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Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade

versão impressa ISSN 0104-7043versão On-line ISSN 2358-0194

Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade vol.32 no.72 Salvador  2023  Epub 06-Maio-2024

https://doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2023.v32.n72.p351-369 

Corpos, gêneros e sexualidades

A EDUCAÇÃO E AS CORPOREIDADES: AS RESISTÊNCIAS NAS EXISTÊNCIAS

EDUCATION AND CORPOREITIES: RESISTANCES IN EXISTENCES

EDUCACIÓN Y CORPOREIDADES: RESISTENCIA EN LAS EXISTENCIAS

José Vicente de Souza Aguiar1  *
http://orcid.org/0000-0001-7754-1620

Kelly Almeida de Oliveira2  **
http://orcid.org/0000-0002-9397-3607

Rossini Pereira Maduro3  ***
http://orcid.org/0000-0003-4585-3261

1Universidade do Estado do Amazonas

2Universidade Federal do Maranhão

3Secretaria Municipal de Educação de Manaus


RESUMO

A pesquisa foca a ideia de corpo-corporeidades negras, indígenas e de diferentes orientações sexuais e suas resistências-existências na trajetória de formação acadêmica. Analisa posicionamentos políticos e religiosos com relação à política de inclusão das diversidades no ensino escolar, ao mesmo tempo em que busca conhecer os entendimentos de docentes em formação na graduação sobre essa temática. A análise foi realizada à luz da filosofia da diferença, que considera as existências em suas formas de sentir, pensar, existir e ser no mundo, que não se modulam, tampouco se enquadram em modelos existentes e hegemônicos. Treze respostas não demonstraram compreensões sobre corporeidades; doze, afirmaram que o racismo, o preconceito, a violência são determinações da sociedade e nove reconhecem e os entendem como criações que podem ser transformadas. Os dados indicam a necessidade de investimentos na formação docente de maneira que esta possa expandir suas compreensões sobre essas temáticas diretamente ligadas aos direitos de existir.

Palavras-chave: Corpo; Corporeidades; Filosofia da Diferença; Formação Docente.

ABSTRACT

The research focus on the idea of black, indigenous, and different sexual orientation body-bodies and their resistances-existences in the trajectory of educational background. Analyzes political and religious positions with regard to the politics of inclusion of diversities in school education, at the same time, seeks to know the understandings teachers in undergraduate training about this theme. The analysis was conducted in the light of the philosophy of difference that considers existences in their ways of feeling, thinking, existing and being in the world that do not modulate, neither fit into models existing and hegemonic. Thirteen answers showed no understandings about corporeities; twelve, affirmed that racism, prejudice, violence are determinations of society and nine recognize and understand them as creations that can be transformed. The data indicate the need of investments in teacher training in a way that they can expand your understandings about these themes directly linked to the rights to exist.

Keywords: Body; Corporeities; Philosophy of Difference; Teacher Training.

RESUMEN

La investigación se centra en la idea de cuerpo-corporeidades negras, indígenas y de diferentes orientaciones sexuales y sus resistencias-existencias en la trayectoria de formación académica. Analiza posiciones políticas y religiosas con relación a la política de inclusión de las diversidades en la enseñanza escolar, al mismo tiempo busca conocer los entendimientos de los docentes en formación de pregrado sobre esa temática. El análisis fue realizado a la luz de la filosofia de la diferencia, que considera las existencias en sus formas de sentir, pensar, existir y estar en el mundo que no se modulan, ni se encuadran en modelos existentes y hegemónicos. Trece respuestas no demostraron comprensión sobre las corporeidades; doce, afirmaron que el racismo, el prejuicio, la violencia son determinaciones de la sociedad y nueve las reconocen y entienden como creaciones que pueden ser transformadas. Los datos indican la necesidad de inversiones en la formación de docentes para que puedan ampliar sus comprensiones acerca de esas temáticas directamente vinculadas a los derechos a existir.

Palabras clave: Cuerpo; Corporeidades; Filosofia de la Diferencia; Formación Docente.

O que os corpos expressam sobre suas existências: debate introdutório

A temática da educação e das corporeidades: das resistências nas existências articula-se à discussão sobre Educação e equidade como princípio orientador dessa pesquisa. Perpassa e orienta a discussão articulada à filosofia da diferença, tomando como foco de investigação as compreensões de estudantes em formação para a docência. Esses produziram entendimentos escritos sobre o estado democrático de direito e suas experiências de vida em relação às corporeidades negras, indígenas e das diferentes orientações sexuais, com destaque para a ideia das formas de existência. Pelo fato de suas formações serem dirigidas para a docência na Educação Básica, delineamos a investigação com o objetivo de compreender as existências e as resistências de corporeidades negras, indígenas e das diferentes orientações sexuais. A orientação de análise da pesquisa, sustentada pela filosofia da diferença, decorre da fundamentação destacada por Derrida, em suas proposições sobre a differance, com destaque para a sua grafia. Para ele, a differance corresponde a uma condição constitutiva da existência do ser vivo, em especial e com mais força de expressão no ser humano

[...] o motivo da differance tem de universalizável em vista das diferenças é que ele permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limites: que se trate limites culturais, nacionais linguísticos ou mesmo humanos. Existe differance desde que exista traço vivo (DERRIDA, 2004, p. 33).

Corresponde, assim, a uma potência de expressão das corporeidades, porém, não consiste numa essência ou oposição às outras formas de ser, “[...] mas um movimento de espaçamento, um ‘devir-espaço’ do tempo, um ‘devir-tempo’ de espaço, uma referência à alteridade, uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional” (DERRIDA, 2004, p. 34).

Por esse motivo, Derrida (2004) ratifica que a differance não é uma oposição, é uma reafirmação do mesmo em sua relação com o outro. É uma manifestação realizada para assegurar sua existência na sua própria differance em relação às outras. As análises serão orientadas pelo fundamento sustentado pela ideia da differance, com seu registro na forma da língua portuguesa. Então, todas as vezes que forem grafadas as corporeidades das diferenças, o faremos à luz da differance.

Como elemento problematizador da questão investigada, procuramos compreender, na atualidade, os atos de fala e posicionamentos políticos e religiosos que se dirigem para as corporeidades negras, indígenas e para as diferentes orientações sexuais no sistema educacional. Ao mesmo tempo, asseveramos que há elementos reveladores capazes de afirmar um sistema de pensamento que orienta e se opõe ao princípio da equidade entre as diferentes corporeidades, seja no plano da existência, seja no processo educacional.

Ainda que não se trate de um sistema educacional, esses atos de fala e de condenação funcionam como mecanismo de produção do pensamento sobre as corporeidades. Dessa forma, entendemos que o processo de formação não consiste apenas nas atividades propriamente curriculares, mas envolve também as realizadas e orientadas pelos currículos culturais e preceitos religiosos que se realizam no mundo da vida.

Posicionamentos políticos, religiosos e jurídicos sobre as diferentes corporeidades

Constatamos, na atualidade, as mais diferentes manifestações de condenação e criminalização das diferentes corporeidades que se expressam a partir de suas formas de existência. Isso fica evidente nos posicionamentos públicos que circularam na mídia brasileira, cujos atos de fala destinam-se à condenação das corporeidades. Tal ato pode ser constatado na reportagem do Jornal Estado de Minas, no Caderno Diversidade, na qual o pastor que “reservou” o inferno para o grupo LGBTQIA+ recebe apoio de colegas no Brasil, que descrevem a fala, a censura e a condenação proferida às corporeidades das diferenças de orientações sexuais. Ao se dirigir aos jovens evangélicos, ele disse:

Todo homossexual tem uma reserva no inferno, toda lésbica tem uma reserva no inferno, todo transgênero tem uma reserva no inferno, todo bissexual tem uma reserva no inferno, toda drag queen tem uma reserva no inferno. Você, rapaz, que está usando calça apertada, que é um espírito de homossexual, você vai pro (sic) inferno. Você, moça, que quando sai da sua casa a sua saia é tão curta e tão apertada, você sabe o que está fazendo? Você tem uma reserva no inferno (BALLOUSSIER, 2023).

Contatamos, assim, que os corpos de pessoas de diferentes orientações sexuais precisam ser abominados, visto que, na pregação citada, são pecaminosos, devem ser contestados ao ponto de ter, na sua existência, as ações de combate e extermínio. Ainda com relação a esse posicionamento divulgado, outro pastor evocou o Corpos, gêneros e sexualidades 5º da Constituição de 1988, para destacar a liberdade de consciência e de crença: “Ninguém pode violar minha liberdade em crer em quem vai para o céu e quem vai para o inferno [...] ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa e de convicção filosófica ou política” (BALLOUSSIER, 2023).

Ocorre que o ato de crença e de manifestação religiosa se faz pela condenação dos que são, pelos discursos religiosos em tela, considerados indesejáveis, que são criminalizados e condenados. Nesse sentido, não se trata de um ato de fé, mas de uma prática pedagógica orientadora da condenação das manifestações de corporeidades das diferentes orientações sexuais. É evidente que o Corpos, gêneros e sexualidades 5º assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade. Para o inciso VI, é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias. Contudo, o mesmo Corpos, gêneros e sexualidades 5º da CF/88 não assegura a disseminação do ódio contra as corporeidades das diferentes orientações sexuais. Pelo contrário, assegura o direito de existência, pois sua vida não pode ser violada em função de sua orientação sexual.

Nesse sentido, ao não se identificarem com as classificações binárias da língua portuguesa nas figuras do masculino e do feminino, do menino e da menina, da mulher e do homem como determinação biológica do organismo, reivindicam o uso da linguagem neutra. Se o Corpos, gêneros e sexualidades 5º da CF/88 assegura o direito à igualdade, então é necessário assegurá-la também na forma do tratamento pronominal. É necessário romper com o binarismo da linguagem que, por sua vez, é também o do pensamento, e que, sendo dessa forma, orienta a compreensão que temos da sociedade.

Mediante essa situação, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Lei de Rondônia1 que, em 2021, proibiu o uso da linguagem neutra na grade curricular, no material didático de instituições de ensino local e em editais de concursos públicos (D’AGOSTINO, 09/02/2023). A justificativa do Contee faz-se à luz dos fatos existentes na vida social, respalda-se nas vidas das pessoas que não se veem representadas nas formas de tratamentos que lhes exclui. Por isso, diz:

Quem se der ao elementar e necessário cuidado de buscar entender a linguagem neutra, a partir de sua inserção na realidade social, patente, viva e insuscetível de ser aprisionada, claro, sem a couraça da intolerância, do ódio e da negação da diversidade, com certeza, chegará à conclusão de que ela nada contém de modismo, de caráter partidário e ideológico (D’AGOSTINO, 09/02/2023).

A defesa da linguagem neutra fica evidenciada e sua importância ganha relevância quando o corpo que a sente se expressa. Em reportagem, Amanda Polato revela o sofrimento de um jovem que possuía o nome feminino, vivia trancado no quarto, angustiado e foi diagnosticado com depressão. Quando entendeu que era um menino num corpo de menina e trocou o nome, os pronomes, o cabelo e as roupas, ele, de 14 anos, desabrochou e viu a vida melhorar: “Parece que eu saí de uma prisão, um casulo”.

Eu não me apresento mais como uma menina, com uma imagem feminina sobre mim. E eu acho que esse nome me lembra tudo o que eu já passei de ruim. Quando erram meu nome ou o pronome, é uma violência contra mim. A gente não quer que as pessoas concordem, a gente só quer respeito (POLATO, 29/01/2023).

Reivindicar o uso de nomes e pronomes não se trata de modismo. Da mesma forma, não se trata de uma campanha alicerçada no que se apregoa chamar “ideologia de gênero”. Flexibilizar a linguagem é uma questão de direito para quem dela precisa como elemento de identificação de sua diferença de orientação sexual. Mais uma vez, aqui reside o princípio fundamental do Corpos, gêneros e sexualidades 5º da CF/88, evidenciada com o parecer do Ministro Luís Roberto Barroso, do STF, o qual julgou inconstitucional uma lei de Alagoas instituindo no estado o programa “Escola Livre” e três normas municipais que proíbem o ensino sobre questões de gênero e sexualidade na rede pública. Seu parecer, divulgado na matéria “Julgadas inconstitucionais leis sobre Escola Livre e proibição de ensino de sexualidade do Portal STF”, assevera que

Não tratar de gênero e de orientação sexual no âmbito do ensino não suprime o gênero e a orientação sexual da experiência humana. Apenas contribui para a desinformação das crianças e dos jovens a respeito de tais temas e para a perpetuação de estigmas e do sofrimento que deles decorre (SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL, 26/08/2020).

A proibição da discussão é tão grave quanto o seu desconhecimento. No caso da formação acadêmica, o desconhecimento é ainda mais grave, pois é na escola, em especial, que as crianças e jovens precisam obter informações sobre a vida, sobretudo como ela se corporifica nos diversos planos das existências humanas, inclusive nas orientações sexuais.

Em 29 de dezembro de 2020, o Conselho Municipal de Educação de Manaus/AM aprovou a Resolução N. 091/CME/2020, cujo caput “Estabelece orientações de forma a garantir a inclusão da Educação para as Relações Étnico-Raciais, Diversidade Sexual e Gênero, bem como Diversidade Religiosa, no Sistema Municipal de Ensino de Manaus”. Essa resolução foi composta por catorze documentos, dos quais destaco alguns: Declaração da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância; os Princípios de Yogyakarta e os Direitos Humanos internacionais à vida e à experiência das pessoas de orientações sexuais e identidade de gênero diversa; a Nota Técnica n. 24/2015 - CGDH/ DPEDH/MEC, que orienta o debate em torno da dimensão de Gênero e Orientação Sexual nos planos de educação; e a considerada Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 40004735-30.2017.8.040000, que declara a inconstitucionalidade da Lei Municipal n. 439/2017, e versa sobre a proibição da reprodução do conceito de ideologia de gênero.

Diante do exposto, o Art. 1º oferece as orientações para a inclusão das temáticas na Proposta Curricular, na Proposta Pedagógica e no Projeto Político-Pedagógico, no Sistema Municipal de Ensino, seguido do parágrafo único, “que têm como objetivo prevenir e combater quaisquer formas de preconceito, discriminação, racismo, homofobia e intolerâncias correlatas”. Mediante a natureza do caput, a formação docente está contemplada conforme o que prescreve o

Art. 4º - A formação continuada docente e dos demais profissionais da educação contemplará as temáticas da Diversidade Étnico-Racial, de Gênero, Sexual e Religiosa, de forma teórica, prática e interdisciplinar, o acesso permanente às informações, vivência e atualização dos conhecimentos (RESOLUÇÃO 091/CME/2020).

Como desdobramento da preocupação apresentada, é asseverado no

Art. 8º - O trabalho com gênero consiste em propostas teóricas e reflexivas que buscam combater as violências de gênero, defendendo o respeito às diferenças, à diversidade e entendendo que a sociedade é plural e a escola deve discutir a exclusão e as formas variadas de preconceito (RESOLUÇÃO 091/CME/2020).

O que se visualiza na resolução consiste na preocupação com o ser humano em suas mais diferentes formas de existência e mediante os dispositivos nacionais e internacionais élhes garantido o direito à vida nas formas de suas corporeidades. Consiste-se em dizer que a sociedade é plural em diversos aspectos e essa pluralidade existe também no ambiente escolar. Dessa forma, a formação docente precisa considerar as formas de existências humanas expressas na sociedade. Com essa preocupação, a resolução foi aprovada pelo Conselho Municipal de Educação no dia 29 de dezembro de 2020.

Contudo, a Resolução 091/CME/2020, com menos de sessenta dias de aprovada, foi suspensa pela Resolução N. 054/CME/2021, em 25/02/2021. Uma das justificativas para sua suspensão ressalta “a repercussão que ocorreu com o advento da Resolução n. 091/CME/2020 a ensejar ampla discussão a fim esclarecer a essência e seus respectivos fundamentos em atendimento ao interesse público”. Pelo exposto, a Resolução resolveu, conforme o

Art. 1º. Suspender os efeitos da Resolução nº 091/CME/2020, que estabelece orientações de forma a garantir a inclusão da Educação para as Relações Étnico-Raciais, Diversidade Sexual e Gênero, bem como Diversidade Religiosa, no Sistema Municipal de Ensino de Manaus (RESOLUÇÃO Nº 054/CME/2021).

A suspensão deu-se pelas seguintes causas alegadas:

[...] amplo debate envolvendo os órgãos do sistema Municipal de Ensino (SME); conhecimento pleno da Resolução, sua essência e fundamentos, sobretudo sua aplicabilidade no âmbito do Sistema Municipal de Ensino (SME); e o aprimoramento ou redimensionamento da Resolução com vistas ao atendimento das demandas sociais e de interesse público (RESOLUÇÃO Nº 054/ CME/2021).

Ela deu-se “por período de 90 (noventa) dias, prorrogável em caso de necessidade” (RESOLUÇÃO N. 054/CME/2021). Entendemos que a ampla repercussão das inclusões das temáticas Relações Étnico-Raciais, Diversidade Sexual e Gênero, bem como Diversidade Religiosa no sistema de ensino gerou reações, não pela relevância e urgência dessa discussão no âmbito do sistema escolar e da formação docente, mas por motivações de outras ordens, supostamente pelas pressões de dimensão religiosa da bancada evangélica da Câmara Municipal de Manaus, visto que as principais manifestações contrárias à Resolução n. 091/ CME/2020 deram-se com assinatura de 23 dos 41 vereadores da Casa Municipal e relatoria de um membro dessa bancada. É o que podemos observar na matéria “Bancada evangélica revoga resolução que incluía educação para diversidade sexual em escolas de Manaus”, divulgada em 31 de maio de 2021, no portal Cenarium Amazônia.

É possível que a bancada de 23 vereadores, dos 41, não conheçam os fatos envolvendo o racismo, a violência contra as pessoas LGBTQia+ e a discriminação de indígenas no Brasil e em Manaus. Exatamente por esse motivo que a inclusão das temáticas sobre Relações Étnico-Raciais, Diversidade Sexual e Gênero, bem como Diversidade Religiosa torna-se fundamental para a construção de conhecimentos sobre as corporeidades expressas nas formas dessas temáticas citadas.

Corporeidades negras, pardas e pretas: de onde vem o seu racismo?

O corpo é a representação singular da presença no mundo. A experiência de si no mundo ocorre mediante o corpo e os modos como vive cada acontecimento. “O corpo se caracteriza enquanto lugar de conhecimento e experiência imbuído de relações sensíveis” (CUNHA, 2022, p. 237). Com esse entendimento, questiona-se sobre o lugar que os corpos negros, pardos e pretos ocupam na educação escolar. Geralmente, são lugres de silêncio, sujeição, abnegação, legados do projeto colonizador-escravista, de seus produtos, signos e afetos.

Não pretendemos falar da escravidão e do racismo histórico, pois isso já foi e é realizado, mas visamos entender as formulações, as maquinações, as invenções do pensamento que sustentaram e sustentam a escravidão, o racismo, a misoginia, a homofobia. Isso requer um esforço para localizar os atos de fala e as estratégias articuladas na relação saber-poder que tornaram possíveis a produção do pensamento pelo qual as violências contra os corpos são praticadas nas suas diferentes modalidades, seja em sua dimensão física, seja em sua dimensão simbólica. Ser racista não consiste numa determinação da natureza humana, pois nossos sistemas de pensamento são constituídos por motivações localizadas nos planos de imanências relacionados à história vivida.

Se esse pressuposto é válido para o entendimento da formação do sistema do pensamento, então podemos dizer que o racismo e o preconceito racial continuam a existir como resultado de processos de invenção da ideia de que existe um corpo, cuja branquitude é expressa como grau máximo de superioridade e qualidade, constantemente potencializada nos processos de escolarização.

O ambiente escolar, sobretudo no Brasil, que manteve oficialmente a escravidão até 1888, foi reservado para os corpos brancos. Podemos imaginar que a aprendizagem orientada pela invenção da branquitude superior às outras existências cria uma justificativa para respaldar a violência contra o corpo negro e suas expressões de corporeidades. São essas questões que precisam se tornar conteúdos de estudos e produção de conhecimentos nos espaços escolares, com foco nos fenômenos da atualidade.

Tal hipótese de superioridade carece de sustentação, que procuraremos evidenciar a partir dos saberes dos naturalistas viajantes do século XIX, pois ao construírem suas apreciações sobre os corpos negros, fazem-no em um plano temático subjacente à ideia de sua inferioridade. A esse respeito, Rago destaca as ideias naturalistas, higienistas e eugênicas que orientaram o pensamento social brasileiro, quando afirma:

[...] ambiente caracterizado pela valorização das ideias evolucionistas, higienistas e eugênicas, marcado pela angústia e medo da decadência física e moral, pela crença nas teorias raciais da degenerescência e da hereditariedade, segundo a qual os negros, indígenas, mulheres, crianças e outros povos eram considerados espécies em relação aos europeus (2004, p. 47, grifo nosso).

Silva (2022, p. 51) atribui às teorias eugênicas e higiênicas dos séculos XIX e XX os discursos autorizados pela ciência e as narrativas oficiais construídas “[...] para (des)classificar, (des)qualificar e estigmatizar aqueles e aquelas que não se enquadravam nos padrões por eles divulgados”. Tem-se, assim, uma gramática visual dos corpos que os classifica, que os hierarquiza e que, ao mesmo tempo, os transforma em corpos indesejáveis e repudiados. É justamente contra esse tipo de pensamento historicamente constituído que a Resolução n. 091/CME/2020 localiza as possibilidades de ressignificação do pensamento sobre essas corporeidades. Isso significa, sobretudo, reconhecer e criar condições de garantia de suas existências na sociedade e nos espaços de formação acadêmica e nos empregos públicos, principalmente. É necessário entender que

Entre muitos outros inúmeros exemplos, vê-se que, no Ocidente, forma-se a distinção entre os homens e as mulheres de pele branca e os homens e as mulheres de pele negra; ou, sedimenta-se a simbologia do branco representando a paz, e do negro, o luto, entre os ocidentais (AGUIAR, 2012, p. 76).

No caso da questão racial, Agassiz (2000) deixou suas marcas na forma como descreveu e classificou o corpo negro. É justamente necessário dizer que as formas de conceber o outro, seja para acolhê-lo, seja para repudiá-lo, são construções que perpassam as ordens das formas de usos dos conhecimentos, sejam laicos, sejam religiosos, como destacou Aguiar (2012), ao ressaltar as apreciações que fez referência a Néri da obra Viagem ao Brasil, fruto da passagem de Agassiz, por volta de 1884, pelo Brasil. Em sua apreciação da obra, ele descreve os resultados dos cruzamentos das raças, de forma a reproduzir as ideias apresentadas pelo naturalista.

O híbrido entre o negro e o branco, denominado de mulato, disse Agassiz, é por demais conhecido para que seja necessário descrevê-lo; tem traços elegantes e tez clara; é cheio de confiança, mas indolente [...] O híbrido entre o branco e o índio, chamado mamaluco (ou melhor, mameluco) é pálido e efeminado, fraco, preguiçoso e um tanto obstinado. Parece que a influência do índio tenha tido justamente o poder de anular os atributos elevados do branco, sem nada comunicar de sua própria energia ao produto (NERI, 1979, p, 108).

Podemos destacar que esse pensamento, expresso na obra de Agassiz, ressaltado por Neri (1979), não se restringia apenas aos homens das ciências naturais, mas também se estendia aos conhecedores e responsáveis pela disseminação da religião e pela formação de novos catecúmenos. É o que constata Agassiz quando afirma que o Colégio D. Pedro II (1865), do Rio de Janeiro, na época um seminário, tinha como meta preparar as crianças pobres para serem padres. “Com uma pedagogia austera, impunha como uma das condições para a admissão que o estudante fosse de [...] raça pura; não se recebiam negros nem mulatos” (AGUIAR, 2012, p. 216). Embora Agassiz construa a descrição de corpo negro e indígena, não faz sem a comparação com o corpo do ser humano branco. Assim, diz:

Sua população é o produto da mistura das raças. Veem-se aí os traços regulares e a pele clara do homem branco, a grosseira e lisa cabeleira do índio, ou então as formas metade negro, metade de índio que apresentam os mestiços cujos cabelos não possuem mais ondulações finas. Ao lado dessas misturas, mostra-se o puro tipo índio: fronte baixa, face quadrangular, ombros rigidamente em ângulo reto e muito altos, sobretudo nas mulheres (AGASSIZ, 2000, p. 166).

A hostilidade histórica destinada aos corpos negros, pardos, pretos, no país, legitimou os espaços permitidos ou não para sua existência em sociedade. Contudo, a história dos ancestrais africanos segue marcada nos corpos negros como tática de resistência aos mecanismos de controle e extermínio de tais corpos, uma vez que “Os colonizadores codificaram como cor os traços fenotípicos dos colonizados e atribuíram a ela a característica representativa da categoria racial” (CUNHA, 2022, p. 237). A dominação imposta pelos conquistadores se baseou, efetivamente, na noção de raça alicerçada nas narrativas eugênicas e higienistas.

Corpo indígena, corpo alienígena: Construção e representação da imagem indígena na educação

Em 1657, durante a pregação do “Sermão do Espírito Santo”, o padre António Vieira expunha suas impressões sobre os indígenas que viviam no Brasil. Ao fazer sua reflexão missionária sobre os “brasis”, destacava a dificuldade na realização do trabalho catequizador e “civilizatório” dos europeus junto à população indígena. Vieira relatava que estes se diferenciavam de outros povos por sua inconstância, pela inabalável amorfia de suas almas. Aos olhos europeus, tratava-se de corpos de difícil controle, de feras selvagens que precisavam ser transformadas em homens:

De maneira que, assim como a natureza faz de feras homens, matando e comendo, assim também a graça faz de feras homens, doutrinando e ensinando. Ensinastes o gentio bárbaro e rude, e que cuidais que faz aquela doutrina? Mata nele a fereza, e introduz a humanidade; mata a ignorância, e introduz o conhecimento; mata a bruteza, e introduz a razão; mata a infidelidade, e introduz a fé; e deste modo, por uma conversão admirável, o que era fera fica homem (VIEIRA, 1657, p. 205).

Dois séculos depois de proferido o sermão da montanha pelo padre Vieira, no livro “História Geral do Brazil antes da Separação e Independência de Portugal”, Francisco Adolfo de Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) discorre sobre as características da população indígena do Brasil. Para o autor:

So eram porém tam favorecidos nos dotes do corpo e nos sentidos, outro tanto não succedia com os do espirito. Eram falsos e infiéis; inconstantes e ingratos, e bastante desconfiados. Além de que: desconheciam a virtude da compaixão. [...]Nem tinham ideas de sã moral; isto é, da que nasce dos sentimentos do pudor e da sensibilidade, da moral que respeita o decoro e a boa fé; e eram dotados de uma quasi estúpida brutalidade, e difficeis de abalar-se de seu gênio fleugmatico (VARNHAGEN, 1857, p. 50).

Os textos de Varnhagen e de Vieira privilegiam um sistema de classificação social, no qual a população indígena ocuparia um lugar de subalternidade em relação ao branco europeu. Tais discursos visavam justificar a necessidade de dominação e subjugação dos primeiros. Destacamos que a inconstância do indígena citada pelos autores não estaria ligada à recusa pela realização de serviços braçais delegados pelos brancos, mas sim pela recusa a subserviência, recusa a formas de existência distanciadas de suas culturas e, principalmente, de suas liberdades de escolha (VIVEIROS DE CASTRO, 2013). Essa imagem do indígena, construída dentro de um contexto histórico e social, no qual fora marginalizado, tornou-se perene no imaginário popular brasileiro, dando sustentação às alcunhas de bárbaros, selvagens e preguiçosos até os dias de hoje.

São esses estigmas criados no passado que dão sustentação às manifestações preconceituosas contra a imagem do indígena, como a observada em novembro de 2019, quando, durante palestra para estudantes do curso de direito, proferida no auditório do ministério público em Belém, um procurador de justiça do Estado do Pará afirmou que a escravidão negra no Brasil decorreu do fato de a população indígena ser avessa a trabalhos braçais, de acordo com ele, “o índio não gosta de trabalhar até hoje, o índio preferia morrer do que cavar mina, do que plantar para os portugueses” (CARTACAPITAL, nov. 2019).

Essa fala não é um evento isolado, pois alimenta uma rede de desinformação ao denotar a ideia de que a escravização de pessoas negras tenha sido uma alternativa em relação à escravização indígena. Como se uma tivesse encerrado a outra, algo que a historiografia brasileira mostra que não ocorreu (CHAVES JR., 2019), além de disseminar a falsa ideia do indígena indolente e inferior.

O discurso mencionado também serve para ilustrar como os pensamentos difundidos no senso comum têm avançado pelos ambientes institucionais, incluindo os espaços educacionais, onde os corpos indígenas costumam ser representados de forma equivocada ou são silenciados e invisibilizados. Atitude extremamente grave, pelo fato de instituições que teriam por obrigação fazer reflexões críticas sobre a sociedade ratificarem desigualdades e injustiças sociais.

No campo educacional, duas perspectivas acerca dos corpos indígenas necessitam de atenção: a primeira voltada para o lugar do indígena nos currículos escolares, principalmente as representações indígenas nos livros didáticos. A segunda focada em reflexões sobre a corporalidade indígena nas salas de aula, como essas corporalidades carregadas de memórias, crenças, práticas culturais, línguas, pensamentos e cosmologias são recebidas nesses espaços.

Na esteira das reivindicações dos movimentos sociais indígenas em torno da visibilidade indígena nos ambientes educacionais, em busca de firmar processos de desconstrução das imagens negativas direcionadas a esses grupos desde o período colonial, foi sancionada, no ano de 2008, a Lei n. 11.645 que

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena.

Com essa lei, o Art. 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional passa a ter o seguinte texto:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro -brasileira e indígena.

§ 1o O conteúdo programático a que se refere este Corpos, gêneros e sexualidades incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras (BRASIL, 1996).

Por obediência à lei, os sistemas foram obrigados a investir na incorporação das temáticas afro-brasileira e indígena em seus currículos escolares. Apesar dos avanços, os conteúdos apresentados nos livros didáticos2, sobretudo os de história, continuam privilegiando, de forma oculta ou intencional, as narrativas dos grupos hegemônicos. Assim, a invasão do Brasil permanece sendo vendida como “descobrimento”, capitães do mato e comerciantes de escravos têm suas imagens associadas a heróis desbravadores e os indígenas permanecem como bárbaros e selvagens.

Quando partimos para as análises da presença dos corpos indígenas nas salas de aula, seja na educação básica ou no ensino superior, fica evidente que são corpos estranhos, em instituições marcadamente ocidentalizadas. Acerca dessa questão, podemos dizer que nossa trajetória escolar e acadêmica foi atravessada por momentos que ilustram como tais espaços - apesar da retórica intercultural - não estão preparados para acomodar os corpos indígenas e suas especificidades socioculturais e sociolinguísticas. Nas universidades, os indígenas ainda são alienígenas.

Os motivos alegados para a suspensão: um sistema de pensamento subjaz

Para efeito de produção de conhecimentos no ambiente escolar, ou seja, no processo de formação de jovens, questionamos: “[...] como os grupos negros e os povos indígenas passaram a fazer parte das narrativas históricas. Quais efeitos de poder e de saber incidiram e incluíram esses grupos sociais nas narrativas históricas?” (AGUIAR, 2012, p. 83). Agassiz (2000, p. 66-68) produziu apreciações sobre os comportamentos dos povos negros, dos povos indígenas que serviram para contrastar com os corpos brancos:

Não se podem contemplar-se esses corpos robustos, nus pela metade, essas fisionomias desinteligentes, sem se formular uma pergunta, a mesma que inevitavelmente se faz toda vez que a gente se encontra em presença da raça negra: “Que farão essas criaturas do dom precioso da liberdade?” O único meio de pôr um termo às dúvidas que nos invadem então é de pensar nas consequências do contato dos negros com os brancos. Pense-se o que se quiser dos negros e da escravidão, sua perniciosa influência sobre os senhores não pode deixar dúvidas em ninguém. [...] Dir-se-ia um longo mostruário, cheio de frutas e legumes para vender. Por trás, um negro de forma robusta está em frente da rua; com seus braços de ébano cruzados sobre um cesto cheio de flores vermelhas, laranjas e bananas, está quase dormindo, indolente demais para fazer um simples aceno ao comprador.

Os fatos destacados demonstram o percurso histórico de formação do pensamento sobre as corporeidades negras e indígenas. Isso evidencia e justifica as inclusões curriculares das discussões e estudos sobre a questão étnico-racial como possibilidades de entendimentos dos usos dos conhecimentos dos naturalistas, sobretudo para criar a ideia da inferioridade indígena e negra diante da corporeidade branca.

Ainda que tenhamos mencionado o pensamento naturalista de Agassiz, podemos ressaltar o do médico Raimundo Nina Rodrigues, realizado no final do século XIX e envolvendo a questão étnico-racial, para quem tanto o negro e o indígena eram portadores de uma “[...] degenerescência biológica, ou de condições de inferioridade pela natureza de ser de pele negra” (AGUIAR, 2022, p. 17).

Discutir a temática racial requer conhecer a formulação histórica dos sistemas de pensamento sobre as corporeidades negras e indígenas. Nesse sentido, a formação do pensamento social foi destacada e analisada por Pinto (2006, p. 14), para quem

[...] durante todo esse longo e complexo processo de formação dos países e povos do Novo Mundo, a ideia da superioridade branca e europeia sobre a fragilidade dos povos indígenas e dos negros e mestiços tem estado presente em diferentes gradações, realimentando constantemente não apenas nosso senso comum, mas também envolvendo as temáticas de pesquisadores e especialistas, em particular no que vem sendo identificado como terreno da formação sociocultural da América indígena, negra e mestiça.

As desigualdades que envolvem estudantes de pele negra e preta, indígenas e de diferentes orientações sexuais precisam ser compreendidas tomando como referência suas trajetórias sociais sinalizadas por pouca ou quase nenhuma experiência de escolaridade de seus antepassados; pela violência sofrida por serem negros e/ou indígenas; pela misoginia, pela homofobia, por serem corpos de diferentes orientações sexuais. Vemos aqui que “[...] além do corpo, também as emoções e a sexualidade dos cidadãos passaram a sofrer interferência desse especialista cujos padrões higiênicos visavam melhorar a raça e, assim, engrandecer a pátria” (SILVA, 2022, p. 51).

Por esse entendimento, ressaltamos que o racismo e a violência contra pessoas negras e pretas no Brasil são históricos, existem há mais de dois séculos; o preconceito e a violência contra os povos indígenas data da chegada portuguesa no Brasil; a violência contra os corpos LGBTQIA+ é evidente, visto que no Brasil, no ano de 2022, vitimaram-se cento e trinta e uma pessoas membras dessa comunidade. Esses dados indicam que o Brasil permanece, por catorze anos seguidos, como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo (VASCONCELOS, 2023). Ficam evidentes os crimes por razões homofóbicas; no que diz respeito às religiões de matrizes africanas, elas são perseguidas há mais de dois séculos.

Os fatos são evidentemente claros e servem para justificar as inclusões das temáticas como objetos de estudo e produção de conhecimentos na formação docente e, da mesma forma, precisa constituir-se como temáticas curriculares para estudos no sistema escolar.

Mesmo com as reações à Resolução n. 091/CME/2020, o currículo escolar municipal de Manaus foi aprovado no mês de maio de 2021, uma vez que, em decisão liminar de 21 de março de 2021, a justiça determinou a suspensão dos efeitos da Resolução CME n. 054/2021, do Conselho Municipal de Educação de Manaus, vinculado à Secretaria Municipal de Educação (Semed) (MEDEIROS, 2021).

No currículo constam as temáticas da Resolução n. 091/CME/2020, evidenciadas no seu sumário, como os princípios da equidade, diversidade e inclusão com destaque para a Educação em Direitos Humanos; Educação para as Relações Étnico-raciais; O Ensino de História e Cultura Africana e Afro-brasileira; O Ensino de História e Cultura Indígena; Educação Quilombola; Diversidade Sexual, Gênero e Sexualidade; Diversidade Religiosa, Diversidade Cultural e Cultura Local/Regional.

Ainda que essas temáticas tenham sido incluídas no currículo escolar de Manaus para efeitos de estudos e produção de conhecimentos, a questão não está pacificada, pois foi mantido o questionamento sobre elas, sobretudo no que diz respeito à diversidade sexual, de gênero e sexualidade.

Por uma pedagogia escolar da alteridade

Temos a intenção de realizar um estudo sobre questões existentes na atualidade, inclusive no âmbito da sala de aula, envolvendo estudantes e suas corporeidades. Trata-se de uma pesquisa sobre os atos de violência contra a vida negra, indígena e de pessoas de diferentes orientações sexuais; conhecer os sofrimentos sentidos pelos corpos dessas pessoas, decorrentes dos atos de heterofobia, transfobia, homofobia; reconhecer os sofrimentos sentidos pelas corporeidades vítimas de preconceitos, de racismos contra os seus corpos negros; entender o sentimento dos corpos indígenas vitimados pela discriminação e preconceito. Não se trata de estudar apenas o passado, mas de articulá-lo ao presente de estudantes indígenas, negros e de pessoas de diferentes orientações sexuais.

A questão principal não é evidenciar como negros e indígenas foram compreendidos pelos missionários e cientistas naturalistas que percorreram o Brasil entre os séculos XVIII e XIX (AGUIAR, 2012), mas em destacar que essas compreensões, em certa medida, orientaram suas inserções na sociedade e suas inclusões no sistema educacional (AGUIAR, 2022). Ou seja, negou seus ingressos, seja porque foram alijados a uma vida de trabalhos manuais, seja porque, não havendo trajetória familiar acadêmica, houve com isso maiores dificuldades e motivações para essa vida.

Na mesma esteira ou em condições mais difíceis, os povos indígenas foram alijados do acesso e da permanência do processo educacional, de tal forma que o passado está intimamente relacionado ao presente. No passado, foram submetidos a atividades menos especializadas, no presente enfrentam mais dificuldades de ingressos e permanências no sistema educacional básico e superior, consequentemente de formação acadêmica e profissional.

Diante do exposto, é necessário um currículo escolar e uma pedagogia da alteridade que incluam as mais diferentes formas de vida que frequentam o ambiente escolar e existem na sociedade. A escola, fundamentalmente, corresponde ao lugar, por excelência, para produzir conhecimentos sobre os modos humanos de existências. Ela precisa, quando a discussão for dirigida ao passado, localizar os dispositivos de poder que instrumentalizaram a ideia de superioridade do ser humano branco em relação aos indígenas e aos negros e que situou a heterossexualidade como a única forma de existir e viver a sexualidade humana.

É necessário entender que a heteronormatividade, como modelo único, é uma invenção. Por conseguinte, toda invenção que resiste e se torna historicamente predominante e norteadora da vida decorre de uma estratégia política dos grupos sociais que estiveram/estão no poder. É necessário entender que as minorias, com seus corpos que expressam diversas orientações sexuais, existem e têm o direito de ser e viver suas sexualidades da forma como se sentem satisfeitas e felizes. Os direitos das pessoas, dos corpos, das diferenças sexuais são iguais aos direitos dos corpos da heterossexualidade. Ser diferente sexualmente não restringe os direitos de existir e de viver. Da mesma forma, é necessário compreender que o racismo e o preconceito contra negros e indígenas são criações históricas, articuladas às relações de poder, como apresenta Aguiar (2022).

Com efeito, é imprescindível esclarecer alguns conceitos para melhor compreender os contextos propostos neste trabalho. A princípio, o de sexo: o ser humano nasce com ele, ao mesmo tempo que serve para identificá-lo como corpo masculino ou feminino, conforme as exigências burocráticas administrativas exigidas nos sistemas de saúde e escolar, principalmente. Já a sexualidade consiste em um processo de identificação e de reconhecimento que ocorre ao longo da vida, que o corpo realiza e passa a ser representativo e satisfatório para o ser humano, o qual “[...] envolve linguagens, ritos, fantasias, representações, símbolos e convenções”, uma vez que a “[...] inscrição dos gêneros nos corpos, por exemplo, é realizada, sempre, no âmbito de uma cultura. As identidades sexuais e de gênero, são, todavia, construídas e definidas por relações sexuais” (SILVA, 2022, p. 165).

A pedagogia da alteridade trata da hospitalidade do outro a se realizar de maneira incondicional, pois “Não há hospitalidade absoluta sem soberania de si para consigo” (DERRIDA, 2004, p. 49). O pensamento da hospitalidade do outro se realiza para além de qualquer possibilidade de encaixamento das suas potencialidades e de suas corporeidades, visto que “[...] permite pensar o processo de diferenciação para além de qualquer espécie de limite: quer se trate de limites culturais, nacionais, linguísticos ou mesmo humanos” (DERRIDA, 2004, p. 33).

Trata-se de reconhecer as outras existências nas suas formas de expressão, de pensar, de ser, de viver, enfim, de existir no mundo. Sem que, para isso, sejam consideradas inferiores e indesejáveis, vítimas do racismo, do sexismo e da intolerância religiosa. É necessário apontar o currículo escolar para a vida com a inclusão, realizar estudos e produção de conhecimentos sobre as orientações que sustentaram e sustentam os atos de violências dirigidos às diferentes corporeidades.

Afinal, a escola é um espaço público por excelência, no qual o conhecimento especializado precisa orientar os debates envolvendo os mais diferentes atos de violências, sejam eles históricos, como o ocorrido em Auschwitz entre as décadas de 30 e 40 do século XX, com extermínio dos judeus, sejam eles atuais, como os realizados contra os indígenas - como foi o caso da etnia yanomami, afetada pelo garimpo irregular realizado em suas terras, que veio a público em fevereiro de 2023 -, os negros, as mulheres e o público LGTBQIA+.

Na esteira do pensamento da hospitalidade incondicional, Lapoujade (2017, 24b) pergunta: “O que resta a um ser quando seu modo de existência é contestado? Uma vez que “A existência não admite grau; cada existência possui seu modo de ser, intrínseco, incomparável” (LAPOUJADE, 2017, 27b). Dessa forma, não temos um modelo orientador da existência, pois ela guarda singularidades específicas e sentidas pelo ser que expressam o seu modo de existir.

É justamente por esse motivo, ou seja, porque a existência não se faz por grau, que não existe uma maneira melhor de existir, visto que

Todas as existências têm o mesmo grau de realidade, existência e autenticidade. Também não podemos avaliar os modos de existência segundo sua potência de existir. Não há potência de existir maior ou menor. Nesse plano, um ser não é mais realizado do que o outro, mesmo comparado a si mesmo (LAPOUJADE, 2017, 28b).

As compreensões sobre as existências precisam destacar as diferenças de natureza. Dessa forma, esses corpos serão compreendidos pelas diferenças dos seus modos de pensar, de ser, de sentir e de viver no mundo, visto que:

[...] o engano mais geral do pensamento, o engano comum à ciência e à metafísica, talvez seja conceber tudo em termos de mais e de menos, e de ver apenas diferenças de grau ou diferenças de intensidade ali onde, mais profundamente, há diferenças de natureza (DELEUZE, 2012, p. 15).

Pensamos que a ideia de hospitalidade em Jacques Derrida está relacionada ao ato de acolher e oferecer abrigo ao outro, garantindo sua existência na condição de possuidor de uma différance. Para além disso, corresponde a um ato de hospitalidade incondicional, realizada com cuidado para que não ocorra o apagamento de um sujeito diante do outro.

Trata-se de um pensar diferente, que consiste em potencializar o ser para uma vida em estado de liberdade de pensamento e de criação, visto que conforme a análise de WORMS (2010, p. 66), o que quer que pensemos, visa “alcançar a um Eu autônomo até na produção dos seus atos no mundo”. Já Lapoujade (2017 a) reitera ao dizer que a liberdade não é tanto uma liberdade de ação, mas uma liberdade de expressão e de criação. Agir não é cometer uma ação, é antes de tudo expressar ou criar.

Essa liberdade, para se realizar, necessita reconhecer as outras formas de expressões e existência das corporeidades. Ou seja, é necessário reconhecer seu direito de exercer sua autonomia, em vez de tê-las submetidas ao entendimento de que devem existir sob a heteronomia de quem o quer mantê-las controladas e adestradas. Em se tratando de processos de escolaridades, entende-se que eles não consistem apenas em atividades de ensinamentos dos conteúdos estritamente relacionados aos saberes curriculares, mas às temáticas envolvendo os princípios fundamentais para a vida, como liberdade, igualdade, solidariedade.

Assim, entendemos que é preciso promover debates que potencializem a liberdade de pensamento e que possam considerar e garantir o direito de ser, de viver, de pensar e de sentir das diversas formas de existir em sociedade.

Por uma pedagogia da hospitalidade incondicional do outro

A pesquisa foi realizada a partir da orientação da Filosofia da Diferença (DERRIDA, 2004). Contou com a participação de trinta e quatro docentes em formação que responderam a uma pergunta elaborada sobre o estado democrático de direito, com foco para suas compreensões sobre as corporeidades negras, indígenas e com as diferentes orientações sexuais. Deu-se com o propósito de destacar seus entendimentos e posicionamentos sobre o processo de equidade desses corpos, que existem nas suas formas de sentir, pensar, ser e viver.

Suas respostas foram agrupadas em três blocos. Um com estudantes que não fizeram menção à questão e não demonstraram compreensões sobre a pergunta; o segundo grupo, com doze estudantes que reconhecem o preconceito, o racismo e os atos de violência, mas foram enfáticos em dizer que se trata de uma determinação da sociedade, pois ela o impõe; e o terceiro reconheceu as diferenças das corporeidades, ao mesmo tempo, foi propositivo, com destaque para atos de enfrentamento para resistir-existir. Resguardamos o anonimato de quem respondeu.

Dos trinta e quatro posicionamentos de docentes em formação, treze reconheceram os atos de preconceitos e de racismos no Brasil, mas não aprofundaram a discussão. O que pode indicar a necessidade de domínio de conhecimentos que pudessem oferecer as bases para análises com mais envergadura. Vinte e uma pessoas responderam às questões, divididas em dois grupos de respostas, sendo que nove reconhecem a necessidade de contestação do preconceito, do racismo, da homofobia, da transfobia; enquanto doze reconhecem os fatos descritos, mas os naturalizam ao afirmarem que correspondem a uma imposição da sociedade. A seguir, apresentamos o Quadro 1, para ilustrar algumas das respostas obtidas:

Quadro 1 Corporeidades negras, indígenas e das diferenças sexuais 

RESPOSTAS DOS DOCENTES EM FORMAÇÃO NA GRADUAÇÃO
Compreendem os fatos e destacam a formação do pensamento Compreendem os fatos, mas não destacam a formação do pensamento
1. No plano do corpo da mulher, a experiência devida é marcada pela luta contra a discriminação e a violência de gênero. 1. Desenvolve sua resposta com elaboração de perguntas, o que pode indicar impossibilidades de reação. “Como explicar ao meio de um genocídio indígena que os seres que estão vivendo aquilo têm seus suposto direitos”? [...] apesar de tanta luta é discriminado pela sociedade.
2. [...] há uma tentativa de transformar todas as diferentes formas de existências em uma só, transformar todos em corpos fechados, em corpos semelhantes. 2. Há sempre um modo existencial que nos é imposto, ele pode ser como regras sociais, que nos é imposta de forma contínua e até voluntária ou de uma forma forçada.
3. Ao falar de corpos potentes, podemos tratar das diferentes formas em que se expressam o devir: através do corpo-indígena, do corpo-negro, do devir-mulher, devir-criança e devir das diferenças sexuais [...] sinônimo de afirmação da vida. 3. O corpo-mulher é algo meio complexo, é necessário olhar a sociedade em volta para percebemos o lugar da mulher, onde ela está inserida.
Nós não negamos aquilo que foi imposto a nós.
4. Corpos que lutam para comprovar sua existência, lutam para conquistar seu lugar [...]. Cada existência possui seu modo de existir [...] o devir-mulher seria essa fuga dos valores e do modelo estabelecido pela sociedade.
Devir-mulher [...] se o corpo não tiver vontade de criar sua própria existência, fazendo as suas escolhas baseadas no seu desejo, ele nunca será liberto, o indivíduo nunca terá conquistado o seu direito de existir.
5. Pessoas racializadas [...] vemos que somos despossuídos [...] a sociedade impõe sobre as pessoas.
Acontece a partir de uma imposição de um modelo que limita suas existências. Por exemplo, a mulher deve casar e ter filhos [...] dar netos aos seus pais.
O corpo-mulher na sociedade machista e patriarcal é tratado como inferior, assim resultando nas diferenças de direitos imposta pela sociedade.
6. A luta para se ter o respeito dos corpos (da mulher, do negro, das diferenças sexuais) é diária e difícil. 8. Uma sociedade machista e patriarcal.
Racismo estrutural que ainda perdura durante séculos.
7. Esses corpos estão a todo momento tendo o direito de existir questionado e negado. Esses corpos lutam por representatividade, eles querem ser vistos pela sociedade e assim conseguir o respeito e o direito de existir em paz. 10. Corpo ideologizado e aceito pela classe dominante.
A mulher é criada para a reprodução, para cuidados domésticos, valores constituídos na sociedade.
8. [...] corpo-mulher [...] ser mais do que aquilo instruído pela sociedade.
É necessária uma educação antirracista e inclusiva, pois não se vive livre de estigmas e preconceitos.
12. No decorrer dos anos e evoluções, a sociedade passou a considerar a liberdade e igualdade daqueles que eram excluídos.

Fonte: pesquisa de campo, 2023.

Fica evidenciada, nas respostas, a identificação do preconceito, do racismo, dos atos de violência contra a mulher, contra os indígenas e os negros, mas as discussões enfatizam uma certa condição de naturalidade das evidências, sobretudo quando dizem que o fenômeno é uma condição de imposição da sociedade. Isso denota um evento na dimensão de sua naturalidade, ao mesmo tempo revela certa falta de potência para se opor ao que identificam como atos de violência impostos pela sociedade.

No trecho “Corpos que lutam para comprovar sua existência, lutam para conquistar seu lugar”, observa-se a proposição de Silva (2022, p. 51) de que a “[...] nova ordem que a normalização higiênica instaurou utilizava o cientificismo para exercer um controle terapêutico que substituísse o controle religioso”. Nessa direção, a ideologia higienista impôs a obediência à medicina, em substituição ao dogma cristão, para definir um padrão de normalidade para as corporeidades. Ao operacionalizar esse dispositivo de controle, o médico-higienista também determinou as “deficiências” da educação, sobretudo da educação moral. Ocorre que as pessoas não são objetos classificáveis como se estivessem em uma prateleira de supermercado. Os corpos negros, indígenas e de diferentes orientações sexuais lutam e resistem.

Em oposição a esse entendimento, nove respondentes reconhecem os atos de violência contra as corporeidades, mas destacam o enfrentamento, a luta contra os fatos evidenciados. Tal fato sugere que é necessário agir para contestar e criar outras formas de pensamento e de reconhecimento das diferenças na sociedade. Reitero que além de reconhecerem os fenômenos, demonstram a atitude de que é possível ser propositivo, enfrentar a imposição, as agressões com vistas a criar as condições de existências dos corpos de formas diferentes.

Ainda que o Corpos, gêneros e sexualidades 5º da CF/88 assegure o direito à inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, convivemos com os atos manifestos de racismos, os atos manifestos de violência contra a mulher, os atos manifestos de repúdio aos indígenas e os atos manifestos de violência contra as diferenças sexuais. Atos manifestos na esfera pública, nas esferas dos parlamentos brasileiros; nas redes sociais e no convívio social, quando trabalhadores negros são agredidos verbal e/ou fisicamente; quando as mulheres são vítimas física e emocionais dos homens; quando as corporeidades das diferenças sexuais são agredidas e, muitas vezes, mortas.

Não foram raros os momentos de “fuga” da escola quando comecei a cursar as séries iniciais do ensino fundamental em uma pequena escola da comunidade Álter do Chão/PA. Para um corpo que, até então, só havia experimentado a liberdade, a escola, com sua estrutura curricular descontextualizada, configuravase como uma prisão. A escola nos afastava da comunidade, afastava nossos corpos dos aprendizados sociais, reflexos da educação colonizadora, empenhada no silenciamento de nossas realidades, uma vez que, como nos alerta Mauss (2003), o corpo é o lugar no qual se opera o aprendizado social.

Quando partimos para análises acerca da presença indígena e negra no ensino superior, podemos considerar alguns avanços, sobretudo nas políticas voltadas ao ingresso de indígenas na academia. Quando ingressamos na universidade, há pouco mais de vinte anos, as políticas de ações afirmativas, seja por meio das cotas ou vestibulares específicos e diferenciados, eram inexistentes e a universidade se apresentava como um ambiente completamente estranho. Apesar do abalo inicial, com o tempo fomos percebendo a necessidade de apropriação dos símbolos ocidentais para compreender o contexto ao qual a população indígena e negra estava inserida e foi, portanto, na academia, que iniciamos nossa trajetória de militância no movimento indígena e negro.

Apesar dos avanços nas políticas de ações afirmativas voltadas para o acesso da população indígena e negra ao ensino superior, seja por meio da política de cotas ou por meio de vestibulares específicos, as políticas voltadas para a permanência destes no ambiente acadêmico são insuficientes, sobretudo quando se pensa na transformação das universidades em instituições acolhedoras aos corpos indígenas, negros e pretos.

Afirmar e potencializar a vida: abertura para debates inclusivos

Em se tratando de formação acadêmica, sobretudo para a docência, é necessário desnaturalizar os fenômenos. É preciso entender que eles são criados, são reproduzidos e ocorrem no plano da imanência, ou seja, são maquinações sociais. Dizer que a sociedade assim exige, assim impõe, assim determina a vida é eximir-se da possibilidade de entendimento e de enfrentamento com vista a outras formas de entendimento das corporeidades. Ao mesmo tempo, revela um pensamento que procura compreender os fenômenos mediante uma estrutura. Ou seja, eles existem e orientam o pensamento social, mas estão aí como resultado de uma estrutura de poder, cuja ação incide sobre a sociedade.

Sobre as ideias de inferioridade e do perigo construído e atribuído às diferentes formas de existência - pessoas negras/pretas, indígenas do Brasil, judeus, por ocasião do nazismo, e corporeidades das diferentes orientações sexuais - é “[...] uma tarefa de desconstrução sem fim: é preciso haurir na memória da herança os utensílios conceituais que permitam os limites impostos até aqui por essa herança” (DERRIDA, 2004, p. 31).

Diante do exposto, entendemos que o processo de formação docente na graduação não consiste somente em conhecer os componentes curriculares circunscritos aos saberes modernos e acadêmicos, mas também em conhecer e reconhecer que somos duas partes constitutivas da vida: uma está intimamente ligada ao corpo orgânico, pela qual nos definem como masculino ou feminino, homem ou mulher; outra que corresponde a nossa existência de ser no mundo.

As características binárias orientam predominantemente nossos juízos, mas o corpo orgânico não predetermina todas as corporeidades. Elas são expressões intimamente ligadas às nossas existências, mas existências que decorrem do sentir-se hetero, sentir-se lésbica, sentir-se gay, sentir-se bissexual, sentir-se transgênero, sentir-se queer, sentir-se intersexual e assexual e identificações outras.

Afinal, pessoas são membros da sociedade e não podem ser indiferentes às questões que envolvem as corporeidades e os atos de violência sofridos por elas ao manifestarem suas existências. Pessoas são membros da sociedade, que também podem ser corporeidades das diferenças sexuais e precisam construir seus pensamentos sobre essas corporeidades.

Não são poucos os obstáculos que dificultam a presença e a permanência indígena, negra/ preta nos ambientes acadêmicos. Obstáculos sociais (preconceito, discriminação) e culturais (dificuldade de adaptação em instituições cujas estruturas organizacionais estão distanciadas das realidades socioculturais e sociolinguísticas) são comuns. As instituições de ensino superior não estão preparadas para receber os corpos indígenas, negros/pretos, corpos sagrados onde habitam nossa ancestralidade, onde expressamos nossa forma de ser e viver no mundo, corpos potentes. Esses corpos, carregados de elementos simbólicos, de nuances culturais específicas, ainda são tomados como corpos estranhos dentro da academia.

Em ambas as situações, é necessário produzir conhecimentos sobre as existências das corporeidades, reconhecer formas de sentir, de expressão e de vida. Afinal, o direito de cidadania não está circunscrito à heteronormatividade, tampouco exclui os cidadãos e as cidadãs das diferenças sexuais. A diferença não se mede por graus, pois se assim o fosse, existiriam corpos com mais ou menos cidadania, corpos com mais ou menos direitos de existir, corpos com mais qualidade porque seguem o modelo a ser seguido, corpos com menos qualidade, assim, o indesejado, o que deveria ser evitado e combatido. A diferença não pode ser medida e quantificada.

A corporeidade da diferença não requer um exemplo externo para se orientar, não se move por estímulos, ela é a expressão de si, a manifestação de si e a resistência com vista a conquistar o seu direito de um ser que manifesta existência no mundo como corpo-próprio. Embora próprio, ele desvia-se do essencialismo, de um modelo orientado estritamente por uma predeterminação das corporeidades. O corpo próprio orienta-se pela essencialidade, pois sua diferença é um ato de Afirmação da Vida! Da vida indígena, da vida negra, da vida mulher, da vida das diferenças sexuais. Em uma sociedade com graus razoáveis de civilidade, garantir o direito de existência dos negros, indígenas e pessoas das diferentes orientações sexuais é uma necessidade urgente.

Agradecimentos ao apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam) e da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).

1Em 24 de abril de 2023, a Câmara de Vereadores de Belo Horizonte/MG aprovou o Projeto de Lei n. 54/2021, com o mesmo teor.

2Neste texto, não temos o objetivo de avançar na análise pormenorizada dos conteúdos dos livros didáticos que versam sobre a questão indígena, para aprofundamento ver: DA SILVA, C. G., DE AMORIM, R. M., & VIEIRA PIZZI, L. C. A imagem dos povos indígenas no livro didático de História do sexto ano do Ensino Fundamental: desafios e possibilidades para o currículo escolar. Linguagens, Educação E Sociedade, 25(48), 39-59, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufpi.br/index.php/lingedusoc/article/view/2451. Acesso em 20 de maio de 2023.

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Recebido: 31 de Agosto de 2023; Aceito: 10 de Outubro de 2023

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Doutor em Educação, professor Associado da Universidade do Estado do Amazonas. Atua na graduação de pedagogia, no Mestrado em Educação em Ensino de Ciências na Amazônia - UEA, no doutorado Rede Amazônica de Ensino de Ciências e Matemática - Reamec e no doutorado em Educação na Amazônia - EducaNorte. Bolsista de Produtividade CT&I - Fapeam. E-mail: jvicente@uea.edu.br

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Doutora em Ensino de Ciências e Matemática, professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão. Atua na graduação de Pedagogia e no Mestrado em Gestão de Ensino da Educação Básica (PPGEEB). E-mail: ka.oliveira@ufma.br

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Doutorando em Educação na Amazônia (Pgeda/Ufam). Mestrado em Ciências Humanas pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Bolsista Posgrad/Fapeam e membro do projeto de Produtividade CT&I - Fapeam. E-mail: rpmaduro01@ gmail.com

Corpos, gêneros e sexualidades revisado por Adriano de Carvalho Braule Pinto

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