022), que demonstra clara política de desmonte de nossos sistemas educacionais, podíamos afirmar que havia, sim, certo status atribuído ao professor universitário, incluso os psicanalistas, e certa fonte de distinção e prestígio, ainda que não monetário, no dizer de Birman (2013). Para esse autor, os cursos de mestrado e doutorado vêm dar conta de uma lacuna sobre o ensino teórico praticado em instituições psicanalíticas, constituindo-se a figura do/a psicanalista-pesquisador/a, e a universidade pode se tornar objeto de disputas políticas entre tais instituições que buscam visibilidade social, marcando uma estratégia de relação de poder entre elas e as universidades.
A pesquisa psicanalítica exercida por meio de disciplinas ministradas na graduação é pautada na conduta clínica, a qual permanece como referência nos relatos coletados, o que nos leva a concluir favoravelmente por sua aplicação efetiva na universidade. Cada professor-psicanalista aborda a prática da sua atuação de acordo com sua formação, trajetória intelectual e profissional no campo, bem como seu estilo próprio de ser docente, por uma ética sempre marcada por incidências do inconsciente e de sua implicação.
A escuta apareceu em vários enunciados como um elemento que confere estatuto de saber a esse fio discursivo invisível que liga ou separa professor/a e aluno/a na formação e em sua possível atuação futura como docente na escola. A intenção da escuta é a de acompanhar a circulação da palavra entre os/as que a enunciam e a construção de um saber acerca do enunciado, de modo que a própria escuta parece ganhar dimensão de dispositivo. Decorre desse reconhecimento da escuta como dispositivo uma possível contribuição ao campo das políticas de formação docente que poderiam se responsabilizar pela oferta aos futuros docentes de espaços possíveis para a sua escuta laboral.
A nosso ver, a experiência de psicanalistas na formação docente reitera a ineficácia de modelos prescritivos de formação de professores/as que se baseiam no ensino de técnicas e informações acerca de como o/a professor/a deve ensinar e trabalhar com seu aluno, pois reafirma a possibilidade de pausas no trabalho para a escuta qualificada de docentes em situações de queixa e mal-estar, suplantando a pressa e a falta de tempo para uma elaboração precisa e necessária das experiências cotidianas para que estas possam de fato atravessar e marcar o sujeito.
Preocupados/as com essa dimensão instrumentalizadora e totalizante das formações docentes, os/as pesquisadores/as reunidos em evento científico16 escreveram a Carta de Belo Horizonte (PEREIRA et al., 2017), que, ao se referir à formação docente, defende uma formação artesanal, que não se paute em uma visão “solucionista” da educação e nem tampouco se baseie em práticas homogeneizantes. Trata-se de uma formação calcada na alteridade, no entusiasmo e na curiosidade. Que seja uma formação pautada na transmissão enquanto exercício do desejo que opera sobre a falta, sobre o insabido. Dito de outro modo: na transmissão, trata-se de transmitir o que não se sabe (PEREIRA, 2016).
A presença do inconsciente introduz entre educador/a e educando/a um “impossível” de saber a priori sobre os efeitos desse encontro. Sendo assim, afirmar que educar é uma tarefa impossível é partir de uma referência importante: sempre haverá uma espécie de fracasso na relação educador-educando, o que torna impossível atingir plenamente os objetivos idealmente desejáveis.
Seguimos, assim, o que o próprio Freud disse a respeito do seu ensino: “Mas não entendam este meu anúncio como se eu pretendesse dar palestras dogmáticas e requerer sua fé condicional. Esse mal-entendido seria uma grave injustiça contra minha pessoa. Não quero despertar convicções - quero fornecer estímulos e abalar preconceitos” (FREUD, 2014, p. 325).