Introdução
“A tentativa de superar a barbárie é decisiva para a sobrevivência da humanidade”.
(Theodor Adorno, Educação e emancipação1)
A urgência de enfrentar as diversas formas de opressão, violência e dominação presentes na sociedade implica na condição de desenvolvimento social. Assim, tem sentido dizer que, sendo possível o enfrentamento da barbárie, o caminho é pela educação. Portanto, dado que a escola é a instância formal de acesso à educação, enfrentar a violência2 significa pensar a escola, sua dinâmica e seus entraves, o que evidencia a necessidade de refletir também sobre a sociedade em suas diversas dimensões. Nesse sentido, a escola é uma instância social perpassada pelas contradições da sociedade de classes que, segundo Adorno (2002, p. 7), “(...) a tudo confere ar de semelhança”.
Neste artigo temos por tema central a sociedade organizada sob a égide do capital e a violência escolar e, ao relacioná-las, problematizamos: quais as causas da violência manifestada na escola contra estudantes com deficiência em situação de inclusão? Assim, com base no pensamento de Adorno e Horkheimer, representantes da Teoria Crítica da Sociedade, e na pesquisa social empírica, lançamos luz sobre as categorias de análise: sociedade, educação e violência escolar. Vale ressaltar que este artigo se relaciona com a dissertação3 de mestrado em educação da primeira autora, defendida no ano de 2021, que versa sobre o tema da violência escolar.
O estudo da relação entre a sociedade organizada em classes e a violência se revela fundamental para desvelar os fatores que obstam a emancipação do indivíduo. Isso porque indivíduo e cultura não são isolados, conforme Crochík (2006, p. 50) afirma: “[...] o indivíduo não pode ser considerado somente produto de sua natureza, o que fortaleceria as teses nazistas, mas deve ser também considerado como produto cultural, a definição do indivíduo se encontra na imbricação entre a natureza e a cultura”.
Reconhecemos que o indivíduo é influenciado pela sociedade e pode contribuir para sua modificação e, para tal, retomemos na história da educação brasileira, como estudado por Romanelli (1986), o caráter aristocrático e burguês, que desde o século XIX destinou à elite socioeconômica o acesso à formação de pessoas que dirigiriam a (futura) nação. A organização educacional no Brasil Colônia espelhava o que se passava no continente europeu, dada a origem à imagem de status que os colonizadores impingiam. A educação brasileira ainda enfrentava os desafios do passado colonialista; segundo Romanelli (1986, p. 29-30), cabia à escola “[...] concorrer para que somente as camadas dominantes, as únicas em condições de consumir o referido conteúdo, [mantivessem] a sua posição de dominante pela distância entre essas camadas e os demais estrados sociais, assegurada pelo monopólio da cultura letrada.”. Noutras palavras, dessa escola estava excluído o povo. O acesso à educação, à formação escolar e ao conhecimento estava restrito a um pequeno grupo pertencente à aristocracia e que, posteriormente, seriam os novos líderes da nação. O caráter dual da educação tem sua confirmação na Constituição Brasileira de 1891, na distinção entre as escolas para a elite e para o povo, segundo Romanelli (1986, p. 41): “A educação da classe dominante (escolas secundárias acadêmicas e escolas superiores) e educação do povo (escola primária e escola profissional).”.
Esse distanciamento social é fortalecido culturalmente e politicamente, posto que aqueles com acesso à escola tinham reconhecimento do título obtido, mantendo o referido status e garantindo a possibilidade para participação na vida política que comandava os rumos do Brasil. O que se percebe é o agigantamento do fosso entre as classes e a dominação de uma sobre a outra. A violência é manifestada pelo exercício da submissão de uma classe em que indivíduos são colocados à margem da sociedade e pela obstrução ao conhecimento.
A sociedade que permite a classificação dos indivíduos por sua condição cultural, social, econômica, de gênero e por terem deficiência evidencia sua inconsistência quanto ao esclarecimento. Quanto a isso, Horkheimer e Adorno (1947, p. 5) destacam: “O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”. Dessa maneira, a necessidade humana por explicação dos fenômenos naturais seria satisfeita pelo avanço científico. O desencantamento é necessário, por desvelar os mistérios por meio da ciência. Da mesma forma, o desvelamento das causas psíquicas e sociais da barbárie é fundamental para o enfrentamento de sua manifestação, bem como para a formulação de políticas públicas de educação para o combate das diversas formas de violência no cotidiano escolar de maneira geral e, em particular, ao preconceito contra estudantes com deficiência em situação de inclusão na escola pública.
A violência escolar manifestada pelo preconceito
“O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pode manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas.”
(Theodor Adorno, Educação e emancipação4)
A persistência das causas que permitem a manifestação da violência, seja pela segregação, exclusão ou marginalização de estudantes com deficiência na escola, tem origem em esferas que extrapolam o campo escolar. Por isso, é de fundamental importância problematizar as causas sociais, sem desprezar a história pretérita da civilização, para que possamos enfrentar as causas que permitem a manifestação do preconceito.
Ao longo da história da humanidade, o desejo de explicar e dominar os fenômenos da natureza e abordar objetivamente aquilo que é desconhecido contribuiu para os avanços civilizacionais. Enfrentou-se o obscurantismo da Idade Média e, com aporte da Teoria Crítica da Sociedade, afirmamos que o conhecimento tem por sentido destronar os mitos do local de poder para dar lugar à reflexão pelo indivíduo, contribuindo para sua humanização. Entretanto, há que se atentar para o exercício do conhecimento e do saber, como asseveram Horkheimer e Adorno (1947, p. 5):
O saber que é poder não conhece nenhuma barreira, nem na escravização da criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo. Do mesmo modo que está a serviço de todos os fins da economia burguesa na fábrica e no campo de batalha, assim também está à disposição dos empresários, não importa sua origem.
Esse saber vinculado ao poder tem possibilidade de ser transformado em utilidade para a dominação do homem pelo próprio homem. A dominação, por sua vez, está atrelada ao controle dos grandes conglomerados industriais, da mídia e, não obstante, da indústria cultural. Nesse ciclo vicioso de dominação, segundo Krenak (2019, p. 11):
Enquanto a humanidade está se distanciando do seu lugar, um monte de corporações espertalhonas vai tomando conta da Terra. Nós, a humanidade, vamos viver em ambientes artificiais produzidos pelas mesmas corporações que devoram florestas, montanhas e rios. Eles inventam kits superinteressantes para nos manter nesse local, alienados de tudo, e se possível tomando muito remédio. Porque, afinal, é preciso fazer alguma coisa com o que sobra do lixo que produzem, e eles vão fazer remédio e um monte de parafernálias para nos entreter.
Entende-se, assim, que o avanço tecnológico alcançado pela humanidade não proporcionou o mesmo desenvolvimento na subjetividade do indivíduo. Por isso, é possível verificar as necessidades e desejos impostos pela sociedade de classes expressos por um padrão cultural, econômico, estético e moral. Assim, a submissão dos indivíduos aos ditames da cultura tem como fundamento a falsa formação na sociedade capitalista, que incentiva a competitividade, a produção material, o consumo e a dominação, obstando o desenvolvimento da consciência crítica dos indivíduos.
Contudo, as contradições sociais tornam possível o enfrentamento das mazelas supramencionadas. A sociedade que concentra poder irrefletido, que preza pelo progresso científico e tecnológico, é a mesma que contém o germe para a ousadia necessária à formação da consciência, possibilitando enfrentar a violência, a regressão da consciência e a barbárie.
Para Souza (2019, p. 12) “O poder é questão central de toda sociedade. A razão é simples. É ele que nos irá dizer quem manda e quem obedece, quem fica com os privilégios e quem é abandonado e excluído”, demonstrando que a disputa do poder pelo homem é a ratificação da desumanidade, pois é esse mesmo quem irá escolher ou descartar vidas, subjugar outras a seus interesses, considerar as pessoas com deficiência seres descartáveis, dentre outras formas de barbárie, as quais Adorno (2020) declara que a educação deve confrontar.
A superação da dominação e da ordem social passa pelo enfrentamento da submissão de um povo a outro, da mulher pelo homem, da pessoa com deficiência pela sem deficiência, do negro pelo não-negro e da colonização do hemisfério sul pelo norte do globo. É por isso que questionar essa dominação é urgente, ainda que diante de um cenário de algumas concessões feitas pelos dominantes; conforme Adorno (1995, p. 217), “Contra os que administram a bomba, são ridículas as barricadas; por isso, brinca-se de barricadas e os donos do poder toleram temporariamente os que estão brincando”. É nesse sentido que Souza (2019, p. 115) alude ao período da redemocratização após a década de 1980 explicando que “Os trabalhadores e os movimentos sociais das classes populares tiveram um mínimo de poder de fala, ainda que sempre vigiados de perto e expostos ao poder de difamação e distorção sistemática da informação pela grande imprensa”:
A enorme estigmatização do preconceito escravocrata, que no nosso caso foi amplo e contava com o apoio de todas as classes acima dos abandonados, tende a se introjetar na própria vítima. Aos escravos e seus descendentes foram deixados o achaque, o deboche cotidiano, a piada suja, a provocação tolerada e incentivada por todos, as agressões e até os assassinatos impunes. (Souza, 2019, p. 105-106).
O caso brasileiro de dominação estruturante ocupa a essência da natureza humana ao desconsiderar os negros em sua humanidade. Logo, a escravização não é culpa dos escravizados, mas da concepção que permitia tal atitude. Com isso, observa-se a importância da crítica àquilo que constituiu a sociedade brasileira, o que Adorno (2020) considera elaborar o passado. No entanto, ocorre o contrário; ignora-se tal barbárie de não-humanização, pois “em casa de carrasco não se deve lembrar da forca para não provocar ressentimento” (ADORNO, 2020, p. 31).
Analogamente, observamos a condição das(- dos) estudantes com deficiência em situação de inclusão, pois o desafio da inclusão não se localiza na deficiência, mas nos fatores sociais, individuais (psíquicos) e, em decorrência disso, em fatores materiais objetivos que estruturam a escola.
Se essa escola fundada nos princípios burgueses foi em algum momento um lugar privado da violência, Abramovay e Rua (2003, p. 78) consideram que não é mais: “A escola não seria mais representada como um lugar seguro de integração social, de socialização, não é mais um espaço resguardado; ao contrário, tornou-se cenário de ocorrências violentas”. Isto porque é impactada pelas questões sociais externas, pelas tensões do próprio funcionamento e pela violência que se institucionaliza. A esse respeito, Crochick e Crochick (2017, p. 14) declaram que “[...] temos variáveis sociais e psicológicas envolvidas no mal-estar que provoca e é provocado pela violência. A violência se apresenta nas instituições sociais e nos indivíduos”. Logo, de uma visão macro para o micro espaço da escola, os diferentes aspectos constituem esse núcleo social tensionado pela violência presente, e não é possível negar a violência, mas desvelar as causas que permitem sua manifestação.
Ao longo da história, a violência foi se atualizando, mudando a roupagem e se travestindo de sutileza para disfarçar a barbárie que encarna. Logo, em substituição da “[...] violência física, deveria entrar no seu lugar a violência simbólica como meio de garantir a sobrevivência e longevidade dos proprietários e seus privilégios” (SOUZA, 2019, p. 139). Embora a violência física seja percebia e noticiada cotidianamente, a violência sob o véu da mídia e do fetiche se firma cada vez mais na sociedade, pois se a violência física não é boa para os negócios, o “Domínio da opinião pública parece ser a arma adequada contra inimigos também poderosos” (ibid.). Ainda assim, não é possível dizer que a sociedade superou a barbárie, conforme Adorno (2020, p. 171):
Quando o problema da barbárie é colocado com toda sua urgência e agudeza na educação. Então, me inclinaria a pensar que o simples fato de a questão da barbárie estar no centro da consciência provocaria por si uma mudança. Por outro lado, que existam elementos de barbárie, momentos repressivos e opressivos no conceito de educação e, precisamente, também no conceito da educação pretensamente culta, isto eu sou o último a negar. Acredito que - e isto é Freud puro - justamente esses momentos repressivos da cultura produzem e reproduzem a barbárie nas pessoas submetidas a essa cultura.
Adorno considera fundamental o papel da discussão dos fatores que promovem a barbárie, pois se coloca luz naquilo que é considerado um problema. Explicita o quanto as pessoas são suscetíveis à violência justamente por estarem imersas nessa sociedade que reproduz a exploração e a submissão do homem ao poder.
Adorno (2020, p. 132) afirma que é possível observar “[...] na história das perseguições [...] que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são denominados socialmente fracos e ao mesmo tempo - seja isto verdade ou não - felizes”. Nessa perspectiva, estudantes com deficiência, denominados socialmente frágeis, têm chances aumentadas de serem vítimas de violência na escola.
Para Schwarcz (2019), a formação da sociedade brasileira possui elementos que colaboram para o acirramento do quadro histórico da violência, como a escravização de indígenas e negros, racismo, o mandonismo da exploração do território, o secular patrimonialismo, as discrepâncias abissais entre direitos e possibilidades dos gêneros e o aprofundamento das desigualdades sociais:
Não se escapava da escravidão. Aliás, no caso brasileiro, de tão disseminada ela deixou de ser privilégio de senhores de engenho. Padres, militares, funcionários públicos, artesãos, taverneiros, comerciantes, pequenos lavradores, grandes proprietários e a população mais pobre e até libertos possuíam cativos. E, sendo assim, a escravidão foi bem mais que um sistema econômico: ela moldou nossas condutas, definiu desigualdades sociais, fez de raça e cor marcadores de diferença fundamentais, ordenou etiquetas de mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo paternalismo e por uma hierarquia muito estrita. (SCHWARCZ, 2019, p. 27).
Essas considerações contribuem para pensar sobre como a sociedade brasileira se constitui na dominação. A violência presente há mais de 500 anos em terras brasileiras se apresenta superada em nosso tempo? Quem eram os dominados/escravizados daquela época e quem são os marginalizados da contemporaneidade?
É preciso, com isso, refletir sobre a violência histórica que gera a opressão e o cometimento de atos bárbaros contra as minorias sócio-históricas como as mulheres, as pessoas com deficiência, os homossexuais, os negros, entre outros, a fim de enfrentar as raízes dessa violência.
Para tal, cabe destacar que o direito à vida, à liberdade, à educação, entre outros, é previsto a todos os seres humanos, independentemente da sua condição de gênero, econômica, social, religiosa, étnica e sexual, conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948, p. 4), em seu Art. 1º: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
Assim, como Direito Humano, a inclusão de estudantes com deficiência na escola comum é uma decisão para o enfrentamento da violência pois, para Adorno (2020, p. 126), “A desbarbarização da humanidade é o pressuposto imediato da sobrevivência. Este deve ser o objetivo da escola, por mais restritos que sejam seu alcance e suas possibilidades”. Portanto, o incentivo às atitudes democráticas e de elaboração coletiva do conhecimento é essencial para o desenvolvimento de indivíduos reflexivos, críticos e receptivos às diferenças humanas.
O entendimento que a inclusão de estudantes com deficiência é um avanço como sociedade também enfrenta resistência, pois “[...] as leis sociais que permeiam o progresso mostram certa racionalidade, mas se encaminham para o aperfeiçoamento do mundo existente e não para sua alteração” (CROCHÍK, 2006, p. 48). Ou seja, é como se as leis refinassem o estado de coisas que se encontram nessa sociedade sem, no entanto, impelir a mudança do status quo com a perspectiva de uma sociedade crítica e desenvolvida no seu potencial humanizador. Para tanto, segundo Adorno (2020, p. 172):
[...] o que imagino ser a desbarbarização não se encontra no plano de um elogio à moderação, uma restrição das afeições fortes, e nem mesmo nos termos da eliminação da agressão. Neste contexto parece-me permanecer totalmente procedente a proposição de Strindberg: “Como eu poderia amar o bem, se não odiasse o mal”.
Para o enfrentamento da violência, sob a faceta da tolerância, necessita-se do reconhecimento dessa formação agressora: é fundamental a compreensão de que não basta o desejo de incluir, é necessário ser contra a exclusão, a segregação e toda expressão da barbárie que enseje a desumanidade. Por conseguinte, a consciência da barbárie é essencial para a desbarbarização. Nessa perspectiva, a educação que objetiva a humanização envolve a participação do conjunto da sociedade, garantias legais como as políticas públicas de inclusão e de reparação histórica com aqueles há muito excluídos do sistema educacional, mas também a possibilidade das experiências democráticas nos espaços escolares e de discussão educacional para superação das diversas formas de manifestação da violência.
Crochick & Crochick (2017) analisam os aspectos sociais e psicológicos da violência e concluem que os fatores sociais estão ligados à condição em que a sociedade se organiza e/ou hierarquiza - logo, às classes sociais. Os fatores psicológicos relacionam-se com a condição psíquica (neuroses) do indivíduo frente à frustração e ao desencanto. Assim, além da desigualdade entre as classes, a violência pauta-se na pulsão de morte, na perspectiva freudiana, que visa eliminar tudo aquilo que lhe causa tensão. Essa pulsão de morte está relacionada ao sentimento de fracasso e de promessa não cumprida pelo capital. Quanto ao fracasso da cultura, é importante considerar o afirmado por Adorno (2020, p. 178):
Ela dividiu os homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra o não-cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressandose na forma fatal de que essa promessa não deveria existir.
Adorno denomina condição objetiva da barbárie a promessa da cultura de felicidade e de realização não cumprida. Isso gera no indivíduo uma frustração pessoal que se transfere para a cultura de forma violenta. No entanto, a consciência por parte dos indivíduos desse fracasso e dessa tentativa de iludir quanto a um futuro promissor dentro da sociedade do capital é a possibilidade para que outra realidade se desenhe. Trata-se, então, de um redirecionamento, uma vez que nem toda manifestação violenta coincide com a barbárie:
Suspeito que a barbárie existe em toda parte em que há uma regressão à violência física primitiva, sem que haja uma vinculação transparente com objetivos racionais na sociedade, onde exista. Portanto, a identificação com a erupção da violência física. Por outro lado, em circunstâncias em que a violência conduz inclusive a situações bem constrangedoras em contextos transparentes para a geração de condições humanas mais dignas, a violência não pode sem mais nem menos ser condenada como barbárie. (ADORNO, 2020, p. 174).
As mobilizações em virtude das garantias e avanços pelos direitos civis e sociais daqueles tidos por minorias não podem ser consideradas atos bárbaros. São manifestações racionais e com finalidade humanizadora, cujo objetivo é evidenciado pela educação política. Ainda conforme Adorno (2020, p. 173), “[...] essas pessoas não permitiram que lhes fosse tirada a espontaneidade, não se converteram em obedientes instrumentos da ordem vigente”. Assim, ainda que sob a ordem vigente, movimentos sociais articularam garantias fundamentais para romper com as situações de violência aos direitos mais básicos, como a vida e a liberdade humana. Desta forma, Bobbio (2004, p. 20-21) menciona a Declaração Universal dos Direitos Humanos como um documento que “[...] representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro: mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre”. O respeito às questões humanizadoras deve ser atualizado em conformidade com os avanços civilizatórios, de modo que não se possa retroagir naquilo que se tem por fundamental à vida. Nesse cenário, a educação básica apresenta como um de seus princípios o que pode ser observado no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH):
A educação em direitos humanos, por seu caráter coletivo, democrático e participativo, deve ocorrer em espaços marcados pelo entendimento mútuo, respeito e responsabilidade; estruturar-se na diversidade cultural e ambiental, garantindo a cidadania, o acesso ao ensino, permanência e conclusão, a equidade (étnico-racial, religiosa, cultural, territorial, físico-individual, geracional, de gênero, de orientação sexual, de opção política, de nacionalidade, dentre outras) e a qualidade da educação; (UNESCO, 2007, p. 32).
A educação tem por horizonte comprometer-se com a diversidade e com a ampliação da participação democrática. Para tal, a necessidade de elaborar aquilo que promove a violência repara as violações históricas aos direitos humanos, bem como precisa estar no campo das ações educativas. Costa (2018, p. 44-45) argumenta acerca dos “[...] desafios à educação inclusiva na escola pública e a afirmação dos direitos humanos, sobretudo, devido ao fato de que não há experiência histórica com a sociedade solidária e respeitosa em relação à diversidade humana e cultural [...]”. Assim, esses são os enfrentamentos deste tempo civilizatório e, para isso, a Teoria Crítica da Sociedade fundamenta-se no pensamento para desvelar as questões ainda não perceptíveis aos indivíduos anteriormente.
Isto posto, a violência presente na sociedade em relação à mulher, ao negro, à pessoa com deficiência, ao homossexual e contra qualquer outro perfil que rompa com a percepção do usual não se afasta da escola e assume características específicas de manifestação sob a forma de preconceito e de bullying.
Ainda que o preconceito e o bullying sejam expressões violentas, apresentam distinções. O preconceito é o desejo de excluir, afastar de determinado contexto aquele que incomoda, que representa uma fragilidade que o preconceituoso quer negar. O bullying é a manifestação perversa da eliminação. Portanto, “[...] o alvo do bullying é qualquer um que possa ser submetido; o do preconceito, em geral, necessita de uma justificativa para a discriminação” (CROCHICK; CROCHICK, 2017, p. 28). Assim sendo, estamos considerando a violência escolar como aquela que está para além da agressão física e do alcance consciente das(os) professores em suas atividades docentes cotidianas. Portanto, analisamos a violência escolar manifestada pelo preconceito contra estudantes com deficiência em situação de inclusão em uma escola da rede municipal de Petrópolis/RJ.
Silva (2013, p. 30) considera que “A escola não é instância neutra frente à realidade social, tampouco por si só ‘forma’ o indivíduo, visto estar inserida em realidade da qual sofre e em que exerce influência”. A dialética presente na escola possibilita a ela tanto reproduzir como questionar os dilemas da sociedade que colaboram com a manifestação da violência. Ou seja, por intermédio dos profissionais que nela atuam, cabe questionar e refletir sobre o que ocorre na sociedade.
Ao aprofundar-se no questionamento sobre a violência, Crochick e Crochick (2017, p. 14) observaram que ela apresenta fatores sociais e psíquicos (individuais). Portanto, a violência apresentada nas instâncias sociais relacionase com as hierarquias (oficiais e não-oficiais) e na esfera individual “[...] se expressa pelo sadomasoquismo, que nesse caso suscita o prazer de mandar e o prazer de se submeter”. O preconceito, então, caracteriza-se por uma manifestação da violência e por se dirigir a indivíduos com a finalidade de discriminá-los, excluí-los ou segregá-los. Contudo, segundo Crochík (2006, p. 14):
Não se pode por isso estabelecer um conceito unitário de preconceito, pois ele tem aspectos constantes, que dizem respeito a uma conduta rígida frente a diversos objetos, e aspectos variáveis, que remetem às necessidades específicas do preconceituoso, sendo representadas nos conteúdos distintos atribuídos aos objetos.
Então, a formação rígida do eu, ou seja, a não exposição do indivíduo a situações que o desafiem a enfrentar e pensar criticamente, sua inaptidão à experiência com aquilo que o objeto lhe desperta - um mal-estar -, tende a contribuir para a constituição de uma personalidade propensa ao preconceito. Isso significa que a vítima do preconceito apresenta características que o preconceituoso tem de vulnerabilidade em si. Por isso, Crochík (2006, p. 51) argumenta que “[...] a violência sutil ou manifesta exercida pelo preconceituoso é resposta a uma violência sutil ou manifesta gerada inicialmente pela cultura. Esse argumento não deve desresponsabilizar o preconceituoso de seus atos, mas auxiliar a entender sua gênese”. Ou seja, é preciso entender a razão pela qual se manifesta o preconceito, dado que não é inato. O preconceito é produto da cultura, porém, pela formação crítica, o indivíduo pode prescindir de sua manifestação. Para isso, é necessário pensar na rigidez da formação:
Essa ideia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A ideia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que - como mostrou a psicologia - se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de “ser duro” de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingandose da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. (ADORNO, 2020, p. 139).
Adorno contrapõe-se a essa formação que condiciona o indivíduo a ser insensível à dor, ou de suportá-la sem manifestação de sofrimento, ou seja, uma maneira de sucumbir o indivíduo a uma formação também violenta, negando a possibilidade do desenvolvimento da capacidade de sentir medo. Portanto, o que se percebe é que a formação que não vislumbra a conscientização crítica e que, pelo contrário, visa a rigidez da subjetividade do indivíduo, tende a colaborar com o fortalecimento da personalidade autoritária.
Mais uma vez, a sociedade organizada sob a égide do capital classifica os indivíduos e, quando não se reflete criticamente sobre essa ordem, a possibilidade da exclusão velada ou explícita se manifesta violentamente:
[...] uma sociedade que se sustenta pela ameaça da exclusão, ainda que velada, daqueles que não seguem os seus ditames, sem que esses correspondam às necessidades individuais racionais, e sem que lhes proporcione uma vida sem ameaças, gera continuamente a necessidade do estabelecimento de preconceitos como forma de defesa individual. (CROCHÍK, 2006, p. 36).
O preconceito caracteriza-se pela exclusão da participação social daqueles que não se encaixam nos parâmetros ditados, ou que representem alguma alteração ou ameaça ao status quo. Em virtude disso, o preconceituoso anseia pela conservação do modelo social vigente. Adorno (2020, p. 33) destaca a minimização da violência sofrida pela vítima na percepção do preconceituoso:
A desmesura do mal praticado acaba sendo uma justificativa para o mesmo: a consciência irresoluta consola-se argumentando que fatos dessa gravidade só poderiam ter ocorrido porque as vítimas deram motivos quaisquer para tanto, e este vago ‘motivos quaisquer’ pode assumir qualquer dimensão possível.
Além disso, no intuito de diminuir a gravidade do ocorrido, o preconceituoso justifica a manifestação do preconceito atribuindo a responsabilidade à vítima, como se a ela pudesse ser imputada alguma culpa pela prática violenta. A justificativa por fazer algo violento é a mesma para não se fazer, evidenciando uma postura preconceituosa:
É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram contra àqueles seu ódio e sua fúria agressiva. (ADORNO, 2020, p. 131).
Para tal, questionar a manifestação do preconceito é voltar-se para quem a pratica e, então, identificar as causas que permitiram essa manifestação. Nesse sentido, a culpa da violência praticada não é da vítima, pois não há motivo que justifique a barbárie. Por isso, Adorno (2020, p. 132) reflete ser “necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma autorreflexão crítica”.
Sem a capacidade da autorreflexão, o indivíduo encontra dificuldade para analisar a cultura que o impele para sua reprodução. Deste modo, na relação entre o indivíduo e a cultura é que se desenvolve o preconceito. Ele é aprendido pelo indivíduo pois, de acordo com Crochík (2006, p. 18) “como o preconceito não é inato, nele está presente a interferência dos processos de socialização, que [...] obrigam o indivíduo a se modificar para se adaptar”. Embora não seja possível determinar um conceito específico para o preconceito, podemos compreender que sua manifestação ocorre pela formação que não tem por prioridade desenvolver a autorreflexão e pela adaptação acrítica do indivíduo à cultura.
Dessa forma, o preconceito pode ser transmitido ao longo das gerações, assimilado e afirmado pela cultura. Entretanto, o preconceito não se confunde com pré-conceito. Este último está relacionado com a impressão pré-concebida do objeto. Contudo, ao ter contato com esse objeto, a percepção primária pode se confirmar ou não, como admite Crochík (2006, p. 31):
[...] todo conceito só é possível por meio da experiência que envolve elementos preconcebidos. Ou seja, o processo de conceituação envolve pré-conceitos presentes na experimentação com o objeto a ser conceituado, pois não existe experiência pura. Assim, mesmo quando nos encontramos numa situação nova, temos de nos valer de experiências passadas que tornam o estranho familiar. Isto não significa que não possamos alterar esses pré-conceitos frente à nova experiência vivida, assim como não significa que o novo objeto não possa ser conceituado de forma tão distinta dos pré-conceitos, mas que essa possibilidade de modificação pode indicar maior ou menor predisposição ao preconceito.
Assim, Crochík reitera que a predisposição ao preconceito está relacionada a fatores culturais e psíquicos, de modo que as experiências e as elaborações são feitas pelo indivíduo com base em suas concepções prévias sobre o objeto e naquilo que percebe do objeto no contato. Se os conceitos anteriores ao contato forem afirmados no consciente do indivíduo, tem-se, então, o indivíduo com maior predisposição ao preconceito.
Vale destacar que a manifestação do preconceito é distinta do preconceito em si, pois a primeira é de caráter individual, depende do indivíduo para sua realização, ou não, diante de um objeto que lhe cause estranheza. Em razão disso, segundo Crochík (2006, p. 17) “O estranho é demasiado familiar”. Portanto, a manifestação do preconceito expressa uma fragilidade do indivíduo preconceituoso, pois o objeto da estranheza representa algo que se quer negar. Tal manifestação é a forma de negar no outro o que se nega em si mesmo. Por isso, é percebida como uma violência, dado que pode expressar tanto o exagero de aceitação daquele que nos causa estranheza, como a indiferença pela invisibilidade ou como a rejeição explícita pelo julgamento de que o outro é inferior (CROCHÍK, 2006).
Em vista disso, o preconceito pode ser manifestado contra indivíduos que não correspondam ao padrão imposto pela sociedade de classes. Logo, o enfrentamento dessa manifestação passa pelo questionamento do status quo dessa mesma sociedade. É necessário recorrer à história da formação do indivíduo para compreender a organização social na contemporaneidade. Pois, para Crochík (2006, p. 13), “Tanto o processo de se tornar indivíduo, que envolve a socialização, quanto o do desenvolvimento da cultura têm se dado em função da adaptação à luta pela sobrevivência, o preconceito surge como resposta aos conflitos presentes nessa luta”. Isso significa que o enfrentamento do preconceito é parte da luta em defesa da vida dos grupos sociais denominados minorias e vítimas da violência. Essa é a razão de problematizar a violência manifestada em relação aos homossexuais, às pessoas com deficiência, aos negros, às mulheres e, no que tange a esta pesquisa, aos estudantes com deficiência. Não se deve negar o preconceito, mas problematizar suas causas e sua formação:
[...] o mero esforço mostra a eficácia do preconceito que divide o mundo entre pessoas de maior e de menor valor. A desigualdade ontológica efetivamente sentida, na dimensão mais imediata das emoções, tem que ser negada por um esforço do intelecto que se policia. Os rituais do politicamente correto são explicáveis em grande medida por esse fato. (SOUZA, 2019, p. 20).
Nesse caso, para Souza a própria negação do preconceito é uma manifestação preconceituosa. Portanto, problematizar as raízes da violência manifestada sob a forma de preconceito é uma possibilidade de enfrentar a sociedade de classes, na medida em que suas relações são baseadas na perseverança da dominação de diversas formas, quer seja uma classe escravizando outra ou um povo subjugando o outro em virtude dos seus interesses econômicos e políticos.
Assim sendo, a escola contém elementos que contribuem para a manifestação e/ou para o enfrentamento do preconceito. No bojo dessa reflexão da manifestação do preconceito que envolve a estrutura social e a escola:
Triunfarão aqueles estudantes que percebem no professor aquilo contra o que, de acordo com seu instinto, se dirige todo o sofrido processo educacional. Há nisto evidentemente uma crítica ao próprio processo educacional, que até hoje em geral fracassou em nossa cultura. Este fracasso é atestado também pela dupla hierarquia observável no âmbito da escola: a hierarquia oficial, conforme o intelecto, o desempenho, as notas, e a hierarquia não-oficial, em que a força física, o ‘ser homem’ e todo um conjunto de aptidões prático-físicas não honradas pela hierarquia oficial desempenham um papel. O nazismo explorou esta dupla hierarquia inclusive fora da escola, na medida em que incitou a segunda contra a primeira, tal como incitaria o partido contra o Estado na macropolítica. A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola. (ADOR- NO, 2020, p. 120).
Verifica-se a urgência da crítica à escola, tanto por sua estrutura, como por seus processos pedagógicos. No que se refere à estrutura, a escola organiza-se em duas hierarquias: a oficial e a não oficial. De acordo com Crochík (2012, p. 215), a hierarquia oficial relaciona-se ao rendimento escolar e a hierarquia não oficial às “habilidades prático-corporais”. Estudantes são estimulados a se localizarem em uma ou em outra posição. Cabe, então, a crítica a esse formato de organização escolar que promove a competição e valoriza a oposição entre a atividade intelectual e a do corpo, como se não pudessem ocorrer simultaneamente.
Além disso, essa estrutura, que prevalece ainda na escola do século XXI, coloca como centralidade a capacidade do estudante em ser bem ou mal localizado na hierarquia escolar, desconsiderando fatores sociais e econômicos de sua formação. Portanto, cabe a crítica a esse modelo meritocrático de escola. Tal estrutura evidencia-se ainda mais problemática quando confrontada com a presença de estudantes com deficiência em situação de inclusão.
Tendo em vista a classificação dentro da hierarquia - por exemplo: estudantes bons ou maus, com deficiência ou não, ou seja, características atribuídas aos indivíduos pela cultura, denominadas estereótipos, Crochík (2006, p. 21) assevera: “Os estereótipos são proporcionados pela cultura e se mostram propícios à estereotipia do pensamento do indivíduo preconceituoso, fortalecendo o preconceito e servindo para a sua justificativa”. Isso significa que um estudante com deficiência pode ser visto como alguém incapaz de realizar uma atividade e a sua deficiência pode servir de justificativa para que não seja desafiado pedagogicamente na aprendizagem.
Assim, o indivíduo manifestante do preconceito afasta-se da possibilidade de viver as próprias experiências, além de negar ao outro indivíduo a capacidade de experienciar aprendizagens para elevação do nível de consciência. Essa rejeição à experiência, segundo Horkheimer e Adorno (1947, p. 88), representa “Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem, são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial”. A inaptidão à experiência afasta o indivíduo da possibilidade da autorreflexão. Por conseguinte, há a danificação da autorreflexão.
Para Horkheimer e Adorno (1947, p. 97), o pensamento do indivíduo que não se guia para autorreflexão substitui a imaginação ativa pelo clichê. Isso é entendido pela mentalidade do ticket:
Hoje, os indivíduos recebem do poder seus tickets prontos, assim como os consumidores que vão buscar seu automóvel nas concessionárias da fábrica. O senso de realidade, a adaptação ao poder, não é mais resultado de um processo dialético entre o sujeito e a realidade, mas é imediatamente produzido pela engrenagem da indústria.
Aqui, ticket é o símbolo da sociedade que classifica os indivíduos como se fossem mercadorias ou produtos e, dessa forma, assemelha cada vez mais os indivíduos a coisas padronizadas na perspectiva da cultura dominante. Portanto, “O próprio ticket é uma roda da engrenagem” (HORKHEIMER; ADORNO, 1947, p. 97).
O pensamento estereotipado alimentado pelas instâncias sociais como escola, trabalho, Estado, Igreja, clubes e família, por exemplo, contribui para o acirramento da opressão em relação àqueles considerados desviantes dos padrões sociais homogeneizadores. Outrossim, no capitalismo, os estereótipos desempenham o papel de economizar o tempo de refletir sobre aquele que incomoda. A racionalidade econômica é esse princípio que retira do indivíduo a responsabilidade de refletir para agir autonomamente e “A decisão que o indivíduo deve tomar em cada situação não precisa mais resultar de uma dolorosa dialética interna da consciência moral, da autoconservação e das pulsões”. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947, p. 96). Nesse sentido, é possível admitir que o preconceito está presente na escola e nas demais instâncias sociais, cabendo às(aos) professores e demais profissionais da escola a problematização das causas históricas, sociais e psíquicas do preconceito e sua que manifestação.
Narrativas docentes: percursos da pesquisa e da formação docente
O lócus da pesquisa foi uma escola pública municipal que atende estudantes do 4º (quarto) período da educação infantil até o 9º (nono) ano do ensino fundamental, contando com Sala de Recursos Multifuncionais atendendo nos turnos matutino e vespertino; é denominada inclusiva por realizar matrícula de estudantes com deficiência, sendo esse o critério adotado na seleção dentre as escolas públicas localizadas no município de Petrópolis. No período da realização da pesquisa, a escola contava com 583 (quinhentos e oitenta e três)5 estudantes matriculados, sendo 4% deles com deficiência.
Considerando o período pandêmico causado pela disseminação do novo coronavírus (Covid-19) que atravessamos nos anos de 2020 e 2021, em função do qual as unidades escolares estiveram fechadas para o encontro presencial com as participantes, o contato se deu essencialmente por chamada telefônica e por meio de plataforma virtual, com horário previamente agendado.
Para seleção das participantes6 da pesquisa, mantivemos contato com a direção da escola. Após autorização do acesso às professoras, obtivemos o aceite de 4 (quatro) das 5 (cinco) professoras convidadas. A orientadora pedagógica também foi convidada a participar respondendo ao questionário sobre a estrutura da escola quanto aos aspectos pedagógico-administrativos. Quanto à questão: “O que você sabe sobre o preconceito?” destacamos as seguintes narrativas:
Ah, eu acho que preconceito é quando a gente julga alguém assim sem conhecer direito, né. A gente faz aquele pré-julgamento. Pré-conceito mesmo. A gente antecipa o nosso conceito em relação àquela pessoa. Sei lá, pode ser pela aparência física, pela cor da pele, pela raça. É quando a gente, sem conhecer, antecipa o conceito fazendo esses pré-julgamentos. (Professora Sandra, Classe Inclusiva)
Penso que pré-conceito é uma ideia que você tem, um conceito que você tem antecipado de alguma coisa. Que todo mundo, de uma certa forma tem um pouco de preconceito, por mais que ache que não tem. Porque a partir do momento que você tem uma ideia e defende essa ideia, você tem dificuldade de respeitar o diferente. Eu penso que o ideal seria que, na minha cabeça, no mundo ideal seria que as ideias, a escola fosse um lugar de se falar sobre ideias e as pessoas fossem livres para escolher seus caminhos. (Professora Judith, Sala de Recursos Multifuncionais).
As narrativas expressam que as professoras não são imunes à incorporação de estereótipos, produzidos pela cultura e incorporados durante o processo de formação docente. Antes, revelam se reconhecerem como partícipes da cultura que produz os estereótipos que obstam a experiência com os estudantes e suas diferenças cognitivas, sensoriais, físicas e psíquicas.
A professora Sandra expressou ter ‘Uma ideia sobre o objeto’, corroborando com Crochík (2006) quanto aos indivíduos admitirem conhecer o objeto prescindindo da experiência e, assim, incorporando o transmitido pela cultura, o qual, com a experiência, pode ser reafirmado ou superado. Por essa razão, a experiência com a diversidade possibilita a elevação do nível de consciência do indivíduo.
A narrativa da professora Judith expressa ser a escola “um lugar de se falar sobre ideias e se as pessoas fossem livres poderiam escolher seus caminhos.” Essa narrativa fortalece a centralidade da experiência no processo de formação para a autonomia e o livre pensar. Na sequência, a professora Patrícia narrou:
O preconceito é uma coisa muito triste. Muito limitante. Eu acho que tanto para quem tem preconceito, quanto para a pessoa que sofre o preconceito. Acho que uma coisa muito limitante. É uma coisa que deixa atrapalha muito a vida, a trajetória, a própria autoestima daquelas pessoas que sofrem preconceito. Então eu acho uma coisa muito limitante, na verdade. É uma ignorância que não cabe mais na realidade que se vive hoje. (Professora Patrícia, Classe Inclusiva).
A narrativa ressalta o quão danoso é o preconceito, tanto para o indivíduo preconceituoso quanto para suas vítimas. A professora Patrícia reconhece que no atual estágio civilizatório tal manifestação da violência revela o grau de atraso, em termos de desenvolvimento humano, em que se encontra o indivíduo, coadunando com Adorno (2020), ao se referir à sociedade com alto grau de desenvolvimento tecnológico e sua incapacidade em promover experiências entre diferentes indivíduos. Quanto a isso, vale considerar a narrativa da professora Renata:
Olha, eu custei muito a entender que as pessoas são preconceituosas. Eu perguntei a uma pessoa escura com a qual eu tenho intimidade: ‘Você já sofreu preconceito?’. Ela respondeu: ‘Eu sofri e com o tempo, eu fui vendo realmente que isso cresceu. Mas cresceu de uma maneira que antigamente as pessoas levavam mais na brincadeira.’ (Professora Renata, Classe Especial)
A professora Renata considera que o contato com outro indivíduo que sentiu o preconceito contra si possibilitou-lhe refletir sobre a manifestação da violência. No entanto, de maneira irrefletida, ao considerar que o preconceito assumiu proporções maiores no presente, relativiza a violência histórica, como se essa fosse menor antes que a professora percebesse a existência do fenômeno. Tal visão corrobora o dito por Adorno (2020, p. 34): “o terrível passado real é convertido em algo inocente que existe meramente na imaginação daqueles que se sentem afetados desta forma”.
Na sequência questionamos: “Você testemunhou casos de preconceito nesta escola?”:
Por parte dos alunos, eu acho que sim. Talvez até pelo desconhecer eles acabam excluindo o outro e a gente percebe que, às vezes, é por que a criança é mais pobrezinha, está se vestindo pior. Então eles acabam excluindo de certa forma, deixando de fazer parte das brincadeiras. Então, assim, sim, e acho que principalmente dos alunos maiores. Quando são muito pequenininhos e vão lá para a escola, 1º ano, eu acho que não. Pelo menos eu nunca testemunhei. Mas eu acho que quando eles vão chegando a essa idade da adolescência, como os alunos do 5º ano, eles começam a excluir certos colegas da turma e por vários motivos. (Professora Sandra, Classe Inclusiva)
A narrativa da professora Sandra demonstra ter presenciado manifestação de preconceito na escola pela discriminação de estudante devido às suas condições socioeconômicas, enfatizando ter observado o preconceito por parte dos estudantes e não dos profissionais da escola. Contudo, percebe-se uma contradição em relação aos seus comentários em relação à questão anterior, quando afirmara “que ninguém é imune ao preconceito”. Ao concluir a entrevista, reconsiderou:
Eu acabei falando muito só dos alunos, mas na verdade eu também presenciei adultos mesmo fazendo piadinhas com crianças, principalmente meninos assim, gays que tem aquelas características e, às vezes, um funcionário faz um tipo de piadinha. Então existe também por parte dos adultos dentro da escola. (Professora Sandra, Classe Inclusiva)
No decorrer do estudo, a professora Sandra pôde recordar a manifestação do preconceito por parte de profissionais da escola, ressaltando que os adultos também manifestam o preconceito contra as minorias sociais. Por outro lado, esta professora não mencionou ter presenciado situações de manifestação de preconceito contra estudantes com deficiência em situação de inclusão. Contudo, narrou que presenciou manifestação de preconceito contra estudantes de classe socioeconômica mais pobre e homossexuais, contribuindo para entendimento do expressado por Crochík (2006, p. 63): “O preconceituoso é predisposto a dirigir sua hostilidade para diversos objetos”. Consequentemente, quem manifesta preconceito contra homossexuais, tende a manifestar também contra pessoas negras e com deficiência, por representarem algo que o indivíduo predisposto ao preconceito é obrigado pela cultura a negar em si em si mesmo.
Quanto à mesma questão, a professora Patrícia narrou:
Não por parte da gestão, muito pelo contrário, dos professores também não. A gente vê, às vezes, preconceito a partir das próprias crianças, umas com as outras. Eu vi inclusive de a gente chamar atenção da criança, tentar mostrar [que] aquilo ali não é legal. Às vezes, uma criança que é mais negra do que a outra, aí aquela vai se referir a ela com aquela coisa: ‘Ah, Nescau’. Esse preconceito infantil que a gente sabe que é uma semente: se você for alimentando, aquilo ali vai crescer e vai se tornar uma coisa mais séria. Os alunos desde pequenininhos estão acostumados com os especiais, sabe. Então a gente não tem esse problema, graças a Deus. (Professora Patrícia, Classe Inclusiva).
A narrativa da professora Patrícia expressa o preconceito contra os mais pobres e, agora, o racismo. Porém, a referida professora afirmou não ter observado a manifestação de preconceito contra estudantes com deficiência, demonstrando a fragilidade da consciência em relação à observação desse fenômeno no cotidiano escolar. Isso pois se, por um lado, afirmou ter observado que funcionários da escola ‘corrigem’ quando percebem o preconceito, por outro, minimiza o ocorrido ao se referir como sendo ‘preconceito infantil’.
Na sequência, a professora Patrícia fez analogia ao narrar que o preconceito: “é uma semente: se você for alimentando, aquilo ali vai crescer e vai se tornar uma coisa mais séria”. Ao reconhecer que o preconceito pode ser ‘alimentado’, demonstra ter compreensão de que o preconceito tem raízes sociais, como comprovado em estudo de Crochík (2011), e é incorporado pelo indivíduo em seu processo de socialização. Salientamos, então, a importância da experiência por suas possibilidades de convivência e respeito à diversidade na escola pública. A professora que afirmou não ter presenciado situações de manifestação de preconceito contra estudantes com deficiência em situação de inclusão considera que isso seja possível pela presença desses estudantes desde os primeiros anos escolares, corroborando com Adorno (2020, p. 132), para quem “todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância”. Ainda em relação a essa questão, a professora Judith contradisse as demais professoras:
Assim, eu vou te falar: eu não me lembro de nada na escola assim forte com relação a isso, não. Eu acho que a escola a gente tem uma coisa muito legal. Porque lá na escola, assim, até com relação à equipe diretora, era cada uma de uma religião e as pessoas sempre respeitaram muito. Eu sempre achei legal. (Professora Judith, Sala de Recursos Multifuncionais)
A professora Judith narrou não se lembrar de ter presenciado situações de manifestação de preconceito e, no seu entendimento, a escola demonstra respeito à diversidade de características das(os) estudantes.
Em seguida, questionamos sobre o entendimento das professoras acerca da manifestação do preconceito: “No seu pensar, por que o preconceito se manifesta?”. A seguir, destacamos a narrativa:
Acho que vem muito do exemplo que eles têm em casa, como a família encara o diferente. O outro, quando é muito diferente de você, como a família encara isso? Eu acho que a criança vai incorporando muito isso e acaba levando isso para dentro da escola. Eu percebo muito, não muito em relação à cor, algumas vezes presenciei, mas eu percebo muito em relação à criança ser, parecer ser de uma classe social vulnerável, aquela criança que vai com a roupa toda surrada e eu percebo que eles começam com as piadinhas, começam a excluir. “Ah, eu não quero que ela fique no meu grupo, não”, “não quero que fique na brincadeira”. Então, assim, é preciso muita conversa para acabar com esse tipo de piadinha. (Professora Sandra, Classe Inclusiva)
A professora Sandra asseverou que “O preconceito encontra sustentação nos ensinamentos que estudantes recebem da família e a escola precisa de muito esforço para reverter essa situação.” Outro destaque da narrativa da professora Sandra é sua percepção de manifestação do preconceito contra estudantes em situação de vulnerabilidade, menos assistidos, menos cuidados, não tendo se referido a estudantes com deficiência em situação de inclusão. A professora Sandra considera que os fatores sociais são decisivos na formação de personalidades predispostas à manifestação do preconceito. Quanto à essa questão, a professora Patrícia afirmou:
Eu acho que [quanto às] diferenças: as pessoas não estão acostumadas a lidar com a diferença. Aquela coisa, parte da família. Não é? Se você criar uma criança ensinando a ela que o diferente é normal, é natural, qualquer seja diferença, eu acho que não tem isso. Agora, quando você vê uma atitude preconceituosa de uma criança, você pode olhar que por trás daquilo ali tem uma família preconceituosa. Tem atitudes preconceituosas vindas daquela família. (Professora Patrícia, Classe Inclusiva)
A professora Patrícia ressaltou o impacto dos ensinamentos familiares e, em seu entendimento, “As pessoas não estão acostumadas a lidar com a diferença”; noutras palavras, ela expressa a possibilidade à experiência como formação para a crítica à homogeneização, se contrapondo ao problematizado por Adorno (2002, p. 15) “O mundo inteiro é forçado a passar pelo crivo da indústria cultural”. Assim, a família e a escola são influenciadas pela passagem por esse ‘crivo’. Nenhum indivíduo ou instituição é indiferente à interferência dos ditames da indústria cultural, sendo urgente a educação contribuir com a experiência entre diferentes indivíduos na escola e, assim, possibilitar a formação para a conscientização e o desenvolvimento da sensibilidade de professores e estudantes. Sobre a manifestação do preconceito, a professora Judith expressou:
Talvez se a gente influenciar alguém, a pessoa olha para você e vê alguma coisa boa, ela pode querer te imitar de alguma forma. Mas essa coisa de ficar convencendo? Tipo, a pessoa não quer, né. Então o preconceito se manifesta porque a gente quer acabar obrigando as pessoas a ser o que a gente é. Eu digo de qualquer lado. A partir do momento que começa a querer obrigar todo mundo pensar igual você, aí começa o problema. (Professora Judith, Sala de Recursos Multifuncionais)
A professora Judith considera a incorporação de valores, ainda que de forma irrefletida e pela imitação (mimese). No entanto, a imitação reforça o estereótipo e, por ser desprovida de reflexão, afasta a experiência e contribui à manifestação do preconceito por imitar “aquilo que é valorizado culturalmente” (CROCHÍK, 2011, p. 15), remetendo à imposição do pensamento e, consequentemente, à dominação, afirmando o potencial emancipador da experiência e a possibilidade da formação de subjetividades que não se submetem a si mesmas e nem a outrem.
Os resultados comprovam que a escola estudada conta com professoras sensíveis à educação inclusiva e que compreendem o quanto o preconceito obsta a formação humana. Também comprovamos que a escola estudada é regida por relações influenciadas pela lógica da sociedade de classes, o que interfere no desenvolvimento da emancipação de professores e estudantes.
Considerações finais
Horkheimer e Adorno, na obra Dialética do Esclarecimento (1947), consideram que o indivíduo, ao se relacionar com a cultura, lida com suas pulsões irracionais, interage com a própria cultura, suas instâncias sociais e as leis morais, por meio do superego. Nessa tensão entre o id e o superego (supereu), o eu forma-se. Quando a formação é tolhida (supereu exacerbado) ou permissiva (id exacerbado), o eu constitui-se em desequilíbrio. Logo, ao nos voltarmos ao cenário histórico, o indivíduo ainda em formação estará inserido e em tensão na cultura do século XXI.
Cabe ressaltar que a formação não se dá de maneira linear, mas sim com o tensionamento entre indivíduo e cultura. Por isso, a importância da formação que seja para a individuação, a fim de que o indivíduo possa se identificar com o outro diferente de si. Porém, como esse processo ocorre em uma sociedade regida pela ótica da dominação, o mesmo acontece com a formação. Em virtude disso:
Só a mimese se torna semelhante ao mundo ambiente, a falsa projeção torna o mundo ambiente semelhante a ela. Se o exterior se torna para a primeira o modelo ao qual o interior se ajusta, o estranho tornando-se o familiar, a segunda transpõe o interior prestes a saltar para o exterior e caracteriza o mais familiar como algo de hostil. Os impulsos que o sujeito não admite como seus e que, no entanto, lhe pertencem são atribuídos ao objeto: a vítima em potencial. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947, p. 96).
A formação da subjetividade do indivíduo evidencia-se fragilizada quando este apenas se adapta à cultura, assimila seus valores de maneira irrefletida e nega os próprios impulsos. Para o indivíduo inapto à reflexão, a adaptação à cultura é o que lhe soa mais adequado. No entanto, ao confrontar-se com o objeto que lhe causa estranheza, ele percebe sua fragilidade em reconhecer aquilo que quer negar internamente. Portanto, o ímpeto que lhe salta é o da violência, manifestada na forma do preconceito - e, considerando o cenário histórico do Brasil:
[...] a análise da construção do preconceito com relação aos povos indígenas brasileiros nos remete aos tempos da conquista portuguesa, lembrando que, naquele momento histórico, os indígenas, que constituem ‘o outro’ na relação com os conquistadores - eu conquiro -, eram tidos como bárbaros, atrasados, sensuais, de natureza impura. Note-se que o poder de que são investidos é o da natureza. No caso dos conquistadores, a atribuição de valor negativo às características dos indígenas traduziria o terror que sentem perante sua própria natureza. Lembre-se de que os conquistadores eram portadores da moral do catolicismo colonizador, que enfatizava a necessidade da repressão dos instintos. Erigiram-se os navegantes do novo mundo como superegos perante os indígenas, representando estes o id (instintos). (BANDEIRA; BATISTA, 2002, p. 133-134).
Nesse contexto, os indígenas representavam aquilo que os colonizadores julgavam ser algo em desconformidade com a cultura que traziam do além-mar. No caso dos colonizadores, a dominação da natureza significava o próprio poder em relação àqueles que lhes pareciam demasiado estranhos e, por conseguinte, sujeitos a serem dominados. Processo similar ocorre com indivíduos com deficiência na sociedade regida pela lógica do capital: são alvo da dominação, da exclusão e da segregação. Aos olhos desta sociedade, os indivíduos com deficiência são aqueles que não produzem e devem ser submetidos aos desmandos da dominação. O que podemos indagar no tempo presente é: superamos essa tendência à dominação ou à subjugação do outro ao poder dominante?:
O pensamento perde o fôlego e limita-se à apreensão do factual isolado. Rejeitam-se as relações conceituais porque são um esforço incômodo e inútil. O aspecto evolutivo do pensamento, e tudo o que é genético e intensivo nele, é esquecido e nivelado ao imediatamente presente, ao extensivo. A organização atual da vida não deixa espaço ao ego para tirar consequências espirituais. O pensamento reduzido ao saber é neutralizado e mobilizado para a simples qualificação nos mercados de trabalho específicos e para aumentar o valor mercantil da personalidade. Assim naufraga essa autorreflexão do espírito que se opõe à paranoia. Finalmente, sob as condições do capitalismo tardio, a semicultura converteu-se no espírito objetivo. (HORKHEIMER; ADORNO, 1947, 93).
A sociedade organizada sob a égide do capital impõe um modelo de vida ideal e de sucesso. Porém, isso ocorre desde que inserida no consumo de bens e produtos que prometem a felicidade. Todo esse fervor do capital obsta a reflexão, o exercício de experiências intelectuais, a elaboração dos traumas e, com isso, a identificação com o outro em sua humanidade.
Nesse sentido, as contradições sociais revelam que a dominação ainda se faz presente sob a insígnia da promessa de felicidade, que permanece no campo do imaginário social e é nutrida pela ideologia como tentativa de justificar a dominação. Pois, de acordo com Crochík (2006, p. 39):
[...] o preconceito oriundo da esfera cultural, expresso na ideologia, é a justificativa da dominação da cultura sobre o indivíduo em suas diversas figuras: a religião, a ciência, a filosofia, e se pudesse ser reduzido a uma frase, poderia se dizer que é um elemento que conforma o indivíduo à cultura, o que seria a expressão de uma sociedade totalitária. Toda cultura que exija sacrifícios individuais para sua manutenção, quando ela própria não se dirige para o bem-estar de seus indivíduos, e se estabeleça de forma independente dos interesses racionais de seus membros, encontra-se naquela definição, ou seja, necessita da ideologia para se perpetuar.
A ideologia é uma promessa vazia para submissão do indivíduo à manutenção da lógica existente na cultura. Exige do indivíduo a adaptação aos seus ditames, à sua ordem, considera-se por identificação ao totalitarismo e ao ciclo vicioso da dominação. Essa pressão social exercida sobre o indivíduo manifesta-se sobre o supereu; assim, esse “é a fonte de preconceito no nível individual”. (CROCHÍK, 2006, p. 40).
Por isso, é urgente uma educação que possa romper com esse perfil de dominação, ou seja, aquela voltada para a autonomia e para a autorreflexão. Caso contrário, será apenas mais um mecanismo de repetição e adaptação do indivíduo à esfera cultural hegemônica existente.
Cabe-nos recorrer a Marx e Engels (2017, p. 38): “As ideias dominantes de uma época sempre foram as ideias da classe dominante”. Podemos avançar na interpretação de que as ideias da classe dominante se convertem também em toda dominação exercida por ela na sociedade de classes. Faz-se importante a reflexão no cotidiano da escola; por exemplo, o exercício da dominação se faz na violência manifestada na forma do preconceito em relação aos denominados diferentes, no desejo de agrupamento homogêneo das turmas e mesmo na imposição das regras disciplinares na escola.
Segundo Costa e Leme (2016, p. 34), “A implementação das políticas públicas de educação inclusiva está revelando que a escola pública também é inapta no atendimento das diferenças de aprendizagem dos estudantes sem deficiência”, tornando premente a necessidade de se problematizar o modelo educacional que prioriza a eficiência, dado que, além de inadequado para atender a estudantes com deficiência, ele tampouco atende às necessidades dos estudantes sem deficiência.
Assim, foi possível constatar neste estudo que as docentes participantes reconhecem a escola como uma instância social em que diversos indivíduos se relacionam e interagem sob um conjunto de regras. No entanto, há a compreensão de que a violência manifestada na escola tem origem extramuros. Entendemos que isso demonstra o baixo nível de consciência frente à diversidade dos indivíduos, bem como o reconhecimento de que a própria escola não é imune ao preconceito e, por isso, também gera violência por meio da hierarquização dos indivíduos.
Outro elemento importante verificado nos resultados é a dificuldade em compreender o preconceito como uma forma de violência. Portanto, na concepção das professoras, há divergência quanto ao entendimento do preconceito e a percepção da violência se dá pela agressão física, sendo possível pensar que a manifestação do preconceito também ocorre por intermédio da agressão moral, emocional, pela exclusão, pela invisibilidade ou pela superproteção dos estudantes considerados frágeis devido às suas deficiências físicas, sensoriais e cognitivas.
Os resultados deste estudo revelam reconhecimento da violência no cotidiano escolar e, mais, que há muito ainda a conquistar quanto ao entendimento de que a cultura produtora dos estereótipos que contribuem para violência se reproduz na escola, exigindo aprimoramento da formação de professores, sobretudo no que se refere à elevação do nível de consciência acerca das possibilidades e, também, dos limites da educação.
No entendimento das professoras participantes do estudo, o preconceito contra estudantes com deficiência em situação de inclusão é menos frequente do que o preconceito manifestado em relação às outras minorias socialmente constituídas. Essa pouca frequência da manifestação do preconceito pode estar relacionada à convivência constante de estudantes com e sem deficiência desde pequenos, o que instiga pensar sobre o preconceito manifesto contra as demais minorias.
Por fim, é necessário seguirmos, em estudos futuros, problematizando a violência em suas diversas formas e manifestação, inclusive a escolar e, para tal, faz-se urgente não permitir que a consciência regrida e, consequentemente, que a capacidade de identificação e da experiência com estudantes com deficiência perca sua capacidade de tornar professores e estudantes indivíduos sensíveis e solidários. Para tal, vale considerar as palavras de Adorno (2020, p. 126) ao problematizar os tabus acerca do magistério: “não se deve esquecer que a chave da transformação decisiva reside na sociedade e em sua relação com a escola. Enquanto a sociedade gerar a barbárie a partir de si mesma, a escola tem apenas condições mínimas de resistir a isto”. É nesse significativo desafio que a educação deve concentrar seus esforços de resistência à violência: na formação emancipadora e humanizadora de docentes e estudantes.