INTRODUÇÃO
Desde 2004, no início de nosso doutoramento, concentramos contínuos esforços no desenvolvimento de investigações dedicadas à análise de dados sobre os estudos acadêmicos brasileiros em ensino de biologia. Enveredamos no campo dos estudos do tipo estado da arte e das chamadas metapesquisas, entendendo que são elementos estratégicos se desejamos construir noção minimamente sistematizada sobre a caminhada da área em determinado tempo histórico. A ideia é compreender os rumos dessa produção acadêmica no país ao longo de uma série histórica que começou em 1972. Assim, com a apresentação paulatina dos resultados de nossas pesquisas, disponibilizamos periodicamente para a comunidade acadêmica informações fundamentais para mapearmos a produção de dissertações e teses (DT) em uma das subáreas1 mais ativas e representativas do grupo mais amplo das pesquisas em educação em ciências (Teixeira, 2008; Teixeira e Megid Neto, 2006, 2011, 2012, 2017).
O trabalho descritivo e analítico desenvolvido sobre as DT, a nosso ver, oferece vantagens significativas em relação a outras modalidades de publicação. Em primeiro lugar, é preciso dizer que essa modalidade de trabalho representa parte essencial e majoritária das investigações realizadas nas instituições de ensino superior (IES). Como já apontou Salem (2012, p. 22), as DT “refletem mais diretamente a produção propriamente acadêmica”, sendo caracterizadas por estudos vinculados aos programas de pós-graduação (PPG), considerados os principais loci de formação de pesquisadores ingressantes na área. Basta lembrar que no campo educacional a parte mais expressiva de toda a pesquisa é desenvolvida na pós-graduação e pelos sujeitos formados nesses espaços educativos (Macedo e Sousa, 2010).
Além disso, vemos as DT como documentos mais apropriados para a análise feita no âmbito das pesquisas caracterizadas como estado da arte2, já que são documentos primários, portadores de relatórios completos e mais aprofundados dos estudos desenvolvidos pelos pesquisadores em formação e seus orientadores, os quais, via de regra, são publicados posteriormente de maneira sucinta no formato de artigos, em periódicos, livros e capítulos de livros e apresentados em eventos (Salem, 2012; Teixeira e Megid Neto, 2017).
Ao considerar a pós-graduação, os estudos oriundos do campo da educação, incluindo pouco tempo depois as linhas de pesquisa em educação em ciências, são realizados há pelo menos 50 anos3. Mesmo levando em conta as oscilações no desenvolvimento da pesquisa nucleada pela pós-graduação, é inequívoco constatar o avanço dessas áreas. No caso deste trabalho, focalizamos interesse na área de educação em ciências, atualmente presente numa diversidade de programas existentes, disseminados pelas mais variadas regiões, gerando, em seu conjunto, recursos humanos para a educação básica e superior, uma comunidade de pesquisadores, associações de ensino e pesquisa, grupos de pesquisa, além da produção de conhecimentos focalizadores de uma multiplicidade de problemáticas inerentes ao aprender e ensinar ciências.
A singularidade deste trabalho é que este faz parte de um projeto dedicado ao mapeamento contínuo da pesquisa brasileira em ensino de biologia, agregando informações em relação a estudos realizados anteriormente, de tal sorte que, nessa fase do projeto, adicionamos mais cinco anos na série histórica analisada. Foram alvo de interesse somente documentos especificamente voltados para a subárea de ensino de biologia4, dando continuidade aos estudos no sentido de descrever e sistematizar dados sobre a produção acadêmica localizada nesse recorte. A nosso juízo, tal movimento analítico é estratégico, já que, à medida que a área se estruturou, a produção aumentou e se diversificou, de modo a estabelecer a necessidade de acompanharmos de maneira periódica os caminhos percorridos, num movimento de autorreflexão, buscando captar tendências e tradições, oscilações e mudanças e sinalizar perspectivas e desafios para pesquisas futuras (Teixeira, 2008; Salem, 2012; Silva e Jacomini, 2017).
Neste artigo, divulgamos parte dos resultados de uma investigação desenvolvida com os objetivos de identificar, descrever e analisar a produção brasileira gestada na forma de DT, contemplando 45 anos de estudos acadêmicos desenvolvidos nos PPG. Ao finalizar a fase principal do projeto, explicitamos dados úteis à atualização das informações divulgadas em nosso último trabalho, publicado em 2017 (Teixeira e Megid Neto, 2017).
Dessa forma, algumas das questões importantes a responder são as seguintes: Como se desenvolve, quantitativa e qualitativamente, a produção acadêmica em ensino de biologia ao longo do tempo? Qual é a base institucional sustentadora dessa produção acadêmica? Temos programas, orientadores e grupos de pesquisa consolidados na produção de conhecimentos e na formação de pesquisadores nessa subárea? Com base nos dados oriundos desta pesquisa, quais desafios se colocam para a área de educação em ciências (EC) no futuro próximo?
METODOLOGIA
A pesquisa focalizou o intervalo entre o ano em que os primeiros trabalhos em ensino de biologia foram defendidos no país (1972) até 2016, data estabelecida para a finalização da coleta de dados nos bancos de informação sobre DT. Além de buscar dados na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), fonte essencial para as pesquisas que tomam como objeto de estudo as DT, também consultamos as páginas da internet dos PPG cadastrados nas áreas de educação e ensino e repositórios institucionais das IES em que tais programas estão instalados. Informações suplementares referentes aos programas e aos orientadores foram coletadas nas Plataformas Lattes e Sucupira.
No curso desta investigação, não examinamos trabalhos oriundos dos mestrados profissionais em rede, já que eles seguem lógica de organização e funcionamento diferente daqueles devidamente examinados pelos comitês designados pela diretoria de avaliação da CAPES.
Os procedimentos adotados para dar sustentação à busca de dados, incluindo a utilização de palavras-chave5, títulos, referências e resumos, vêm sendo aprimorados ao longo do tempo. Nesse sentido, com as experiências acumuladas em nossas pesquisas, identificamos que o Catálogo de Teses e Dissertações, da CAPES6, é atualizado de forma irregular, de modo que vários trabalhos acabam sendo cadastrados com atraso ou simplesmente não aparecem nos registros do referido banco de dados.
Com efeito, estabelecer um processo de triangulação de fontes para coleta de informações úteis para a identificação do escopo de cada trabalho foi procedimento fundamental, garantindo que significativa parte dos trabalhos produzidos no país, considerando o período sob investigação, fosse capturada. Todavia, não há como garantir que todos os estudos defendidos nesses 45 anos estejam retratados no conjunto de documentos constituído como base para o corpus da pesquisa. Com isso, reiteramos o que já foi mencionado em nossos artigos anteriores, ao observarmos a magnitude da expansão da área, geradora de um quadro no qual os processos de recuperação, análise e catalogação da produção acadêmica estão se tornando cada vez mais difíceis e complexos, por causa do elevado número de trabalhos defendidos a cada ano e da necessidade de consultarmos diversas bases de informação para a coleta de dados (Megid Neto, 2014; Teixeira e Megid Neto, 2017).
Considerando as limitações explicitadas, ao final do processo de busca, encerrado em fevereiro de 2020, os resultados obtidos permitiram a totalização de 1.613 referências. Prosseguimos com o processo de busca, tendo a perspectiva de que localizaremos novas DT ainda circunscritas ao período estipulado para a investigação, que, nesse caso, serão examinadas em fase posterior da pesquisa.
Por meio da identificação dos resumos e das referências institucionais e bibliográficas de cada trabalho, as informações foram organizadas em fichas e tabelas de análise. Durante o processo investigativo, considerando seus objetivos mais abrangentes, examinando o material obtido, com uma abordagem de natureza mista7 (Creswell, 2014), desenvolvemos a análise preliminar dos documentos, estabelecendo sua classificação conforme os seguintes descritores:
ano de defesa e evolução quantitativa da produção acadêmica;
instituições onde os trabalhos foram desenvolvidos e distribuição geográfica;
titulação;
orientadores;
nível escolar privilegiado nos estudos acadêmicos;
linhas e focos temáticos;
gêneros de trabalho acadêmico.
Inicialmente, a análise envolveu a organização dos dados em arquivos de texto (Word) e depois em planilhas, tabelas e gráficos, procurando facilitar a identificação das características e tendências emergentes do conjunto de documentos arrolados durante a pesquisa. As referências gerais para cada trabalho ajudaram a compor o que chamamos de base institucional, isto é, um conjunto de informações que nos permitiu examinar a dinâmica de produção pelas diversas instituições brasileiras, seu desenvolvimento diacrônico, suas características institucionais e acadêmicas, considerando a realidade brasileira e a área de EC. Isso foi feito com a ajuda de alguns dos descritores supramencionados (descritores a, b, c, d).
Por sua vez, os resumos permitiram um processo de imersão inicial sobre o conteúdo dos diversos trabalhos, com a identificação de temáticas, problemáticas, níveis de escolarização privilegiados nos estudos acadêmicos e modalidades de pesquisa (descritores e, f, g). Em aprofundamento, os originais dos trabalhos disponíveis foram consultados quando os resumos e as referências institucionais/bibliográficas não permitiam a obtenção das informações desejadas para essa etapa. Por isso, grande parte das DT (98%) foi obtida por meio eletrônico (arquivos em PDF) ou impresso, para uma análise mais aprofundada envolvendo o conteúdo integral de cada trabalho.
No quadro geral da pesquisa, os resultados foram analisados em duas partes, uma assentada no que chamamos de base institucional, e a outra, focalizada nos problemas de pesquisa e nas tendências temáticas e metodológicas caracterizadoras da produção acadêmica em ensino de biologia. Neste artigo, por questões de restrição de espaço, nos limitaremos a explicitar dados e reflexões sobre a base institucional sustentadora dessa produção acadêmica, derivando reflexões e a análise de potenciais implicações para a área de EC.
ANÁLISES E REFLEXÕES
Mantendo a tendência apontada nos estudos desenvolvidos anteriormente, podemos afirmar que no período sob análise, focalizando de maneira especial os últimos cinco anos, continuamos em um quadro expansivo da produção acadêmica em ensino de biologia. Tal expansão é produto de um processo de ampliação e diversificação da pós-graduação intensificado de modo significativo na última década, pelo menos até 2018, após a crise que retirou do poder a presidente legalmente constituída e intensificou a aplicação de concepções liberais no Estado brasileiro, gerando, entre outras coisas, o quadro de incertezas e de ataques ao sistema de políticas públicas, incluindo, entre outros setores, a área educacional, as universidades e a pós-graduação, além das áreas de ciência e tecnologia.
A evolução da produção identificada é representada por meio do Gráfico 1, com as 1.613 DT distribuídas em quinquênios desde 1972.
É importante salientar o incremento da produção em termos quantitativos (observar linha de tendência), evidenciado desde o aparecimento dos primeiros trabalhos, na entrada dos anos de 1970. Até meados dos anos de 1990 houve crescimento modesto e irregular, porque estávamos em um processo de criação de PPG, num sistema ainda emergente e em início de desenvolvimento, constituído de cursos que se estruturaram nos grandes centros urbanos, sobretudo nas capitais de cada estado. Considerando todo o período, esse movimento expansivo ocorreu em sintonia com o desenvolvimento da área de EC e com a pesquisa educacional, tomada em sentido mais amplo, como indicam os trabalhos de Macedo e Sousa (2010), Salem (2012), Teixeira (2012), Megid Neto (2014) e Teixeira e Megid Neto (2011, 2012, 2017).
O crescimento mais vigoroso observado do fim dos anos de 1990 até a época atual é fruto da multiplicação de programas pelo país, processo induzido por vários fatores, como a criação da área de ensino de ciências (área 46) na CAPES, depois convertida na atual área de ensino; a criação de novas universidades e dos cursos de natureza profissionalizante; e os últimos Planos Nacionais de Pós-Graduação (PNPG)8, ao definirem metas ligadas ao crescimento e à capilarização da pós-graduação por todo o país e ao enfrentamento das assimetrias entre as diversas regiões brasileiras. Segundo Lopes e Costa (2012, p. 717), “ainda que a pós-graduação em educação [...] tenha se iniciado nos anos 1970, é nos anos 2000 que vemos ampliar-se significativamente sua organização em grupos e linhas de pesquisa”. Por conta de todos esses aspectos, nos últimos 15 anos, concentramos cifra próxima a 86% das defesas detectadas no período 1972-2016.
A distribuição da produção indica média em torno de 35,8 trabalhos por ano. Em meados dos anos de 1990, essa média era de oito trabalhos/ano. No fim dos anos de 1990, a média saltou para 25 trabalhos anuais. No contexto da primeira década do século XXI, houve crescimento impressionante, com média de mais de 70 DT/ano. Finalmente, se considerarmos os últimos cinco anos da série histórica examinada, estaríamos falando de uma produção equivalente a 118 DT/ano, representando incremento de 16% em relação ao quinquênio imediatamente anterior (2007-2011).
O Gráfico 2 traz a distribuição dos trabalhos conforme o descritor titulação. É crescente a produção de dissertações de mestrado acadêmico ao longo de todo o período. Tais estudos representam 65,9% do conjunto de trabalhos analisados. As teses de doutorado eram raras até o fim dos anos de 1980, com apenas cinco estudos defendidos até 1990. Nos anos de 1990 esse número foi mais que triplicado em comparação à década anterior. Já nos anos de 2000 ultrapassou a marca de uma centena (118 DT), mantendo-se o ritmo de produção até 2016 (125 DT). Em síntese, as teses de doutorado correspondem a 16,5% da produção analisada.
As dissertações de mestrado profissional9 perfazem 284 estudos até o ano de 2016. Levando-se em conta todo o período, totalizam 17,6% dos trabalhos identificados. Todavia, se focalizarmos os últimos 11 anos apurados, já que a primeira dissertação de mestrado profissional aparece em 2006, constatamos que esse percentual atinge 24,2%, indicando que é a categoria que mais cresce entre as três examinadas na pesquisa.
Não obstante os cursos acadêmicos prevalecerem como geradores da parcela mais ampla de trabalhos, os mestrados profissionais impulsionaram a área nos últimos dez anos, dada a ampliação significativa de cursos criados nessa modalidade (Moreira e Nardi, 2009). De fato, os mestrados profissionais foram “amplamente fomentados há quase duas décadas em nosso país” (Antunes Júnior, Ostermann e Cavalcanti, 2019, p. 268).
Um dado para ajudar a entendermos a expansão dos programas profissionais pode ser encontrado quando comparamos a situação da área de ensino (CAPES) em 2016 com o momento atual. Em maio daquele ano tínhamos 162 cursos de pós-graduação: 58 de mestrado, 31 de doutorado e 73 de mestrado profissional. Hoje, segundo a página da área de ensino, a maioria dos cursos da referida área é constituída de mestrados profissionais (96 de 230). Além disso, há oito cursos de doutorado profissional. Na área de educação, até o início da década de 2010, não era admitida a presença dos cursos profissionais. Atualmente a referida área abriga10 54 (19%) cursos dessa natureza.
A nosso ver, seria interessante acompanhar de maneira analítica os reflexos desse movimento nos próximos anos, ainda mais agora com a emergência dos cursos de doutorado profissional. Na literatura, algumas análises sobre os programas profissionais começaram a ser desenvolvidas (Schäfer e Ostermann, 2013; Villani et al., 2017), sobretudo no sentido de tentar captar o impacto desses cursos como modalidade voltada para a formação continuada, ou como “espaços formativos com potencial para que os professores se desenvolvam profissionalmente em diferentes dimensões da carreira docente” (Villani et al., 2017, p. 128).
São esperadas implicações positivas para a formação dos professores e para a busca de transformações no processo de ensino e aprendizagem (Grassi et al., 2016). Todavia, a nosso juízo, análises mais aprofundadas sobre o papel dos programas de mestrado profissional, em termos de desenvolvimento de campo de pesquisa e de produção de conhecimento, ainda são escassas. Uma exceção é o texto editorial de Villani e Mattos (2011), autores que sublinharam o crescimento desses cursos, associando esse processo à situação que potencialmente poderia desencadear uma espécie de “esvaziamento do rigor e da qualidade com os quais atualmente são avaliadas as pesquisas e seus resultados, sobretudo no mestrado acadêmico” (Villani e Mattos, 2011, p. 8).
Tal advertência indicou a necessidade de desenvolver estudos mais aprofundados a esse respeito, na tentativa de acumular dados para abastecer reflexões sobre esse fenômeno na área educacional e, de modo particular, na área de EC. Em nossas últimas análises temos problematizado os rumos da pós-graduação. Mais do que tentar definir elementos distintivos que separam os mestrados acadêmicos dos profissionais (Freire e Germano, 2009), cabe analisar a questão da identidade dos primeiros, já que o perfil dos programas profissionais, mais ligado à formação de professores para a educação básica, parece ponto consensual. Nossa hipótese é que estamos assistindo a uma espécie de corrosão da dimensão da pesquisa nos cursos de pós-graduação stricto sensu, pelo fato de nos anos recentes, aos poucos, concentrarmos esforços para nos tornarmos a principal base para a formação de recursos humanos na área educacional11.
Em nosso caso, há hoje atenção especial para a dimensão da formação de professores na expectativa de que a área dê respostas à crise educacional brasileira. Os cursos profissionais assumiram flagrantemente essa perspectiva12. Na esteira desse processo, suspeitamos que os cursos acadêmicos também têm sido de maneira paulatina drenados para esses projetos, que são legítimos, mas que inevitavelmente criam dilemas para nosso campo, enquanto área de pesquisa e de produção de conhecimento. Por exemplo, como bem apontaram Silva e Jacomini (2017, p. 643):
Falamos das interpelações sobre a articulação entre o que se estuda nos cursos de graduação [e pós-graduação] e a realidade da educação básica, como se buscássemos aplicativos nos cursos de nível superior que nos empoderassem automaticamente para uma prática eficiente. Essas noções descontextualizadas têm se constituído num forte aparato (ideológico inclusive) para formações cada vez mais focadas no saber fazer e distanciadas do domínio conceitual.
A formação de professores para o ensino superior e a capacitação de técnicos atuantes na gestão governamental para questões educacionais foram metas previstas para a pós-graduação (Kuenzer e Moraes, 2005; Macedo e Sousa, 2010; Silva e Jacomini, 2017). Depois, assistimos a uma inflexão da pós-graduação, com o “deslocamento da centralidade na docência [no ensino superior] para a centralidade na pesquisa” (Kuenzer e Moraes, 2005, p. 1.347). Por conta disso, passamos a valorizar mais intensamente a formação de pesquisadores e a produção de conhecimento.
Outra inflexão ocorreu com a proposição do V PNPG (2005-2010), documento que assinalou diretrizes múltiplas para os programas no sentido de “capacitação do corpo docente para as instituições de Ensino Superior, a qualificação dos professores da educação básica, a especialização de profissionais para o mercado [...] e a formação de técnicos e pesquisadores para as empresas públicas e privadas” (Brasil, 2004, p. 49). Eis, segundo Kuenzer e Moraes (2005), duas grandes novidades, entre as quais uma está associada à responsabilidade dos programas pela qualificação dos professores do ensino fundamental, médio e técnico.
Diante dessa tendência, o próprio Documento de Área, um dos marcos orientadores para a organização dos programas cadastrados na área de ensino (antiga área de ensino de ciências e matemática) assumiu textualmente a ideia de que “a pesquisa em Ensino é estratégica na medida em que é um dos componentes necessários para promover mudanças na Educação Básica e na Educação Superior” (Brasil, 2019, p. 3). Ademais, assinala que o crescimento e as expectativas de atuação da referida área tomam como pano de fundo “a situação da Educação Básica no país, bem como os desafios para formação continuada de docentes universitários e de professores que atuam na Educação Básica, Técnica e Superior, e de educadores em geral” (Brasil, 2019, p. 3).
Como se nota, diante das informações apresentadas, os últimos anos escancaram diversos desafios. Por isso, caberia apontar as seguintes indagações: estamos ante um modelo que mescla essas prioridades, assumindo a produção de conhecimento de modo integrado à formação de professores e demais profissionais da educação, mas sem aligeirar a dimensão da pesquisa, de formação de pesquisadores e de produção de conhecimento? Ou estamos nos tornando cursos de certificação e de formação continuada, voltados mais especificamente para formação de professores? Pensando na EC, como ficará a configuração da pós-graduação e de nossa área enquanto campo de produção de conhecimento no futuro próximo?
Voltando agora para outros aspectos caracterizadores da base institucional que sustenta a produção acadêmica estudada, mencionaremos informações sobre sua distribuição geográfica. Verificamos a permanência da concentração de estudos nas regiões Sul e Sudeste e a constatação de assimetrias regionais ainda presentes.
Todavia, ao longo do tempo, esse processo vem sendo mitigado. As regiões Sul e Sudeste, aglutinadoras de parte das instituições mais antigas e dos primeiros PPG13 com linhas de pesquisa na área, perfazem conjuntamente 73% dos documentos examinados. O Sudeste aglutina a maior parte dos trabalhos, com 49% do total, isto é, quase a metade do conjunto de documentos. Trabalhos foram identificados em 24 entes federativos, incluindo o Distrito Federal. Entretanto, em estados como Tocantins e Maranhão, não temos trabalhos. Outros como Rondônia, Roraima, Acre, Piauí, Paraíba e Espírito Santo possuem produção muito pequena. Isso mostra que, embora tenhamos crescido valorosamente nas últimas décadas, ainda há demandas e espaços para mais instituições, incluindo a graduação e a pós-graduação em diversas localidades, sobretudo nas regiões interioranas desse imenso país.
Os estados em que a produção é, numericamente, mais significativa são: São Paulo, com 457 trabalhos; Rio de Janeiro, com 218; Rio Grande do Sul, com 155; Paraná, com 136; Minas Gerais, com 107; Santa Catarina, com 101; Bahia, com 90; e Pernambuco, com 51. A Tabela 1 ilustra as 1.613 DT distribuídas segundo percentuais pelas regiões brasileiras.
Região | Quantidade de Dissertações/Teses | % |
---|---|---|
Norte | 57 | 3,6 |
Centro-Oeste | 136 | 8,4 |
Nordeste | 237 | 14,7 |
Sul | 392 | 24,3 |
Sudeste | 791 | 49 |
Total | 1.613 | 100 |
Em relação às regiões Centro-Oeste, Nordeste e Norte, continuamos a ver um quadro de aumento paulatino de sua representatividade. Essas regiões juntas perfaziam 15% das DT até 2004, passaram a 17,1% em 2006, chegaram a 21,5% em 2011 e agora concentram 26,7% (Figura 1).
Assim, a hipótese formulada em nosso trabalho anterior se confirma, no sentido de apontarmos para a tendência a um moderado movimento de descentralização da pesquisa na área, reflexo de políticas públicas implantadas nos últimos 20 anos voltadas para a criação de IES nas regiões supracitadas e também para a diminuição das assimetrias entre as diversas regiões brasileiras no que diz respeito ao financiamento de pesquisas e geração de programas de mestrado e doutorado nas instituições das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste (Teixeira e Megid Neto, 2017). A questão é: será que esse processo foi interrompido com as recentes mudanças no quadro político e econômico brasileiro?
Os dados encontrados corroboram a avaliação da própria área de ensino na CAPES, reconhecendo que ainda há campo para crescimento da “pós-graduação em todas as regiões, em especial, naquelas historicamente carentes dessa oferta” (Brasil, 2019, p. 13).
Identificamos trabalhos em 120 diferentes instituições, com 1.341 defesas nas IES natureza pública, entre as quais 488 se referem às instituições estaduais e 839 a federais, e, por fim, 14 trabalhos são relativos a apenas uma IES municipal14. Entre as estaduais, há predomínio das instituições localizadas em São Paulo, concentrando 320 trabalhos em relação à totalidade dos 1.613 documentos (Universidade de São Paulo - USP, com 148; Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” - UNESP, com 112; e Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, com 60). As estaduais do Paraná - Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Universidade Estadual de Maringá (UEM) - também apresentam significativa produção (74 DT). Entre as federais, destacam-se a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com 82 trabalhos; a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com 67; a Universidade Federal da Bahia (UFBA), com 58; a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), com 50; a Universidade de Brasília (UnB), com 46; e a Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), com 36. As informações relativas à distribuição das DT por natureza institucional são ilustradas no Gráfico 3.
Com efeito, os trabalhos defendidos em instituições públicas equivalem a 83% da produção total, e os 17% restantes comparecem em universidades privadas (272 DT), destacando-se as instituições do sistema Pontifícia Universidade Católica (PUC), a exemplo da PUC-MG, PUC-RS e PUC-SP.
Com tudo isso, os dados disponíveis na série histórica permitem salientar mais uma vez o papel insubstituível das instituições públicas como o ambiente privilegiado para a formação de docentes e pesquisadores e para a produção de pesquisas na área.
É interessante sublinhar também o incremento de trabalhos defendidos em instituições federais nos últimos anos analisados, inflado pela criação de programas em diversas universidades e nos institutos federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Num momento em que o papel da universidade pública é colocado em suspeição, sobretudo por movimentos ligados às ortodoxias conservadoras e reacionárias, além dos ataques no campo material (cortes de recursos, contingenciamentos e outras restrições orçamentárias) e no campo simbólico, com a disseminação de “informações infundadas [e] dados inverídicos usados de má-fé”15, na tentativa de desqualificar as instituições públicas de ensino e pesquisa (Costa, 2019), as informações expostas aqui são fundamentais no sentido de indicar objetivamente dados para mostrar a centralidade das instituições públicas quando pensamos na formação de recursos humanos e na produção de conhecimento na área de EC.
Quanto aos PPG responsáveis pela produção das DT analisadas, temos as seguintes informações. Os programas específicos de ensino de ciências e matemática confirmam sua posição como polos concentradores de trabalhos na subárea estudada, sendo responsáveis por 939 documentos (58,2%). Os institutos, as faculdades e os centros de educação totalizaram 501 documentos (31%), naturalmente associados aos mestrados e doutorados da área de educação. Já os programas vinculados às áreas de ciências biológicas (biologia, genética, ecologia) totalizaram 54 DT (3,3%). Os demais 7,5% se referem a trabalhos pulverizados em programas de natureza diversificada e sem tradição na produção de pesquisas em nosso campo (psicologia, letras, linguística, saúde, bioquímica etc.).
Como se nota pelos indicadores apresentados, hoje em dia, os principais loci de formação de titulados na subárea vinculada ao ensino de biologia são os programas típicos de ensino de ciências e matemática, majoritariamente pertencentes à atual área de ensino na CAPES.
Chegando a esse ponto do texto, uma das indagações formuladas no início do trabalho pode ter sua resposta agora esboçada: temos PPG, orientadores e grupos consolidados na produção de conhecimento e na formação de pesquisadores na referida subárea?
Para avançar nessa reflexão, cruzamos os dados já descritos com as informações sobre os orientadores dos principais programas produtores de trabalhos. Em termos numéricos, os principais centros produtores são os seguintes: USP (148 DT); UNESP (112); UFSC (82); UFRJ (67); UNICAMP (60); UFBA (58); Fiocruz (50); UnB (46); PUC-MG (44); UEM (40); PUC-RS (36); UFRPE (36); e UEL (34).
Assim, quando mencionamos a USP, um dos núcleos importantes é a Faculdade de Educação, mas também temos os trabalhos oriundos do Instituto de Biociências e de outras unidades. O destaque atualmente vai para o PPG Interunidades em Ensino de Ciências. Quando nos referimos à UNESP, assinalamos o PPG em Educação para a Ciência, localizado no campus de Bauru. Quando citamos a UFSC, é importante sublinhar o papel do Centro de Ciências da Educação até alguns anos atrás e, posteriormente, a atuação do PPG em Educação Científica e Tecnológica. A UFRJ conta com a Faculdade de Educação e com o Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (NUTES), onde há hoje em dia um reconhecido e consolidado programa da área. Já para a UNICAMP, temos trabalhos produzidos no antigo programa do Instituto de Matemática, Estatística e Computação Científica (IMECC) - Mestrado em Ensino de Ciências e Matemática - (1975-1984), na Faculdade de Educação e no Instituto de Biologia, e mais recentemente os trabalhos na área passaram a se concentrar no PPG Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM). A UFBA aparece com o PPG em Ensino, Filosofia e História das Ciências16. A Fiocruz sustenta um programa importante na área de ensino de biociências e saúde. Por fim, temos a UnB, a UEM, a PUC-MG, a PUC-RS, a UEL e a UFRPE, com programas de EC e/ou ensino de ciências e matemática.
Apresentamos a Tabela 2, destacando todos esses programas. Em termos de produção quantitativa de DT, tais núcleos são os mais representativos na subárea de ensino de biologia. Incluímos também para alguns casos os programas vinculados à área de educação, já que os exemplos listados possuem conexões significativas com a produção acadêmica de interesse para a nossa pesquisa.
Instituição de ensino superior | Centro/Faculdade/Programa | Tipo de programa | Nota avaliação da CAPES |
---|---|---|---|
USP | Faculdade de Educação, PPG em Educação | Acadêmico | 5 |
Interunidades, PPG em Ensino de Ciências | Acadêmico | 5 | |
UFSC | Centro de Ciências da Educação, PPG em Educação | Acadêmico | 4 |
Multicentros, PPG em Educação Científica e Tecnológica | Acadêmico | 6 | |
UNESP/Bauru | Faculdade de Ciências, PPG em Educação para a Ciência | Acadêmico | 5 |
UFRJ | Faculdade de Educação, PPG em Educação | Acadêmico | 6 |
Instituto NUTES de Educação em Ciências e Saúde | Acadêmico | 6 | |
UNICAMP | Faculdade de Educação, PPG em Educação | Acadêmico | 5 |
Multiunidades (PECIM), PPG em Ensino de Ciências e Matemática | Acadêmico | 4 | |
UFBA | Instituto de Física, PPG em Ensino, Filosofia e História da Ciência | Acadêmico | 5 |
Fiocruz | Instituto Oswaldo Cruz, PPG Ensino de Biociências e Saúde | Acadêmico | 6 |
UnB | Multicentros, PPG, doutorado em Educação em Ciências | Acadêmico | 4 |
Multicentros, PPG, mestrado profissional em Ensino de Ciências | Profissional | 4 | |
UEM | Centro de Ciências Exatas, PPG Educação para a Ciência e Matemática | Acadêmico | 4 |
PUC-MG | Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática | Profissional | 5 |
PUC-RS | Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática | Acadêmico | 5 |
UEL | Centro de Ciências Exatas, PPG Ensino de Ciências e Matemática | Acadêmico | 7 |
UFRPE | Multicentros, PPG Educação nas Ciências | Acadêmico | 4 |
CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior; USP: Universidade de São Paulo; UFSC: Universidade Federal de Santa Catarina; UNESP: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; UNICAMP: Universidade Estadual de Campinas; UFBA: Universidade Federal da Bahia; Fiocruz: Fundação Oswaldo Cruz; UnB: Universidade de Brasília; UEM: Universidade Estadual de Maringá; PUC-MG: Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; PUC-RS: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; UEL: Universidade Estadual de Londrina; UFRPE: Universidade Federal Rural de Pernambuco; PPG: programa de pós-graduação; NUTES: Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde; PECIM: Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática.
Como se nota na Tabela 2, nesse conjunto de programas são mais abundantes os cursos de natureza acadêmica; em dois casos temos também cursos profissionais (PUC-MG e UnB). Coletando algumas informações suplementares na Plataforma Sucupira, da CAPES, detectamos indicadores sobre esses programas no último processo de avaliação das áreas de educação e ensino. Constatamos que a maioria são programas pertencentes à área de ensino, antes área de ensino de ciências e matemática. Considerando todos esses exemplos, observamos notas variando de 4 a 7 no sistema de avaliação atual, apontando para a existência de programas de excelência conforme o sistema nacional de avaliação da pós-graduação.
Portanto, essas instituições e seus respectivos programas constituem os principais núcleos de grupos produtores de DT, tanto do ponto de vista quantitativo como também quando pensamos na história de implantação da área e na formação de pesquisadores que hoje constituem quadros fundamentais relativos a essa subárea. Outra peculiaridade é que a maior parte desses programas aglutina um conjunto de orientadores que representam importantes lideranças para toda a área. Outros programas são mais recentes, mas igualmente aglutinam docentes e grupos de pesquisa representativos e de forte protagonismo para a área.
Em relação aos orientadores, continua a sinalização para algum nível de dispersão ou isolamento, em função da grande quantidade de sujeitos vinculados a um, dois ou três trabalhos (≅ 85% dos orientadores).
Na Tabela 3 mencionamos somente os orientadores vinculados a pelo menos uma dezena de DT defendidas no período examinado pela pesquisa. Há a presença de pesquisadores que desde os anos de 1970 estão vinculados a pesquisas, estudos e publicações em ensino de biologia. Outros defenderam seus trabalhos de doutorado nas décadas de 1980-1990, passando a atuar como orientadores e exercendo, a partir de então, crucial papel na consolidação de PPG e linhas e/ou grupos de pesquisa, como também para a formação de novos pesquisadores que integraram essa subárea. Fora da tabela, há nomes com menos de uma dezena de orientações concluídas e que, a nosso ver, podem estar em processo de consolidação de seu trabalho com grupos de pesquisa fixados nos PPG.
Orientadores | Instituição | Quantidade |
---|---|---|
Ana Maria A. Caldeira | UNESP/Bauru | 21 |
Charbel Niño El-Hani | IB-UFBA | 20 |
Sandra L. Escovedo Selles | FE-UFF | 18 |
Silvia L. F. Trivelato | FEUSP | 18 |
Nelio M. V. Bizzo | FEUSP | 18 |
Myriam Krasilchik | FEUSP | 16 |
Maria Helena S. Carneiro | UnB | 14 |
Regina Maria R. Borges | PUC-RS | 13 |
Luzia Marta Bellini | UEM | 13 |
Fernando Bastos | UNESP/Bauru | 12 |
Álvaro Lorencini Júnior* | UEL/UEM | 11 |
Eliane Brígida de Morais Falcão | UFRJ/NUTES | 11 |
Denise de Freitas | UFSCar | 11 |
Ana Maria dos Anjos Carneiro Leão | UFRPE | 10 |
Total | -- | 206 |
* Professor-pesquisador lotado na UEL, mas que também orienta alguns trabalhos na UEM; UNESP: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; IB-UFBA: Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia; FE-UFF: Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense; FEUSP: Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo; UnB: Universidade de Brasília; PUC-RS: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; UEM: Universidade Estadual de Maringá; UEL: Universidade Estadual de Londrina; UFRJ: Universidade Federal do Rio de Janeiro; NUTES: Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde; UFSCar: Universidade Federal de São Carlos; UFRPE: Universidade Federal Rural de Pernambuco.
Logo, ao considerarmos os 45 anos de produção acadêmica em ensino de biologia, parece haver um bom número de orientadores fortemente vinculados à subárea. Os nomes citados aglutinam 12,7% das orientações em todo o período. A maioria são professores em plena atuação na atualidade, e cinco deles, bolsistas em produtividade de pesquisa. Em geral, possuem formação inicial nas áreas de ciências biológicas e história natural, exceto em dois casos, com vínculos citados no currículo lattes entre as áreas de psicologia e medicina.
Outro ponto a destacar, confirmando dados de pesquisas anteriores, é que continuamos com um número excessivo de casos ligados à orientação de poucos trabalhos em ensino de biologia. O atenuante nesse quesito é que não podemos esquecer que a área de EC constitui um campo interdisciplinar, plural e multifacetado. Boa parte de nossos pesquisadores toma como objeto de pesquisa categorias mais amplas do que aquelas especificamente centradas no ensino de biologia, envolvendo questões ligadas à história e filosofia da ciência, à formação de professores, a currículo e a ensino-aprendizagem. As linhas de pesquisa mencionadas na Figura 2 corroboram esse nosso argumento.
De qualquer forma, o grande número de sujeitos que denotam que a orientação de trabalhos nessa subárea é pontual não deixa de ser um dado preocupante. De fato, quando examinamos a literatura da área em sentido mais amplo, focalizando a relação dos pesquisadores com suas respectivas linhas de pesquisa, por vezes deparamos com informações indicadoras da falta de coerência e dispersão de linhas, programas de pesquisa e referenciais teórico-metodológicos (Barros, 2002; Moreira, 2004; Salem, 2012). Esse é um aspecto que os pesquisadores, os PPG e a área como um todo deveriam avaliar mais detidamente, procurando estratégias para minimizar essa questão.
Haja vista todas essas informações, para dar ideia da multiplicidade de problemáticas assumidas pelos principais núcleos de pesquisa, ao visitarmos as páginas dos programas produtores de estudos na área de nosso interesse e o currículo lattes dos orientadores citados na Tabela 3, identificamos algumas das linhas de pesquisa apontadas com maior frequência, constituindo os elementos para a composição da nuvem de palavras, representada na Figura 2. Nesta, as linhas de pesquisa mais expressivas em termos numéricos aparecem em destaque. Entre elas, destacam-se prioritariamente aquelas vinculadas às agendas da formação de professores, às múltiplas questões relacionadas aos processos de ensino-aprendizagem, à história e filosofia da ciência, à educação ciência, tecnologia, sociedade e ambiente (CTSA), a recursos didáticos e a questões ligadas à linguagem e ao discurso.
Por fim, a fim de complementar a coleta de informações para a pesquisa, levantamos dados sobre os indicadores de coorientação, isto é, a respeito dos trabalhos acadêmicos produzidos em regime de coorientação. Nesse caso, nossos dados apontam para um percentual em torno de 11,5% dos 1.613 documentos entre os quais os autores assinalam, nas páginas iniciais das DT, que o desenvolvimento do estudo envolveu a cooperação de um segundo orientador. Esse é um indicador sobre o qual praticamente não há dados consolidados e é escassa a literatura, sobretudo no que tange à área de EC, contudo avaliamos ser um número baixíssimo de trabalhos elaborados no regime de coorientação, revelando que precisamos avançar muito nesse quesito, considerando que a presença de coorientadores revela a tendência para trabalhos desenvolvidos em um ambiente de parceria e de constituição de redes de colaboração, isto é, “uma forma de expressão dos resultados da colaboração científica que merece ser mais valorizada por nós, especialmente em virtude de sua possibilidade de contribuir para a melhor formação de nossos mestrandos e doutorandos” (Lopes e Costa, 2012, p. 720)17.
Com tudo o que foi comentado, o quadro encontrado para a análise de instituições e orientadores reitera o argumento formulado por Megid Neto (2014) e depois por Teixeira e Megid Neto (2017), ao salientarem a presença de instituições e programas de tradição e de forte engajamento na própria construção da área, sinalizando para a existência de centros já consolidados e de ampla produção de pesquisas, convivendo com outras instituições mais recentes, mas de pujante produção, e outras cuja produção, pequena e ocasional, não denota a existência de orientadores nem de grupos de pesquisa consolidados ou com interesse mais regular e sistemático, pelo menos levando-se em conta a subárea vinculada ao ensino de biologia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo focalizamos a atenção na base institucional sustentadora da produção acadêmica em ensino de biologia no período 1972-2016. Outros detalhes da referida produção, relativos, por exemplo, aos níveis de ensino, às linhas temáticas, às problemáticas de investigação e a aspectos teóricos e metodológicos caracterizadores desse conjunto de trabalhos, serão oportunamente apresentados em artigo ainda a ser publicado.
As reflexões construídas aqui articulam o conjunto de dados descritivos obtidos com as reflexões proporcionadas pela literatura iluminadora da análise, constituída de autores dedicados ao estudo do desenvolvimento das pesquisas no campo educacional. Com efeito, mesmo considerando que neste artigo não trouxemos dados referentes à análise do conteúdo das DT, faz-se importante frisar alguns aspectos interessantes, derivando reflexões e implicações válidas para todo o conjunto da área de EC, posto que a subárea de ensino de biologia se constitui como um significativo subconjunto dos trabalhos produzidos nesse campo.
Deparamos, mais uma vez, com o forte crescimento da produção acadêmica, reflexo dos avanços da pós-graduação no país. Como temos mostrado, a expansão da pós-graduação na área é expressiva, refletindo-se no aumento do número de programas, na sua disseminação e capilarização pelo território nacional e, sobretudo, no acréscimo anual de pessoas tituladas, constituindo professores e pesquisadores que podem passar a interagir mais efetivamente no campo de estudos e investigações. Portanto, são dados de nossa realidade que precisam ser valorizados. Há crescimento tanto no número de cursos acadêmicos quanto no de profissionais, impulsionado pelo papel inestimável das universidades e dos programas localizados na atual área de ensino.
Diante disso, nesse momento tortuoso e adverso de nossa história, é preciso intensificar a defesa das instituições públicas e lutar para que o país e nossas instituições não se entreguem aos movimentos negacionistas e antidemocráticos que desconfiam dos estudos científicos e acadêmicos e atacam o sistema público, a ciência e a própria democracia brasileira. Igualmente, precisamos resistir aos movimentos que, com o pretexto de crise fiscal, atacam a universidade, a pós-graduação e o ensino público de forma geral.
Como foi mencionado, a pós-graduação diversificou-se no período estudado, com certo nível de oscilação entre suas funções e prioridades. Entre os objetivos historicamente presentes, estiveram a formação de recursos humanos para as IES, a pesquisa e a produção de conhecimento, o desenvolvimento tecnológico e, mais recentemente, a formação continuada de professores e as articulações e os compromissos assumidos com a educação básica.
De fato, a área de EC, sobretudo após a sua conversão em área de ensino, foi bastante impactada pelo aumento de programas acadêmicos e, mais recentemente, com a onda de programas e cursos de natureza profissionalizante. Nesse processo, os mestrados profissionais da área potencializaram a formação de professores, atuando de modo concomitante como vetores de sensível aumento na produção acadêmica. A área de ensino hoje em dia é constituída de 187 programas, dos quais 97 são profissionalizantes e 90 acadêmicos.
Argumentamos que tais cursos e/ou programas têm forte sintonia com a questão da formação de professores, mas também correm o risco de aderir às demandas instrumentalistas, tecnicistas e pragmáticas vinculadas diretamente ao ensino-aprendizagem, na medida em que são fortemente valorizados produtos e processos que representariam soluções de curto prazo para os problemas enfrentados pelo ensino de ciências no contexto da escola básica. Como assinalaram Moreira e Nardi (2009, p. 5), o que se espera dos mestrados profissionais em ensino de ciências “são profissionais bem qualificados para atuar na sala de aula e no sistema de ensino, não pesquisadores”. Essa forma de argumento demarca com precisão a identidade dos cursos profissionalizantes.
Ao mesmo tempo, os programas acadêmicos, pelo menos em tese, continuaram a concentrar esforços na formação de pesquisadores e na produção de pesquisas. Todavia, apesar de as diretrizes da pós-graduação sinalizarem distinções entre essas modalidades, nossa tese é a de que está havendo um processo de aproximação e de perda de identidade dos programas acadêmicos, sobretudo no mestrado. A análise exploratória e preliminar desenvolvida sobre o documento de área, principal referência para a organização dos PPG em nosso campo, reforçou nossa tese, sobretudo nos casos dos programas criados mais recentemente que não possuem tradição acadêmica consolidada.
Por um lado, tal cenário é positivo, dado que a área sempre procurou manter firmes compromissos com a melhoria do ensino de ciências na educação básica. Todavia, por outro lado, preocupa-nos a ideia de desidratação da dimensão da pesquisa e da produção de conhecimentos nos programas acadêmicos, posto que a pós-graduação, apesar de não ser a única instância responsável pela manutenção e definição dos rumos do campo de pesquisa, é um dos seus elementos mais significativos, afinal é nela que atuam os orientadores mais engajados e é ela também o espaço formativo para novos atores integrantes da área.
É presumível que estamos diante de um desafio, relacionado aos rumos da área nos próximos anos, sobretudo se a tendência praticista for ainda mais incentivada. Praticista aqui no sentido de uma construção de concepção de pesquisa educacional que só tem valor quando diretamente aplicada à realidade de sala de aula e aos programas de formação continuada de professores, “reforçando compreensões lineares entre a formação e o seu uso prático” (Silva e Jacomini, 2017, p. 644). Nosso temor é que esse tipo de racionalidade signifique colateralmente o aligeiramento e o aviltamento dos processos mais sistematizados de formação de professores-pesquisadores, já que nessa perspectiva a pesquisa e “o esforço teórico [são associados] à perda de tempo ou à especulação metafísica” (Kuenzer e Moraes, 2009, p. 194).
Nesse sentido, cabem estudos mais pormenorizados sobre a organização curricular de nossos programas, acadêmicos e profissionais, com análises comparativas de suas estruturas curriculares, linhas de pesquisa, processos formativos, egressos e dissertações e teses produzidas. Nos últimos anos são praticamente inexistentes estudos focalizados na organização de nossos programas e estudos que procuram examinar a formação para pesquisa e para a docência fornecida pelos PPG, considerando suas identidades acadêmicas e/ou profissionais.
Diante disso, seria importante acompanharmos o desenvolvimento da área e dos seus respectivos programas ante as metas fixadas pelo mais recente Documento de Área (Brasil, 2019), que definiu a área de ensino como campo translacional. Seria interessante examinar as repercussões dessa perspectiva sobre nossa natureza e pretensões como campo de pesquisa. Por isso, um estudo mais aprofundado e analítico sobre o referido documento é, a nosso ver, urgente e estritamente necessário.
Como notas finais, é importante mencionar que, a despeito de que nem todo mestre titulado deseja cursar doutorado, investindo esforço pessoal na consolidação de sua formação como pesquisador, não podemos deixar de pensar que o pequeno número de cursos de doutorado é um fator limitante. Prova disso é que, ao longo dos últimos 25 anos, o percentual de teses de doutorado nunca ultrapassou os 17% da produção. Como avançar na consolidação dos programas existentes em direção ao doutorado? Será que a existência de doutorados profissionais ajudará a mitigar esse gargalo? Qual é o impacto dos doutorados profissionais na área? Temos aqui indagações adicionais merecedoras de análises e reflexões também em estudos posteriores.
Por fim, um ponto a ser enaltecido se refere ao aumento paulatino da representatividade das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste, indicando algum avanço no processo de redução das assimetrias na distribuição de programas da área pelas várias regiões brasileiras. O desafio é encontrar meios e recursos para ampliar as oportunidades de formação e consolidar as novas praças de formação stricto sensu na área. Esse é um processo em que as políticas públicas, particularmente aquelas impulsionadas pela CAPES, precisam manter e, se possível, intensificar, porém o atual quadro político-econômico reinante na sociedade brasileira parece gerar obstáculos cada vez mais incisivos para o desenvolvimento desse projeto.