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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p266-280 

Corpos, gêneros e sexualidades

NAS BRECHAS DAS NORMAS SE TECEM RESISTÊNCIAS: EXPERIÊNCIAS NÃOHETERONORMATIVAS NA ESCOLA

IN THE BREACHES OF THE NORMS, RESISTANCES ARE WOVEN: NON-HETERONORMATIVE EXPERIENCES AT SCHOOL

EN LAS LAGUNAS DE LAS NORMAS SE TEJEN RESISTENCIAS: EXPERIENCIAS NO HETERONORMATIVAS EN LA ESCUELA

Nerize Laurentino Ramos1  *
http://orcid.org/0000-0001-5010-5335

Emannuely Maria da Silva Santos2  **
http://orcid.org/0009-0008-5945-8792

1Universidade Estadual da Paraíba

2Universidade Federal de Campina Grande


RESUMO

A pesquisa ora apresentada tem como reflexão as formas de resistências elaboradas por estudantes não-heteronormativos/as para superar as experiências de abjeção causadas pela LGBTQIAPfobia, em uma escola pública e urbana localizada no município de Queimadas (PB). No intento de construir os resultados da investigação, utilizamos a combinação de metodologias de natureza qualitativa, sendo essas: revisão de literatura junto a entrevistas semiestruturadas com dezesseis estudantes do segundo e terceiro ano médio. Argumentamos que na escola a norma sexual é uma tendência e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade de ser completamente obedecida por todos/as, e que, o controle, a disciplina e a vigilância não são as únicas faces da relação com o poder para os/as estudantes que não correspondem a heteronormatividade. Nesse terreno de tensões, dois pólos antagônicos estão no embate conflituosamente: o desejo pelo controle e o desejo pelo enfrentamento.

Palavras-chave: Heteronormatividade; Poder; Enfrentamento; Resistência.

ABSTRACT

The research presented here reflects on the forms of resistance constructed by non-heteronormative students to overcome experiences of abjection because of LGBTQIAPphobia in a public and urban school located in the municipality of Queimadas, state of Paraíba. To construct the results of the research, we have used a combination of qualitative methodologies, these being: bibliographic review along with semi-structured interviews with sixteen students from the second and third year of high school. We argue that at school the sexual norm is a tendency and, at the same time, being completely impossible to be obeyed by all. Discipline and vigilance are not the only facets of the relationship between power and students who do not correspond to heteronormativity. In this terrain of tensions, two antagonistic poles are in the conflicting clash: the desire for control and the desire for confrontation.

Keywords: Heteronormativity; Power; Confrontation; Resistance.

RESUMEN

La investigación presentada tiene como reflexión las formas de resistencias elaboradas por estudiantes no heteronormativos para superar las experiencias de abyección causadas por LGBTQIAPfobia, en una escuela pública y urbana ubicada en el municipio de Queimadas (PB). Con el intento de construir los resultados de la investigación, utilizamos la combinación de metodologías de naturaleza cualitativa, siendo así: revisión de literatura conjuntamente a entrevistas semiestructuradas con dieciséis estudiantes del segundo y tercer año medio. Sustenemos que en la escuela la norma sexual es una tendencia y, al mismo tiempo, una imposibilidad de ser completamente obedecida por todos/as, y que, el control, la disciplina y la vigilancia no son las únicas caras de la relación con el poder para los/as estudiantes que no corresponden a heteronormatividad. En ese terreno de tensiones, dos polos antagónicos están en conflicto: el deseo por el control y el deseo por el enfrentamiento.

Palabras clave: Heteronormatividad; Poder; Enfrentamiento; Resistencia.

Introdução

A escola parece ser, depois da família, a instituição que mais se dispõe do tempo da infância e adolescência dos indivíduos, enquanto núcleo social de relações secundárias. De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (2017), a educação básica é obrigatória a partir dos quatro anos até os dezessete anos de idade. Desde a educação infantil, ensino fundamental e ensino médio se somam aproximadamente treze anos destinados ao completo processo de escolarização. É, pois, nessa instituição que desde muito cedo, por um tempo variável e submetidos/as a variadas tecnologias de poder é que nós construímos relações de socialização, conhecemos códigos, valores socioculturais, nos confrontamos com o estranho, o diferente, o “outro”.

Esse encontro com a diferença pode ser conflituoso porque o “outro” é de outro gênero, de outra raça, de outra sexualidade. Ao desconstruir os pressupostos de neutralidade sob os quais se assentam o espaço escolar, o sociólogo Richard Miskolci (2012) aponta que a educação e a escola, em particular, é um eficiente mecanismo de socialização que agenciando poder e saber fabrica um contingente de sujeitos normalizados por intermédio do alcance do que há de mais íntimo da subjetividade dos/as jovens escolares. No entanto, a norma é uma tendência e, simultaneamente, uma impossibilidade de ser completamente obedecida por todos/as.

Uma análise atentamente acurada é capaz de observar que essa instituição atua como uma espécie de continuum das complexas bases que organizam a vida social contemporânea, dentre essas, destacamos: o processo de diferenciação (BRAH, 2006). No reino das normas, essa atribuição sempre é realizada a partir de lugares sociais que ocupamos, no ato da demarcação de fronteiras entre aqueles/as que representam a referência e aqueles/as que ficam fora dela, alocados/as na margem social. Mas, a questão não é a diferença em si, senão como é produzida, por quem e sobre quem recai, porquanto essas operações elegem arbitrariamente quais sujeitos são referências para um “outro” assujeitado (COSTA, 2011).

Assim como acontece em outras ambiências de sociabilidades, na escola, aqueles/as que são marcados pela diferença convivem como os olhares de reprovação, constrangimento, afastamento pensado, falas de rejeição até ações que causam sofrimento físicos. Essa parece ser a maior razão para alguns/algumas estudantes viverem sua identidade sexual em completo segredo, calando os indicativos que se possa suspeitar. Essa experiência da “clandestinidade”, do escárnio, das exclusões, de agressões físicas são características da condição de abjeção, que nada mais é que a punição para esse “outro” que ousa romper com a norma, especialmente, com a heteronormatividade (MISKOLCI, 2012).

Isso significa que o processo de normalização da heterossexualidade na escola só é possível pelo ordenamento de diferenças, classificações e processos de diferenciação imbricadas nas relações de poder. Aqui, compreendida a partir da perspectiva do filósofo Michel Foucault (1979). Os poderes microfísicos ultrapassam as determinações repressivas. São, senão, grandes potências capazes de produzir saberes, subjetividades, realidades e discursos.

Há algum tempo que pesquisadores/as se reúnem para problematizar e contestar o fenômeno sociocultural da discriminação às expressões de sexualidades não-heteronormativas nas escolas brasileiras. Nos últimos vinte anos, vislumbramos o reconhecimento e implementação de políticas educacionais para a introdução de debates temáticos nas salas de aula sobre relações de gênero e sexualidade. Esses dispositivos legais representaram possibilidades abertas para construção de uma escola sem LGBTQIAPfobia, na medida em que ficou explícito que a instituição escolar ante essas questões nada tem de neutra, senão, a contribuição para o processo de naturalização da heterossexualidade como modelo político.

No entanto, esses avanços, em termos de documentos oficiais que norteiam a educação, parecem estar sendo contidos por uma onda neoconservadora que desfaz o que a muito custo foi conquistado por movimentos feministas e o movimento LGBTQIAP+. Esse desmonte tem efeitos adversos para aqueles/as estudantes que não reiteram a norma da heterossexualidade. Por vezes, esses/as são convocados ao abandono escolar ou a conformação do cotidiano hostil, na condição de haver ou não interferências da comunidade escolar.

A Pesquisa Nacional sobre Estudantes LGBT e o Ambiente Escolar, de 2016, em parceria com a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Grupo Dignidade e o Centro Paranaense da Cidadania, o Instituto Brasileiro de Diversidade Sexual e o Setor de Educação da Universidade Federal do Paraná, indicam que 73% dos/das estudantes já foram agredidos/as verbalmente em razão de sua orientação sexual, 68% foram agredidos/as verbalmente na escola por sua identidade de gênero, 27% foram agredidos/ as fisicamente por sua orientação sexual, 25% foram agredidos/as fisicamente por sua identidade de gênero e 56% foram dos/das estudantes LGBT foram assediados/as sexualmente.

O esforço em problematizar essas dimensões chanceladas como naturais é necessário na medida em que o problema da abjeção social relacionado aos marcadores de gênero e sexualidade estão para além da instituição escolar. A série heterogênea de dispositivos que circulam compulsoriamente pela sociedade acerca do corpo, no interior de circunstâncias históricas particulares, atuam como “um projeto social, uma engenharia de produção de corpos normais, que extrapolam os muros da escola, mas encontra nesse espaço um terreno fértil de disseminação” (BENTO, 2011, p.555-556).

Podemos constatar essa preocupação mesmo nos embates políticos durante as elaborações do Plano Nacional da Educação (PNE) e o Plano Municipal de Educação (PME), em 2014, onde se deflagram indignações coletivas em torno dos conteúdos sobre igualdade de gênero e diversidade sexual. Anterior a isso, sob a rubrica do movimento “Escola sem partido” iniciado em 2004, em prol da interdição desse debate temático em sala de aula, se instaurou o início de um grande “pânico moral”, como denominou Gayle Rubin (2012).

Mesmo havendo a dimensão da LGBTIQIAPfobia, de preconceitos diversos e retaliações na escola, são muitos/as os/as que vivem as experiências da sexualidade e gênero dissidentes de formas explícitas e autodeclaradas. O controle, a disciplina e a vigilância não são as únicas faces da relação com o poder para os/as estudantes que não correspondem a heteronormatividade.

Considerando isso, buscamos analisar em uma escola urbana e pública de ensino fundamental e médio localizada no município de Queimadas (PB) a noção de poder expandida. Quais são as formas de resistências que os/ as jovens escolares não-heteronormativos/ as encenam para superar as experiências de abjeção causadas pela LGBTQIAPfobia? Nossa hipótese é a de que dois pólos antagônicos estejam no embate conflituosamente nesse contexto: o desejo pelo controle e o desejo pelo enfrentamento.

Para alcançar os resultados da pesquisa, recorremos ao uso da metodologia qualitativa para mais ampla visualização do problema a ser investigado. Combinamos as seguintes técnicas: o uso de entrevistas semiestruturadas com os/as estudantes realizadas na Plataforma Gsuite/Google Meet, no aplicativo de mensagens WhatsApp, uma coleta de dados online por intermédio do Google Forms e a revisão da literatura específica sobre o tema. O acontecimento dessas entrevistas de maneira digital se deu, especialmente, pelos pedidos dos/as estudantes na justificativa de que a pesquisa trata de questões demasiadamente íntimas.

Os dados foram transcritos e analisados na historicidade que os caracteriza, atribuindo à própria linguagem um marcador histórico-social, que constitui nossas experiências, nossa realidade, nosso mundo de significados. Partindo das orientações de Michel Foucault (1996), não ambicionamos buscar nesse universo do discurso uma essência, uma origem, um não-dito; nem tampouco considerar que as reflexões aqui alçadas podem ser concluídas.

Desenvolvemos um roteiro de entrevista para conduzir nosso estudo compondo vinte e três perguntas, que conta com questões iniciais elementares acerca da idade, naturalidade, raça/etnia, religião, identidade gênero e sexual, pois entendemos que as composições dessas distintas identidades particularizam as experiências e narrativas dos/as estudantes. Ao todo, foram entrevistados/as dezesseis alunos/ as do segundo e terceiro ano do ensino médio. A faixa etária destes/as compreendem dos dezesseis aos dezoito anos. Todas as entrevistas resguardam as identidades dos/as informantes para que suas intimidades não sejam expostas, por isso, todos os nomes que aqui aparecem atribuídos a uma fala são fictícios.

A proposta dessa pesquisa evidencia os níveis diferenciados de percepções e sensibilidades, pois a partir de um lugar particular de poder e inserção social, os/as estudantes marcados pela diferença falam com autoridade sobre suas experiências escolares localizadas em um município que possui pouco mais de 40 mil habitantes, distribuídos numa área de 403 km, com densidade demográfica de 118,33 por km. Da população total, 18.561 mil habitantes moram em domicílios urbanos e 15.687 mil residem na zona rural. É, nesse sentido, a maior cidade do Estado da Paraíba em número de moradores rurais, segundo os dados do IBGE (2022). A taxa de escolaridade de 6 a 14 anos de idade representa, em termos percentuais, 96,6%. No ensino fundamental se registra 6.839 matrículas distribuídas em 41 escolas. No ensino médio, 1.931 matrículas para 4 escolas.

O esforço de realizar o recorte socioespacial do município em questão exige evidenciar que há pouco mais de dez anos, a cidade foi marcada pelo mais violento crime, conhecido como a “barbárie de Queimadas”, um caso planejado de estupro coletivo seguido de homicídio de Izabella Pajuçara Frazão Monteiro, professora da escola pesquisada nesse Corpos, gêneros e sexualidades, e a recepcionista Michelle Domingues da Silva. Com máscaras de carnaval, seis homens invadiram uma festa de aniversário, anunciaram um assalto e renderam cinco mulheres com cordas e lacres do tipo “enforca-gato”, na madrugada do dia 12 de fevereiro de 2012. Três das vítimas conseguiram escapar, principalmente, por não terem reconhecido o rosto dos algozes. Nesse pequeno município do interior da Paraíba, é comum que os habitantes estabeleçam algum laço de convivência. No entanto, surpreendeu a um grande número de pessoas que os executores e envolvidos nesse crime tenham sido amigos das vítimas e de suas famílias.

A crueldade nas dobras do crime apontou que os estupros representaram para o mentor da ação um presente de aniversário pensado para um dos seus irmãos. Na apuração dos fatos, sete homens foram presos e três adolescentes apreendidos. Mas no dia 17 de novembro de 2022, a memória coletiva queimadense volta a ser inflamada quando um dos condenados fugiu pela porta lateral da Penitenciária de Segurança Máxima Doutor Romeu Gonçalves de Abrantes, na cidade de João Pessoa (PB), e permanece foragido. Em 11 de maio de 2023, um episódio do programa de TV aberta apresentado por Pedro Bial, Linha Direta, relembrou o caso. O fato é que a perversidade das ações alcançou repercussão nacional, se tornando um precedente caso de violência de gênero na cidade de Queimadas (PB), e merece ser uma importante fonte de dados para contextualizar essa pesquisa considerando que a base do acontecimento está no imaginário coletivo misógino e sexista.

As discussões aqui realizadas possibilitam adensar o debate das políticas educacionais para as juventudes do Estado da Paraíba, tendo em vista que as investidas da onda neoconservadora vêm cerceando as escolas brasileiras e se intensificam cada vez mais em episódios de crise sociocultural e política, instaurando um verdadeiro pânico moral em torno do debate sobre igualdade de gênero e diversidade sexual. É importante destacar que no ano de 2018, o então prefeito do município de Queimadas, José Carlos de Sousa Rêgo, no uso das suas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição Federal e Lei Orgânica do Município, aprovou e sancionou a Lei 547/2018 que: “Proíbe as atividades pedagógicas que visem a reprodução de conceito de ideologia de gênero na grade de ensino da rede municipal e da rede privada do Município de Queimadas-Paraíba, e dá outras providências”. Revogada pela lei nº 551/2018.

O corpo em cena

Os tentáculos da modernidade alcançaram o corpo, tornando essa dimensão alvo do governo da vida, de disputas públicas e políticas que ambicionam a força da verdade. Nesse terreno de tensões, a sexualidade é uma das searas mais polêmicas, sobretudo, porque envolve outras interseções políticas e culturais, como gênero, classe, raça, etnia e geração.

Ambivalências alcançam e consubstanciam o debate podendo ser ilustrado como: os grupos sociais neoconservadores1 que evocam a ordem moralista que marca com o peso da diferença os sujeitos não-heteronormativos versus os grupos sociais que interpelam, desestabilizam as fronteiras sexuais forjadas como intransponíveis, expressando inconformidades a ordem sexual do presente: a heteronormatividade, cujo regime supõe que não cabe o questionamento da superioridade da heterossexualidade, senão, que o indivíduo cumpra as expectativas sociais adequadas para o seu sexo e gênero (MISKOLCI, 2012).

Nesses termos, a sexualidade “ideal” perpassa pelo constructo sociocultural do sistema de gênero, elemento fulcral para definição de masculinidade e feminilidade possuindo como parâmetro a atração erótica e sexual pelo sexo oposto. Disso resulta, a interdependência entre gênero e sexualidade como dimensões inseparáveis. Para a socióloga Ana Maria Brandão (2008), decorre desse imaginário a condenação social da lésbica máscula e do gay afeminado podendo ser identificados/as pelos indícios de uma orientação homoerótica.

No entanto, esse potente investimento discursivo sobre as sexualidades não se localiza apenas na contemporaneidade. Na medida em que a sociedade exerce sua preocupação aguda com o governo da vida aprimorando suas técnicas de controle sobre a população - “pelo bem da uniformidade moral; da prosperidade econômica; da segurança nacional ou da higiene e da saúde” (WEEKS, 2018, p. 65), vê-se em torno do sexo “uma verdadeira explosão discursiva” (FOUCAULT, 2020, p.19) constituindo o que o filósofo chamou de “dispositivo da sexualidade”, acionado e incorporado aos discursos e saberes médicos, jurídicos, educacionais, entre outros obstinados a elaborar verdades sobre o sexo.

Passado o tempo em que os códigos de decência, obscenidades eram menos rigorosos, se comparado aos decoros das atitudes com relação ao sexo nos séculos XVIII e XIX, adentramos em um regime vitoriano2, o qual a sexualidade é, segundo Foucault (2020), cuidadosamente encerrada. Na condição do princípio do segredo e da garantia à reprodução, o sexo é confiscado em atos e palavras. Mas, acerca da sexualidade se fala no mais extenso detalhamento, em uma linguagem depurada.

[...] o Ocidente não é realmente um negador da sexualidade - ele não a exclui -, mas sim que ele a introduz, ele organiza, a partir dela, todo um dispositivo complexo no qual se trata da constituição de individualidade, da subjetividade, em suma, a maneira pela qual nos comportamos, tomamos consciência de nós mesmos (FOUCAULT, 2004, p.76).

Ao pensar a sexualidade em matéria discursiva inventada historicamente, Foucault amplia a tese bem aceita da hipótese repressiva, em que se pese o pudor moderno em proibir e fazer calar o sexo no plano real e no nível da linguagem. Argumentando que há três séculos nós não o condenamos à obscuridade, mas, sim, a um regime de verdades consagradas para valorizá-lo em diferentes instituições. Não mais recorrendo apenas às elaborações estritamente morais, mas, também, pelas vias de discursos racionais.

Novos/as especialistas surgem para dar conta cientificamente desse campo definindo quem está autorizado a falar sobre o sexo, em que contextos e em quais relações sociais. Na pretensa vontade de saber “organizaram-se controles pedagógicos e tratamentos médicos em torno das mínimas fantasias” (FOUCAULT, 2020, p.40). Ao lado de algumas instituições, as quais o filósofo chama de instituição de sequestro, Foucault cita a escola como lugar “capaz de capturar nossos corpos por tempos variáveis e submetê-los a variadas tecnologias de poder” (VEIGA-NETO, 2007, p.76).

O caso é que desde a multiplicidade de discursos sobre o ideal das experiências sexuais do corpo, desaparece a forma franca de se tratar sobre sexualidade entre educadores/ as e alunos/as. São implantadas mais do que ordenações de interdições, a escola coloca em funcionamento um complexo arranjo disciplinar. Se aguçam as práticas de descrições e de tato para que nesse espaço não seja cometido o “pecado universal da juventude”. De acordo com Michel Bozon (2002, p.27) decorre que:

A entrada dos jovens na sexualidade se faz através do olhar e do controle dos parentes e dos mais velhos, que estabelecem regras segundo as quais os jovens - homens e mulheres - têm acesso a essa atividade estatutária da idade adulta. Em todas as culturas, a iniciação sexual é uma etapa marcante para a construção social do masculino e do feminino (BOZON, 2002, p.27).

Convém considerar que dentre as várias tecnologias de poder que constitui o dispositivo da sexualidade, o poder disciplinar é uma das formas de exercício de controle sob o corpo, nos menores detalhes do seu funcionamento e capacidades. Sendo essa materialidade alvo do poder com efeitos duradouros e profundos, cujas práticas disciplinares são possíveis por uma espécie de vigilância constante. Em resumo, o “[...] poder disciplinar ‘atua’ ao nível do corpo e dos saberes, do que resultam formas particulares tanto de estar no mundo - no eixo corporal -, quanto de cada um conhecer o mundo e nele se situar - no eixo dos saberes” (VEIGA-NETO, 2007, p.71). No espaço escolar, essas técnicas são tão sutis que por vezes são tomadas como naturais. A composição da distribuição do espaço e do tempo revelam que os sentidos dos/as estudantes devem ser educados para que se aprendam os sinais, desde um olhar hierárquico até recompensas ou medidas corretivas.

A escola torna-se um aparelho de aprender onde cada aluno, cada nível e cada momento,se estão combinados como deve ser, são permanentemente utilizados no processo geral de ensino. [...] O treinamento dos escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras, nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais - sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre, ou ainda aquele pequeno aparelho de maneira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam; era chamado por excelência o ‘sinal’ e devia significar em sua brevidade maquinal ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência. [...] O aluno deverá aprender o código dos sinais e atender automaticamente a cada um deles (FOUCAULT, 1993, p.149-150).

Observamos que dentre as diversas vigilâncias em torno das sexualidades na escola, o arsenal de atenção e advertência são ainda mais inexoráveis sobre aqueles/as estudantes que não correspondem às normas e expectativas sociais de gênero, os/as que inscrevem na sua performance expressões incoerentes e/ou ambíguas. Na medida em que acontece o embaralhamento de gênero e sexualidade, surgem incompreensões acerca dos/as que vivem na fronteira dessas dimensões porque são confusos ao regime de normalidade. “O corpo é interpretado como um local de resistência e contestação contra todas as formas de normalização” (ABOIM; VASCONCELOS, 2022, p.9).

Os gestos, a ação corporal, o movimento, a fala, a persistência e a exposição à possível violência entra para o campo visual e audível das reivindicações que busca minimizar e contestar as impossibilidades de viver abertamente a diferença. A principal maneira de enfrentamento para esses/as é uma espécie de “rede de mãos” que buscam tecer reivindicações coletivas e corporificadas para que suas existências escolares sejam tratadas igualmente e que sejam igualmente vivíveis.

Uma análise das formas de resistências

Em toda a história da instituição escolar se pode observar que, relativamente, o que há de mais comum, em termos espaciais e temporais, é a presença de tramas complexas de poder contextuais convertidas no espaço, no currículo e no cotidiano da escola. Entretanto, é um equívoco supor que os/as envolvidos/as nessa rede de ensino-aprendizagem, especialmente os/as estudantes, estejam, pois, submetidos/ as às inexoráveis tecnologias de poder postas em ação. Nas brechas desse domínio, se tecem resistências, possibilidades de atitudes criadoras, transformadoras, que transgridem as disciplinas.

Desde o início, de acordo com a analítica de Michel Foucault (1979), tratamos o poder em vias de positividade, de produção, antes de ser repressivo. Nesse momento, recorreremos novamente a essa compreensão, mas, agora, expandida: o poder à guisa da resistência. Essa dimensão, na perspectiva foucaultiana, coexiste com o poder e deve ser tão produtiva e inventiva quanto ele é. “Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 1979, p.241). Isso acontece porque “[...] a ‘agonística’ entre as relações de poder e a intransitividade da liberdade são uma tarefa política incessante; ela é, propriamente, a tarefa política inerente a toda existência social” (BRANCO, 2008, p. 205-206).

O que gostaríamos de explicitar e desdobrar é que na escola, o controle, a disciplina e a vigilância não são as únicas faces da relação com o poder para os/as estudantes que expressam sexualidades dissidentes e/ou não correspondem a heteronormatividade. Dois pólos antagônicos estão no embate conflituosamente: o desejo pelo controle e o desejo pelo enfrentamento. Se depois de ser submetido/a ao enxovalho, como se reconhecer no que é rejeitado? Conforme o conjunto de narrativas que perfazem essa pesquisa, as principais formas de negociação e resistências são expressas através do: acesso a busca de conhecimentos e informações em outras vias, além dos muros da escola, sobre identidades de gênero e diversidade sexual, e a construção de sociabilidades dissidentes.

Ao interpelarmos quais as possibilidades que os/as estudantes apontam para o enfrentamento da LGBTQIAPfobia na escola, oito destes/as apresentam a promoção de ações pedagógicas, atividades e debates acerca do respeito às diferenças e a desnaturalização da heteronormatividade. Essas narrativas parecem se intercambiar para uma só conclusão: a instituição aparenta ter dificuldades para tratar sobre as diversas expressões das sexualidades sob a argumentação dessas questões serem demasiadamente íntimas e que não competem ao processo de escolarização. Entretanto, sabemos que as omissões em torno da LGBTIQIAPfobia representam uma problemática forma de se educar e capturar a subjetivação dos/as jovens de idade escolar. O silêncio ante a uma situação de discriminação é uma afirmação de valores concordantes.

De acordo com as impressões dos/das estudantes, nessa escola o “reino” da produção de conhecimento acerca das sexualidades é colonizado pela perspectiva do sexo seguro relativos à saúde, prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e os problemas da gravidez na adolescência. O que evidentemente não fazemos objeção crítica por se tratar de um problema de ordem sociocultural, no entanto, é questionável que os recônditos da temática sejam dados por encerrados pelas epistemologias da biologia e saúde. É preciso:

[...] superar de vez, isso é fundamental, qualquer visão da sexualidade apenas como algo biológico como, um tópico para lidar com DSTs, gravidez na adolescência, todo esse discurso é normalizante. [...] Precisamos repensar nosso modelo de recusa, mas também de aceitação (Miskolci (2012, p.57).

Sabemos que na puberdade e adolescência, as alterações hormonais implicam em maiores estados de excitação, ansiedade, curiosidade e experimentações que ocupam grande centralidade na vida dos/as estudantes porque essa dimensão está presente nas músicas, nos gestos, nas entrelinhas, nos não-ditos, nas piadas, nos desenhos de órgãos genitais nas carteiras e banheiros da escola. Então, por que não abordar de maneira séria e comprometida as diferentes formas de experimentar o corpo e os desejos? Por que não esmiuçar as razões pelas quais aprendemos a rejeitar e hostilizar as sexualidades não normativas?

Acho que nunca ou quase nada estudei sobre o mundo LGBTQIA +. Talvez seja um tipo de medo ou sei lá. Tipo aquilo lá do pânico sobre educação sexual nas salas de aulas. Nunca tive aula sobre sexualidade fora da norma, ainda mais que isso deveria ter no projeto de vida, como autoconhecimento. Eu acho que seria legal se a escola desse mais atenção a isso. Não só palestras, sabe? Não resolve muito. Massa seria se desenvolvessem ações para repensar as coisas, esses temas. O que muitas vezes é discutido em sala de aula é aquilo de sempre, prevenção, vírus do HIV e gravidez na adolescência. (FELIPE, 17 anos, 3º ano médio, homossexual).

A respeito disso, a fala de Felipe parece encontrar complementaridade no argumento de outra estudante:

O que eu espero mais da escola, assim que eu tiver oportunidade vou expressar isso a professores e direção. Vou dizer que espero deles palestras incentivando o pensamento que ser lésbica é normal, ser gay é normal, ser bi é normal. Isso causa muita confusão. Merecemos respeito! Não só precisamos saber sobre contracepção e ISTs. Isso é importante e tal, mas não se resume a isso, sabe? Aos poucos, vou conquistando meu lugar na escola. Foi ótimo me expressar porque a gente não tem local de fala na escola pra falar o que eu acho sobre essas relações. Eu sempre procuro saber fora mesmo, na internet ou com um colega sobre essas questões. (BRUNA, 16 anos, 3º ano médio, lésbica).

São muitas as razões pelas quais os temas mais “polêmicos” das sexualidades são mantidos fora do alcance das reflexões. Além do que já tratamos, em termos da prerrogativa do regime sexual presente, observamos que desdobrar essas questões sexuais na sala de aula ainda faz estudantes e professores/as ruborizar, a sentir vergonha e/ou reagir com gozações. Na maioria das vezes professores/as não têm acesso à formação específica para que saibam administrar suas próprias dificuldades diante do tema e da construção de pontes de confiança entre os/as estudantes. Acontece que:

Num contexto desses, as discussões morrem, todo mundo começa a olhar para o relógio e os/ as estudantes saem da aula sem ter obtido qualquer compreensão sobre suas preocupações, sobre seus desejos, sobre relações sexuais. [...] as formas como isso é feito impede qualquer compreensão genuína do alcance e das possibilidades da sexualidade humana (BRITZMAN, 2018, 108).

Podemos observar que há dois distintivos modos de tratar das questões da sexualidade, uma dimensão autorizada a discutir apenas em termos de prevenção e saúde, e outra em que o diálogo franco sobre diferentes formas de acessar os prazeres e desejos, é contida porque está presa ao que é moralmente repreensível. Fica evidente que a discussão está organizada apenas para cumprir formas avaliativas, e nesse contexto, os/as estudantes relatam que não se sentem dispostos a explorar suas curiosidades. O que nos parece ser problemático considerando que em diversos momentos dessa pesquisa, diferentes identidades sexuais aparecem e confirmam que no terreno da sexualidade nada é inequívoco e que existem múltiplas formas de significar os atos afetivos e eróticos para pessoas diferentes.

Pra mim, é um problema porque vê eu sou um cara gay, só consigo me envolver fisicamente com homens, isso de beijar e tudo mais. Só que assim com mulheres sinto uma coisa afetiva. Me atraio muito por pessoas que eu tenho admiração, uma coisa bem sapiosexual (risos). Aí assim, é complicado não poder falar abertamente dessas coisas na escola porque eles tudo falam, sem dar espaço. Claro que assim todo mundo tem vergonha, né? Só que assim quando é todo mundo falando pode ser que todos se sentissem à vontade. A gente não pode conversar sobre isso em casa, só com nossos amigos que também tem suas coisas. Ainda bem que temos internet pra tá ligado de alguma coisa, sabe? (TADEU, 17 anos, 3º ano médio, homossexual).

Na realização de uma espécie de autoetnografia, Bell Hooks (2018) afirma que na sua carreira como professora, percebe que o significado de não tratar sobre questões eróticas é, também, herança de uma concepção binária metafísica no que diz respeito à noção de separação entre corpo e mente. Na situação de ensino, discussões sobre corpo e desejos são suspensas porque parece não haver lugar para tais na sala de aula. As possibilidades de uma discussão sobre a sexualidade humana delineiam o contexto em que “os/as estudantes tendem a esquecer qualquer coisa que seja vista como algo que tenha a ver apenas com a autoridade do professor” (BRITZMAN, 2018, p. 108).

O arranjo dessas narrativas nos permitiu indagar se os/as estudantes tiveram conhecimento na escola acerca da diversidade de gêneros e sexualidades. Majoritariamente, a resposta aponta que não. Informam que suas identidades de gênero e sexuais os/as convocaram a buscar outros mecanismos de acesso a essas discussões, uma vez que a escola não oferece espaços de reflexões sobre as dúvidas e curiosidades. Esses mecanismos aos quais se referem e acessam são vídeo aulas e perfis de pessoas LGBTQIAP+ que se destinam a tratar sobre essas questões nas redes sociais. Além disso, os/as estudantes afirmaram que esses materiais são compartilhados para outros colegas que estão em crise de identidade sexual e/ou de gênero.

A gente sempre dá um jeito de buscar informações sobre o que é gênero e orientação sexual. A internet permite isso, né? Mas vejo que muita gente meio que aprende nos canais errados. Tipo assim, é meio complicado se espelhar na pornografia pra saber como acontece essa coisa...de sexo. Tem que fazer bom uso. Eu reposto ou passo pra um amigo da escola sempre que encontro um vídeo massa desses influenciadores do Instagram (THAYONARA, 16 anos, 2º ano médio e lésbica).

Essa rede que se forma para acessar e compartilhar informações, saberes acerca das dúvidas, curiosidades sobre as várias expressões da sexualidade humana e das identidades de gênero são em si potentes práticas de resistências porque nelas são planejadas ações com o objetivo de contestar o lugar de abjeção à qual estão sujeitos/as e acessar amplamente os saberes que historicamente são alvos de uma litania moral. A título de exemplo, na ocasião que aconteceu um episódio homofóbico envolvendo um professor, muitos/as estudantes se organizaram para expor o ato nas redes sociais criando um grupo exclusivamente para conversarem a esse respeito.

Essas coisas não são discutidas por aqui, tá ligada? Mas como hoje nós temos acesso a mais informação pela internet mesmo, sabe? A gente tá muito ligado. Claro que não são todos nós, né? Eu vejo que assim, não é nem por mal que, às vezes, a escola não toma partido. É uma questão muito complexa até porque tem pai de aluno que não suporta saber que o filho está assistindo aula sobre esses babados. Falam aí de que estamos sendo doutrinados, uma coisa assim (RAFAEL, 16 anos, 2º ano médio e bissexual).

A ausência dessa temática na escola não é uma postura relativamente irrefletida, efeito de um coincidente desinteresse. É, senão, sintoma da preponderância das narrativas travadas para suprimir a presença dos conteúdos da igualdade de gênero e diversidade sexual nas escolas sob a tônica de discursos fundamentalistas e religiosos. Esse fenômeno alocado pelo conservadorismo há tempos vem cerceando as escolas brasileiras e se intensifica cada vez mais em episódios de crise sociocultural e política, instaurando um verdadeiro pânico moral.

Para alguns a sexualidade pode parecer um tópico sem importância, um desvio frívolo de problemas mais críticos como a pobreza, guerra, doença, racismo, fome ou aniquilação nuclear. Mas é em tempos como esse, quando vivemos com a possibilidade de destruição sem precedentes, que as pessoas são mais propensas a se tornarem perigosamente malucas sobre a sexualidade. Conflitos contemporâneos sobre valores sexuais e condutas eróticas têm muito em comum com disputas religiosas de séculos anteriores. Eles passam a ter um imenso peso simbólico. Disputas sobre o comportamento sexual muitas vezes se tornam o veículo para deslocar ansiedades sociais, e descarregar a concomitante intensidade emocional (RUBIN, 2012, p.1).

Há tempos que as sexualidades nas escolas ocupam as agendas acadêmicas de pesquisadores/as sob as mais diversas e distintas bases ideológicas. É certo que desde a redemocratização do Brasil, sobretudo, com a parceria do governo federal e os movimentos sociais progressistas, ações são promovidas para que a instituição escolar trate de questões relativas às orientações sexuais e a LGBTQIAPfobia.

No Brasil, nos primeiros anos da década de 2000 se pôde visualizar o fortalecimento de ações do Estado em garantir que na agenda política fossem reconhecidas as produções e reflexões em torno dos corpos, sexualidades e gêneros. O dialogo travado entre Estado e sociedade civil deu novos contornos as políticas públicas de educação materializadas nos currículos, diretrizes, projetos educacionais e políticas de enfrentamento em relação à discriminação relacionada a orientação sexual e identidade de gênero.

Em 2004, o Ministério da Saúde em parceria com a Secretária de Direitos Humanos da Presidência do Brasil - SDH/PR elaboraram o Programa Brasil sem homofobia - Programa de combate à violência e à discriminação contra GLBT e a promoção da cidade homossexual. No qual o item “V - Direito à Educação: promovendo a paz e não a discriminação” (BRASIL, 2004, p. 5) dispõe em seu programa de ação apoios educativos para superação da homofobia, dentre alguns, estão: a formação inicial e continuada de professores/as na área da sexualidade, a produção de materiais educativos sobre as várias expressões da sexualidade, além do estimulo da circulação de pesquisas que contribuam para esse intento.

Esse conjunto de ações deram subsídios a criação do programa Escola sem Homofobia organizado pela extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão - SECADI, do Ministério da Educação, em parceria com as Organizações Não Governamentais: GALE - global Alliance for LGBT Education, a Pathfinder do Brasil, ECOS - Comunicação em sexualidade e a ABGLT - Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis. É, portanto, aqui que se dão formas para um gigantesco pânico moral irradiado por todos os setores brasileiros sociais e políticos como objeto de discussão da igreja ao bar até a Assembleia Nacional. O programa Escola sem Homofobia é, então, condenado socialmente como propaganda LGBT ou nos próprios termos utilizados por parlamentares para se referir ao documento como “kit gay”, rechaçado por muitos/as ultra conservadores e fundamentalistas religiosos.

Não tardou para que em 2014, os segmentos sociopolíticos ultraconservadores e fundamentalistas religiosos entrassem em embate com os movimentos sociais progressivas durante a elaboração do Plano Nacional de Educação - PNE, que em primeiro momento, mencionava em um parágrafo à igualdade de gênero, raça -etnia e a diversidade sexual (BRASIL, 2014). Na ocasião dessa nebulosa oposição, os grupos fundamentalistas e ultraconservadores saíram vitoriosos. Por votação, o parágrafo foi retirado da minuta. Os termos “gênero” e “orientação sexual” foram suprimidos do PNE e recentemente da Base Nacional Comum Curricular - BNCC.

Ao apostar em uma genealogia do nosso recente pânico moral, César (2017) aponta que junto a disseminação da ameaça de um “Kit gay”, foi acionado a introdução da noção de “ideologia de gênero” cuja base ideológica se encontraria no marxismo. Segundo essa noção, a produção acadêmica e as ações que objetivam enfrentar a discriminação à orientação sexual e identidade de gênero promovem a destruição da família, da moral, dos bons costumes, a inocência da criança e adolescente pela “confusão” que se criaria na identidade dos/das jovens. No Brasil, essas narrativas emergem “como reação às práticas educacionais que seus defensores definem como ‘doutrinação política e ideológica na sala de aula’ e ‘usurpação do direito dos pais sobre a educação moral e religiosa de seus filhos’” (MISKOLCI; CAMPANA, 2017, p. 729-730). O aguçamento crescente do conservadorismo legislativo alavancou condições para o desengavetamento do programa “Escola sem partido” (BRASIL, 2015) objetivando suprimir a tal “Ideologia de gênero” nas escolas.

Se servindo da rápida circulação de fake News, os grupos conservadores e fundamentalistas, assim como grupos organizados politicamente em partidos políticos, ocupantes de cadeiras eletivas nas casas legislativas brasileiras, fizeram propagar a “ameaça” moral, que uma vez inflamada se deflagrou em uma indignação raivosa da qual a comunidade LGBTQIAP+, militantes de esquerda e professores/as eram os/as principais bodes expiatórios.

Os pânicos morais cristalizam medos e ansiedades muito difundidos, e muitas vezes lidam com eles não pela procura das reais causas dos problemas e as condições que eles demonstram, mas deslocando-os como ‘Demônios do Povo’ em um certo grupo social identificado (comumente chamado de ‘imoral’ ou ‘degenerado’). A sexualidade tem tido uma centralidade particular em tais pânicos, e os ‘desviantes’ sexuais têm sido bodes expiatórios onipresentes (Weeks, 1981, p.14).

Do ponto de vista foucaultiano, podemos afirmar que nessa batalha narrativa, a verdade hegemônica do campo conservador é elegida e foi transposta para um dispositivo legal e governamental, ainda que “a ideologia de gênero” e a ladainha em torno da distribuição de um “kit gay” sejam a aposta mais estratégica e perversa para reiterar a heteronormatividade, as práticas misóginas e LGBTQIAPfóbicas como o modelo fulcral de família e de sociedade. Tais convocações moralistas puderam ser acompanhadas em alguns dos municípios do Estado da Paraíba, na ocasião em que representantes do poder legislativo junto às comunidades religiosas ocuparam a câmara de vereadores como templos religiosos para acusar a temática de gênero como ameaçadora à sociedade.

À vista disso, podemos afirmar que as raízes sobre quais se firmam o dispositivo da sexualidade por intermédio da heteronormatividade são muito profundas e duradouras, que tornam ainda mais frágeis e precárias as possibilidades de uma escola justa e diversa para o hoje. O relato de Priscila a seguir aponta que na escola, majoritariamente, seus/suas amigos/ as são pessoas LGBTQIAP+. O que parece ser digno de problematização é que a fala dela tem muito em comum com outras entrevistas: sua identidade sexual é considerada “contagiosa” para os/as colegas que resolveram optar pelo afastamento.

Eu nunca falei sobre minha sexualidade. Tô meio que confiando em você porque você não vê minha foto, não sabe quem eu sou. Mas digamos que não sou feminina, tá ligada? Isso foi um prato cheio pra muita ex-amiga minha de escola se afastar. Eu nem fui atrás, mas soube que elas diziam por aí que se andasse comigo iam ser conhecidas como sapatão. Isso mexeu comigo, mas não posso fazer nada. Quase todo mundo amigo meu agora é como eu. É onde posso ser eu mesma, de boas (PRISCILA, 17 anos, bissexual).

O “segredo” de Priscila parece ser revelado quando indicativos de masculinidade são apontados pela estética, roupas e adornos considerados análogos à lesbianidade. Na medida em que corre pela escola a demonstração de um “potencial” homossexualidade , a estudante é enquadrada como contagiosa e deve permanecer entre os/as iguais a ela. Com base em uma experiência muito próxima à relatada, Louro (2018, p. 36) constata que:

Consentida e ensinada na escola, a homofobia expressa-se pelo desprezo, pelo afastamento, pela imposição do ridículo. Como se a homossexualidade fosse ‘contagiosa’, cria-se uma grande resistência em demonstrar simpatia para com os sujeitos homossexuais: a aproximação pode ser interpretada como uma adesão a tal prática ou identidade. O resultado é, muitas vezes, o que Peter McLaren (1995) chamou de um apartheid sexual, isto é, uma segregação que é promovida tanto por aqueles que querem se afastar dos/ das homossexuais como pelos/as próprios/as.

Ao tratarmos sobre as práticas de resistência elaboradas ante as formas de afastamento dos/as estudantes LGBTQIAP+ do convívio escolar, observamos que são criadas redes de sociabilidades dissidentes. Esses/as estudantes colocam em prática a formação de um circuito de trocas, convívio entre os/as colegas marcados pela mesma diferença. Esses vínculos que perfazem o cotidiano da escola permitem que a experiência da dissidência sexual não seja um processo solitário, pois juntos/as compartilham não somente os percalços amargados na escola, mas que, sobretudo, possam colocar a pretensa estabilidade da heteronormatividade em questão. Pois: se é a heterossexualidade tão natural por que são alavancados repetidos e constantes esforços para garantir sua manutenção?

Eu sou uma pessoa que quanto mais não me querem ali, mas eu sou eu mesmo e permaneço! A escola é minha também! Fico mais alegre, sorrio, brinco, converso com meus amigos, também, LGBTs. A nossa maior vontade é que um dia todos possamos conviver com as diferenças em paz e felizes. E a escola, com seu dever, deve ensinar sobre respeito (PAULO, 3º ano médio, homossexual).

Do relato acima, podemos considerar que o próprio ato de “assumir-se” constitui condição de resistência, na medida em que a escola busca alocar as sexualidades dissidentes para o que não se pode ver nem, sobretudo, ser repetido por outros/as colegas. Sua fala representa um confronto às vias de pavimentação que tecem a expulsão escolar. Nesses termos, a capacidade de permanência é a estratégia primeira, sobretudo, na reivindicação pela escola que também é sua.

Essa realidade transpassa cotidianamente pelas experiências de abjeção dos/das jovens escolares, na medida em que a permanência representa um esforço desmedido para superar o sentimento de não pertencimento e dificuldades que os/as acompanham na trajetória de existência social na escola. “A insubordinação, o não acomodamento, a recusa ao ajustamento são algumas de múltiplas formas que a resistência pode assumir.” (LOURO, 2009, p. 137), entretanto, não é nunca a única face de possibilidades. É importante dizer que a experiência do armário, de não se assumir homossexual, é para muitos/as estudantes a única possibilidade de permanecer, para isso elaboram uma série de automonitoramento de comprovação às normas, sendo o armário uma presença formadora de vida (SEDGWICK, 2007).

Considerações finais

O universo das entrevistas apontou que a ação da heteronormatividade é resultado das várias tecnologias de poder postas em ação, desde a vigilância mais ínfima dos desejos e paixões até as punições como medidas corretivas, para que os/as desviantes se enquadrem na norma. Nesse contexto, a discriminação de gênero e de orientação sexual representam uma espécie de continuidade das violências que se iniciam no seio familiar, especialmente, sobre aqueles/ as jovens que inscreve na sua corporalidade indicativos ambíguos de gênero. A escola que deveria amparar as tais angústias e conflitos, constrói possibilidades para expulsão desses/ as, considerando a frequência em que o abandono escolar parece ser a única maneira de diminuir a exposição às experiências de abjeção.

Nesse sentido, a pesquisa ampliou expressamente a nossa compreensão de como as relações de poder encontra na escola um lugar fértil para invisibilizar as diferenças relativas às sexualidades dissidentes sob o crivo da neutralidade, porquanto a interlocução entre poder-saber oculta determinados mecanismos de controle para que as normas possam ser toleráveis, sujeitáveis e aceitas. No mais, pudemos visualizar possibilidades de resistências tecidas nesse contexto. O movimento de normalizar as experiências afetivas-sexuais na escola, não se dá sem que haja confronto, contestações e reinvenções do cotidiano.

É importante destacar que os desdobramentos dessa análise não pretenderam de modo algum expor a escola em termos de condenação, mas consideramos necessário informar quais dos seus aparatos e técnicas servem a heteronormatividade, cujo regime extrapola os muros da escola. A realidade de tantos/as jovens escolares LGBTQIAP+ é, certamente, compartilhada por muitos outros/as estudantes de outras escolas brasileiras porque o fenômeno da LGBTQIAPfobia é um problema sociocultural que estrutura o fazer institucional há séculos.

À vista dos resultados, se faz necessário reflexões profundas sobre os rumos cada vez mais violentos e precários que nossas escolas estão delineando. Não basta tratarmos da diversidade sexual e de gênero em vias de tolerância ou mesmo apenas pelas perspectivas de prevenção e saúde, precisamos discutir com nossos/as estudantes quais processos sociais e barganhas do poder elegem às sexualidades dissidentes para o lugar de abjeção e quais são os propósitos. Considerando os desmontes de algumas das políticas educacionais que cumpriam as possibilidades abertas para uma escola sem LGBTQIAPfobia, acreditamos que a estratégia pode estar na instituição escolar assumir que não se posiciona no lugar de neutralidade, e sim das amarras dos dispositivos da sexualidade, que podem ser contestadas e subvertidas, nos limites dos esforços institucionais.

1No Brasil, podem ser designados neoconservadores: grupos fundamentalistas religiosos que exercem atividades parlamentares na Câmara e no Senado; grupos que compõem o espectro direita, defensores do neoliberalismo e populistas autoritários.

2Período em que o Reino Unido esteve sobre o reinado da rainha Vitória entre os anos de 1837 a 1901. Com o fim da Era Georgiana, se dá início a novos contornos morais sobre as condutas sexuais e a irrupção de novas restrições. Tornam-se rigorosos os códigos sociais e a tolerância para atos criminosos. Nesse momento, a sexualidade passa a ocupar centralidade nos problemas de ordem social, cultural e econômica. A difusão desses valores circulara por todo o mundo reverberando, inclusive, na maneira como lidamos até hoje com nosso corpo, sexo e sexualidade.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 30 de Agosto de 2023; Aceito: 11 de Outubro de 2023

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Doutora em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (2009), mestre em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba (1999), graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Paraíba (1988). Atualmente, é professora no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: nerize@servidor.uepb.edu.br

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Mestranda em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal de Campina Grande. Licenciada em Sociologia pela Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: mariaemannuely@gmail.com

Corpos, gêneros e sexualidades revisado por Lucas Gomes de Medeiros

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