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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.71 Salvador jul./set 2023  Epub 22-Abr-2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n71.p183-199 

Educação e aprendizagem da docência

APRENDIZAGEM DA DOCÊNCIA DE PROFESSORES FORMADORES: EM RAZÃO DA PRÁTICA EDUCATIVA NA UNIPÚNGUÈ/MANICA EM MOÇAMBIQUE

TEACHING LEARNING BY TEACHER TRAINERS: DUE TO THE EDUCATIONAL PRACTICE AT UNIPÚNGUÈ/MANICA IN MOZAMBIQUE

ENSEÑANZA APRENDIZAJE POR FORMADORES DE PROFESORES: EN RAZÓN LA PRÁCTICA EDUCATIVA EN UNIPÚNGUÈ/MANICA EN MOZAMBIQUE

Josania Lima Portela Carvalhêdo1 

Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará - UFC. Professora Titular na Universidade Federal do Piauí e permanente no Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEd (UFPI), em Teresina, Piauí, Brasil. E-mail: josaniaportela@ gmail.com.


http://orcid.org/0000-0002-4288-2756

Júlio Laissone Maquissene2 

Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - PPGEd, da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Professor da Universidade Pedagógica da Maxixe, em Maputo/Moçambique. E-mail: laymaquissene@gmail.com


http://orcid.org/0000-0003-4962-4589

1Universidade Federal do Piauí

2Universidade Federal do Piauí


RESUMO

Com o objetivo de analisar como ocorre a aprendizagem da docência em razão da prática educativa de professores formadores do Curso de Pedagogia da Universidade Púnguè - UniPúnguè, em Moçambique, no distrito de Manica, referenciada no método autobiográfico, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa narrativa, mediante entrevista narrativa com quatro professores formadores, e análise de dados compreensiva-interpretativa, ancorada em Souza (2014). Os dados revelam a aprendizagem da docência no processo de desenvolvimento profissional dos professores formadores a partir da formação continuada em cursos de pós-graduação stricto sensu e em outros processos formativos, com base na troca de experiências individuais e coletivas, trocas com os pares - em comunidades de aprendizagem - e com os estudantes. Concluiu-se que, em razão da prática educativa, a aprendizagem da docência ocorre de diversas formas, seja com os pares ou com os estudantes, percebendo-se a ausência da investigação científica para esse fim no contexto investigado.

Palavras-chave: Aprendizagem da docência; Desenvolvimento Profissional Docente; Professor formador; UniPúnguè; Moçambique

ABSTRACT

With the aim of analyzing how teaching learning occurs due to the educational practice of teachers who train the Pedagogy Course at the Púnguè University - UniPúnguè, in Mozambique, in the Manica district, referenced in the autobiographical method, a qualitative narrative research was developed, through a narrative interview with four teacher trainers, and comprehensiveinterpretive data analysis, anchored in Souza (2014). The data reveal teaching learning in the process of professional development of teacher trainers based on continuing education in stricto sensu postgraduate courses and in other training processes, based on the exchange of individual and collective experiences, exchanges with peers - in learning communities - and with students. It was concluded that, due to the educational practice, teaching learning occurs in different ways, either with peers or with students, realizing the absence of scientific research for this purpose in the investigated context.

Keywords: Teaching learning; Teacher Professional Development; Trainer teacher; UniPúnguè; Mozambique

RESUMEN

Con el objetivo de analizar cómo se produce la enseñanza aprendizaje a partir de la práctica educativa de los docentes que forman el Curso de Pedagogía en la Universidad de Púnguè - UniPúnguè, en Mozambique, en el distrito de Manica, referenciada en el método autobiográfico, se desarrolló una investigación cualitativa narrativa, a través de una entrevista narrativa con cuatro formadores de docentes y un análisis de datos comprensivo e interpretativo, anclado en Souza (2014). Los datos revelan la enseñanza aprendizaje en el proceso de desarrollo profesional de los formadores de docentes a partir de la formación continua en los posgrados stricto sensu y en otros procesos de formación, a partir del intercambio de experiencias individuales y colectivas, intercambios con pares -en comunidades de aprendizajey con estudiantes. Se concluyó que, debido a la práctica educativa, la enseñanza aprendizaje ocurre de diferentes formas, ya sea con pares o con estudiantes, percibiendo la ausencia de investigaciones científicas con este fin en el contexto investigado.

Palabras clave Enseñanza aprendizaje; Desarrollo Profesional Docente; Profesor entrenador; UniPúngé; Mozambique

Introdução1

A formação de professores vem assumindo posição de destaque nos estudos relativos à pedagogia universitária. Na caminhada acadêmica na pós-graduação em Educação no Brasil, têm-se produzido entendimentos conceituais acerca da construção da aprendizagem da docência, bem como reflexões que analisam e problematizam questões como processos formativos necessários para a mediação pedagógica na docência universitária.

O processo de aprendizagem da docência que favoreça as condições necessárias para atuar na formação profissional e a compreensão dos possíveis obstáculos que podem servir como empecilho para uma aprendizagem significativa e reflexiva estão em pauta no âmbito das discussões sobre formação de professores.

As pesquisas e os trabalhos efetuados na pós-graduação em Educação passaram a ter grande influência na formação e na percepção dos aspectos formais, objetivos e subjetivos compreendidos no processo de ensinar e aprender. Os referidos estudos permitiram compreender o quão complexa é a tarefa de ensinar, pois requer muito mais do que conhecer teorias e metodologias que fundamentem a ação pedagógica no ensino superior, de modo que o profissional assuma uma postura reflexiva diante da prática educativa.

Ademais, observamos que a formação desenvolvida nos cursos de Pedagogia que formam professores apresenta, historicamente, desafios a serem vencidos. No entanto, a formação docente que se quer - em direção a uma aprendizagem significativa e reflexiva - implica que o professor formador usufrua de espaço/tempo que lhe possibilite estudar, aprofundar e realizar a interpretação de referenciais teóricos fundamentais à sua prática educativa formadora. Tal prática educativa perpassa a sua experiência, pela sua maneira de ver e compreender o mundo, remetendo-o a conceitos e comportamentos, apropriandose deles e ressignificando-os individual e/ou coletivamente.

Podemos dizer que “o trabalho do professor formador é esse conhecer permanente: da exploração, da experimentação, das trocas de experiências, do espaço para passar da ignorância ao conhecimento” (ABDALLA, 2007, p. 94).

De acordo com o supracitado autor, o professor formador, na aprendizagem da docência, utiliza-se da pesquisa, das experiências vividas com os pares e com os profissionais em formação, entre outras alternativas, para atender à complexidade de sua prática educativa.

Nesse sentido, compreende-se que a formação permanente dos professores formadores está essencialmente unida ao contexto do trabalho, pautada em uma organização que apoia a formação continuada do docente que, intencionalmente, apropria-se de conhecimentos necessários para fortalecer e qualificar a prática educativa, atendendo às necessidades que emergem do contexto em que se insere.

A realidade social em que vivemos nos últimos anos é, sem dúvida, impulsionada pela globalização e, diante desse contexto social, as instituições de ensino superior público, concretamente o caso da Universidade Púnguè - UniPúnguè, em Moçambique-Manica, enfrentam desafios que exigem reflexão crítica acerca da prática educativa, no sentido da aprendizagem da docência para o atendimento das necessidades formativas do contexto contemporâneo - resultado da função social e da especificidade da atividade docente na formação profissional no ensino superior.

Atualmente, o contexto social requer que se repense a formação de professores e o seu processo de profissionalização, em consonância com as necessidades da prática educativa, configurando-se como importante a questão para investigação no âmbito do ensino superior.

Assim, para compreender a importância dos investimentos na formação do professor formador para o desempenho de suas funções com qualidade, em qualquer trabalho educativo, e de uma atuação exercida com autonomia, em uma perspectiva reflexiva crítica no ambiente profissional, a aprendizagem da docência representa uma necessidade permanente e, em particular, na UniPúnguè/Manica. Tratar da aprendizagem na docência demanda pensar uma instituição onde os professores formadores tenham oportunidades educacionais adequadas para o seu desenvolvimento profissional.

No processo de doutoramento no Brasil, a temática central da pesquisa situa-se no campo da pedagogia universitária, tendo como objeto de estudo a prática educativa de professores formadores do ensino superior do Curso de Pedagogia, compreendendo-a em processo de mudança como consequência da aprendizagem da docência ao longo do desenvolvimento profissional docente, que promove a capacidade reflexiva, crítica e criativa dos professores formadores, respaldada em fundamentos teóricometodológicos e experiências que possibilitam maior autonomia profissional.

Preocupa-nos, pois, como explica Leite (2003, p. 310), “[...] a formação docente para o exercício pedagógico profissional dos professores formadores no Ensino Superior [...]”, no contexto da universidade pública. Especificamente, nesse recorte, o objetivo consiste em analisar como ocorre a aprendizagem da docência em razão da prática educativa de professores formadores do Curso de Pedagogia da Universidade Púnguè (UP), em Moçambique, no distrito de Manica.

Concebemos a necessidade de aprofundar a investigação no campo de educação no ensino superior, mais singularmente na UniPúnguè/ Manica, como estratégia para a melhoria na qualidade da prática educativa dos professores formadores em uma instituição com missão formadora, funções científicas, profissionais e sociais relevantes no cenário africano.

A proposta justifica-se, inclusive, pela importância de pensar a formação continuada dos professores formadores envolvidos com o trabalho de formação no ensino superior, no sentido de qualificar o processo ensino-aprendizagem na universidade pública.

O problema identificado caracteriza-se pelo fato de que os professores formadores de docentes devem ser dotados de uma formação que se conecte com os contextos de aprendizagem da docência, facilitando a formação do pensamento reflexivo crítico dos estudantes em formação.

Olhando para as dimensões da formação, em consonância com as tarefas básicas do professorado, Labaree (2004), sociólogo americano da Universidade de Stanford, ao fazer uma crítica aos processos de formação de professores, afirma que não se produz ensino-aprendizagem valioso se os estudantes em formação inicial não aprenderem o que consideramos vantajoso.

Se os estudantes em formação inicial não desenvolverem as competências/habilidades básicas para a sua atuação profissional, como poderão atender as necessidades do contexto contemporâneo? Por isso, no entendimento do teórico, para que os estudantes em formação desenvolvam tais competências e habilidades básicas inerentes a profissão, os formadores de professores antes precisam ter desenvolvido tais competências no processo de aprendizagem da docência. Para ensinar, os formadores de professores primeiro precisam ter aprendido, desenvolvendo-se profissionalmente em termos de competências ou qualidades profissionais fundamentais, como sistema de compreensão reflexiva crítica para a atuação profissional.

Tendo em vista as aprendizagens docentes, a análise reflexiva crítica proposta auxilia os formadores a compreenderem os seus pontos fortes e fracos com vistas a assumirem a autorregulação dos processos de desenvolvimento profissional docente, compreendendo suas diferentes situações pessoais e emocionais, confiando em sua capacidade de aprender.

Enquanto professores formadores, devemos assumir a responsabilidade acerca dos processos de formação permanente e do desenvolvimento profissional, questionando nossos próprios valores, seus conhecimentos, suas habilidades, suas crenças e suas atitudes, os quais refletem no modo de pensar, sentir e de atuar, não diminuindo a responsabilidade institucional por esses processos.

Aprendizagem da docência dos professores formadores do ensino superior

O ensino superior é considerado uma agência formadora. A partir da ideia que se tem de processos formativos para a docência, buscamos investigar a aprendizagem da docência de professores formadores, ou seja, como esses formadores se constituem professores do ensino superior.

Nessa perspectiva, para Garcia (1999), entende-se por professor formador das licenciaturas todos os profissionais envolvidos nos processos formativos de aprendizagem da docência de futuros professores ou daqueles que já estão desenvolvendo atividades docentes: os professores das disciplinas prática de ensino e estágio supervisionado, os das disciplinas pedagógicas em geral, os das disciplinas específicas de diferentes áreas do conhecimento e os profissionais das escolas que acolhem os futuros professores no estágio curricular supervisionado.

Essa aprendizagem da docência, entretanto, não ocorre apenas na formação inicial. Isto posto, concebemos a aprendizagem da docência do professor formador como um processo continuado de formação e autoformação envolvendo dimensões individuais, coletivas e organizacionais, desenvolvido em contextos e momentos diversificados, e em diferentes comunidades de aprendizagem constituídas por outros formadores ou pelo próprio profissional, individualmente.

Sob essa ótica, é oportuno destacar que, teoricamente, valem para o professor formador as mesmas explicações referentes ao aprender a ensinar que a literatura atual vem apontando em relação a processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional da docência, de modo geral. Quando se pensa que o professor formador integra o modelo educativo, segundo a literatura sobre processos de aprendizagem e desenvolvimento profissional na docência, há contribuições importantes no sentido de delimitação de algumas direções e frentes de investimento para processos formativos desse professor.

Dentre esses pontos, Garcia (1999) sublinha a natureza individual e coletiva como aspecto da aprendizagem profissional da docência. No ensino superior, reputado como local de aprendizagem profissional, há processos não lineares de aprendizagem da docência dos professores formadores que são meritórios, pois envolvem diferentes tipos de saberes construídos ao longo das trajetórias profissionais, seja a partir de conhecimento acadêmico científico ou da prática educativa.

Com isso em vista, ressaltamos a relevância da prática profissional para a construção de conhecimentos próprios da docência, de diferentes naturezas, bem como a necessidade de explicitação da base de conhecimentos e a compreensão de processos de raciocínio pedagógico na construção de conhecimentos da docência.

Garcia (1999) continua apresentando investimentos para os processos formativos dos formadores de professores, trazendo a reflexão como orientação conceitual e fonte de aprendizagem profissional. Outrossim, elenca a influência de crenças, valores, juízos etc. na configuração de práticas pedagógicas; a necessidade de ambiente propício para a partilha de ideias e diferentes tipos de conhecimentos dos professores; a necessidade de tempo e espaço mental para que professores possam se desenvolver profissionalmente; a importância de uma liderança positiva no ensino superior; o ensino superior considerado como organização em que se aprende a partir de seus participantes; a força das comunidades de aprendizagem na configuração da cultura escolar, da escola e dos saberes profissionais; a importância de construir culturas escolares colaborativas, a fim de fazer face à complexidade da mudança; a relevância da construção de “comunidades de aprendizagem” que passam a redefinir as práticas de ensino individuais e grupais.

Além desses investimentos para processos formativos, a participação dos professores formadores deve ser tida como ato de adesão, não compulsório; com isso, as aprendizagens não são “passadas” ou entregues sob a forma de pacotes aos professores, mas são autoiniciadas, apropriadas e deliberadas. Há, portanto, a necessidade de contar com a adesão dos professores aos programas de desenvolvimento profissional: geralmente, eles engajam-se em tais programas à procura de novos conhecimentos.

Há também novas técnicas, novos tipos de conhecimento, novas tecnologias, não para colocarem à prova os conhecimentos que possuem ou a prática que desenvolvem, mas dada a necessidade de (re)conceptualização do ensino relacionada aos processos de desenvolvimento profissional; a importância da consideração de interações entre os pares como fonte de aprendizagem profissional; a premência de criação de contextos alternativos de desenvolvimento profissional; a aceitação de processos de negociação - de processos, de conteúdos, de dinâmicas naturais às comunidades de aprendizagem que envolvem professores e professores formadores.

Os formadores de professores devem estar envolvidos no projeto pedagógico do curso; construir parcerias com escolas e setores da comunidade; trabalhar coletivamente e de forma integrada; elaborar documentação a ser apresentada a órgãos oficiais; orientar Trabalhos de Conclusão de Curso (TCC) e pesquisas de iniciação científica; publicar regularmente etc. Tais indicadores envolvem igualmente os formadores de professores mesmo em instituições de ensino superior que não enfatizam a pesquisa acadêmica, que não exigem condução de pesquisa e regularidade de publicação científica.

Para Cochran-Smith (2003), os professores formadores, com formação e atuação baseadas na concepção de processos formativos orientados pelo paradigma da racionalidade técnica, são os mesmos profissionais que oportunizarão processos formativos sob uma nova visão.

Se, por um lado, os formadores percebem os limites e as dificuldades do paradigma da racionalidade técnica e procuram superá-los mediante adoção de um novo paradigma, por outro, toda a formação e prática pedagógica que lhes proporcionam autonomia e segurança no desenvolvimento de suas atividades têm base nesse modelo. Essa situação dificulta a adesão integral a uma nova concepção, assim como a operacionalização, de forma pertinente, de seus cursos/disciplinas a partir de uma nova forma de compreender e interferir em processos formativos da docência.

Silva e Tomio (2023, p. 207), discorrendo sobre os programas de formação continuada para professores, aduzem que “para alcançar a contemporaneidade do tempo em que estamos vivendo, os programas devem ser repensados a fim de contemplar a preparação do professor para essa nova realidade”, por exemplo, quanto ao uso das tecnologias digitais. A própria prática educativa desenvolvida nos contextos em que se inserem os professores formadores força a necessidade de rompimento com paradigmas conservadores, impulsionando a busca por outros referenciais no processo de desenvolvimento profissional.

Conforme Cochran-Smith (2003), para a aprendizagem da docência, os pontos arrolados podem ser resumidos em base de conhecimento, estratégias formativas, comunidades de aprendizagem e atitude investigativa. A atitude investigativa é considerada uma ferramenta promissora de aprendizagem e desenvolvimento profissional de professores formadores.

Aliás, Cochran-Smith (2003) complementa apresentando as seguintes premissas para a aprendizagem docente: a importância de uma base de conhecimento sólido e flexível, imprescindível para que o professor formador desempenhe suas funções, oportunizando situações e experiências que levem o professor em formação nos cursos de licenciatura a “aprender a ensinar” de diferentes formas, para vários tipos de clientelas e contextos. Portanto, a base de conhecimento é necessária para a inserção dos professores formadores em situações de ensino-aprendizagem em diferentes realidades e contextos reais.

Por si só, a prática não oferta conteúdo específico de forma satisfatória, nem oferece de forma sistematizada e articulada a base de conhecimento de que o professor formador necessita para a fundamentação de sua prática educativa (a qual todo formador deverá conhecer), assim como para continuar seu processo de aprendizagem e desenvolvimento profissional.

Para isso, Cochran-Smith (2003) propõe investimentos fundamentados no seguinte elemento: conhecimento do conteúdo específico, compreendido como eixo articulador da base de saberes para a aprendizagem da docência e para a promoção de processos de raciocínio pedagógicos ricos e flexíveis, ensejando a compreensão das inter-relações entre os conteúdos dos diferentes componentes curriculares e os contextos de aprendizagem dos alunos e dos professores, bem como das especificidades das diferentes séries e níveis de escolarização.

Continua Cochran-Smith (2003) ratificando, como base para a aprendizagem docente, o conhecimento dos contextos formativos escolares, de como funcionam as escolas (dinâmicas, tempos, espaços, condições objetivas de trabalho do professor, organização do trabalho escolar, alunos etc.) e o conhecimento de processos de aprendizagem na docência, de forma a promovê-los adequadamente em diferentes contextos.

Isso implica reconhecer e explorar concepções/teorias pessoais dos professores/futuros professores, seja no sentido de reafirmar tais concepções ou no de alterá-las; conhecimento historicamente contextualizado e fundamentado de políticas públicas educacionais e das teorias que as embasam, a fim de serem evitadas distorções e/ou simplificações indevidas quando as transportamos para a sala de aula, a exemplo do trabalho exclusivo com a oralidade em detrimento da escrita, o privilégio de alguns componentes curriculares, a exploração equivocada dos erros, contribuições e concepções prévias em nome de referências teóricas compreendidas de forma simplista e fragmentada.

Outro elemento que podemos elencar é a especificidade do conhecimento pedagógico do conteúdo (único tipo de conhecimento do qual o professor formador é realmente protagonista), que abarca conhecimento sobre a promoção de processos de aprendizagem na docência, assim como o conhecimento sobre a prática profissional e o eixo de processos formativos.

Shulman (1996) designa a aprendizagem da docência ancorada em casos na formação de professores formadores como uma resposta a dois problemas centrais: aprendizagem pela experiência e construção de pontes entre teoria e prática. Para ele, a exigência de que os professores/futuros professores devem refletir sobre sua própria prática é correta e penosamente exigente. A utilização de casos de ensino como uma unidade de análise reflexiva ajudaria na organização do processo de reflexão, na perspectiva ecológica de mudança interativa dos profissionais e dos contextos que dá um novo sentido às práticas de formação de professores centradas nas instituições.

Desse modo, podemos vislumbrar na Figura 1 os componentes que evidenciam a aprendizagem da docência no processo formativo, os quais estão associados a uma atividade com múltiplas dimensões ou abrangências, na qual estão presentes diversos elementos que contribuem para uma prática educativa na formação inicial e continuada de professores formadores.

Fonte: elaborada pelos autores, com base em Shulman (1996).

Figura 1 Componentes para uma aprendizagem da docência dos professores formadores no ensino superior 

Não se pode negar que falar da aprendizagem da docência no ensino superior dos professores formadores no processo de desenvolvimento profissional docente tem conexão com a qualidade dos processos de ensino -aprendizagem, tendo em vista as exigências sociais atuais da profissão.

Nessa direção, o primeiro ponto a se pensar são as pessoas que estão no processo, as suas vivências individuais e como elas constituem alicerces para atividades comunitárias, na escola; as vivências colaborativas; e, evidentemente, os recursos-chave para que a soma de todos esses elementos oportunize um aprendizado com significados reais para essas pessoas, sendo estudantes, professores ou professores formadores.

Logo, o conhecimento não pode ser analisado de forma descomprometida, como mera reprodução ou simples apropriação de ideias. Nesse sentido, as instituições educacionais de ensino superior organizam-se para validar estratégias que contemplem a formação global do estudante no processo ensino-aprendizagem da docência.

Por cúmulo, a garantia de aprendizagem na docência abrange as habilidades e os conhecimentos necessários para a vida em sociedade, oferecendo instrumentos de compreensão da realidade, favorecendo a participação dos estudantes em relações sociais diversificadas e cada vez mais amplas (exercitando diferentes papéis em grupos variados), facilitando o processo ensino-aprendizagem.

Metodologia da pesquisa

A metodologia adotada para a realização desta pesquisa científica parte de abordagem qualitativa do tipo narrativa, com suporte no método (auto)biográfico. Nesse âmbito, a pesquisa promoveu a ampliação de conhecimentos acerca do objeto de estudo - não restrito aos pesquisadores, alcançando também os interlocutores -, visto que para a produção de dados da pesquisa utilizamos a entrevista narrativa e, como método, o autobiográfico. Destarte, os dispositivos narrativos proporcionam a autoformação, alicerçado nos processos reflexivos oportunizados, além de possibilitar a compreensão da problemática, conforme detalharemos a seguir.

Segundo Delory-Momberger (2006), graças à capacidade que têm os indivíduos de se situarem entre o presente, o passado e o futuro, o método autobiográfico oportuniza a autoformação, ao mesmo tempo em que produz conhecimentos - neste caso, relacionados à aprendizagem da docência no processo de desenvolvimento profissional docente.

Por sua vez, Passeggi (2006), entendendo a “reflexividade do método autobiográfico” como uma disposição humana para refletir sobre si e as experiências vividas, defende a importância de ouvir para melhor compreender os sentidos que os envolvidos atribuem ao que vivem nas instituições de ensino.

Nesse sentido, é consenso entre vários autores que as histórias de vida vêm gerando um amplo espaço para a concretude da abordagem teórica e metodológica, atravessando métodos e metodologias no campo da pesquisa, estendendo-se a muitas áreas do conhecimento.

Corroborando essas discussões, Souza (2006, p. 139) acrescenta que

As variadas tipificações ou classificações no uso do método autobiográfico inscrevem-se no âmbito de pesquisas socioeducacionais como uma possibilidade de, a partir da voz dos atores sociais, recuperar a singularidade das histórias narradas por sujeito históricos, socioculturalmente situados, garantindo o seu papel de construtores da história individual/coletiva intermediada por suas vozes.

Assim, as reflexões acerca do método (auto)biográfico desvelam as potencialidades da pessoa ao longo da vida, as articulações e os valores que orientaram suas escolhas nos diversos percursos - seja pessoal ou profissional -, analisadas em termos de aprendizagens.

Para Nóvoa (2000), a abordagem do método (auto)biográfico é resultado da necessidade de um novo paradigma de conhecimentos científicos visando a resgatar a participação dos sujeitos face às estruturas e aos sistemas, assim como valorizar a abordagem qualitativa diante da quantitativa, possibilitando a vivência em relação ao instituído. Nessa lógica, vai-se configurando progressivamente o reconhecimento da autonomia do sujeito como autor/ator de sua própria história.

A pesquisa qualitativa do tipo pesquisa narrativa, segundo Oliveira (2010, p. 37), consiste em um “[...] processo de reflexão e análise da realidade através do uso de métodos e técnicas para a compreensão detalhada do objeto de estudo em seu contexto histórico e/ou segundo sua estruturação”.

O campo de investigação foi a Universidade Púnguè - UniPúnguè, Campus de Manica, em Moçambique, que oferta o Curso de Licenciatura em Pedagogia, sendo interlocutores quatro professores formadores que atuam no referido curso, identificados com termos ou expressões de lugares de Moçambique. Adotamos como critério de seleção dos sujeitos desta investigação ser professor efetivo com, no mínimo, três anos de experiência na docência no ensino superior na formação de professores.

A fim de caracterizar os processos de aprendizagem da docência no desenvolvimento profissional dos formadores de professores do Curso de Pedagogia na UniPúnguè/Manica, utilizamos como dispositivo para a produção de dados empíricos a entrevista narrativa. Esse dispositivo permitiu ao narrador contar como ocorreu o seu desenvolvimento profissional quanto à aprendizagem da profissão da docência ao longo da sua trajetória de vida, e sua inserção no contexto do ensino superior. Deveras, a “[...] ideia básica é reconstruir acontecimentos sociais a partir da perspectiva dos informantes, tão diretamente quanto possível” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2014, p. 93).

Os dados produzidos pela entrevista narrativa foram organizados e analisados com base na análise interpretativa-compreensiva, conforme sugerido por Souza (2014, p. 122), que se configurou por meio da [...] “ideia metafórica de uma leitura em três tempos, por considerar o tempo de lembrar, narrar e refletir sobre o vivido”.

Souza (2014) sugere que haja, na utilização da análise interpretativa-compreensiva, três fases fundamentais: a pré-análise, que consiste na leitura cruzada das narrativas, a partir da construção do perfil do grupo pesquisado, a fim de apreender marcas singulares, regularidades e irregularidades do conjunto das histórias de vida-formação; a fase em que os dados são organizados por meio de leituras, com a definição das categorias ou Unidades de Análise Temática (UAT) ou Unidades Descritivas (UD); e a terceira fase, quando ocorre o processo de análise propriamente dito, com as interferências e interpretação de forma reflexiva e crítica.

Neste recorte, apresentamos a unidade de análise temática “aprendizagem da docência: por razões da prática educativa”.

Aprendizagem da docência em razão da prática educativa

Visando a atender ao objetivo proposto nesta investigação, discorremos sobre a aprendizagem da docência em razão da prática educativa, com base nos dados produzidos nas entrevistas narrativas. Sobre essa questão, expressamos as participações dos interlocutores no Quadro 1.

Quadro 1 Narrativas sobre aprendizagem da docência: por razões da prática educativa 

Uma verdade muito crua é que eu na minha formação contínua aprendi conteúdos valiosos na prática educativa e esses conteúdos valiosos não são muitos aplicados no nosso dia a dia e na nossa realidade moçambicana e fiquei com a sensação de que estamos há 100 anos atrás comparativamente com a ciência que nós aprendemos. Então o que penso sobre o que eu aprendi com o que eu ainda encontro na realidade, criamos uma metodologia, um trabalho em que eu pudesse desenvolver tanto no Brasil como também esse trabalho fosse efetivado em Moçambique para que eu não perdesse a mesma lógica do conhecimento científico. E quando voltei nos primeiros anos consegui fazer graduar, eu digo graduar dois estudantes nesta área com os mesmos conhecimentos que eu aprendi no meu mestrado. [...]. Tenho agora de voltar a revitalizar o aspecto científico que eu aprendi e que faça com que contribua para o desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade local. A partir desse exemplo, eu dou a química orgânica e tivemos vários aspectos importantes: o processo de fermentação. Então nós produzíamos álcool, no período da pandemia, nós pensamos: que tal produzir álcool amoniacal a partir de casca de banana para poder higienizar a nossa instituição e esse foi um projeto que começamos com um estudante e até hoje é um projeto institucional, perspectiva de reflexão adotada. (Professor Nhunguѐ).
Houve cursos de aperfeiçoamento, sim, nesses cursos, na verdade eu fui para lá [Estados Unidos] nessa pós-graduação estudar o que tinha a ver exatamente com instituições [das] Américas e aprender a cultura Americana mas também no fim do programa criar espaços e trocas de experiência onde debatemos o ensino da língua inglesa exatamente com outros professores, e quando começamos com a formação éramos professores de vários pontos do mundo. Mas depois no fim eles chamaram professores dos EUA, onde nós tínhamos discutido exatamente o ensino como tal da língua inglesa, e isso aprofundou como tal em termos do ensino da língua inglesa, na prática educativa, na metodologias, na técnicas e tudo mais como garantia de facilitar a aprendizagem para o estudante. [...] Agora para mim, comparando com os outros colegas que na verdade só fizeram a sua licenciatura e depois da licenciatura começaram a dar aulas no ensino superior, vejo eles como uma pessoa que não tem base, estou a dizer isso porque não passaram do ensino primário, [...], até mesmo quando estão na sala de aula eles não têm como dar exemplos concretos, pois não estiveram na sala de aula nas escolas primárias e secundárias, não têm exemplos concretos. Eu acabo levando vantagem porque tenho exemplos de todos os níveis da escola primária, secundária. Então eu digo que seria mais valia se o docente tivesse uma formação inicial que iria lhe ajudar no momento em que ele estará na sala de aula, e mesmo quando é para supervisionar é difícil. Você ter apenas um bom supervisor baseado em só naquilo que você teve no ensino superior e começou a dar aulas sem ter exemplos concretos, sem ter vivido esses exemplos, sem ter passado no ensino primário. (Professor Mbizy).
A aprendizagem da docência e o desenvolvimento da prática educativa têm sido muito interessante porque principalmente a nossa Faculdade de Educação, não sei se é porque são Ciências Humanas e temos Psicologia, pessoas formadas em Psicologia, Pedagogia, então essa facilidade de harmonizarmos aquilo que nós fazemos e com esse processo de harmonização aprendemos com os outros, de vez em quando nós fazemos os planos analíticos por exemplo, temos espaços de troca, por exemplo, alguém fez um plano e estamos a dar as mesmas cadeiras, eu dou em algumas turmas e outro dá em outras turmas então visitamos o plano um do outro e ver o que o outro de fato está a dar, as vezes até usamos o mesmo plano independentemente estarmos em turmas diferentes mas o plano pode ser o mesmo, só a maneira da abordagem que é diferente, o momento, dependendo das experiências que cada um tem, pode dar alguns elementos como contribuição e estamos tendo de facto alguma interacção, aprendemos em relação a esta situação. Já tivemos uma situação pessoalmente com o professor Rogerio: uma vez, ele estava com uma cadeira e havia uma componente muito específica ligada a Psicologia, e ele, como não é da área de Psicologia, pediu para que eu de fato fosse dar só aquela componente que estava ligada à área de Psicologia, então esta é uma aprendizagem e nós vamos desenvolvendo as nossas competências, capacidades, habilidades com esta interação, dentro da prática educativa. [...] A prática educativa nos tempos atuais é um grande desafio, na medida em que existem vários fatores que estão por detrás para execução com eficácia [da] nossa missão como formadores no Ensino Superior. Nestes meus 12 [e] poucos anos de Docência no Ensino Superior, concretamente na Universidade, tenho deparado com muitas experiências, algumas delas positivas e outras negativas. De salientar que esta nobre missão de ser formador, apesar dos desafios, que são enormes, tem trazido para mim grandes lições e grandes aprendizagens que me ajudam a desenvolver a minha profissão com eficácia. Contudo, tenho exercido um bom papel na sociedade e no desenvolvimento da Profissão. [..] Na minha prática educativa como docente no ensino Superior, tenho deparado com algumas dificuldades e alguns desafios que são superadas usando a minha experiência como docente neste nível, e algumas delas tenho recorrido a algumas bibliografias onde posso consultar algumas técnicas ou práticas científicas que em algum momento surtem efeitos positivos. Na prática educativa é necessário recorrer de algumas teorias educativas uma vez que existem vários autores que retratam algumas formas de como encarar e como resolver algumas dificuldades no processo de ensino e aprendizagem. (Professor Cabeça de Velho).
As interações com colegas do curso promoveram grandes aprendizagens para minha docência, pois, não só discutíamos aspectos ligados à formação como também os da vida profissional. As aprendizagens da docência vivenciadas nos processos formativos continuados oferecidos pela instituição no espaço de actuação profissional, foi na cadeira de Didáctica do Ensino Superior, onde aprendi como docente como elaborar as aulas para o nível superior. As aprendizagens adquiridas e a relação com a prática educativa são várias, e estão estreitamente ligadas com o meu dia a dia como docente (elaboração de Educação e aprendizagem da docências científicos, módulos, poster, entre outros instrumentos de ensino). [...] para actuação na docência do ensino superior, sou da opinião de aprofundar também a componente tecnológica, porque com o mundo/era digital que vivemos há que olhar também essa parte, prova disso foi a eclosão da COVID-19 que obrigou os docentes a trabalharem como nunca haviam experimentado. [...] Eu entendo que o meu percurso acadêmico de aprendizagem neste caso é que na verdade encontra o que Paulo Freire diz “ninguém educa a ninguém, os homens se educam entre si”. Enquanto eu estou a educar ao mesmo tempo eu estou aprendendo. Por que digo isto? Me socorro neste grande pedagogo, a partir do momento que eu estou a ensinar, não estou a ensinar tábulas rasas os estudantes por sua vez trazem consigo algo que a partir do momento que o docente está a ensinar, ele também vai aprendendo. Veja só que durante a docência eu posso implementar uma metodologia e ao mesmo tempo, durante o percurso do meu processo de ensino-aprendizagem, acabo percebendo que a metodologia que eu estou a usar não é adequada para a classe A ou B, consequentemente, eu serei obrigado a ter que adotar uma outra metodologia que possa se adequar à classe Z ou Y, isto eu aprendi alguma coisa, aprendi a mudar a forma de dar aula, aprendi a ser criativo e aprendi também a usar métodos ativos e participativos para a docência.
Então a actividade prática é onde eu estava dizendo a frase de Paulo Freire “ninguém educa a ninguém, os homens se educam entre si”, então eu estou a educar, mas ao mesmo tempo estou aprendendo. É onde eu encontro a minha aprendizagem que vai culminar com a actividade prática, a partir do momento que eu trago algumas reflexões dos alunos, porque ensinar no ensino superior é trazer uma abordagem reflexiva que vai permitir que o docente universitário mantém com os estudantes cria uma aprendizagem colaborativa para os dois, um momento reflexivo sobre uma realidade que está sendo tratada nos conteúdos programáticos, mas que vai conduzir os dois ao debate, digamos, ativo e participativo. (Professor Mambo).

Fonte: dados da pesquisa (2022).

Nas narrativas dos interlocutores Nhunguѐ e Mbizy, percebemos claramente que a aprendizagem da docência dos professores formadores do Curso de Pedagogia da UniPúnguè/Manica tem por base a formação continuada oportunizada no exterior. No caso desses interlocutores, no Brasil e nos Estados Unidos da America (EUA), respectivamente, em cursos de pós-graduação stricto sensu (mestrado profissional e mestrado acadêmico, respectivamente).

Em Moçambique, as instituições de ensino superior )IES) não ofertam a pós-graduação stricto sensu para a formação do quadro docente do próprio nível educacional, por ser prioridade dos entes públicos o processo de estruturação da graduação nas universidades do País a fim de reforçar a formação de profissionais para o ensino básico. Consequentemente, quando os profissionais retornam dos cursos stricto sensu realizados no exterior, reforçam os cursos de graduação, com vistas ao cumprimento do propósito da reforma do ensino superior moçambicano, ocorrida em 2019, tendo a UniPúnguè a missão de formação de técnicos superiores com qualidade, de modo que contribuam de forma criativa para o desenvolvimento econômico e sociocultural sustentável do País (MOÇAMBIQUE, 2019).

A ausência de cursos de pós-graduação stricto sensu no próprio País para a formação de professores formadores do ensino superior traz consequências para a instituição pública quanto à formação de seus quadros, em uma perspectiva imediatista, pois, como ressalta o professor Nhunguѐ, embora sejam valiosos os conteúdos, poucas vezes os usa em sua prática educativa no contexto moçambicano, em razão de não atenderem àquela realidade, que caracterizoi como atrasada em relação aos países em que realizou a pós-graduação stricto sensu.

Por outro lado, podemos inferir que os professores precisam descobrir a necessidade de mudança da prática educativa desenvolvida no contexto em que atuam, despertando para uma “[...] ruptura com o existente diante da possibilidade do novo” (MASETTO, 2018, p. 21).

Quando retornam para a sua instituição, os professores têm como responsabilidade ética contribuir para mudanças nas práticas educativas, mobilizando os conhecimentos produzidos e os seus pares para o trabalho em equipe em direção às novas proposições curriculares. Embora certa resistência seja natural e esperada, não pode sobrepor-se à intencionalidade do profissional disposto a compartilhar suas ideias, o qual se apresenta como âncora para a mudança, conforme propõe o supracitado teórico.

Na acepção de Garcia (1999), é patente a necessidade de criação de espaços para a partilha dos conhecimentos com vistas à transformação da realidade existente. Outro aspecto que pode ser pensado a partir dessa narrativa é a carência do surgimento de lideranças capazes de formentar essa transformação, construindo culturas colaborativas no contexto em que atuam.

Se não há mudanças em função da aprendizagem da docência, não se faculta a construção de pontes entre a teoria e a prática como resultado dos investimentos nos processos formativos, como atesta Shulman (1996).

Quando voltou para a instituição após o período de afastamento para a formação continuada em nível de pós-graduação stricto sensu, Nhunguѐ trouxe consigo conhecimentos científicos que foram mobilizados na formação de outros profissionais nos cursos de graduação, mas restringiu o alcance apenas a dois estudantes - como testemunhou em sua narrativa, que conseguiu “[...] graduar dois estudantes nesta área com os mesmos conhecimentos que eu aprendi no meu mestrado”.

Depreende-se de sua afirmativa que há ausência de um processo reflexivo-crítico: sendo a realidade muito mais rica que a teoria, os conhecimentos servem de fundamento para a ação docente, devendo ser ressignificados de acordo com as realidades existentes nos contentos em que se insere o profissional.

A capacidade de reflexão crítica - que, segundo recomendação de Garcia (1999), deve adotada pelos professores como fonte de aprendizagem da profissão - parece-nos tênue na prática do professor Nhunguѐ, malgrado o professor demonstre consciência da necessidade de voltar a revitalizar o aspecto científico que aprendeu na formação continuada, contribuindo para o desenvolvimento científico e tecnológico da sociedade local, investindo na pesquisa.

Conforme Isaia (2011, p. 1), a aprendizagem da docência como processo articulado à organização da atividade de ensino é gerada pelas necessidades do professor formador e mobilizador de suas ações. Essa compreensão fundamenta-se na concepção de que as ações se desencadeiam por motivos e necessidades que se constituem na relação ativa do indivíduo com o objeto da atividade - nesse caso, a docência no ensino superior.

Diante disso, nessa abordagem, a intencionalidade de resolver necessidades e desafios como característica considerável do processo de aprendizagem da docência não foi demonstrada na narrativa do professor Nhunguѐ, além de uma premissa relevante apontada por Cochran-Smith (2003) quanto à flexibilidade do conhecimento e do profissional para atender a clientelas e contextos diversos, com raciocínios pedagógicos ricos e flexíveis.

No relato do professor Mbizy, ele mostra que a aprendizagem da docência nos cursos de pós-graduação oportunizou trocas de experiência, debates no ensino de língua inglesa com outros profissionais de vários pontos do mundo, nos EUA, ajudando-o sobremaneira em sua prática educativa, nas metodologias e nas técnicas, entre outros aspectos, a fim de facilitar a aprendizagem para o estudante. Isso evidencia a aprendizagem da docência com os pares em comunidades de aprendizagem, um elemento inescusável para o desenvolvimento profissional, de acordo com Cochran-Smith (2003).

Outro dado observado na narrativa desse interlocutor, relativo à aprendizagem da docência para a condição de professor formador, é a experiệncia de ser, por muito tempo, professor do ensino básico para só depois passar à formação de professores. Ele acredita que essa experiência lhe confere vantagem em relação aos professores que apenas completaram a graduação e ingressaram na formação de professores sem passar pelo magistério básico.

Coadunando essa ideia, Shulman (1999) patenteia a relevância das vivências individuais para a aprendizagem da docência, pois a experiência no ensino básico em Moçambique propicia um conhecimento da realidade educacional para a qual formam-se professores.

A partir do exposto pelo interlocutor, constatamos que a aprendizagem da docência em razão da prática educativa acontece no âmbito da troca de experiências, de debates em língua inglesa com os colegas e no uso das metodologias e técnicas de ensino.

Nos estudos de Isaias (2011), compreendemos que não é possível uma generalização sobre a aprendizagem docente, mas o entendimento da existência de formas diversas de expressão, a partir do contexto e das experiências de cada docente, de suas trajetórias de formação e das atividades formativas para a qual se direciona. À vista disso, a constituição do conhecimento pedagógico profissional é orientada pela própria prática educativa, porquanto implica a capacidade do professor para transformar e adequar o conhecimento científico ao ensino.

Na concepção de Morosini (2001), a docência universitária exige a integração de saberes complementares e habilidades. Portanto, o desenvolvimento profissional envolve a formação inicial e continuada, articulada a um processo de valorização profissional e identitária dos professores.

Sendo assim, a identidade do professor formador é também profissional, ou seja, a aprendizagem da docência constitui um campo específico de intervenção profissional na prática educativa e social. A partir de tal característica, tendo como referência os dados analisados, recorremos a Isaia (2006) para compreender que na aprendizagem da docência ocorre o processo de apropriação e produção de conhecimentos e fazeres específicos do magistério, vinculados à realidade concreta da atividade docente em seus diversos campos de atuação e respectivos domínios, como verificamos nas narrativas dos interlocutores.

Os professores Cabeça de Velho e Mambo apresentam certa concordância em suas falas quanto à aprendizagem da docência em razão da prática educativa, ao narrarem que têm sido interessantes a aprendizagem da docência e o desenvolvimento da prática educativa na Faculdade de Educação nas Ciências Humanas, espaço em que há trocas importantes entre os profissionais da Psicologia e da Pedagogia, por meio do processo de harmonização do grupo de disciplinas; pelas interações com colegas de curso, as quais promovem grandes aprendizagens; pela experiência e de troca dos planos de aula de cada um e pelas aprendizagens vivenciadas nos processos formativos continuados, oferecidos pela instituição na cadeira de Didática. As narrativas desses interlocutores reforçam a ideia de aprendizagem da docência nos espaços colaborativos institucionais, construindo culturas colaborativas, como proposto por Garcia (1999).

Compreendemos, ainda, pelas narrativas desses professores, que no processo de aprendizagem da docência há o desenvolvimento de competências, capacidades e habilidades necessárias à prática educativa - assumido como um desafio por Mambo -, como a produção científica e de materiais de ensino, por exemplo.

Continuando, o professor Mambo trata da aprendizagem para o uso das tecnologias digitais, assim como de métodos ativos e participativos em sala de aula. Essa exigência da prática educativa quanto ao uso das tecnologias digitais fez-se presente durante a pandemia de Covid-19 em todo o mundo, quando foram suspensas as aulas presenciais e a mediação pedagógica ocorreu com o uso desses recursos e plataformas.

Para Masetto (2018, p. 21), esse start no uso de tecnologias digitais pode concorrer para “[...] um novo modo de tratar o conhecimento e pode reformular na universidade os princípios epistemológicos [...]”. Por sinal, a relação com o conhecimento pode ser alterada a partir do acesso e uso das tecnologias digitais por professores e por estudantes.

Corroborando Libâneo (2004) como teórico do campo da didática e da formação de professores, aproxima-se dessa compreensão da aprendizagem da docência a proposição de que os professores devem aprender a profissão na perspectiva de promover a aprendizagem dos estudantes, a qual constitui o principal objetivo docente; nessa perspectiva, é fato que os professores formadores devem saber utilizar as tecnologias para ensinarem os seus alunos a fazer uso delas no processo de aprendizagem.

A partir dessa ideia de Libâneo (2004), o professor Cabeça de Velho sinaliza que no desenvolvimento da prática educativa como docente no ensino superior tem se deparado com algumas dificuldades e alguns desafios que foram superados com os saberes da experiência ou recorrendo a uma base teórica capaz de fundamentar a tomada de decisão, almejando à solução dos problemas encontrados no processo ensino-aprendizagem.

Apresentando outras formas de aprendizagem da docência, o professor Mambo expõe que aprende enquanto desenvolve a sua prática no dia a dia como professor formador, nas trocas com os estudantes, em processo de formação inicial, quando são oportunizados momentos reflexivos nos diálogos construídos ao longo da disciplina.

Essa narrativa vai ao encontro do posicionamento de Freire (2005), quando propõe uma forte valorização do diálogo enquanto instrumento meritório na constituição dos sujeitos, como um fenômeno humano capaz de mobilizar o refletir sobre a ação. Para compreender essa prática educativa dialógica, acrescenta que

[...] o diálogo é uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizados, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas [...]. (FREIRE, 2005, p. 91).

Em síntese, o diálogo possibilita a produção de saberes e, portanto, a aprendizagem da docência em razão da prática educativa, com o intuito de profissionalizar e desenvolver o professor formador nos contextos em que se insere.

Considerações finais

Para a aprendizagem da docência no processo de desenvolvimento profissional dos professores formadores, a formação continuada nos cursos de pós-graduação stricto sensu apresenta-se como elemento presente nas narrativas dos docentes Curso de Pedagogia da UniPúnguè/Manica, em Moçambique.

Porém, não é o único, pois nas narrativas os interlocutores da pesquisa evidenciaram que a aprendizagem da docência em razão da prática educativa ocorre com base na troca de experiências e de conhecimentos entre os pares em comunidades de aprendizagem. Outro aspecto considerável para o professor formador do ensino superior, no tocante à aprendizagem da docência, é a experiência no ensino básico, possibilitando ao profissional um conhecimento da realidade para a qual forma professores.

O próprio contexto em que se insere, aliado às experiências individuais e coletivas dos profissionais, são aspectos meritórios para a aprendizagem da docência que corrobora a produção de saberes experienciais, como a apropriação e produção do conhecimento pedagógico assentado nas trocas entre profissionais de áreas afins da Pedagogia - por exemplo, nos espaços colaborativos institucionais. Sendo assim, atina-se que a construção de culturas colaborativas fortalece a aprendizagem da docência nos contextos institucionais.

Para a aprendizagem da docência, concebemos a necessidade de desenvolvimento de competências e habilidades necessárias à prática educativa no ensino superior no interior das próprias instituições, com base nos cursos ofertados. Um exemplo é o desenvolvimento de competências e habilidades para o uso das tecnologias digitais no processo formativo acadêmico no período da pandemia, em face do isolamento social. Ademais, para o atendimento da prática educativa, há a apropriação do conhecimento para uso das metodologias ativas, atendendo ao perfil profissional a ser formado para o contexto contemporâneo.

No dia a dia de sala de aula, manifesta-se a aprendizagem da docência nas trocas com os estudantes, nos espaços de reflexão crítica, nos diálogos construídos, ensejando o desenvolvimento profissional do professor formador. A própria complexidade do campo e do fenômeno educacional impõe ao professor formador do ensino superior a necessidade de uma formação ampla, que vai sendo produzida na formação continuada, mas também nas interações diversas e no enfrentamento aos desafios que surgem no desenvolvimento da prática educativa em Moçambique, sendo oportuno destacar a ausência de investimentos na pesquisa, de acordo com as narrativas analisadas.

1Esta pesquisa, em acordo com a Resolução nº 510, de 7 de abril de 2016, que dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, foi avaliada e aprovada pelo sistema CEP/CONEP, CAAE: 54741621.2.0000.5214, sob o título: Ensino superior: desenvolvimento profissional e aprendizagem da docência de professores formadores do Curso de Pedagogia na UP- Moçambique /Manica, para uma mudança reflexiva na prática educativa.

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Recebido: 13 de Março de 2023; Aceito: 06 de Julho de 2023

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