INTRODUÇÃO
A covid-19 foi decretada como emergência de saúde pública de interesse internacional, atingindo mais de 150 países pelo alto grau de disseminação (World Health Organization - WHO, 2020). O crescimento desmedido de casos e óbitos, além da inexistência de vacina nos meses iniciais, evidenciou, de forma impactante, a fragilidade da vida diante de uma crise sanitária sem precedentes, sendo as medidas de prevenção o único caminho capaz de inibir a transmissão e desacelerar o contágio (Garcia e Duarte, 2020). Práticas como a higienização das mãos e dos ambientes, a utilização de máscaras faciais e o isolamento social, por exemplo, tornaram-se imperativas no cotidiano das pessoas em todo o mundo (Adhikari et al., 2020).
Outras experiências, como a da primeira epidemia de síndrome respiratória grave, em 2003, em Taiwan, Singapura e Hong Kong, indicam a estruturação desse tipo de crise em quatro fases: contenção, mitigação, supressão e recuperação (Werneck e Carvalho, 2020). A fase de contenção é caracterizada pelo rastreamento de pessoas vindas do exterior e de seus contatos para evitar a transmissão. Possivelmente, o conhecimento prévio dessas fases resultou em uma bem-sucedida fase de contenção da pandemia da covid-19 nesses locais. A fase de mitigação, por sua vez, acontece quando a de contenção falha. Objetiva-se, nessa etapa, diminuir a curva de transmissão. Para tanto, isolar as pessoas infectadas é a principal medida. Cancelar eventos, proibir aglomeração de pessoas e recomendar a evitação do contato social são ações importantes para proteger, sobretudo, as pessoas dos grupos de risco. A fase de supressão já é mais aguda. Considerando o insucesso das fases anteriores, pode-se dizer que o que define essa etapa é a finalidade de suprimir, ao máximo, o contágio para que o sistema de saúde não entre em colapso. Assim, as medidas de distanciamento social são intensificadas, ocorre a suspensão de atividades obrigatórias, tais como as laborais que requerem contato presencial e as escolares. A última fase, a de recuperação da crise, ocorre quando a curva de transmissão está em declínio e o país necessita de reestruturação cuidadosa para prover a retomada social e econômica (Walker et al., 2020; Werneck e Carvalho, 2020; Yang et al., 2020).
Associados aos desafios impostos pelo contexto da crise nas diferentes fases, dentro de um escopo multidimensional, os impactos da pandemia são reportados desde níveis comportamentais, como aumento no consumo de notícias e alterações no comportamento alimentar e de higienização (Aymerich-Franch, 2020), até níveis relacionados ao funcionamento cognitivo, como redução dos níveis de bem-estar (Tabri, Hollingshead e Wohl, 2020) e elevação dos níveis de ansiedade e estresse (Aymerich-Franch, 2020; Brooks et al., 2020), chegando, até mesmo, a níveis institucionais - foi possível observar um declínio da confiança nas instituições sociais (Prati, 2020).
Especificamente, quanto ao funcionamento mental, foi possível constatar que indivíduos com elevado autocontrole aderiram mais às diretrizes de distanciamento social, sem percebê-las como mais ou menos difíceis (Wolff et al., 2020). De fato, Dubey et al. (2020), ao realizarem uma pesquisa no PubMed e no Google Scholar, constataram que a quarentena forçada pode produzir pânico agudo, ansiedade, comportamentos obsessivos, acumulação, paranoia, depressão e transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) no longo prazo. Assim, da mesma maneira que não são conhecidas todas as consequências que a crise da pandemia da covid-19 pode vir a evocar na saúde mental dos indivíduos, também não se sabem as especificidades que podem ocorrer nos diferentes âmbitos da sociedade.
Pesquisadores nos Estados Unidos e no Canadá constataram que o medo exacerbado e o sofrimento psicológico em níveis elevados frente a pandemia do coronavírus podem vir a configurar uma síndrome de estresse covid-19 (Taylor et al., 2020). Essa síndrome é multifacetada e pode ser explicada pelas seguintes dimensões:
medo da gravidade da SARS-CoV-2, incluindo o de entrar em contato com fontes de contaminação do vírus;
apreensão quanto aos custos socioeconômicos (por exemplo, finanças pessoais);
medos xenófobos, ou seja, entre as nações;
sintomas de estresse traumático associados à covid-19 (pesadelos, pensamentos intrusivos ou imagens relacionadas à covid-19); e
comportamento de verificação compulsiva relacionada à covid-19.
Tendo isso em vista, a preocupação com a periculosidade da covid- 19 foi considerada a característica central da síndrome. Já os principais fatores de risco para o seu desenvolvimento são a psicopatologia preexistente, a evitação excessiva relacionada à covid-19, a realização de compras compulsivas e as dificuldades de enfrentamento durante o autoisolamento. Os autores constataram ainda que essa síndrome, em suas diversas dimensões, é considerada um fator ambiental preditor para os sintomas de depressão, ansiedade e estresse.
Diante disso, o desenvolvimento de vacinas profiláticas seguras e eficazes contra a covid-19 foi uma das grandes prioridades das instituições de pesquisa para o enfrentamento da pandemia. Como resultado, atualmente, em fevereiro de 2021, segundo dados da OMS (WHO, 2021), existem pelo menos sete vacinas aprovadas e que estão em uso em diversos países, a saber: BNT162b2/COMIRNATY Tozinameran (INN); AZD1222; Covishield (ChAdOx1_nCoV19); SARS-CoV-2 Vaccine (Vero Cell), Inactivated (lnCoV); SARS-CoV-2 Vaccine (Vero Cell), Inactivated; mRNA-1273; e a Sputnik V.
No entanto, no Brasil, existem apenas duas delas em uso, a SARS-CoV-2 Vaccine (Coronavac) e a AZD1222 (AstraZeneca). Apesar de essas duas vacinas apresentarem valores satisfatórios quanto a sua eficácia, sendo a Pfizer Biontech 95% efetiva na prevenção da covid-19 (Polack et al., 2020) e a Coronavac 50,38% (Palacios et al., 2020), apenas 3,47% da população brasileira recebeu a primeira dose e 1,09% recebeu a segunda dose de alguma dessas vacinas, segundo dados das Secretarias Estaduais de Saúde (Conselho Nacional de Saúde - CNS, 2020).
Dados do Ministério da Saúde (2021) revelam que existem cerca 112.209.815 casos confirmados de SARS-CoV-2 e 2.490.776 mortes no Brasil, o que resulta em um coeficiente de mortalidade de 1.161,6 óbitos/1 milhão de habitantes, o 19º coeficiente mais elevado no ranking mundial da mortalidade por covid-19. Diante do exposto, as medidas profiláticas são urgentemente necessárias para conter a pandemia, que teve consequências médicas, econômicas e sociais devastadoras. No contexto brasileiro, a emergência sanitária da covid-19 se interpõe às crises política e social que vem assolando o país, agravando a situação de vulnerabilidade que, para além dos fenômenos evidenciados em razão desse contexto, especificamente no âmbito educacional, colocam-se como mais um problema (Dias e Pinto, 2020).
A portaria do Ministério da Educação (MEC) de nº 343/2020 regulamentou, para as instituições de ensino, a substituição das aulas presenciais pelo ensino por meios digitais, em caráter excepcional, enquanto durar a pandemia (Brasil, 2020b). As primeiras mudanças ocorreram a partir do mês de março de 2020, quando todas as escolas e instituições de ensino superior (IES) suspenderam as aulas como uma medida de proteção, tendo o isolamento social como o principal recurso para diminuir o impacto à saúde da população (Pott, 2020). Tal medida vem produzindo uma nova reformulação nas práticas de ensino e na reestruturação das instituições para atenderem às novas regras consideradas excepcionais (Ferreira et al., 2020). Outro exemplo do impacto da pandemia do coronavírus no âmbito educacional brasileiro foi o adiamento da aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) tanto na versão impressa quanto na digital (INEP, 2020).
Diante dessa realidade, a alternativa viável para adaptar o ensino às novas condições foi e está sendo as diversas modalidades oriundas da Educação a Distância (EaD), com o intuito de continuar o processo de ensino e aprendizagem e abrandar os impactos sofridos em relação ao afastamento das aulas presenciais (Marques e Fragas, 2020). Vale ressaltar uma breve diferenciação do que seria a EaD e o ensino remoto, uma vez que, na atualidade, estão sendo utilizados os dois tipos de ensino e cada um deles têm suas especificidades.
O primeiro - a EaD - refere-se à modalidade educacional com estrutura e metodologia que se apropriam da utilização de meios e tecnologias da informação em que alunos e professores são postos separados tanto no modo temporal, como fisicamente (Brasil, 2020a). Já o ensino remoto refere-se a uma solução pedagógica com uma configuração didática aplicada de forma pontual, utilizando-se de plataformas digitais, como aplicativos com tarefas, conteúdos e/ou plataformas síncronas (em tempo real) e assíncronas (em tempo não real) (Barbosa, Viegas e Batista, 2020).
Com todas as mudanças advindas da pandemia da covid-19, a educação compõe mais um desafio no leque de adversidades do atual cenário, pois essa situação vem demandando do sistema educacional novas configurações para os modelos de ensino, necessitando de rápidas adaptações às tecnologias, além da asseguração de sua qualidade (Ferreira et al., 2020).
Diante do exposto, a presente pesquisa objetiva analisar se a suspensão das aulas presenciais e/ou o ensino remoto podem ser configurados como fatores de estresse entre os estudantes do ensino superior durante a pandemia da covid-19. De maneira mais específica, a partir de relatos de estudantes universitários submetidos a atividades acadêmicas remotas (AAR) ou com atividades acadêmicas suspensas (AAS), busca-se investigar quais os fatores que eles estão a vivenciar podem ser considerados estressores no contexto pandêmico.
MÉTODO
Trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva, na qual se fez uso de cálculos estatísticos para analisar variáveis essencialmente qualitativas. As informações sobre os aportes metodológicos empregados são descritas a seguir.
PARTICIPANTES
Contou-se com uma amostra não probabilística composta de 267 estudantes universitários, sendo desses: 87,4% da Região Nordeste; 5,6% da Região Centro-Oeste; 3,7% da Região Sudeste; 2,2% da Região Sul; e 1,11% da Região Norte. A amostra foi dividida em dois grupos amostrais. O primeiro foi composto de 136 participantes em AAR, com média de idade de 23,74 anos (DP = 6,46), predominantemente mulheres (77,9%), brancas (44,1%), de instituições privadas (69,9%), cursando graduação (95,6%) e da área de Ciências da Saúde (45,6%). O segundo foi composto de 131 estudantes na condição AAS, com média de idade de 22,30 anos (DP = 3,48), a maioria mulheres (71%), autodeclaradas pardas (57%), de universidades públicas (89,3%) e da área de Ciências Humanas (40,5%).
INSTRUMENTOS
Os participantes responderam a um questionário sociodemográfico contendo perguntas referentes a idade, gênero, modalidade de estudo (remota ou suspensa), tipo de IES (pública ou privada) e a seguinte pergunta aberta: “Quais fatores e/ou acontecimentos têm elevado o seu nível de estresse nos últimos quatro meses?”.
PROCEDIMENTOS
O questionário foi divulgado nas redes sociais Facebook, Instagram, WhatsApp e Twitter e ficou hospedado na plataforma Google Forms entre os dias 19 e 24 de junho de 2020. O convite para participar da pesquisa, as informações necessárias ao preenchimento e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido compunham os elementos antecedentes ao questionário. Todas as prerrogativas éticas de pesquisa com seres humanos foram seguidas (Resoluções nº 466/2012 - CNS, 2012 - e nº 510/2016 - CNS, 2016). A presente pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alagoas sob parecer nº 3.099.323.
ANÁLISE DE DADOS
Foram elaborados dois corpora textuais (AAR e AAS) a partir das respostas dos e das participantes. Os dados textuais foram processados e analisados com o auxílio do software Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires (IRaMuTeQ - Ratinaud, 2009). A análise do tipo textual consiste num tipo específico de análise de dados que trata especificamente do tratamento analítico do material verbal transcrito, portanto, de textos produzidos de diferentes formas (Nascimento e Menandro, 2006). Camargo e Justo (2013) acrescentam que esse tipo de análise trata de um tipo específico de análise de dados, a partir da qual variados tipos de textos são analisados, e esses procedimentos podem acontecer tanto de maneira simples, como a lexicografia básica (como o cálculo de frequência de palavras), até com análises multivariadas. Na presente oportunidade, optou-se pelas análises multivariadas, a saber, a Classificação Hierárquica Descendente (CHD) pelo método de Reinert (Camargo e Justo, 2013). Tal procedimento classifica os segmentos de texto em consonância com seus respectivos vocabulários, com base na frequência e no χ², permitindo a criação de classes de Unidades de Contexto Elementares (UCE) (Camargo, 2005). As classes são geradas pelo software, que executa cálculos e fornece resultados que permitem descrever cada uma delas, principalmente, pelo seu vocabulário característico (léxico) e pelas suas palavras com asterisco (variáveis) e, com base no seu conteúdo, as classes são nomeadas, descritas e discutidas a luz do referencial teórico construído no presente estudo.
RESULTADOS
CORPUS 1 - ESTUDANTES NA CONDIÇÃO ATIVIDADES ACADÊMICAS REMOTAS
A CHD do corpus 1 foi formada por 408 UCE e apresentou 76,47% de aproveitamento, com 3.431 palavras. O corpus textual denominado “Estressores psicossociais decorrentes da pandemia do novo coronavírus em estudantes em AAR” foi segmentado em quatro classes. Na primeira partição, a classe 4 foi disposta em oposição às demais; na segunda, a classe 3 foi disposta separadamente das 1 e 2; e, por fim, a última partição separou as classes 1 e 2. Esses resultados podem ser observados na Figura 1, na qual são apresentadas as palavras de cada classe, os valores dos respectivos χ² e a frequência de cada palavra.
Ao analisar os fatores de risco ao estresse apontados pelos estudantes universitários submetidos a AAR, pode-se observar, conforme demonstrado na Figura 1, que a primeira classe associa fatores “emocionais, educacionais e familiares” como geradores de estresse no período da quarentena (57,69% das UCE). As palavras mais relevantes são: “família” (f = 54; χ² = 26,04), “aula” (f = 28; χ² = 18,91), “casa” (f = 45; χ² = 18,09), “medo” (f = 21; χ² = 16,51) e “quarentena” (f = 18; χ² = 14,01). Os discursos organizados nessa classe demonstram como a ressignificação do porvir e a instabilidade pessoal, bem como as adaptações a um novo formato de convivência familiar emergem como preocupações significativas nos últimos meses: “tenho incerteza em relação ao meu futuro e medo de perder alguém que amo” (participante 173, IES privada); “ficar em casa com minha família, ensino EAD comprometendo meu desempenho” (participante 233, IES privada); “me sobrecarregar com atividades extra, convivência com a família” (participante 260, IES pública); e “o fato de estar em quarentena é muito relevante para o stress, sobretudo estando em fase final de graduação” (participante 225, IES pública).
A classe 2 revela evocações que giram em torno das “mudanças de rotina e consequentes necessidades de adaptação” (13,46% das UCE) como geradoras de estresse durante esse período. As palavras mais salientes foram: “falta” (f = 30; χ² = 91,08), “rotina” (f = 18; χ² = 80,05), “dificuldade” (f = 12; χ² = 40,57), “plano” (f = 6; χ² = 39,33) e “pensamento” (f = 6; χ² = 39,33). Os discursos evidenciados nessa classe abordam os danos da pandemia, considerando as dificuldades impostas pela crise: “isolamento social, planos prejudicados, cenário político e dificuldade de estabelecer uma rotina produtiva” (participante 253, IES pública); “falta de confiança em não cumprir com meus objetivos” (participante 234, IES pública); “dificuldade de estabelecer uma rotina em casa” (participante 178, IES pública); “a pandemia, a sensação de não conseguir concluir meus planos” (participante 241, IES pública); e “diante da pandemia, falta de apoio de ambos os lados, pensamento que posso lidar e controlar tudo” (participante 211, IES particular).
A classe 3 enfatiza o “mal-estar acadêmico inerente às experiências acadêmicas no cotidiano pandêmico” (12,5% das UCE). As seguintes palavras foram evocadas com maior frequência: “estresse” (f = 18; χ² = 133,71), “faculdade” (f = 15; χ² = 65,64), “pressão” (f = 6; χ² = 42,82), “fator” (f = 6; χ² = 42,82) e “dia” (f = 6; χ² = 42,82). Os discursos extraídos dessa classe vinculam o estresse diretamente a fatores acadêmicos. Pode-se dizer que, para aqueles que estão realizando atividades de ensino nesse período, a adição dessa obrigação pode providenciar um acréscimo no mal-estar: “faculdade, aulas online e isolamento social” (participante 141, IES pública); “ansiedade e estresse com internet” (participante 169, IES pública); “pressões da faculdade, ficar em casa o tempo inteiro, a pressão acumulada faz com que eu me estresse com bastante frequência durante o dia” (participante 185, IES pública); e “se sentir impotente, sem sair em situações que um amigo está precisando de um abraço, os dias parecem todos iguais” (participante 261, IES pública).
A quarta e última classe indica estressores de âmbito “político, sanitário e interpessoal” como causadores de estresse (16,35% das UCE) e apresenta as seguintes palavras com maior frequência: “política” (f = 15; χ² = 80,64), “saúde” (f = 15; χ² = 46,69), “discussão” (f = 12; χ² = 63,87), “problema” (f = 9; χ² = 47,43) e “instabilidade” (f = 9; χ² = 47,43). Essa classe extrapola o nível mais pessoal e inclui outras esferas da vida que atuam como agentes potencializadores do estresse: “política brasileira, saúde pública e consciência social” (participante 163, IES pública); “covid-19 e a instabilidade política no Brasil” (participante 218, IES pública); “dificuldade financeira e os problemas de pessoas próximas que são importantes para mim” (participante 167, IES privada); “a existência do capitalismo e suas influências na forma como estamos enfrentando a pandemia e o isolamento social” (participante 247, IES pública); e “discussão sobre covid-19 com pessoas que se recusam a acreditar na existência do vírus” (participante 255, IES pública).
CORPUS 2 - ESTUDANTES NA CONDIÇÃO ATIVIDADES ACADÊMICAS SUSPENSAS
A CHD do corpus 2 foi formada por 264 UCE e apresentou 62,88% de aproveitamento, sendo analisadas 2.580 palavras. O corpus 2, denominado de “Estressores psicossociais decorrentes da pandemia do novo coronavírus em estudantes em AAS”, foi subdividido em três classes. Na primeira partição, a classe 3 foi disposta em oposição às 1 e 2; já na segunda, emergiram as classes 1 e 2. Esses resultados aparecem na Figura 2, em que são apresentadas as palavras de cada classe, os valores dos respectivos χ² e a frequência de cada palavra.
Ao analisar os fatores de risco ao estresse apontados pelos estudantes universitários submetidos a AAS, pode-se observar, conforme demonstrado na Figura 2, que a classe 1 revela “preocupações decorrentes do isolamento social” (37,35% das UCE) como eliciadoras de estresse durante a pandemia. As palavras mais relevantes foram: “isolamento social” (f = 26; χ² = 29,43), “falta” (f = 20; χ² = 17,68), “relacionamento” (f = 10; χ² = 17,85), “aula” (f = 8; χ² = 14.01) e “covid-19” (f = 42; χ² = 9,41). Nessa classe, observam-se discursos que tratam de apreensões e dificuldades relacionadas ao cotidiano pandêmico e suas repercussões em diversos aspectos da vida: “questões políticas, sobrecarga em atividades extracurriculares, relações pessoais afetivas” (participante 14, IES pública); “isolamento social, término de relacionamento, paralisação de aulas” (participante 225, IES pública); “falta de direção na minha vida profissional, distanciamento das pessoas, falta de recursos melhores” (participante 232, IES pública); “falta de apoio político diante do cenário catastrófico da saúde no país, falta de perspectivas concretas a respeito de um futuro totalmente incerto, perda de pessoas conhecidas devido ao covid-19” (participante 72, IES pública); e “comportamento inadequado do meu pai frente a pandemia, fechamento da empresa de 30 anos dos meus pais” (participante 257, IES pública).
A classe 2 indica as “relações familiares e a alteração na rotina” como desencadeadoras de estresse (25,30% das UCE). As palavras mais relevantes foram: “família” (f = 16; χ² = 36,24), “rotina” (f = 12; χ² = 23,05), “mudança” (f = 6; χ² = 18,38), “período” (f = 6; χ² = 18,38) e “poder” (f = 4; χ² =12,10). Nessa classe, a família aparece ora como uma preocupação diante do vírus e suas consequências na saúde, ora como um estressor dentro da própria casa, proporcionando problemas nos relacionamentos interpessoais. Discursos que indicam estressores relativos a readaptações do cotidiano também foram recorrentes: “mudança radical de rotina, planos suspensos e sem previsão, viver sem perspectiva, apego às mudanças que estavam previstas e não foram possíveis de serem concretizadas” (participante 143, IES pública); “isolamento social, alcoolismo de familiar e casa apertada, falta de disposição e computador quebrado” (participante 31, IES privada); “pandemia de coronavírus, morte de alguns familiares, possíveis crises de ansiedade de todos que moram comigo e minha procrastinação” (participante 108, IES privada); “não poder sair de casa nem receber meus amigos e família” (participante 99, IES pública); e “a convivência em tempo integral com a minha família, coisas pequenas que eles fazem me estressam, mas não acontece todo dia” (participante 201, IES pública).
Por fim, a classe 3 organizou evocações que representam “incertezas e falta de perspectivas” (37,35% das UCE) como desencadeadoras de estresse no período da pandemia. Observam-se preocupações e inseguranças quanto ao futuro. As palavras mais salientes foram: “incerteza” (f = 26; χ² = 39,79), “futuro” (f = 28; χ² = 33,67), “medo” (f = 14; χ² = 15,28), “ter” (f = 10; χ² = 17,85) e “conseguir” (f = 14; χ² = 14,10). Essa classe dimensiona o receio que emerge do cenário adverso. A ruptura dos planos e uma reorganização incerta fragmentam a noção de futuro dos estudantes com as atividades acadêmicas paralisadas: “faculdade e perspectiva de futuro” (participante 129, IES pública); “insegurança e instabilidade” (participante 25, IES privada); “perspectiva de futuro e medo de os meus pais contraírem covid-19” (participante 58, IES pública); “incerteza do amanhã, medo de ter que voltar a trabalhar/estudar presencialmente nas condições atuais e contrair covid” (participante 16, homem, IES pública); e “incerteza quando ao futuro, não conseguir atingir minhas metas e objetivos (me formar, sair do estágio e conseguir um emprego)” (participante 138, IES pública).
DISCUSSÃO
Ao considerar que a pandemia da covid-19 desencadeou, de forma generalizada, um aumento nos níveis de estresse e ansiedade da população (Taylor et al., 2020), tomou-se como objetivo desta investigação analisar de que modo a presença ou a ausência de atividades acadêmicas remotas no período pandêmico pode ser considerada um aditivo para o estresse de universitários. Para tanto, estudantes em duas condições - em AAR e em AAS - responderam abertamente sobre quais fatores podem ser associados ao estresse nos meses de abril, maio, junho e julho de 2020.
No que concerne aos discursos produzidos pelo grupo em AAR, é possível observar que, em três das quatro classes, foram revelados como estressores fatores relacionados ao contexto do ensino remoto, embora nas quatro classes, simultaneamente, aspectos estressores de ordem geral reportem elementos não diretamente relacionados ao contexto do ensino. Os eventos estressores não relacionados ao contexto acadêmico se referem principalmente a problemas em estabelecer relações interpessoais com os familiares, dificuldades em manter rotinas, pressão psicológica frente às incertezas futuras, distanciamento das pessoas queridas e preocupação com o futuro do país, por exemplo. Quanto aos fatores estressores relacionados ao contexto de aulas remotas, são mais frequentes as dificuldades em ter um ambiente propício à aprendizagem dentro de casa, problemas com a internet, pressão em relação à universidade, dificuldade com as aulas on-line, insegurança quanto à qualidade do ensino, entre outras.
Sobre os relatos do grupo em AAS, também é possível observar que todas as classes apresentam fatores estressores não diretamente relacionados à suspensão das atividades acadêmicas. No entanto, de modo mais específico, duas classes referem estressores relacionados à suspensão das atividades acadêmicas como propulsoras de estresse. Aqui, alguns dos eventos estressores não relacionados ao ensino incluem a própria covid-19, o isolamento social, a falta de rotina, dificuldades nos relacionamentos interpessoais, a instabilidade política, o adoecimento de familiares, a falta de recursos financeiros, a perda de pessoas conhecidas e a incerteza sobre o futuro. Quanto aos aspectos ligados à paralisação das atividades acadêmicas, é possível destacar a suspensão das aulas, a falta de recursos para continuar na universidade, a preocupação em realizar o estágio, a falta de segurança sobre a conclusão do curso, entre outros, como eventos estressores.
No sentido de traçar um paralelo entre os discursos dos dois grupos, é lugar comum nas evocações dos participantes a multidimensionalidade dos fatores associados ao estresse no período pandêmico. Isso aproxima os dois grupos em termos de repertórios desencadeadores de estresse durante esse período de crise. Por outro lado, os resultados apontam uma vinculação mais acentuada do estresse à atividade acadêmica por parte do grupo em AAR, dado que pode ser observado na configuração das classes (três dos quatro conjuntos referem aspectos ligados ao ensino remoto), bem como na frequência das palavras. O grupo de respondentes em AAS, por sua vez, apresenta restritamente uma preocupação mais intensa com as incertezas do futuro, vinculando parte dessa instabilidade à suspensão das atividades acadêmicas. Além desse aspecto, foi possível observar também que, para o grupo com as atividades suspensas, o retorno às atividades gera um contingente de ameaça à transmissão da covid-19, um receio de se contaminar, sendo, portanto, indicado como um fator estressor pelos estudantes.
Pode-se observar que os fatores estressores não vinculados ao ensino se assemelham aos dados obtidos por pesquisadores em outras investigações (Taylor et al., 2020; Wang et al., 2020), os quais constataram que a síndrome de estresse da covid-19 é multifacetada e, por isso, pode ser explicada pelas dimensões do medo da gravidade do vírus e sua transmissão, da apreensão quanto os custos socioeconômicos, dos medos xenófobos, dos sintomas de estresse traumático associados à covid-19, etc. No caso dos resultados da investigação com esse recorte de universitários de que trata o presente estudo, apenas as apreensões xenófobas não foram evidenciadas. Possivelmente países que passam por processos continuados de migração tendam a se preocupar com a vulnerabilidade derivada de tais processos.
De fato, o medo do desconhecido frente ao futuro incerto, característico desse período de emergência sanitária, pode resultar em um aumento nos níveis de ansiedade tanto para aqueles com problemas de saúde mental preexistentes quanto para os que são psicologicamente saudáveis (Cao et al., 2020), sendo as implicações da pandemia para a saúde mental ainda pouco conhecidas (Rajkumar, 2020).
Os dados da presente pesquisa contribuem para a ampliação do conhecimento nessa área na medida em que revelam informações sobre fatores desencadeadores de estresse para cada um dos diferentes contextos acadêmicos que constituem o interesse desta pesquisa. Assim, observa-se que os alunos em AAR citam como fontes estressoras as dificuldades de acesso a condições favoráveis de aprendizagem (ex.: local apropriado, internet estável, ensino de qualidade). É importante destacar que, se essa dificuldade de acesso citada pelos participantes como estressora, suplementarmente, for estendida para as condições dos estudantes que não possuem acesso operacional (equipamentos e ferramentas adequados ao ensino remoto), o problema se torna ainda mais severo. De outro modo, universitários sem atividades também indicam prejuízos à saúde mental ao relatarem a imprecisão de seus planos de vida em função da suspensão das atividades acadêmicas.
Em algum sentido, esses resultados demonstram que, se o objetivo de atender às recomendações do MEC consiste em fomentar condições de ensino aos estudantes, com a finalidade de evitar a estagnação do processo educativo, considerando os impactos acentuados no sistema educacional, bem como a interrupção da carreira dos estudantes, essa medida parece se fazer efetiva, ao menos parcialmente. Embora muitas barreiras sejam reportadas sobre o ensino remoto, o distanciamento completo da esfera acadêmica pode comprometer o bem-estar de universitários, sobretudo, no longo prazo.
Bao (2020) traz evidências sobre o que pode ter sido uma primeira experiência dessa modalidade de ensino no contexto da pandemia. Trata-se de um estudo de caso desenvolvido em uma universidade de Pequim que buscou soluções pontuais para a retomada das atividades acadêmicas. Cinco princípios foram apontados como fundamentais para assegurar a qualidade do ensino remoto. O primeiro refere a relevância adequada acerca da quantidade, dificuldade e extensão do conteúdo a ser ministrado aos discentes. O segundo menciona como imprescindível adequar a velocidade do ensino de modo que seja garantida a entrega da informação didaticamente. O terceiro traz a importância do suporte dos professores e do corpo técnico para fornecer feedback oportuno aos alunos após as aulas. O quarto relaciona-se à participação de qualidade dos alunos nas atividades. E o quinto se preocupa com o planejamento de contingência para que problemas técnicos possam ser manejados em tempo hábil. Adicionalmente, a experiência chinesa relatada nesse estudo de caso realça que, na condição de assegurar todos esses princípios, é primordial ainda lidar eficazmente com a ansiedade dos estudantes para que possam endossar um engajamento eficiente para a aprendizagem nesse cenário adverso da covid-19.
Arruda (2020) desenvolveu um ensaio sistematizando informações sobre os impactos da pandemia na educação em todo o mundo. Das considerações mais significativas, foi destacada a relação entre investimento e desafios na educação frente ao ineditismo das consequências da pandemia. Nações desenvolvidas, como a China, os Estados Unidos e outros países europeus, vêm investindo maciçamente em tecnologia para disponibilizar acesso a plataformas de comunicação a professores e alunos, o que favorece a diminuição dos impactos da pandemia na educação. Contudo, os desafios na manutenção do acesso contínuo dos conteúdos, na didática e na atenção dos professores em relação ao processo de ensino-aprendizagem são colocados independentemente desses esforços. O autor chama a atenção para a fragilização da educação como espaço institucional na condição de tratar como prioridade os desafios em lugar dos incentivos. Nessa perspectiva, distanciar-se do processo educativo pode ser mais danoso do que não investir em uma aproximação veiculada de forma responsável e contextualizada com a vida acadêmica.
No Brasil, a crise sanitária denunciou a grave situação dos sistemas político, econômico, cultural e social (Sá, Miranda e Canavêz, 2020). Não seria difícil supor que a educação estaria entre os alvos mais prejudicados. Nessa perspectiva, o sofrimento das pessoas nesse contexto é impactado por agentes de diferentes níveis, o que impõe um gerenciamento cuidadoso dos aspectos que integram esse conjunto. Em meio à precarização da saúde e às instabilidades econômica e social, a formação acadêmica aparece como mais um agravo. Seja por estar imposta como atividade obrigatória, seja por estar em suspenso.
Algumas IES vêm adotando planos de contenção da crise, organizando medidas que possibilitam a redução dos danos à educação, tanto as públicas como, principalmente, as privadas. Em outra direção, é possível observar a existência de IES que se mantêm sem dispositivos de continuidade de estudos sob a excepcionalidade da pandemia sem previsão de calendário (Arruda, 2020). Esses achados confirmam o vasto caminho que existe para implementação do ensino remoto e a ressignificação do processo educativo nesse período.
De maneira geral, os resultados apresentados neste estudo possibilitam evidenciar pelo menos dois aspectos importantes:
as consequências dessa crise sanitária efetivamente se configuram como eventos estressores que concorrem com a preocupação com a vida acadêmica, independentemente de os estudantes estarem ou não em atividade remota;
embora a realização de atividades acadêmicas digitais durante a pandemia providencie um mal-estar acerca de um conjunto de aspectos, desde a qualidade questionável do ensino até o acesso a tais atividades, por sua vez, a suspensão completa das atividades sugere a adição de mais um componente no leque de inseguranças e incertezas em relação ao futuro.
Ambas as condições apresentam implicações que são reportadas como estressoras pelos estudantes. Possivelmente, a alteração ou interrupção parcial dos planos de vida dos universitários que tomaram parte neste estudo seja o ponto crucial que coloca a vida acadêmica como mais um estressor durante o período pandêmico. Faz-se necessário aprofundar a análise dos conteúdos evocados pelos participantes e traçar, de forma cautelosa, essa associação que os dados sugerem entre estresse, pandemia e a realização de atividades acadêmicas remotas em estudos futuros.
Além desses aspectos, as respostas dos estudantes apontam como estressores potenciais elementos dentro de uma ordem mais ampla, como as instabilidades política, social e econômica, reforçando a urgência de uma agenda de planejamento e implantação de políticas públicas que viabilizem a redução dos problemas derivados da pandemia.
Apesar de suscitar reflexões importantes para a ponderação da realização de atividades acadêmicas ou sua suspensão durante a pandemia da covid-19 como desencadeadoras de estresse em universitários, esta investigação apresenta algumas limitações que podem ser solucionadas em pesquisas futuras. Por exemplo, não foi possível associar os aspectos indicados como estressores ao tipo de IES (pública ou privada), ao gênero, à etnia ou à renda dos estudantes. Essas dimensões merecem ser analisadas, uma vez que consistem em marcadores potenciais das desigualdades sociais que, por sua vez, assumem papel central na saúde mental das pessoas.