CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A Nota sobre a resolução sobre a tipificação da pesquisa e a tramitação dos protocolos no Sistema CEP/CONEP, da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), de 2 de maio de 2019, seguindo a linha da manifestação de “Recusa do Fórum de Ciências Humanas e Sociais e Sociais Aplicadas, Letras e Artes (FCHSSALA) ao convite da CONEP”, de 11 de março de 2019, jogou nova luz sobre a conturbada questão da regulamentação da conduta em pesquisa no campo educacional, como parte das Ciências Humanas e Sociais (CHS) no Brasil.1 Afirma-se isso, pois ambas as manifestações decorrem da moção do Fórum de Ciências Humanas e Sociais e Sociais Aplicadas, de setembro de 2018, que incentiva: a saída coletiva das instituições das Ciências Humanas e Sociais e Sociais Aplicadas (CHSSA) do sistema CONEP e a instituição de um sistema de avaliação da ética na pesquisa em CHSSA, a ser adotado doravante pelo conjunto dos pesquisadores e instituições da área, o que pode culminar com o rompimento das CHS com o sistema CEP/CONEP (Comitê de Ética em Pesquisa/Comissão Nacional de Ética em Pesquisa).
A intenção no presente artigo é acrescentar argumentos a esse debate mediante um estudo da regulação da conduta em pesquisa (impropriamente chamada de regulação da ética em pesquisa),2 de acordo com a abordagem de três aspectos:
uma análise crítica hermenêutica da normativa que regula a conduta dos pesquisadores das CHS no Brasil, visando a demonstrar a inadequação da regulamentação produzida pelo Conselho Nacional da Saúde (CNS);
a contextualização internacional do caso da regulação brasileira das CHS; e
a apresentação dos resultados de uma pesquisa exploratória que objetivou conhecer as opiniões de uma amostra de doutorandos de programas de pós-graduação em educação do Brasil, avaliados com conceito 6 ou 7 da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal Nível Superior (CAPES), sobre a ética na formação da pós-graduação stricto sensu e sua relação com a regulação.
DA COMPETÊNCIA DO CONSELHO NACIONAL DA SAÚDE - OU DA RAZOABILIDADE
De todo o material produzido sobre a regulação da pesquisa nas CHS no Brasil, podemos afirmar que o principal ponto de discussão é a inadequação de uma regulamentação produzida no âmbito das Ciências da Saúde para ser aplicada na investigação nesse âmbito. Nesse sentido, há que se considerar que as impropriedades normativas em geral podem ser decorrentes de falta de competência, quer seja normativa, quando uma esfera de poder legisla sobre temática fora de sua atribuição legal, quer seja técnica, o que ocorre quando, mesmo com atribuição legal, falta ao legislador conhecimento sobre a matéria.3 Analisando-se as qualificadas produções envolvendo a questão sob análise, a maioria concentra-se na falta de competência técnica do CNS para estabelecer uma normatização ao campo das CHS, pois a regulamentação desse conselho adota o paradigma biomédico, estranho às pesquisas nas CHS.
Nesse contexto, iniciaremos por uma hermenêutica jurídica da resolução CNS n. 510/2016, entendendo-se hermenêutica como “[...] a técnica de interpretação que por meio de princípios, critérios e orientações conduzem o exegeta à percepção e ao discernimento das ações, pretextos e circunstâncias vivenciadas no corpo social” (Souza e Borile, 2017, p. 351). De acordo com uma análise crítica,
[...] fazer hermenêutica jurídica é realizar um processo de compreensão do Direito. Fazer hermenêutica é desconfiar do mundo e de suas certezas, é olhar de soslaio, rompendo-se com (um)a hermé(nêu)tica jurídica tradicional-objetificante prisioneira do (idealista) paradigma epistemológico da filosofia da consciência. Com (ess)a (nova) compreensão hermenêutica do Direito recupera-se o sentido-possível-de-um-determinado-texto e não a reconstrução do texto advindo de um significante-primordial-fundante. (Streck, 1999, p. 200)
No caso em análise, o processo hermenêutico terá como finalidade investigar sobre a competência do CNS, buscando pela razoabilidade do fundamento da norma, tanto dentro quanto para além do ordenamento jurídico, tendo como hipótese uma disputa de poder entre campos distintos, nos quais impera uma assimetria de forças. Valendo-se dessa assimetria, o CNS impõe como legítima e natural a sua competência normativa sobre as CHS. Interpretar é desconfiar da norma e de sua autojustificante legitimidade. Esse tipo de ocorrência não é raramente percebida no âmbito político-normativo, nesse sentido:
É relevante frisar, destarte, que toda esta problemática se forja no interior do que se pode chamar de establishment jurídico, que atua de forma difusa, buscando uma espécie de “uniformização de sentido”, que, segundo Bourdieu e Passeron, tem uma relação direta com um fator normativo de poder, o poder de violência simbólica. Trata-se do poder capaz de impor significações como legítimas, dissimulando as relações de força que estão no fundamento da própria força. (Streck, 1999, p. 69)
A análise hermenêutica jurídica da resolução CNS n. 510/2016 parece-nos fazer especial sentido no momento de uma possível ruptura das associações que representam as CHS com o sistema CEP/CONEP. Para tanto, iniciaremos por uma interpretação baseada no próprio texto dessa legislação, que estabelece em seu primeiro artigo:
Esta Resolução dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais cujos procedimentos metodológicos envolvam a utilização de dados diretamente obtidos com os participantes ou de informações identificáveis ou que possam acarretar riscos maiores do que os existentes na vida cotidiana, na forma definida nesta Resolução. (Brasil, 2016)
Em um Estado democrático de direito, as competências normativas não são aleatórias, elas decorrem de uma organização racional-normativa que tem como principal fonte as constituições nacionais. Para tanto, a organização constitucional estabelece uma hierarquia entre as normas, visando a evitar ou remediar que uma autoridade com competência legislativa imprópria interfira em uma norma de competência específica ou, ainda, promulgada por uma autoridade hierarquicamente superior. Tal questão seria passível de uma análise jurídica pormenorizada, contudo, para fins do argumento que será defendido no presente artigo, basta a noção lógico-jurídica de que em um Estado democrático de direito é necessário que haja uma organização na distribuição das competências normativas que têm como fonte a Constituição Federal. Feitas essas considerações, podemos afirmar que uma resolução não pode criar competências de forma autônoma e distintas daquelas expressamente previstas na Constituição ou por lei. A par disso, voltemos ao texto da referida resolução, mais especificamente à sua ementa, onde está indicada a base legislativa a ser por ela regulamentada:
O Plenário do Conselho Nacional de Saúde em sua Quinquagésima Nona Reunião Extraordinária, realizada nos dias 06 e 07 de abril de 2016, no uso de suas competências regimentais e atribuições conferidas pela lei n. 8.080, de 19 de setembro de 1990, pela Lei no 8.142, de 28 de dezembro de 1990, pelo decreto n. 5.839, de 11 de julho de 2006. (Brasil, 2016)
Ou seja, de acordo com a resolução CNS n. 510/2016, o CNS teria competência para legislar sobre a matéria constante da resolução em questão com base nas leis federais n. 8.080/1990, n. 8.142/1990 e no decreto n. 5.839/2006. A primeira questão que pode ser levantada é de que a melhor técnica legislativa sugere uma indicação expressa de qual dos artigos dos referidos instrumentos normativos que confere competência ao CNS para promulgar a resolução n. 510/2016. Na ausência de indicação expressa, resta-nos uma leitura atenta da íntegra das três normas.
Em sua ementa, a lei n. 8.080/1990 esclarece que ela “[d]ispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências”, o que, ao menos à primeira vista, está bastante longe da regulamentação das pesquisas no campo das CHS. Essa lei é dividida em cinco títulos, a saber:
das disposições gerais;
do Sistema Único de Saúde;
dos serviços privados de assistência à saúde;
dos recursos humanos (referindo-se expressamente aos recursos humanos da área da saúde no artigo 27); e
do financiamento.
Em nenhum dos cinquenta e cinco artigos, divididos nos referidos títulos, existe qualquer menção à regulamentação da conduta em pesquisa, muito menos nas CHS.
Por sua vez, a ementa da lei n. 8.142/1990 afirma que ela “[d]ispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) e sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde e dá outras providências”. Essa lei, de pronto, expressamente estabelece temática bastante distinta da conduta em pesquisa e nem mesmo teria espaço para tanto em seus sete artigos.
Resta-nos analisar o decreto n. 5.839/2006, que “[d]ispõe sobre a organização, as atribuições e o processo eleitoral do Conselho Nacional de Saúde - CNS e dá outras providências”. O curto decreto, já no segundo de seus dezesseis artigos, aproxima-se mais da temática em questão:
Art. 2º Ao CNS compete:
[...]
VII - acompanhar o processo de desenvolvimento e incorporação científica e tecnológica na área de saúde, visando à observação de padrões éticos compatíveis com o desenvolvimento soociocultural do País; [...]. (grifos nossos)
Assim, da análise dos três instrumentos normativos apontados pela resolução CNS n. 510/2016 como fundamento para a competência do CNS na regulamentação da conduta da pesquisa no campo das CHS, há apenas um artigo de um decreto que atribui competência ao CNS no tocante à “observância de padrões éticos” expressamente na área da Saúde. Com isso posto, podemos afirmar que não é possível encontrar-se competência legislativa do CNS nas normas citadas pela resolução CNS n. 510/2016 para regulamentar a pesquisa nas CHS. No entanto, seguiremos a análise para aportar mais argumentos ao debate.
Avançando no estudo dessa resolução, ainda nos chamados considerandos, é possível encontrar que “[c]onsiderando que a resolução 466/2012, no artigo XIII. 3, reconhece as especificidades éticas das pesquisas nas Ciências Humanas e Sociais e de outras que se utilizam de metodologias próprias dessas áreas, dadas suas particularidades”. Dessa afirmação é possível depreender que a resolução CNS n. 510/2016 toma emprestada competência legislativa da resolução CNS n. 466/2012, o que seria uma impropriedade, pois resoluções são instrumentos normativos complementares de matéria estabelecida em lei, o que não é o caso. Tal entendimento de uma apropriação indevida é reforçado nos artigos finais da resolução CNS n. 510/2016:
Art. 32. Aplica-se o disposto nos itens VII, VIII, IX e X, da Resolução CNS n. 466, de 12, de dezembro de 2012, no que couber e quando não houver prejuízo ao disposto nesta Resolução.
Parágrafo único. Em situações não contempladas por essa Resolução, prevalecerão os princípios éticos contidos na Resolução CNS no 466 de 2012.
Compulsando-se a resolução CNS n. 466/2012 em busca de pistas sobre a competência normativa do CNS sobre a pesquisa nas CHS, não é possível encontrar outras leis além daquelas já analisadas: n. 8.080/1990 e n. 8.142/1990. Há, ainda, referência a normas internacionais e a outras resoluções do próprio CNS, destacando-se a resolução n. 196/1996, que foi revogada pela resolução n. 466/2012. Mesmo revogada, a resolução 196/1996 traz ao menos dois elementos importantes para a análise ora em curso: ela legisla sobre a pesquisa envolvendo seres humanos de forma indistinta (Ciências da Saúde e CHS) e ela revoga a resolução n. 01/1988, que é uma chave interpretativa importante para a compreensão de todo o imbróglio.
Afirma-se a importância da resolução n. 01/1988, pois ela parece ser o elo perdido dessa tumultuada cadeia normativa. Afirma-se isso, pois a referida resolução, desde o seu início, diferentemente das resoluções que a sucederam, esclarece:
O Conselho Nacional de Saúde, no uso da competência que lhe é outorgada pelo Decreto n. 93.933 de 14 de janeiro de 1987, RESOLVE: aprovar as normas de pesquisa em saúde.
CAPÍTULO 1 - NORMAS DE PESQUISA EM SAÚDE
Art. 1 Esta Resolução tem por objetivo normatizar a pesquisa na área de saúde. (grifos nossos)
A clareza de que o Ministério da Saúde está normatizando procedimentos de pesquisa na área da Saúde acompanha integralmente o texto. Tal questão merece uma análise mais completa, considerando-se a longa história do CNS e a infinidade de normas que já foram revogadas desde a sua criação pelo decreto n. 378, de 1937. De acordo com o próprio sítio eletrônico do CNS, “[a]té 1990 foi um órgão consultivo do Ministério da Saúde, cujos membros eram indicados pelo próprio Ministro de Estado” (CNS, 2019). Considerando-se que a mudança no papel do CNS ocorreu a partir de 1990, como afirma o trecho antes citado, tal modificação foi promovida pelas leis n. 8.080/1990 e n. 8.142/1990.
Contudo, o alargamento normativo que permitiria o avanço do CNS, instrumentalizado na atualização da resolução n. 01/1988 para a resolução n. 196/1996, invadindo a competência das CHS, não encontra respaldo nas referidas leis de 1990. É interessante notar, ao revisar as resoluções do CNS entre os anos de 1990 e 1996, que a maioria delas permanece estritamente dentro da atribuição legal de uma resolução, tratando de demandas inerentes à área da Saúde e regulamentando competências estabelecidas em lei para o CNS. Entre as diversas resoluções do CNS, chamam atenção as resoluções n. 170/1995 e n. 173/1995; a primeira criou o grupo de trabalho para atualização da resolução n. 01/1988 e a segunda aprovou o plano de trabalho de referido grupo. Nesse plano de trabalho, consta expressamente: “O objeto central do trabalho de revisão é referente aos aspectos éticos da pesquisa em saúde envolvendo seres humanos” (Brasil, 1995b). Algo ocorreu entre a aprovação da resolução n. 173/1995 e a elaboração do texto final da resolução CNS n. 196/1996, que fez com que a regulamentação se projetasse de forma imprópria para o campo das CHS.
Feitas essas considerações que remetem à ausência de competência legislativa por parte do CNS para regulamentar a conduta dos pesquisadores nas CHS, é importante investigar qual o fundamento, mesmo que não seja de ordem legal, para tal confusão legislativa. Analisando-se novamente toda a legislação envolvida, dessa vez com menor rigor hermenêutico, é possível perceber que as leis n. 8.080/1990 e n. 8.142/1990 possuem como fundamento, na maior parte do texto de forma implícita, a “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral” (art. 7º, inc. III, da lei n. 8.080/1990). Com base em uma interpretação extensiva, seria possível afirmar que o CNS tem competência legal para regulamentar a conduta em pesquisa nas Ciências da Saúde e também para estabelecer os princípios de observação obrigatória para a preservação da integridade física e moral das pessoas em qualquer pesquisa envolvendo seres humanos. Tal interpretação legitimaria que o CNS estabelecesse os procedimentos de pesquisa na área da Saúde e, apenas, quais os princípios a serem observados nas pesquisas nas CHS. Note-se que há uma diferença significativa entre normatizar um processo para preservação dos princípios e apenas estabelecer quais os princípios devem ser observados.
Se, por um lado, as referidas leis de 1990 permitem que tal interpretação seja compreendida como a mais correta, o mesmo ocorre quando analisada a legislação internacional citada expressamente pelas resoluções do CNS, especialmente n. 196/1996, n. 466/2012 e n. 510/2016, justamente no tocante à proteção da integridade humana. As três resoluções afirmam estarem fundamentadas nas seguintes normas: o Código de Nuremberg (1947), a Declaração dos Direitos do Homem (1948), a Declaração de Helsinque (1964 e suas versões posteriores de 1975, 1983, 1989, 1996 e 2000), o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (1966), além de outras normas internacionais de menor expressão e específicas sobre bioética. Quando analisadas as normas de caráter internacional invocadas como fundamento pelas resoluções do CNS, é possível perceber que são normas fundadas em princípios éticos a serem respeitados, e não em processos que garantiriam a preservação de princípios éticos.
A concepção normativa que fundamenta as normas internacionais citadas pelo CNS é mais razoável do que a invasão de competência praticada pelo Conselho. É natural que as Ciências da Saúde estabeleçam princípios fundamentais relativos à integridade física e moral e que tais princípios sejam observados por todos os campos de pesquisa. Contudo, não é razoável que as Ciências da Saúde avancem na regulamentação de procedimentos de pesquisa que, além de não garantirem a observância dos princípios fundamentais, ainda acabam por engessar e prejudicar a pesquisa em CHS, ao impor um modelo inadequado. Nesse sentido, Isabel Carvalho (2018, p. 156), ao apresentar o livro Ética e pesquisa em educação, de autoria de Rachel Brooks (Reino Unido), Kitty te Riele (Austrália) e Meg Maguire (Reino Unido), afirma:
As autoras não desconhecem e tampouco desqualificam a perspectiva principialista da ética Biomédica, mas reconhecem os limites da pretensão de universalidade dos enquadramentos predeterminados diante da variabilidade dos contextos culturais específicos onde as pesquisas são conduzidas.
Importante ressaltar que, caso a interpretação normativa realizada até aqui tenha deixado escapar alguma nuance e o CNS efetivamente possua competência legislativa para regulamentar o processo de pesquisa nas CHS, restaria, ainda assim, investigar pela competência técnica desse conselho. Investigar pela competência técnica é perguntar, também, por razoabilidade. Parece razoável que o CNS regulamente o processo de pesquisa nas Ciências Humanas e Sociais? Mesmo que o direito, por meio de uma de suas ficções jurídicas, conferisse competência legal para esse conselho, essa manifesta invasão normativa poderia ser considerada razoável?
Além do puro raciocínio lógico, que parece mais que suficiente para afirmar que não é razoável que uma norma de um órgão da Saúde regulamente o processo de investigação nas CHS, recorrer à experiência internacional é uma boa alternativa para pensarmos se a referida invasão normativa é razoável. Embora conscientes da impossibilidade da pura e simples importação de experiências estrangeiras sem a devida adequação à realidade nacional, os caminhos adotados por outros países, especialmente por aqueles em estágio mais avançado de bem-estar social, funcionam ao menos como indicativos.
A NORMATIVA REGULATÓRIA BRASILEIRA NO CONTEXTO INTERNACIONAL
Para o objetivo específico proposto no presente artigo, não se trata de realizar um estudo comparado em toda sua amplitude, mas apenas de buscar argumentos que auxiliem a pensar sobre a razoabilidade da normatização em questão. Mark Israel e Iain Hay (2006, p. 40) foram capazes de identificar três questões recorrentes nos processos de regulamentação da conduta em pesquisa no âmbito internacional, com base em um estudo realizado nos países da América da Norte, da Australásia (região que inclui a Austrália, a Nova Zelândia, a Nova Guiné e algumas ilhas menores da parte oriental da Indonésia), da África do Sul e em partes da Europa:
Primeiramente, muitas iniciativas regulatórias iniciaram como respostas a crises, frequentemente causadas por práticas em pesquisa biomédica. [...] Em segundo lugar, em vários dos países pesquisados, estratégias de revisão ética baseadas na experiência biomédica estão sendo aplicadas no trabalho de cientistas sociais. [...] Em terceiro, as abordagens à regulação ética parecem ter sido dominadas por um caráter “de cima para baixo” (Estados Unidos, Canadá, Austrália, Noruega) ou “de baixo para cima” (Reino Unido, Nova Zelândia, África do Sul, Dinamarca). (Israel e Hay, 2006, p. 40, tradução nossa)
Dessas três questões recorrentes, as duas primeiras já foram objeto de nossa atenção e podemos afirmar que o caso brasileiro se identifica com a experiência internacional, conforme reconhecido pelo próprio autor Mark Israel (2015).
Resistindo ao desenvolvimento de um “duplo padrão” entre nações desenvolvidas e em desenvolvimento, as regulamentações brasileiras permitem a colonização da ética de pesquisa em ciências sociais pela bioética... Não surpreendentemente, a Resolução 466/12 foi rejeitada por associações de antropólogos, sociólogos e cientistas políticos brasileiros que estão trabalhando com a CONEP um novo esboço para cientistas sociais. (Israel, 2015, tradução nossa)
Posto isso, concentraremos nossa atenção para a terceira das questões apontadas como recorrentes nos regulamentos no cenário internacional, qual seja, de que foi possível identificar duas principais formas de abordagem com relação à regulamentação: de cima para baixo e de baixo para cima. No ano da referida pesquisa, 2006, os autores identificaram que os sistemas nacionais oscilavam de uma centralização extrema, como no caso dos Estados Unidos, até a sua oposta descentralização, como no caso da Dinamarca, com grande protagonismo na figura do pesquisador na avaliação dos mecanismos de verificação da observância dos princípios éticos na pesquisa. No meio desses dois extremos, tendendo mais para o segundo dos modelos, os autores identificaram um crescente protagonismo das entidades representativas, associações e instituições não governamentais como participantes do processo de definição de princípios aplicáveis de forma específica aos seus respectivos locais de fala. Como decorrência de sua análise criteriosa, os autores foram capazes de, em 2006, afirmar que “o futuro pode trazer uma regulamentação ainda mais amplamente aplicada, com a emergência de novas abordagens supranacionais (por exemplo, a Área Europeia de Pesquisa)” (Israel e Hay, 2006, p. 40). A previsão de Israel e Hay (2006) vem confirmando-se, pelo menos, no âmbito da União Europeia. É, por exemplo, o caso das normativas estabelecidas pela Comissão Europeia, como parte das iniciativas da European Research Area (ERA).
O caso é especialmente interessante para efeitos de comparação em virtude da representativa quantidade de países-membros da União Europeia (28, além de 15 países que participam como observadores) e pelo elevado grau de desenvolvimento da pesquisa em seus países-membros. A Comissão Europeia tem funcionado como repositório de normativas que estabelecem padrões de condutas em pesquisa que instituições de pesquisa e ensino podem subscrever visando a normatizar as atividades de investigações conduzidas em seu âmbito. É o caso, por exemplo, do documento Ethics in Social Science and Humanities, de outubro de 2018. Entre os princípios estabelecidos em referido documentos encontramos:
Os direitos dos participantes da pesquisa estão ancorados nos direitos humanos fundamentais e nos princípios éticos fundamentais que regem toda a pesquisa científica. No contexto das pesquisas financiadas pela Comissão Europeia, as principais fontes da União Europeia e do direito internacional são a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e os seus protocolos (para outros textos). Outras fontes importantes são a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (UNCRPD). Políticas centrais adicionais e declarações amplamente aceitas que codificam princípios de ética em pesquisa e tratamento ético dos participantes da pesquisa incluem o Código de Nuremberg, a Declaração de Helsinque e o Relatório Belmont. Embora esses códigos se originem no campo biomédico, eles englobam os princípios centrais que se aplicam a toda pesquisa humana. (tradução e grifos nossos)
O entendimento manifestado em referido documento endossa o argumento defendido na primeira parte deste texto, de que estabelecer princípios fundamentais é atribuição distinta de regulamentar o processo de pesquisa. Nesse sentido, o documento reforça os princípios éticos aplicáveis a toda e qualquer pesquisa, sempre ressalvando, porém, as distinções aplicáveis ao campo das CHS. Tal entendimento fica claro em diversos trechos do documento (CE, 2018, tradução nossa), entre os quais destacamos:
A pesquisa nas CHS é diversificada e conta com uma infinidade de métodos de pesquisa, os quais precisam de atenção específica com relação à ética. (CE, 2018, p. 5)
A pesquisa em Ciências Humanas e Sociais se baseia em métodos que podem, não intencionalmente, produzir descobertas fora do escopo das questões originais de pesquisa. Trabalhos de campo, observações e entrevistas podem gerar informações que vão além do escopo do projeto de pesquisa, assim, apresentando um dilema ao pesquisador: preservar a confidencialidade ou divulgar a informação a autoridades ou serviços relevantes. (CE, 2018, p. 14)
Os riscos e danos prováveis na pesquisa em CHS podem diferir daqueles da pesquisa clínica. É importante entender sua natureza e probabilidade para estabelecer uma colaboração apropriada com os participantes e medidas para sua proteção. (CE, 2018, p. 18)
As questões de ética em pesquisa na pesquisa nas CHS são diversas e, às vezes, muito complexas. (CE, 2018, p. 19)
Entretanto, mais importante que o mero reconhecimento das particularidades das CHS, que se encontra também nas resoluções do CNS, o referido documento foi concebido e escrito por representantes da área, específico para o campo de pesquisa e com uma abordagem mais informativa e reflexiva que positivista normatizadora, como o caso do CNS. O documento está fundamentado em orientações de caráter reflexivo sobre a responsabilidade do pesquisador e sobre as referidas particularidade da área como, apenas para citar um exemplo:
Uma característica particular da pesquisa em CHS é que as metodologias são dinâmicas, progressivas e de desenvolvimento. Isso significa que antecipar todos os riscos relacionados a pesquisas em fase de proposta pode ser muito difícil. No entanto, você precisa dedicar tempo para pensar em seu projeto de pesquisa e fazer uma avaliação de risco que considere os riscos da perspectiva do indivíduo e da sociedade. (CE, 2018, p. 18, tradução nossa)
Mais que estabelecer normas de regulamentação, o documento tem como preocupação alertar o pesquisador sobre as especificidades de seu campo de pesquisa e convocá-lo para assunção das responsabilidades decorrentes de suas escolhas. Ao final de cada seção do texto, há exemplos, conceitos e textos de caráter reflexivo. Tal preocupação se manifesta ainda mais claramente na previsão de uma lista de verificação para pesquisa nas CHS de alto risco (Checklist for higher-risk SSH research -CE, 2018, p. 20), elencando situações de pesquisa que envolvem elevado risco e, ao final, sugerindo precauções para mitigação desses riscos.
Seguindo o caminho sugerido pelas normas da Comissão Europeia, instituições tradicionais da Europa vêm seguindo a prática dos chamados checklists (listas de verificação). Apenas a título exemplificativo, podemos citar a Universidade do Porto, a Universidade de Oxford e a Universidade de Cambridge. É importante referir que a adoção de tal modelo de regulação abre mais espaço para o compartilhamento de responsabilidades entre todos os interessados na pesquisa, por um lado, e aumenta a autonomia desses mesmos agentes, por outro. É importante registrar que estamos cientes das limitações do modelo europeu, bem como das críticas que sofre pelo próprio Mark Israel (2015). Ainda assim, conforme afirmado anteriormente, não se trata de importar ou supervalorizar um modelo, mas de buscar elementos para pensar o caso brasileiro.
A adoção de um sistema mais compartilhado nos faz pensar que em referido modelo: as autoridades estatais concentram-se naquilo que é fundamental e não despendem tempo nem recursos com questões burocráticas menores, o que até mesmo é compatível com o seu quadro de pessoal naturalmente menos especializado; as entidades representativas de classe, associações etc., local por excelência de especialistas em suas respectivas áreas, estabelecem regulamentos mais detalhados, compatíveis com o seu menor espectro de atuação; as instituições de pesquisa, enquanto entidades mais próximas e diretamente envolvidas com o desenvolvimento da investigação, assumem a condução dos processos de avaliação das observâncias das normas gerais e específicas (em duas instâncias sucessivas, utilizadas apenas se necessário: no nível do curso e no nível da instituição); e os pesquisadores, reais conhecedores da sua pesquisa e maiores interessados em seu andamento, obrigam-se a conhecer as normas e atestar a sua observância.
É o que ocorre, por exemplo, em instituições de pesquisa no Reino Unido e em Portugal no âmbito das CHS. As unidades orgânicas (faculdades) da Universidade do Porto, por exemplo, subscrevem normas específicas de acordo com a sua área. A Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação subscreve, para os projetos na área da Psicologia, o Código Deontológico da Ordem dos Psicólogos Portugueses e, na Educação, a Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação (FPCEUP, 2019; SPCE, 2014). O processo de avaliação inicia-se pela análise do pesquisador em conjunto com o seu orientador. Caso entendam aplicável, o processo é instruído e encaminhado para a Comissão de Ética da Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação e, somente se necessário, de acordo com a natureza da pesquisa, o processo é enviado para a Comissão de Ética da Universidade do Porto. Nessa situação, o trabalho contará com pareceres do orientador e da Comissão de Ética da área e terá como referência uma norma criada pela respectiva entidade com competência técnica sobre a matéria. Assim, aumentará a compreensão sobre a pesquisa, que se aproximará de um fluxo mais orientado de baixo para cima, conforme identificado por Israel e Hay (2006).
Os efeitos desse compartilhamento de responsabilidades, mais do que mera consequência, deveria estar na origem das preocupações governamentais. O desenvolvimento científico, tão desejado pelos Estados, depende primordialmente da possibilidade de construção de identidades próprias dos distintos campos do conhecimento para que as pesquisas possam acompanhar de maneira mais próxima possível os fatos, sem desatentar aos preceitos éticos pertinentes. Se o CNS faz questão de reconhecer em todas as suas resoluções as particularidades das CHS, deveria justamente deixar de invadir indevidamente os processos de regulamentação para que tal assunto passe a ser discutido exclusivamente por pesquisadores com competência (normativa e técnica) sobre a matéria.
Esse é um processo fundamental de formação, amadurecimento e fortalecimento de identidade que deveria pertencer exclusivamente aos pesquisadores da área, sem ignorar os aspectos multi, inter e transdisciplinares, e sabendo-se da seriedade dos investigadores que não se utilizariam dessa autonomia para desrespeitar as demais áreas do conhecimento. Esse movimento fundamental está referenciado em citação de António Nóvoa, na parte inicial da Carta Ética da Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação, como construção e conquista do campo educacional, no intuito de formar uma identidade e ver essa identidade reconhecida e respeitada na sociedade. Nesse sentido:
[...] a identidade das Ciências da Educação constrói-se também, é preciso sublinhá-lo, por adesão a uma comunidade científica de referência, no seio da qual se produzem os critérios de sentido da ação profissional e científica. A emergência de uma identidade segunda é essencial à consolidação de uma comunidade científico-educacional e à definição de uma especificidade transversal das ciências da educação, que instaure progressivamente práticas e atitudes comuns de investigação. (Nóvoa, 1991)
A construção da identidade depende da distinção do eu com relação ao outro. Enquanto as CHS estiverem dentro do CNS, elas não afirmarão a sua identidade em sua integral possibilidade. É fundamental um movimento de afastamento para, reconhecendo aquilo que não é CHS, seja possível constituir e fortalecer aquilo que marca as CHS. Não permitir a formação da autonomia das áreas do conhecimento é uma das maneiras mais eficientes de atravancar o desenvolvimento científico. Tal é o entendimento manifestado na introdução ao documento da Comissão Europeia intitulado Research Ethics in Ethnography/Anthropology (Ética em pesquisa em etnografia/antropologia):
A contribuição que pode ser feita ao avanço do conhecimento humano pelas disciplinas das CHS pode ser obstruída ou prejudicada se critérios de revisão ética inadequados forem aplicados às propostas de pesquisa. A revisão ética deve ser bem informada, justa e transparente, buscando uma justificativa completa para a pesquisa proposta. (CE, 2015, p. 1, tradução nossa)
Da mesma forma que conferir maior responsabilidade às associações e entidades representativas permite (e incentiva) a formação da identidade das áreas do conhecimento, favorecendo o desenvolvimento científico, esse movimento repercute no aumento da responsabilidade da figura central do processo científico que é o investigador. A formação de identidade do pesquisador desde os anos iniciais do processo educacional é medida fundamental para o desenvolvimento científico. Ao habituar o estudante a uma postura passiva ao longo de sua formação e repetir essa passividade quando ele passa a exercer funções de pesquisa, tendo apenas de cumprir protocolos positivados exaustivamente, reduzem-se as possibilidades de formação da identidade do pesquisador e do necessário sentimento de responsabilidade social pela e sobre a sua pesquisa.
A PERCEPÇÃO DOS DOUTORANDOS
Para alargar o potencial reflexivo deste texto, o nosso esforço teórico será analisado em conjunto com as respostas a um questionário construído no âmbito do Grupo de Pesquisa Formação Ética e Pesquisa em Educação, espaço no qual foram realizados dois estudos anteriores sobre esse mesmo tema e que tiveram como finalidade levantar opiniões de líderes e vice-líderes de grupos de pesquisa da área Educação, registrados no Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), cujos resultados já foram publicados (De La Fare, Carvalho e Pereira, 2017; De La Fare e Savi Neto, 2019). Para o presente artigo, o instrumento anteriormente utilizado foi reelaborado e adaptado para, dessa vez, ser respondido por doutorandos dos nove programas de pós-graduação em educação do Brasil, avaliados com notas 6 e 7 pela CAPES, quais sejam: na Região Sul, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS, nota 6), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS, nota 6), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos, nota 7); Universidade Federal do Paraná (UFPR, nota 6); na Região Sudeste, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ, nota 7), Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG, nota 6), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ, nota 6), Universidade Federal de São Carlos (UFSCar, nota 6), Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP, nota 6). No total, foram enviadas 461 mensagens eletrônicas contendo o questionário e obtivemos 78 respostas (20%). O questionário é composto de 20 perguntas, das quais onze são fechadas e nove abertas.
As primeiras sete perguntas dizem respeito a informações gerais e permitiram caracterizar o grupo de respondentes. A maioria são mulheres (58, 74,3%), predominam os doutorandos na faixa etária de 31 a 40 anos (35, 44,9%), prevalecem os formados em nível de graduação em Ciências Humanas, exceto a pedagogia (30, 38,5%), enquanto outros 18 (23,1%) graduaram-se especificamente em pedagogia. A maioria cursou o mestrado em educação: 62 (79,5%). Há 37 (46,1%) bolsistas de doutorado no grupo, dos quais 15 (19,2%) contam com bolsa apenas para arcar com os custos acadêmicos e 21 (26,9%) recebem remuneração na forma de bolsa. A maioria, 41 (52,6%), cursa o doutorado em universidades públicas. Os anos de ingresso no doutorado estão divididos da seguinte maneira: 29 (37,2%) em 2018; 15 (19,2%) em 2017; 19 (24,4%) em 2016; 11 (14,1%) em 2015; 2 (2,6%) em 2014; e 2 (2,6%) antes de 2014. Atuam como docentes 63 (70,8%), dos quais 23 (29,5%) estão exclusivamente na educação básica, 21 (26,9%), somente no ensino superior, e 19 (24,4%) atuam nos dois níveis. As pesquisas que desenvolvem em suas teses referem-se aos seguintes temas: 19 (24,4%) Formação de Professores; 15 (19,2%) Fundamentos da Educação; 13 (16,7%) Políticas Educacionais; 7 (9%) Currículo e Didática, além de outros 24 que referiram temas singulares e diversos dos anteriores.
A pergunta oito foi direcionada para aqueles doutorandos que já atuam como docentes, questionando-se: No(s) nível(is) de ensino em que você atua como professor/a, foi ou é disponibilizado algum espaço de formação acerca da ética? Entre os 63 que já atuam como docentes, 45 (71,4%) afirmaram não ter havido a oferta de formação em questões éticas no ambiente de trabalho, e 18 (28,6%) disseram que sim.
A pergunta nove diz respeito à oferta de formação em questões éticas ao longo da trajetória acadêmica, sendo possível escolher mais de uma resposta: 43 (55,1%) assinalaram terem participado ocasionalmente de instâncias de formação ética em eventos, durante o mestrado; 36 (46,2%) participaram em espaços similares na graduação; 24 (30,8%) em disciplina específica na graduação; 18 (23,1%) consideraram que, na graduação, como um todo, os conteúdos das disciplinas foram pautados fundamentalmente por preocupações éticas; 15 (19,2%) pela oferta em grupos de estudos durante o mestrado; 9 (11,5%) em disciplina específica no mestrado, e 8 (10,3%) no grupo de pesquisa de iniciação científica.
A pergunta 10 questionou acerca da opinião do doutorando sobre se, em seu entendimento, na graduação e/ou no mestrado, as disciplinas se mostravam fundamentadas em preocupações éticas. Embora tenha sido apresentada como do tipo aberta, a pergunta provocava um posicionamento inicial entre sim ou não. Interpretando-se as respostas, podemos afirmar que 51 (65,4%) foram compatíveis com sim e 27 (34,6%) tenderam mais para não. Merece destaque a dedicação dos doutorandos em fundamentarem suas respostas, o que nos permitiu apontar algumas questões recorrentes, sendo elas: a valorização do professor como responsável pela atribuição de fundamento ético às discussões, a importância dos estágios e das respectivas disciplinas pela compreensão da ética aplicada à prática, a maior preocupação do mestrado em comparação à graduação no tocante à fundamentação ética e a referência à formação em nível de graduação em outros cursos, além da pedagogia, comprometidos com a fundamentação ética (filosofia, sociologia e psicologia).
Semelhante à anterior, questionou-se a percepção sobre a fundamentação ética das disciplinas do doutorado na pergunta 11. As respostas foram semelhantes às da pergunta anterior, merecendo destaque a percepção de maior preocupação com a questão ética no doutorado do que nas etapas anteriores da formação, o que explica o aumento do sim. Os resultados foram 54 (69,2%) sim, 19 (24,3%) não e 5 (6,5%) não se sentiram seguros para responder por estarem iniciando o doutorado.
Essas opiniões evidenciam a percepção sobre a abordagem do tema em espaços de formação por parte dos doutorandos respondentes, dados que se tornam ainda mais representativos quando interpretados de forma complementar ao estudo de Nunes (2017), que, por meio de pesquisa documental, constatou que o tema aparece escassamente formalizado nas ementas das 8.892 disciplinas dos programas de pós-graduação stricto sensu em educação no Brasil, disponíveis na Plataforma Sucupira.
A pergunta 12 indagou acerca da oferta de formação e/ou discussão sobre questões éticas nos grupos de pesquisa dos quais os doutorandos participam: 40 (51,3%) avaliaram que houve oferta e de forma suficiente; 9 (11,5%), que houve oferta, mas de forma insuficiente; 7 (9%) afirmaram que não participam das reuniões do grupo de pesquisa; 3 (3,8%), que o grupo de pesquisa não realiza reuniões; 2 (2,6%) entenderam que não se discute o tema no grupo de pesquisa; 9 (11,5%) escolheram a opção outros referindo-se, especialmente, ao fato de terem recém-ingressado nos respectivos grupos (igualmente, recém-ingressantes no doutorado).
No tocante à principal forma de aprofundamento sobre o tema da ética (pergunta 13), os doutorandos responderam: 45 (57,5%) leio livros e artigos; 13 (16,7%) não aprofundo o meu conhecimento sobre o tema; 5 (6,4%) procuro espaços de formação; 4 (5,1%) procuro informações na mídia; 11 (14,3%) outros, com respostas variadas.
Perguntados se já haviam enfrentado algum dilema ético, apresentando exemplos em caso positivo (pergunta 14), apenas 46 dos 78 respondentes se manifestaram, dos quais 29 (63%) disseram já ter enfrentado dilemas éticos e 17 (37%) declararam não. Entre as interessantes respostas, escolhemos uma em razão de sua representatividade com relação às demais e pela pertinência aos argumentos ora desenvolvidos:
O fato do Comitê de Ética na [nome da Universidade] estar vinculado ao Setor de Saúde compromete sobremaneira os olhares sobre os projetos de nossa área. Meu projeto passou por cinco pareceres até uma devolutiva favorável. Foi constrangedor, atrasou completamente meu cronograma de pesquisa, por questões aleatórias e burocráticas. Que nada dizia respeito aos desmembramentos éticos da pesquisa, efetivamente. (Doutorando 23)
O relato é bastante significativo e toca em um dos argumentos fundamentais para justificar a separação das CHS, que é a especificidade das pesquisas e dos métodos de pesquisa. Tal questão é referida pelo documento da Comissão Europeia, Research ethics in ethnography/anthropology, da seguinte maneira: “Os códigos de ética têm de ser ‘interpretados’ e colocados em prática pelo pesquisador à luz do tema de pesquisa concreto e da metodologia empregados” (CE, 2015, p. 2, tradução nossa). A resposta do doutorando, analisada em conjunto com a citação colacionada do documento da Comissão Europeia, realça duas questões importantes e interligadas: no nível de pesquisa, os atrasos e consequentes prejuízos que causa um modelo de avaliação de pesquisa inadequado e, no nível do pesquisador, o tolhimento da possibilidade de formação da autonomia do real interessado e conhecedor do projeto. É justamente no estranhamento entre o quadro principiológico e o desenho do projeto de pesquisa, na necessidade de interpretação e adequação, que o pesquisador tem a possibilidade de se constituir como um sujeito pesquisador mais independente e autônomo, o que uma normatização inadequada e, ainda por cima, excessivamente positivada retira.
A pergunta 15 questionou se os doutorandos já haviam submetido algum projeto de pesquisa para avaliação em Comitê de Ética em Pesquisa. Os respondentes afirmaram que sim, apenas uma vez (32,41%); a opção nunca submeti foi escolhida 28 vezes (35,9%); e submeti mais de uma vez, 18 (23,1%). Para aqueles que responderam já ter submetido, 50 (64,1%), foi perguntada a causa de terem adotado esse procedimento (pergunta 15.1). E as respostas foram: 36 (72%) por orientação da instituição e/ou orientador/a; 13 (26%) por convicção de que é o caminho a ser seguido; 1 (2%) por determinação de agência de fomento. A pergunta 15.2, para o mesmo grupo, foi em relação ao uso da Plataforma Brasil: 6 (12%) responderam que o preenchimento dos dados é rápido e o sistema de preenchimento de dados amigável; 17 (34%), que o preenchimento é demorado e o sistema não é amigável; o preenchimento dos dados foi considerado rápido e não amigável por 7 (14%); e o preenchimento dos dados foi avaliado como demorado e a página da plataforma amigável por 20 (40%).
A pergunta 16 diz respeito ao entendimento dos doutorandos sobre a resolução n. 510/2016 contemplar adequadamente as especificidades da pesquisa em CHS, solicitando-se justificativa para as respostas. Embora apresentada como pergunta do tipo aberta, podemos afirmar que 40 (51,3%) disseram que essa resolução não contempla adequadamente as especificidades da pesquisa em CHS, e 16 (20,5%) responderam que sim. É significativo que: 22 (28,2%) responderam ou não conhecer a resolução ou não ter conhecimento suficiente para opinar; todas as respostas positivas ou vieram desacompanhadas de fundamentação ou com fundamentação baseada no fato de que a resolução explicitava em sua parte inicial abranger as CHS. Os respondentes que afirmaram que não mostraram conhecimento mais aprofundado sobre o debate em curso.
Podemos especular que o representativo desconhecimento por parte dos doutorandos da resolução em questão confirma a análise teórica no sentido de que o modelo de regulamentação da pesquisa nas CHS no Brasil foi imposto de cima para baixo, não gozando de legitimidade entre sua instância de fundamental incidência. Além dos prejuízos inerentes à imposição de normas estranhas à realidade de seus respectivos destinatários, é razoável concluir que a situação conflitiva criada e que perdura desde antes da publicação da resolução, ou seja, há pelo menos três anos, tem-se mostrado responsável pela natural resistência dos pesquisadores e docentes em motivarem os estudantes dos programas de pós-graduação a conhecerem a norma.
Você acredita que a pesquisa em Ciências Humanas e Sociais acarreta algum tipo de risco para seus participantes? Em caso positivo, qual(is)? foi a pergunta 17. Mesmo sendo uma pergunta do tipo aberta, foi possível separar os respondentes em 57 (73,1%) que responderam não e 13 (16,7%), sim, sendo que os outros 8 (10,2%) não responderam. A pergunta 18 solicitava a opinião dos doutorandos acerca da classificação das pesquisas conforme os tipos de risco que ela envolve, tal como regulamentado pela resolução n. 510/2016. Novamente, mesmo que aberta, foi possível separar os respondentes entre aqueles que entendem que a classificação não é adequada às CHS, que totalizaram 32 (41%), e aqueles que entendem que sim, 11 (14,1%). No geral, a fundamentação das respostas seguiu à da pergunta anterior, tendo sido ainda mais significativo o número de doutorandos que disseram não ter conhecimento suficiente para se manifestarem, 35 (44,9%). Ressalta-se a presença constante nas respostas, inclusive daqueles que opinaram, de expressões como: acho, parece que, acredito, evidenciando ainda mais a distância entre a regulação da área e os pesquisadores próximos da fase final de formação.
A pergunta 19 (aberta) questionava a opinião dos pesquisadores sobre a ética em pesquisa estar relacionada, principalmente, com a formação, com a regulação ou com ambas, solicitando-se justificativa para as respostas: 51 (65,4%) afirmaram que está vinculada a ambas; 22 (28,2%) apontaram exclusivamente à formação; 3 (3,8%) só à regulação, e 2 (2,6%) disseram não ter conhecimento para opinar.
Por fim, a última pergunta do questionário sobre o tema da ética (pergunta 20), questionou os doutorandos sobre como percebem a ética em seu cotidiano, solicitando conceito e fundamentação. Em virtude da qualidade e da diversidade das respostas e considerando-se o escopo do presente artigo, tais resultados serão apresentados futuramente.
Como conclusão da análise das respostas, é possível afirmar que a maior parte do grupo de doutorandos respondentes dos programas de pós-graduação considerados de excelência pela CAPES compartilha o entendimento da ANPEd, no sentido de que a resolução CNS n. 510/2016 não é adequada às especificidades da pesquisa no campo educacional. Essa posição também predominou na pesquisa anterior já mencionada, na que opinaram líderes de grupos de pesquisa da área (e De La Fare Savi Neto, 2019).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o exposto, há fundamentos legais e de ordem técnica suficientes para justificar um afastamento da ANPEd, como parte das CHS, do controle normativo centralizado e impróprio imposto pelo CNS. Tal movimento, que está sendo acompanhado pela publicação de documentos específicos para fortalecer a formação e os debates sobre o tema (ANPEd, 2019a, 2019b), além de encontrar respaldo no direito e no bom senso, mostra-se de acordo com a melhor experiência internacional e se afigura como medida importante para o fortalecimento de uma identidade do campo da pesquisa nas CHS e na Educação, o que produzirá o mesmo efeito nos pesquisadores. Tal efeito é especialmente desejável nos pesquisadores em formação, para que constituam a sua identidade pautados nas especificidades do seu campo, justamente pelo estranhamento com relação a regulamentos que não se aplicam, ou inviabilizam, à investigação.
Referidos fundamentos técnicos, jurídicos e de ordem comparativa internacional encontram respaldo nas respostas dos doutorandos em Educação. Todos esses argumentos somados afiguram-se como mais que suficientes para reforçar a posição da ANPEd, coerente com a recusa do FCHSSALA, no que diz respeito a um afastamento do sistema CEP/CONEP e à supervisão invasiva do CNS. O momento é oportuno e deve-se buscar apoio em movimentos semelhantes de outros países, pois:
Os cientistas sociais estão com raiva e frustrados. Eles acreditam que seu trabalho está sendo limitado e distorcido pela regulamentação da prática ética, que não compreende a pesquisa em ciências sociais, nem os contextos sociais, políticos, econômicos e culturais em que os pesquisadores trabalham. Em muitos países, incluindo Austrália, Brasil, Canadá, Índia, Nova Zelândia, Reino Unido e Estados Unidos, pesquisadores argumentam que a regulamentação está impondo e agindo com base em arranjos biomedicamente orientados, que fazem pouco ou nenhum sentido para os cientistas sociais. (Israel, 2015, tradução nossa)
Essas decisões são passos importantes e fundamentais, mas não serão a solução definitiva para as questões enfrentadas na observância de cuidados éticos em pesquisa. Mesmo experimentando diferentes estágios de autonomia com relação às poderosas estruturas biomédicas ao redor do mundo, a experiência internacional mostra que a construção da identidade de campos de pesquisa próprios às CHS e dos respectivos pesquisadores envolvidos é uma batalha constante. Nesse sentido, a autonomia normativa das CHS é etapa necessária, contudo não é a última. Conforme defendemos em artigo anterior (Savi Neto e De La Fare, 2019), o objetivo a ser perseguido é o da autonomia dos pesquisadores e da desburocratização da atividade de pesquisa.