INTRODUÇÃO
Acumulam-se os efeitos deletérios da pandemia da covid-19 na realidade brasileira. Para os professores que lograram a manutenção de seus empregos, a crise sanitária iniciada em março de 2020 pode ser entendida como marco de quando o trabalho deixou de ser levado para a casa e o ambiente doméstico passou a se configurar como o local prioritário dessa atividade. Nesse contexto, o estabelecimento do ensino remoto emergencial, além de trazer novos condicionantes para o processo de trabalho docente, acelerou tendências já em curso no cenário educacional no Brasil, a exemplo da incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TIC), da privatização, da precarização e do prolongamento da jornada de trabalho (Catini, 2020; Minto, 2021; Nepomuceno e Algebaile, 2021).
Em âmbito nacional, a Nota de Esclarecimento do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 18 de março de 2020 (Brasil, 2020a), orientou os sistemas de ensino federal, estaduais, municipais e distrital, em conformidade com o Decreto n° 9.057, de 25 de maio de 2017 (Brasil, 2017), a autorizarem a realização de atividades em ambientes virtuais nos diferentes níveis e modalidades da educação básica e educação superior. Seguindo a mesma linha, a Medida Provisória n° 934, de 1° de abril de 2020 (Brasil, 2020b), estabeleceu que as redes e instituições de ensino estavam dispensadas, em caráter excepcional, da obrigatoriedade de observância ao mínimo de dias de efetivo trabalho escolar, desde que cumprida a carga horária mínima anual. Essa medida provisória foi promulgada como Lei n° 14.040, de 14 de agosto de 2020 (Brasil, 2020c), e modificou o ano letivo.
No estado de São Paulo, em 27 de abril de 2020, o governador João Doria (PSDB) implantou, de forma acelerada, um modelo de ensino remoto emergencial em toda a rede de ensino da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP), desde os anos iniciais do ensino fundamental até o ensino médio, o que envolveu todas as modalidades da educação básica. O ensino remoto remodelou, de forma significativa, o trabalho docente. Nas videoaulas oferecidas pelo aplicativo Centro de Mídias de Educação de São Paulo (CMSP), apenas algumas dezenas de professores que participaram de um processo seletivo passaram a ministrar as aulas para o montante de 3,5 milhões de estudantes, de forma homogênea e padronizada (São Paulo, 2021).
O ensino remoto emergencial e o uso indiscriminado de recursos tecnológicos ao longo da pandemia foram adotados sem a devida consideração de posicionamentos críticos dos professores e do acúmulo de conhecimento do campo da educação. A pandemia, por um lado, foi encarada como uma espécie de “janela de oportunidades” por setores ligados ao empresariado da educação para o avanço do chamado processo de “modernização”, a ampliação das ferramentas tecnológicas na educação e a maior abertura para a atuação de atores privados nas redes públicas, na oferta de serviços, aplicativos e plataformas digitais (Souza e Evangelista, 2020; Figueiredo Filho e Santos, 2021; Minto, 2021). Por outro, as pressões para o retorno presencial elegeram o trabalhador docente como principal alvo de críticas, o que intensificou o processo de culpabilização do professor pelos problemas educacionais relacionados ao ensino remoto.1
No senso comum, a argumentação de que os professores e as professoras trabalharam pouco, trabalharam menos, ou não trabalharam no intercurso do ensino remoto emergencial parte do pressuposto de que, quanto mais inovações e recursos tecnológicos embutidos nos processos de trabalho, menos horas são necessárias para essa atividade e, por isso, maior seria o tempo livre dos trabalhadores. Os pressupostos desta pesquisa, no entanto, contestam essa linha de pensamento. Considera-se que os problemas que cercam a educação e o trabalho docente no cenário da pandemia precisam ser analisados à luz das mudanças que estão ocorrendo no processo de trabalho contemporâneo (Minto, 2021).
Antes mesmo da pandemia da covid-19, na rede estadual paulista de educação, a precariedade do trabalho docente tem se constituído como parte da realidade das escolas e caminha conjuntamente com a flexibilização das formas de contratação. A realidade do trabalho precário nessa rede de ensino não se limita à esfera objetiva, a precariedade objetiva conduz à subjetiva e traz impactos para a vida cotidiana de professores e professoras como um todo (Linhart, 2014; Venco e Rigolon, 2014). Ademais, a lógica gerencialista, os valores meritocráticos, os princípios pautados na eficiência e na racionalidade econômica, típicos do ideário neoliberal que pauta a “Nova Gestão Pública”, acentuaram a flexibilização e a instabilidade das formas de contratação, a degradação das relações e condições trabalhistas e o processo de intensificação do trabalho (Souza, 2013; Venco, 2016; Barbosa et al., 2020).
Assim, em tempos de aguda crise e de profundas transformações nas relações de trabalho, nos indicadores sociais e na escola, é fundamental realizar reflexões sobre como o modelo do ensino remoto afetou e conferiu novos contornos ao trabalho docente e ao tempo livre na rede pública de educação do estado de São Paulo. Pesquisar os impactos desse processo nas dimensões da vida cotidiana ganha relevância em um cenário em que as atividades escolares adquiriram outras formas de organização e passaram a ser realizadas para além dos turnos e dos locais habituais. O objetivo desta pesquisa consistiu, dessa forma, em investigar os efeitos do trabalho remoto, decorrentes da pandemia da covid-19, sobre a jornada de trabalho e o tempo livre de professores que atuam na rede pública de educação do estado de São Paulo.
PERCURSO METODOLÓGICO
Mediante uma pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa (Bogdan e Biklen, 2003), a coleta de dados foi realizada por meio da aplicação de questionários com professores vinculados à SEDUC-SP, relacionando-os com entrevistas semiestruturadas realizadas anteriormente à pandemia com professores dessa mesma rede de ensino.
Realizou-se a análise dos documentos e das legislações que versam sobre o trabalho docente no contexto nacional e no estado de São Paulo no período da pandemia da covid-19. Os documentos analisados foram: Nota de Esclarecimento do Conselho Nacional de Educação (CNE), de 18 de março de 2020 (Brasil, 2020a); Decreto n° 9.057, de 25 de maio de 2017 (Brasil, 2017); Medida Provisória n° 934, de 1° de abril de 2020 (Brasil, 2020b); e Lei n° 14.040, de 14 de agosto de 2020 (Brasil, 2020c).
A rede de ensino do estado de São Paulo realiza contratações flexíveis e heterogêneas, conforme categorias de docentes predominantes na última década: os professores da categoria “A” são concursados, titulares de cargo, e possuem estabilidade e plano de carreira; os professores “F” são ocupantes de função-atividade (OFA), admitidos por meio da Lei n° 500/1974, e adquiriram estabilidade por meio da Lei n° 1.010, de 1° de junho de 2007, que criou o “São Paulo Previdência — SPPREV”; os professores da categoria “O” foram contratados temporariamente por meio da Lei n° 1.093, de 16 de julho de 2009, não gozam de estabilidade e não acessam vários direitos dos efetivos, como aqueles relativos à progressão na carreira, licença-prêmio, entre outros; os professores da categoria “V”, chamados eventuais, são temporários e regidos pela Lei n° 1093, de 16 de julho de 2009, mas estão em condição mais instável e precária porque não possuem jornada nem remuneração fixa, recebem por aula dada (Venco, 2016; Barbosa et al., 2020). O critério de inclusão dos participantes foi por conveniência e envolveu os trabalhadores docentes de todas essas categorias ao longo da realização do trabalho de campo.
Com vistas a enriquecer a comparação e qualificar os argumentos, foram retomadas e analisadas entrevistas semiestruturadas realizadas em um período anterior à pandemia, entre os meses de setembro e novembro de 2015, com questões sobre o trabalho docente e usos do tempo livre. Essas entrevistas foram realizadas com 29 trabalhadores docentes que atuavam na rede de ensino no estado de São Paulo, 14 estáveis (11 professores categoria “A” e 3 professores da categoria “F”), 11 temporários categoria “O” e 4 eventuais (categoria “V”). Dentre esses professores, 17 eram do gênero feminino e 12, do masculino. Antes da realização das entrevistas, cada professor ficou em posse de um diário sobre os usos do tempo (Aguiar, 2011), versão impressa ou online (cada diário foi composto de um questionário com perguntas socioeconômicas), no qual foram descritas as atividades realizadas ao longo de uma semana típica de trabalho. Os diários, além de propiciarem a quantificação do tempo dedicado a cada dimensão da vida, possibilitaram um maior detalhamento sobre os usos do tempo em cada uma das entrevistas.
Por fim, utilizou-se a aplicação de um questionário online, no período de 29 de setembro de 2020 a 5 de novembro de 2020, entre o quinto e o sexto mês do início do trabalho remoto na SEDUC-SP. O questionário, voltado para os professores da SEDUC-SP em todo o estado, foi composto de 27 perguntas, divididas em quatro seções. A primeira seção procurou traçar o perfil dos respondentes. A segunda envolveu o fato de o docente ter sido contaminado pelo SARS-CoV-2 ou não, seguida de questões profissionais como cidade de atuação, realização ou não de ensino remoto emergencial, categoria funcional, acúmulo de cargo, quantidade de escolas de trabalho, carga horária semanal e outras atividades remuneradas exercidas. A terceira seção envolveu as questões relacionadas à comparação do trabalho antes e durante a pandemia: quantos turnos se trabalha em cada momento; frequência de trabalho durante os fins de semana; aumento, manutenção ou diminuição da jornada; quantidade de horas trabalhadas; e realização de outras atividades obrigatórias. Por fim, foram realizadas questões sobre a percepção subjetiva dos docentes relacionadas ao lazer: a percepção de exaustão no trabalho; a comparação com o tempo livre; a satisfação com os momentos de lazer; e atividades que gostaria de fazer e as razões pelas quais não as realiza.2
A divulgação e distribuição do questionário se baseou na técnica conhecida como “bola de neve” (Vinuto, 2014) e contou com a colaboração dos próprios participantes para que indicassem o questionário aos outros professores. No total, foram 121 professores que preencheram o questionário e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Todos os respondentes afirmaram realizar ensino remoto no momento de execução da pesquisa. Foram obtidas respostas de professores de 30 cidades do estado de São Paulo — da capital, do interior e do litoral. Entre os participantes, 79 respondentes foram mulheres, 41, homens e uma pessoa se identificou como não binária. Sobre o regime de trabalho: 76 professores indicaram ser da categoria “A”, os efetivos; 13, da categoria “F”, os que detém estabilidade empregatícia; e 32, da categoria “O”, os professores com regime de trabalho temporário. Cabe enfatizar que a ausência de docentes da categoria “V” ou eventuais não é por acaso e ressalta a situação de vulnerabilidade a que esses profissionais foram submetidos durante a pandemia. Os professores eventuais, antes essenciais para o funcionamento da rede, perderam seus contratos durante a pandemia e parte dos docentes da categoria “O”, que atuavam em substituição por curto prazo, também tiveram seus contratos rompidos.3 Com relação à situação profissional, 31 afirmaram acumular mais de um cargo de professor dentro da própria rede estadual ou em outras redes de ensino; 81 trabalhavam apenas em uma escola, 28 dos respondentes, em duas escolas, dez professores, em três unidades e dois, em quatro ou mais escolas; 29 do total disseram realizar outras atividades profissionais para além da docência, conforme observado no Quadro 1.
Categoria funcional | A (Efetivo) | F (Estável) | O (Temporário) | V (Eventual) |
---|---|---|---|---|
76 (62,8%) | 13 (10,7%) | 32 (26,4%) | 0 (0%) | |
Tem acúmulo de cargo? | Sim | Não | ||
31 (25,6%) | 90 (74,4%) | |||
Em quantas escolas você trabalha? | 1 | 2 | 3 | 4 ou mais |
81 (66,9%) | 28 (23,1%) | 10 (8,3%) | 2 (1,7%) | |
Exerce outra atividade remunerada? | Sim | Não | ||
29 (24%) | 92 (76%) |
Fonte: Elaboração dos autores.
A utilização de distintas técnicas de pesquisa nas duas etapas de realização do trabalho de campo — entrevistas e diários sobre os usos do tempo antes do início da pandemia e questionário durante o período de trabalho remoto, com enfoque na apreensão dos usos do tempo — trouxe dados importantes para a investigação dos efeitos do ensino remoto emergencial sobre a jornada de trabalho e sobre o tempo livre dos trabalhadores docentes da rede de ensino em questão. Destaca-se que todas as etapas da pesquisa foram aprovadas pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o CAAE n° 44670315.1.0000.5404.
TRABALHO DOCENTE E PANDEMIA: NOVAS TECNOLOGIAS, ANTIGOS DILEMAS
O debate e as polêmicas acerca das implicações do avanço tecnológico sobre o trabalho e o conjunto das relações sociais acompanham o pensamento econômico, político, sociológico e filosófico. Os abalos provocados pela Revolução Industrial a partir do século XVIII, pelo advento da energia elétrica e das técnicas de gestão taylorista e fordista em meados dos séculos XIX e XX e pelas inovações tecnológicas em torno da reestruturação produtiva a partir da década de 1970 impactaram todas as dimensões da vida social de maneira profunda e suscitaram inúmeras análises sobre a relação entre a tecnologia e sua capacidade de poupar força de trabalho e “liberar” trabalhadores e trabalhadoras, no sentido, inclusive, de assegurar-lhes mais tempo livre (Antunes, 2020).
Desde clássicos da economia política e do liberalismo, como Adam Smith (1996), até teóricos defensores da maior intervenção do Estado na economia, como John Maynard Keynes, as reflexões dominantes sobre esses processos, em geral, carregavam interpretações positivas do “progresso técnico” e do incremento da produtividade como aliados do desenvolvimento das sociedades e da melhoria das condições da vida humana. Em ensaio intitulado “As possibilidades econômicas de nossos netos”, publicado originalmente em 1930, Keynes (1984) antevia que, em cerca de 100 anos (período que se aproxima de nosso tempo histórico atual), o desenvolvimento tecnológico, alinhado ao acúmulo de capital, viabilizaria tal grau de incremento na produtividade que os seres humanos se veriam livres do fardo da atividade laborativa para a garantia da sobrevivência imediata e das necessidades mais básicas. De acordo com essa projeção, não seriam necessárias mais do que 15 horas semanais dedicadas ao trabalho; a humanidade viveria, enfim, o tempo da liberdade e poderia dedicar-se às atividades que garantissem sentido à vida (Keynes, 1984).
Em sua crítica radical ao capitalismo, Karl Marx (2017, p. 445), por sua vez, anunciava que, nesse modo de produção, a maquinaria “é meio para a produção de mais-valor” e que, portanto, o revolucionamento constante das forças produtivas capitalistas nunca tem como objetivo satisfazer necessidades humanas ou aliviar o esforço de trabalho, mas aumentar a parte excedente da jornada de trabalho e garantir mais condições para extração de mais-valor, tanto em sua forma relativa, marcada pela intensificação do trabalho, quanto em sua forma absoluta, com a extensão da jornada. Como o capital jamais pode prescindir completamente do trabalho vivo, já que a força de trabalho é a única mercadoria que gera valor, a tendência de substituição de trabalhadores por maquinário com novas tecnologias mais produtivas vem combinada, em geral, com outra tendência de prolongamento da jornada.
A fase contemporânea de desenvolvimento do capitalismo traz em seu bojo uma aceleração do ritmo das inovações tecnológicas, sobretudo por meio da ampla incorporação das TIC, de maquinário digital, robotizado, e de inteligência artificial aos diversos ramos da produção industrial, agropecuária e dos serviços. A dinâmica da acumulação flexível, em expansão pelo mundo no fim do século XX, foi potencializada no século XXI pela necessidade do capital de responder à sua própria crise e retomar as taxas de acumulação. Os incrementos da internet e das plataformas digitais promoveram um salto de qualidade nos patamares da produtividade com vistas a impulsionar a extração de mais-valor e aumentar as taxas de lucro. Esse processo caminha pari passu com a intensificação, precarização, flexibilização e desregulamentação do trabalho, aprofundando o volume do desemprego e a explosão de relações de trabalho submetidas a condições aviltantes enquanto “alternativa” para se garantir alguma renda. Efetua-se uma complexificação da relação entre trabalho vivo e trabalho morto, incorporado ao arcabouço maquínico-digital, articulada com avanço brutal sobre os contratos, os salários, os direitos, as condições de vida e a jornada das trabalhadoras e dos trabalhadores, cujo maior exemplo é o rápido crescimento do fenômeno da uberização (Antunes, 2018; 2020; Venco, 2019; Silva, 2020).
A maximização da produtividade do trabalho de forma alguma é contraditória com o prolongamento da jornada; as tecnologias subsumidas ao capital poupam trabalho socialmente necessário, mas permitem ampliar o trabalho excedente, o que torna o trabalhador permanentemente disponível para realizar as atividades laborativas. As fronteiras do espaço e do tempo de trabalho e de não trabalho ficam cada vez mais fluidas e menos delimitadas. Para Dal Rosso (2008, p. 71), “O tempo livre, o tempo de não trabalho, passa a ser engolido pelo trabalho. A tecnologia que poupa trabalho está falhando em liberar aqueles que trabalham.”.
A mediação por tecnologia digital corresponde a um elemento central do paradigma das relações entre trabalho e capital no século XXI e frequentemente aparece como meio de conferir um “verniz” virtuoso, progressista e modernizante a patamares agudos de exploração e precarização do trabalho (Dal Rosso, 2008; Antunes, 2018).
Ao contrário da eliminação completa do trabalho pelo maquinário informacional-digital, estamos presenciando o advento e a expansão monumental do novo proletariado da era digital, cujos trabalhos, mais ou menos intermitentes, mais ou menos constantes, ganharam novo impulso com as TICs, que conectam, pelos celulares, as mais distintas modalidades de trabalho. Portanto, em vez do fim do trabalho na era digital, estamos vivenciando o crescimento exponencial do novo proletariado de serviços, uma variante global do que se pode denominar escravidão digital. Em pleno século XXI. (Antunes, 2018, p. 35)
As mudanças e os problemas da educação, da forma escolar na pandemia e dos processos de trabalho docente precisam ser analisados, desse modo, à luz das metamorfoses que ocorrem no mundo do trabalho contemporâneo (Minto, 2021). O uso da tecnologia e a orientação política para a utilização das plataformas digitais na educação, impulsionadas pela emergência da chamada indústria 4.04 e pelo crescimento de conglomerados privados no “negócio educacional”, já tinham ganhado espaço nas redes públicas de todo o país nos últimos anos (Venco, 2019; Catini, 2020; Silva, 2020). Não é por menos que tem crescido o uso do termo “Educação 4.0” na literatura que discute os impactos do avanço tecnológico na escola (Veras e Rasquilha, 2019; Oliveira e Souza, 2020; Mometi, 2020). De acordo com Barreto (2012), as TIC, formuladas e implementadas com o objetivo de aumento da produtividade e do lucro, foram apropriadas ou “recontextualizadas” para uso na educação, com implicações acentuadas sobre a concepção dos processos pedagógicos, a finalidade da escola e o trabalho de professoras e professores.
O trabalho docente tem sido completamente remodelado perante essa nova configuração da educação e da dinâmica do capital antes mesmo do advento da pandemia. Alguns eixos dessas modificações se articulam de maneira muito direta com as transformações no mundo do trabalho em escala global, no momento da reestruturação produtiva, do neoliberalismo e da acumulação flexível. Assim, a instabilidade, a pluralidade de tipos de contratos, a difusão dos temporários, a flexibilização, o aumento da jornada (acúmulo de cargos), o arrocho salarial, a remuneração variável (em especial no caso dos professores eventuais, que ganham por aulas ministradas) e a política de bonificação por metas são características presentes há anos na realidade dos docentes da rede estadual de ensino de São Paulo (Venco, 2016; Barbosa et al., 2020; Silva, 2020).
Outras marcas das reconfigurações na dinâmica dos docentes estão relacionadas com as especificidades do trabalho educativo, em ritmo acentuado de desintelectualização, desvalorização, parcelização, controle ideológico e pedagógico e — por que não? — automatização (Evangelista, 2017). Na medida em que os materiais didáticos apostilados e os recursos tecnológicos ganham centralidade nas políticas educacionais e na rotina escolar, o trabalho dos professores foi simplificado, mecanizado e reduzido ao de meros executores dos métodos, das atividades e das plataformas, construídos, em grande medida, a partir da expropriação dos saberes docentes historicamente construídos. De acordo com Catini (2020, p. 7),
Além da ampliação em larga escala da produtividade do trabalho, a introdução de tecnologia introduz uma nova divisão de trabalho entre aulistas, tutores/as, corretores/as, etc. O trabalho é parcelado e cada trabalhador e trabalhadora é expropriado do conhecimento sobre a totalidade do processo e resultado do trabalho.
Para Minto (2021, p. 141), a tônica da incorporação de tecnologia digital e informacional na educação é proclamada, em geral, como “neutra” e expressão do “futuro”, revelando o “fetichismo produzido pelas novas tecnologias”. Freitas (2018, p. 105) também chama a atenção para o fetichismo em torno desses instrumentos e concebe como “neotecnicismo” o modelo de educação emergente a partir desse contexto:
Esta é a nova face do tecnicismo que agora se prepara para apresentar-se como ‘plataformas de aprendizagem online’ e ‘personalizadas’, com tecnologias adaptativas e ‘avaliação embarcada’, em um processo que expropria o trabalho vivo do magistério e o transpõe como trabalho morto no interior de manuais impressos e/ou plataformas de aprendizagem.
A pandemia da covid-19, portanto, acelerou, aprofundou e colocou em um novo patamar as tendências que já estavam em curso nas reformas educacionais recentes, como a privatização da educação e a centralidade dos meios para educar em detrimento dos conteúdos, ao postular a inserção massiva das tecnologias como “única saída” diante do contexto de pandemia. Essas mudanças são acompanhadas pela precarização do trabalho docente que passa, conforme será discutido na sequência, por um processo de esvaziamento da função de professor e súbito aumento de jornada de trabalho.
ESVAZIAMENTO DA FUNÇÃO E AUMENTO DA JORNADA DE TRABALHO DOCENTE
No estado de São Paulo, o modelo de ensino remoto emergencial, organizado em torno das plataformas vinculadas ao CMSP, remodelou, de forma expressiva, o trabalho docente. Segundo o site oficial dessa plataforma (São Paulo, 2021, n. p.),
[…] a SEDUC-SP lançou o Centro de Mídias SP, uma plataforma composta por dois canais digitais abertos e por um aplicativo que permite acesso a diversos conteúdos para professores e estudantes da rede estadual de ensino, com dados patrocinados pelo Governo do Estado de São Paulo. O Centro de Mídias SP tem como objetivo contribuir com a formação dos profissionais da rede e ampliar a oferta aos alunos de uma educação mediada por tecnologia, de forma inovadora, com qualidade e possibilitando ampliar os horizontes do ensino tradicional.
O chamado “ensino tradicional” pela SEDUC-SP seria aquele exclusivamente presencial e em que a atuação do professor ou da professora teria uma posição destacada na condução do ensino-aprendizagem. No modelo de “educação mediada por tecnologia”, o papel do professor foi reformulado. Algumas poucas dezenas de professores que participaram de um processo seletivo passaram a ministrar aulas gravadas, que deveriam ser acessadas pelo conjunto dos estudantes, enquanto os cerca de 190 mil docentes da rede estadual foram envolvidos na elaboração de atividades remotas para as turmas às quais estavam vinculados, como a entrega de planos de trabalho, relatórios, notas e resultados, balizados pela realidade do trabalho remoto (São Paulo, 2020).
Sob tais condicionantes, podemos refletir que o trabalho docente deixa de ser um processo que envolve planejamento, preparação, execução, acompanhamento e avaliação e passa a ser um compilado de atividades renovadas sistematicamente (mesmo que não haja retorno expressivo dos alunos em relação à atividade elaborada anteriormente), indicação de tarefas já prontas armazenadas nas plataformas digitais, plantão de dúvidas sobre conteúdos trabalhados fora da dinâmica entre professor-aluno, cobrança e supervisão para garantir que os estudantes façam atividades técnicas que não foram construídas a partir da interação dos docentes com a turma. Assim, as atividades fundamentais da relação ensino-aprendizagem historicamente formuladas e realizadas pelos professores são fragmentadas e terceirizadas para o aplicativo, por meio de plataformas e demais recursos didáticos e tecnológicos. Esvaem-se o conhecimento e o domínio sobre a totalidade do processo pedagógico.
Não se trata de afirmar que essa mediação tecnológica seja a única ou a principal responsável pelo esvaziamento do trabalho docente. Desde a última década do século XX, está em curso um processo de redução do trabalho dos professores a uma função técnica, que visa ajustar os objetivos educacionais aos requisitos da economia de mercado (Souza, 1999). Na SEDUC-SP, políticas como o Sistema de Promoção para os Integrantes do Quadro do Magistério, prova de mérito, a Bonificação por Resultados, o Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP) e o próprio Programa São Paulo Faz Escola, que levou à implementação do material didático intitulado “Cadernos do Professor” e “Cadernos do Aluno” e à recente implementação do Programa Inova Educação e da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), fazem parte desse processo e já expressavam a tentativa de controle sobre o trabalho dos professores e subsequente perda de autonomia.5 Entretanto, a estruturação em torno do CMSP estabeleceu um novo rebaixamento e esvaziamento da função, sob os quais os docentes foram colocados em uma posição extremamente passiva diante da escola e do próprio processo educativo (São Paulo, 2021).
O processo de simplificação do trabalho, segundo Minto (2021), facilita cada vez mais a substituição do trabalho vivo dos docentes pelos aparatos tecnológicos e digitais, ou seja, por trabalho morto. Processa-se:
[…] uma mudança que, aos poucos, equipara o trabalho docente a outras formas de trabalho que são cada vez mais desprovidas de quaisquer garantias e direitos e que, além disso, têm seu conteúdo modificado para atender às demandas da ‘modernidade’: indistinção entre tempo de trabalho e tempo de vida; perda de especificidade do trabalho, tendo que estar disponível para ‘preencher lacunas’; necessidade de empreender as próprias condições de trabalho, custeando-as com os parcos rendimentos que usufruem. (Minto, 2021, p. 142)
O esvaziamento e a automatização do trabalho docente, contudo, não acarretam a diminuição da jornada; pelo contrário, o tempo dedicado ao trabalho se amplia e fica saturado por atividades dispendiosas e cada vez mais fora do controle do corpo docente e, portanto, com menos sentido pedagógico e educativo.
A lei imanente da produção capitalista conduz ao prolongamento da jornada de trabalho e à sua intensificação. Não obstante, para conter a “sede vampírica” do capital por “sangue vivo do trabalho” (Marx, 2017, p. 329), a reivindicação pela delimitação da jornada considerada normal foi um dos primeiros alvos das lutas da classe trabalhadora desde o início do capitalismo e atravessou séculos. No contexto das particularidades do trabalho docente na rede estadual, que forma crianças e adolescentes para o trabalho sob a dinâmica capitalista, a luta pela limitação da jornada é de longa data e tem como um de seus marcos a lei nacional do piso salarial docente, Lei n° 11.738, de 16 de julho de 2008 (Brasil, 2008), que estabelece uma remuneração mínima e fixa a necessidade de que 1/3 da jornada seja realizado extraclasse. Durante a pandemia da covid-19 e a vigência do ensino remoto, o estado de São Paulo não cumpriu as exigências legais e passou a pagar apenas uma gratificação para os professores que recebem abaixo do piso, além de contabilizar a jornada docente por meio da hora-minuto ao invés da hora-aula.6
Fato que a tendência à excessiva jornada de trabalho já se fazia presente antes da implementação do ensino remoto emergencial. A sistematização das horas de trabalho obtidas por meio dos diários sobre os usos do tempo cinco anos antes da pandemia da covid-19 já demostrava que professores de todas as categorias funcionais trabalhavam por mais tempo do que o relatado nas entrevistas e do que o previsto na jornada oficial de trabalho. Não é por menos que 21 dos 29 professores entrevistados consideravam a sua jornada de trabalho excessiva. Um dos motivos para isso, e produto direto da precarização e da baixa remuneração, foi a difundida prática do exercício de mais de um cargo.
Eu tenho dois cargos como uma forma de complementar a renda, por isso que ela [a jornada] é extensa. A grande maioria dos professores, como forma de complementar o orçamento, acaba buscando outras escolas, outros locais […]. (Professor entrevistado 22, nov. de 2015)
Além do acúmulo de cargos, o trabalho extra levado para o ambiente doméstico também é uma prática que acompanha, há anos, o trabalho docente e contribui consideravelmente para a jornada de trabalho excessiva, a exemplo do relatado no trecho da entrevista a seguir:
Muito, muito! Se você não levar trabalho pra casa, você não consegue desenvolver as suas atividades. Assim, o estado [a SEDUC-SP] prevê que parte do serviço seja feito em casa, só que isso não é suficiente […]. Claro que um professor que tenha mais tempo planeja a aula mais rápido do que eu planejo. Só que, no meu caso, tem uma quantidade de horas fora do período que a gente cumpre na escola, esse trabalho que a gente leva pra casa é muito maior que as horas que ele prevê. (Professora entrevistada 5, nov. de 2015)
Rodrigues et al. (2020) reportaram um prolongamento da jornada de trabalho docente devido à pressão para cumprir metas de produtividade. O trabalho, mesmo antes da pandemia, já passou a fazer parte de fins de semana, férias e períodos de interrupção do ano letivo dos docentes. No mesmo sentido, Souza et al. (2021) destacam que o modelo de ensino remoto emergencial por meio de plataformas digitais modificou a rotina de trabalho de professores em diferentes níveis educacionais e intensificou o uso de tecnologia. As fronteiras entre os tempos de trabalho e não trabalho deixaram de existir, o que forçou improvisações diversas no cotidiano doméstico e familiar.
A despeito do histórico de longas jornadas entre os professores e as professoras da SEDUC-SP, o levantamento realizado por meio dos questionários, em 2020, demonstrou o aumento generalizado da sobrecarga e da jornada de trabalho na comparação do antes e depois da pandemia. No período anterior ao início do trabalho remoto, 53 professores (43,8%) costumavam exercer atividades ligadas à docência aos fins de semana sempre ou frequentemente, enquanto, no período remoto, esse número aumentou para 93 professores (76,8%). Em todos os turnos — manhã, tarde, noite e, inclusive, madrugada —, cresceu o relato de realização de atividades escolares sob o modelo remoto. Além disso, foi possível identificar o aumento na jornada de trabalho: para 97 professores (80,2%), a duração do tempo de trabalho aumentou durante a pandemia,7 para 20 (16,5%) permaneceu o mesmo, enquanto somente para quatro (3,3%) diminuiu. Atingiu-se o patamar de 85 professores, 70,3% dos participantes, que trabalharam oito horas ou mais por dia (40 horas ou mais semanais em média). Entre esses, 36 (29,8%) afirmaram trabalhar entre 10 e 11 horas e 19 (15,7%) disseram trabalhar 12 ou mais horas diariamente (vide Quadro 2).
Antes da pandemia | Durante a pandemia | |||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Jornada de trabalho semanal em média | 12 h | 24 h | 30 h | 40 h ou mais | 12 h | 24 h | 30 h | 40 h ou mais |
9 (7,2%) | 21 (16,9%) | 22 (17,7%) | 72 (58,1%) | 4 (3,3%) | 9 (7,4%) | 23 (19,0%) | 85 (70,3%) | |
Em relação à duração do trabalho antes e depois da pandemia, a sua jornada: | ---- | ---- | ---- | ---- | Aumentou | Permanece o mesmo | Diminuiu | Não sei dizer |
97 (80,2%) | 20 (16,5%) | 4 (3,3%) | 0 (0,0%) | |||||
Costuma trabalhar em quais turnos (envolvendo preparação de aula)? | Manhã | Tarde | Noite | Madrugada | Manhã | Tarde | Noite | Madrugada |
102 (84,3%) | 106 (87,6%) | 50 (41,3%) | 7 (5,8%) | 113 (93,4%) | 115 (95,0%) | 98 (81,0%) | 22 (18,2%) | |
Exerce trabalhos ligados à docência nos finais de semana? | Sempre | Frequen-temente | Poucas vezes | Nunca | Sempre | Frequente-mente | Poucas vezes | Nunca |
16 (13,2%) | 37 (30,6%) | 56 (46,3%) | 12 (9,9%) | 47 (38,8%) | 46 (38,0%) | 22 (18,2%) | 6 (5%) |
Fonte: Elaboração dos autores.
Um ponto crucial do modelo de ensino remoto emergencial do governo estadual de São Paulo foi o controle rigoroso do tempo de trabalho do professor, descrito não apenas nos clássicos Diários de Classe e relatórios semanais, mas agora contabilizado pelo aplicativo embutido no celular pessoal de cada docente (São Paulo, 2021), que registra cada minuto que o trabalhador ficou conectado, o que gera estatísticas da frequência de cada professor para a gestão escolar e para a própria SEDUC-SP. O controle da frequência por meio da tecnologia vem acompanhado de ameaças de corte de salários, de colocação de faltas e de ruptura de contrato, no caso dos professores temporários, se não estiverem “logados” por tempo suficiente na plataforma.
Observa-se, assim, um avanço em direção ao gerenciamento algorítmico, um modelo de trabalho com os mesmos princípios gerenciais que orientam o funcionamento das plataformas digitais e que serve de base para novas fronteiras de exploração e dominação sobre a atividade laborativa (Amorim e Moda, 2020). Se a realidade do trabalho docente na SEDUC-SP já era marcada pela situação de “quasi-uberização” (Venco, 2019), com as formas precárias e flexíveis de contratação, a realidade do ensino remoto emergencial e o controle de frequência por meio da tecnologia expande para toda a categoria uma forma de organização e controle em que o professor tem de estar o tempo todo disponível para o trabalho.
Essa disponibilidade é reforçada pelo frequente acesso aos aplicativos de mensagens, como o WhatsApp. Difundidos para o exercício da atividade docente durante a pandemia, esses aplicativos, sempre vinculados ao número de telefone, requerem que o contato do professor, muitas vezes privado, seja disponibilizado tanto para a gestão escolar, quanto para o conjunto de alunos e responsáveis. Tal situação reforça a disponibilidade em tempo integral de professores e professoras para as demandas escolares e faz com que as fronteiras do espaço e do tempo de trabalho e demais dimensões da vida sejam obliteradas, com um atroz avanço do trabalho sobre as demais dimensões da vida cotidiana, conforme discutido por Minto (2021).
TRABALHO DOCENTE REMOTO: EXPROPRIAÇÃO DA VIDA
Os impactos do trabalho remoto para os professores não estão limitados às mudanças do período habitualmente trabalhado e ao expressivo aumento da jornada. À medida que compreendemos o trabalho como categoria central para as relações humanas, as demais esferas da vida cotidiana dos professores serão impactadas pelas mudanças ocorridas na jornada. Nessa perspectiva, observa-se, a partir dos questionários, que, além de trabalharem por mais horas e com novas ferramentas, 89,1% dos professores que participaram da pesquisa não conseguiam se “desligar” do trabalho nunca ou poucas vezes quando encerravam as suas atividades, conforme demostrado no Quadro 3.
Consegue se “desligar” do trabalho (não pensar sobre ele) quando encerra suas atividades? | Sempre | Frequentemente | Poucas vezes | Nunca |
1 (0,8%) | 12 (10%) | 73 (60,8%) | 34 (28,3%) | |
Durante a pandemia você diria que o seu tempo livre: | Aumentou | Permanece o mesmo | Diminuiu | Não sei dizer |
9 (7,4%) | 12 (9,9%) | 95 (78,5%) | 5 (4,1%) | |
Em uma escala de zero a dez, qual o seu nível de satisfação com suas atividades de lazer? | 0 to 2 | 3 a 5 | 6 a 8 | 9 a 10 |
49 (40,5%) | 58 (47,9%) | 12 (10,0%) | 2 (1,6%) | |
Há alguma atividade de lazer que você gostaria de fazer no seu tempo livre que atualmente não faz? | Sim | Não | ||
117 (96,7%) | 4 (3,3%) |
Fonte: Elaboração dos autores.
O número de 89,1% de professores que não conseguiram se desconectar do trabalho na presente pesquisa é quase o dobro se compararmos com a pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no âmbito do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS), que demonstrou que 45,4% dos entrevistados, em uma amostra da população economicamente ativa, não conseguiam se desligar do trabalho (Campos, 2012). Tal condição entre os professores está atrelada à realidade do trabalho remoto e ao avanço das TIC, mas também às próprias pressões do capital, que buscam naturalizar a solicitação para que a atividade laborativa seja realizada mesmo fora do local e do tempo de trabalho; uma falta de direito à desconexão do trabalho, acentuada pelo modelo remoto, leva a uma dinâmica de vida em que os demais tempos sociais são invadidos pela esfera do trabalho (Cardoso, 2017).
[…] se o uso das TIC's aparece, inicialmente, calcado num discurso libertador, vemos que o avanço tecnológico, ao mesmo tempo que possibilita que o trabalho se exerça à longa distância, implica um controle pelo mesmo modo, isto é, pela conexão “on-line”, aliada às metas e objetivos de trabalho. (ibidem, p. 71-72)
O direito à desconexão diz respeito à própria saúde do trabalhador e, sobretudo, ao direito às demais dimensões da vida que se manifestam no tempo de não trabalho (Souto Maior, 2003). Na contramão dessa perspectiva, o trabalho remoto não exacerbou apenas as tendências da precariedade objetiva, isto é, foi possível observar o crescimento da dimensão subjetiva da precariedade. Não se trata apenas de uma precariedade restrita às formas flexíveis de contratação ou aos aspectos mais gerais da degradação do trabalho docente, já que o trabalho remoto atingiu diversas categorias funcionais da SEDUC-SP como um todo. Afinal, para Linhart (2014), sob o avanço do gerencialismo, essa forma de precariedade também acomete o próprio funcionalismo público e aqueles com postos estáveis de trabalho.
A precariedade subjetiva pode ser entendida como
[…] o sentimento de não estar “em casa” no trabalho, de não poder se fiar em suas rotinas profissionais, em suas redes, nos saberes e habilidades acumulados graças à experiência ou transmitidos pelos mais antigos; é o sentimento de não dominar seu trabalho e precisar esforçar-se permanentemente para adaptar-se, cumprir os objetivos fixados […]. É o sentimento de isolamento e abandono. É também a perda de autoestima, que está ligada ao sentimento de não dominar totalmente o trabalho, de não estar à altura, de fazer um trabalho ruim, de não estar seguro em assumir seu posto […]. O resultado é, frequentemente, o medo, a ansiedade, a sensação de insegurança (comodamente chamada de estresse) (Linhart, 2014, p. 46).
As manifestações subjetivas da precariedade não são uma novidade do trabalho remoto decorrente da pandemia da covid-19. Como já indicavam Venco e Rigolon (2014), essa forma de precariedade é um traço marcante entre os trabalhadores docentes e aumenta na medida em que se aprofunda a lógica gerencial na SEDUC-SP. Todavia, é possível afirmar que elementos constitutivos da precariedade subjetiva, como o fato de não poder se fiar nas rotinas profissionais; o sentimento de não dominar o trabalho; a necessidade de se esforçar permanentemente para cumprir os objetivos; e o próprio sentimento de isolamento e abandono foram alçados a outro patamar após a implementação do ensino remoto emergencial. Observa-se, desse modo, o estabelecimento de uma relação perversa para o professor entre a incapacidade de desligar-se do trabalho e a precariedade subjetiva. Assim, a impossibilidade de o professor se adaptar inteiramente às incertezas do trabalho remoto reflete, além do maior tempo dispendido no trabalho, uma constante conexão mental com essa atividade.
Ao passo que a realidade docente é tomada pela precarização objetiva e subjetiva, é de se esperar que a precariedade seja extrapolada para as demais dimensões da vida, como o tempo livre e o lazer. Mesmo antes da pandemia da covid-19 e da implementação do ensino remoto emergencial, Silvestre e Amaral (2019) já observavam o parco tempo livre e os elementos de precariedade no lazer do professor da rede estadual paulista, sendo essa precariedade sempre maior entre aqueles com regimes instáveis de trabalho. O fato é que as extensas jornadas e a baixa remuneração sempre se constituíram como entraves para as vivências e práticas de lazer entre os professores da SEDUC-SP.
Não, não consigo, a gente não consegue fazer jamais, porque a gente não tem muito tempo, por exemplo, quarenta horas semanais, e você tem dois cargos, você não consegue tempo disponível, você não tem um dinheiro pra fazer tudo que você gostaria, então, não! (Professora entrevistada 3, outubro de 2015)
A realidade do trabalho remoto restringiu ainda mais as dimensões do tempo livre e do lazer, o que limitou as dimensões da vida de professores de todas as categorias funcionais. Dos 121 respondentes, 95 professores (78,5%) afirmaram que o seu tempo livre diminuiu a partir do momento em que começaram a exercer o seu trabalho de forma remota. No que diz respeito à satisfação com as atividades de lazer, em uma escala de 0 a 10 em que 0 significa totalmente insatisfeito e 10, totalmente satisfeito, 89 professores (73,5%) têm o nível da satisfação com as atividades de lazer desenvolvidas menor do que 5, conforme dados do Quadro 3.
Essa insatisfação foi refletida nas respostas dos questionários. No total, expressivos 117 professores (96,7%) disseram que não realizam as atividades que gostariam em seu tempo livre. O próprio cenário pandêmico corresponde a um contexto limitante para as práticas de lazer. Entretanto, além da pandemia, as faltas de tempo e condições financeiras figuram entre os principais motivos alegados para que as atividades vislumbradas não sejam realizadas.
Para Cantor (2019), há uma expropriação do tempo que se estende para todos os âmbitos da vida, e não somente para a dimensão do ambiente fabril, rigidamente coordenado pelos cronômetros e pelo lema disciplinador do “tempo é dinheiro” dos primórdios do capitalismo industrial. Se a dinâmica da acumulação capitalista se apoia fundamentalmente na absorção da “maior quantidade possível de mais-trabalho” (Marx, 2017, p. 307), o conjunto das esferas da vida social fica subsumido a esse imperativo pela criação insaciável de mais-valor. O movimento do capital e seu anseio por acumulação são totalizantes, se orientam pela expansão desmedida e pelo domínio de todos os tempos e espaços. De acordo com Cantor (2019, p. 47), no mundo contemporâneo, a flexibilização do trabalho e a disseminação de novas tecnologias de informação sob o comando do capital, como a própria internet e os telefones celulares, possibilitam uma “generalização da expropriação do tempo”, os tempos do descanso, da alimentação, do lazer e da cultura são cada vez mais dominados e subordinados à lógica acelerada, quantitativa da produção capitalista.
Em síntese, com a universalização do capitalismo, o que vivemos hoje é a plena ‘subsunção da vida ao capital’, o que significa que todos os aspectos da vida foram mercantilizados e submetidos à tirania do tempo abstrato. Em concordância com esse pressuposto, o capital rompeu a distância que separava do tempo do trabalho o tempo livre, ou o tempo da vida. (Cantor, 2019, p. 48)
Entre os professores investigados, pode ser identificada a redução do tempo livre além dos turnos de trabalho ligados à docência cada vez mais preponderantes no período noturno, na madrugada e nos fins de semana. Nesse sentido, as tendências observadas a partir da implementação do trabalho remoto entre os professores apontam para uma dinâmica de expropriação da vida, com uma maior indefinição entre os tempos de trabalho e livre, com um claro avançar do tempo de trabalho sobre as demais dimensões da vida cotidiana.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em um momento de escalada impressionante e sem precedentes das inovações tecnológicas e de sua aplicação massiva na dinâmica escolar, as relações de trabalho de professores e professoras da rede estadual de ensino de São Paulo sofreram processo acentuado de precarização, flexibilização, gerencialismo e prolongamento das jornadas nos últimos anos, com intensificação desse processo durante o ensino remoto emergencial em decorrência da pandemia da covid-19. A centralidade nas mudanças de legislações e a intensificação do uso das TIC nas políticas educacionais no período da pandemia impulsionaram o movimento de expropriar os saberes docentes, o que deu lugar às plataformas de aprendizagem e aos recursos didáticos digitais. O trabalho vivo foi progressivamente substituído pelo trabalho morto, parcelado, com simplificação, mecanização e automatização do trabalho docente combinados com aumento da sobrecarga e da jornada em relação àquela relativa ao período anterior ao da pandemia.
Esse cenário foi atestado pelo aumento da carga horária trabalhada, inclusive durante turnos e dias da semana em que não se realizavam atividades profissionais com frequência no período anterior à pandemia. Nota-se a tendência de aceleramento do ritmo e da quantidade de trabalho docente. Evidencia-se ainda o agravamento da precariedade subjetiva dentro desse segmento, corroborada pela diminuição do tempo livre, pela frustração e insatisfação com as atividades de lazer, pelo esgotamento e pela fadiga revelados pela situação da rotina exaustivamente consumida pelo trabalho.
Desse modo, rompem-se os mitos: cai por terra qualquer suposto caráter “libertador”, “neutro” e “positivo” das tecnologias subsumidas à acumulação capitalista, assim como os discursos do senso comum e da depreciação que entoam que os professores trabalharam menos ou, pior, sequer trabalharam durante o período de pandemia. Sob o modelo da assim chamada “educação mediada por tecnologia”, que teve sua implementação acelerada em um momento de lamentável calamidade sanitária, os professores da rede estadual de São Paulo trabalharam por mais horas e turnos e tiveram menos tempo livre inclusive para chorar os seus mortos.
A força dos impactos do uso intensivo das TIC na educação e do aumento da jornada dos docentes durante o modelo de ensino remoto continua com o retorno presencial às aulas na rede estadual. Para além da exaustão e do desalento da categoria, intensificou-se a proposição de políticas que visam prolongar e aumentar o controle sobre a jornada dos professores, a exemplo da “nova carreira docente”, decretada pelo então governador João Dória em 30 de março de 2022, e da expansão das escolas do Programa de Ensino Integral (PEI).
Como lacuna para futuras pesquisas, cabe investigar se o cenário de ampliação da jornada de trabalho docente durante o ensino remoto favoreceu a promulgação de medidas que a prolongam depois do retorno presencial. Fica a necessidade também de mais investigações que analisem o impacto da intensificação do uso de tecnologias no longo prazo nas fronteiras entre espaço e tempo de trabalho e não trabalho de professores em diferentes estados e contextos. Por fim, chama-se a atenção para mais pesquisas que analisem os avanços das privatizações e o uso das TIC nessa nova fase de acumulação do capital, em um momento de constantes mudanças no campo da educação e acentuada desigualdade social.