INTRODUÇÃO
O movimento Escola sem Partido (ESP) originou-se de uma iniciativa do advogado e procurador do estado de São Paulo em Brasília, Miguel Narciso Urbano Nagib. Em setembro de 2003, Nagib alegou que o professor de história da sua filha buscava "doutrinar" os estudantes ao comparar, em sala de aula, a figura de São Francisco de Assis com a de Che Guevara. A mobilização em torno desse episódio alcançou notoriedade nacional e resultou em uma série de iniciativas por parte de pais, responsáveis e estudantes preocupados com a suposta contaminação política e ideológica nas escolas, tanto no ensino básico quanto no superior.1
Por cerca de uma década, o ESP teve uma atuação limitada. No entanto, diante da conjuntura de crise durante o primeiro mandato presidencial de Dilma Rousseff (2011–2014), o movimento ganhou notoriedade ao unir-se a outros grupos e entidades com pautas semelhantes.
À motivação inicial que Nagib afirmou ser a "doutrinação ideológica", somou-se a chamada "ideologia de gênero". Ao estabelecer novas alianças e incorporar outras demandas sociais, o ESP deixou de discutir exclusivamente o que considerava ser um problema específico do campo educacional, concentrado mais precisamente na dinâmica da sala de aula, para se tornar uma plataforma eleitoral ancorada no medo e na chantagem da comunidade contrária às propostas defendidas por ele.
Numa perspectiva mais ampla, este trabalho se insere no campo da história do tempo presente e na história política renovada. Se há muito tempo, mais precisamente na Antiguidade Clássica, a história dos acontecimentos recentes era uma demanda dos primeiros historiadores, incluindo Heródoto e Tucídides, no século XIX, a escrita da história por seus contemporâneos passou a ser vista com desconfiança por historiadores metódicos que, mais tradicionais na abordagem histórica, acreditavam que aqueles que se interessavam pelo passado recente "na verdade concebiam a pesquisa histórica como ação política". Mesmo entre os historiadores republicanos, considerados mais receptivos à renovação do campo, acreditava-se que, ao lidar com "eventos muito próximos […], não era possível separá-la da política" (Ferreira, 2000, p. 1-2, 4).
Indícios do tempo presente, especialmente se relacionados à esfera política, eram considerados evidências da incapacidade do historiador de se libertar das "amarras ideológicas" que o prendiam e, consequentemente, de contaminar a escrita da história. Esse entendimento, que remonta ao final do século XIX, está ligado ao processo de formação da ciência histórica. Para isso, tornou-se necessário estabelecer métodos de pesquisa guiados por princípios de objetividade, assim como o distanciamento temporal do historiador em relação às suas fontes (Ferreira, 2000, p. 1-2, 4).
No decorrer do século XX, a Escola de Annales contestou muitos dos pressupostos da história metódica. Marc Bloch e Lucien Febvre, em diferentes momentos, destacaram a importância do tempo presente na seleção e análise de eventos passados. Bloch utilizou a metáfora da película de um filme que se desenrola de frente para trás para ilustrar como se dá o "método regressivo", no qual devemos partir do "menos conhecido" (o presente) em direção ao "mais obscuro" (o passado) (Bloch, 2001). Citado por Lilia Moritz Schwarcz na apresentação à edição brasileira do livro de Bloch, Febvre afirmou que "a história era filha do seu tempo" (Bloch, 2001, p. 7). "A análise do presente", portanto, deve ser "a régua e o compasso" da pesquisa histórica, complementou (apudChauveau e Tétard, 1999, p. 10).
O cenário acima retratado, no que concerne à história do tempo presente e ao papel do político na história, que também se refere ao pressuposto metodológico que considera que "a história não é somente o estudo do passado, ela também pode ser, com menor recuo e métodos particulares, o estudo do presente" (Chauveau e Tétard, 1999, p. 15), permaneceu praticamente inalterado na primeira metade do século XX (Ferreira, 2000, p. 5-6).
Com algumas exceções, foi necessário transcorrer mais de meio século para que a situação começasse a mudar e um século inteiro para que efetivamente mudasse. A história do tempo presente ganhou projeção no século XX quando os ritmos da história se intensificaram, com a eclosão de duas grandes guerras em 1914 e em 1939, juntamente com a Revolução Russa em 1917 e o estabelecimento de uma nova ordem mundial, que pôs fim à hegemonia europeia, substituída pela norte-americana (Ferreira, 2000, p. 8-9), até se firmar como um dos principais campos da história.
Bem diferente do que se professava quando ainda era um campo em construção, afirma Roger Chartier que "a história do tempo presente permite uma acuidade particular para equacionar o entendimento das relações entre a ação voluntária e a consciência dos homens e constrangimentos desconhecidos que a encerram e a limitam" (apudFerreira, 2000, p. 11). Voluntários ou desconhecidos, os "constrangimentos" do presente, mantêm o vínculo com o passado e são objeto de pesquisa.
A prática da história do tempo presente, em colaboração com a história política renovada, passa pela redefinição do papel do historiador em relação ao seu campo de investigação e à consciência do grau de subjetividade que essa proximidade com o objeto implica, tornando-se, por vezes, refém dele. Conforme afirmado por Jean-François Sirinelli, "o pesquisador, ao baixar a guarda no exercício de seu ofício, arrisca-se, consciente ou inconscientemente, a ceder seu lugar ao moralista", o que não é o objetivo desta abordagem. No entanto, continua ele, "nem por isso o perigo deve proibir uma reflexão", uma vez que "uma história serena não significa uma história asséptica" e "assumir a subjetividade é meio caminho andado para controlá-la" (apudChauveau e Tétard, 1999, p. 29, 31).
Sobre o fenômeno do autoritarismo no Brasil, Lilia Moritz Schwarcz afirma que "perguntar é uma forma de resistir" (Schwarcz, 2019, p. 18). Portanto, a pergunta implícita no encaminhamento desse trabalho é: "Se nosso presente é doravante uma sucessão de flashes, de delírios partidários e de jogos de espelhos, como sair dele para erigi-lo em objeto de investigação histórica?" A partir obviamente do lugar do historiador, que, "imerso em seu tempo, também oscila no curso da correnteza, mergulha nessa confusão de acontecimentos sem hierarquia nem causas aparentes" (Rioux, 1999, p. 41).
Como se vê, a tarefa não é simples e a (auto)avaliação deve ser constante. Robert Frank (1999, p. 116) afirma que "o historiador do presente dialoga com sua própria fonte e trabalha, portanto, ‘sob vigilância’. Desse diálogo, dessa cumplicidade conflitual, pode surgir um trabalho extremamente fecundo". As dificuldades que eventualmente surgem devem ser consideradas como parte do trabalho, sendo impossível realizá-lo sem esses desafios. Se a história é, portanto, um mar revolto, os historiadores não deixam de se lançar ao mar por causa disso. "Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu".2 Se "navegar é preciso", naveguemos.
DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DAS DEMANDAS SOCIAIS À INSTITUIÇÃO DO PROJETO POLÍTICO AUTORITÁRIO
Devido à especificidade do objeto, é comum que se pense que um movimento como o da ESP só possa ser examinado da perspectiva da história imediata. Não se deve deixar de considerar esse aspecto, como argumentado anteriormente, mas também é importante relacioná-lo a um fenômeno mais estrutural na história do Brasil, pois, como afirma René Rémond (1999, p. 54), "a história do político pode também incluir o estudo das estruturas", isso "pelo viés das instituições".3
Refletir sobre o ESP sob essas duas dimensões, principalmente ao relacioná-lo a fenômenos culturais da sociedade brasileira, de modo algum deve ser entendido como um dispositivo peculiar ao caso brasileiro. O mesmo mecanismo que Edson Teles e Vladimir Safatle (2010, p. 9) denominam "hiper-historicismo", um tipo de estratégia que, ao "remeter as raízes dos impasses do presente a um passado longínquo (p.ex., a realidade escravocrata, o clientelismo português etc.)", busca sistematicamente "não ver o que o passado recente produziu". O objetivo é precisamente o oposto: relacionar o ESP a esse passado recente sem, no entanto, ignorar que a censura está enraizada no Brasil em um tempo de longa duração e, portanto, não surgiu com as ditaduras, nem há garantia de que não será novamente remodelada (ver Garcia e Souza, 2019).
Sendo assim, a necessidade de institucionalizar o controle, transformando-o em censura,4 está claramente sob influência das questões imediatas do tempo presente, que serão analisadas a seguir. No entanto, também se situa para além dessas, em um lugar em que "os fenômenos são os mais perenes, por causa do peso do passado na memória consciente ou inconsciente" e "os fenômenos de cultura política só podem ser compreendidos numa perspectiva de duração muita longa [sic]" (Rémond, 1999, p. 54).
Antes de adentrar na relação entre a censura como um fenômeno de longa duração, cujas práticas culturais do passado recente inspiraram, de alguma maneira, a atuação da sociedade civil e a organização de movimentos como o da ESP, é necessário observar o contexto sobre o qual emergiu o ESP, para que tenha-se uma noção mais ampliada do tecido social que o forjou e por ele foi forjado, em uma via de mão dupla.
Na transição da Ditadura Militar para a Nova República e no período imediato à experiência ditatorial, ocorreu um amplo movimento no Brasil de renovação das expectativas democráticas, tanto no meio político quanto no meio acadêmico e entre as instituições culturais. Uma das consequências desse movimento em diferentes esferas esteve relacionada às expectativas de participação da sociedade na vida pública e às possibilidades de participação direta na agenda nacional. Por sua vez, o contraponto desse debate no campo político refere-se à reorganização de forças conservadoras no pós-ditadura, que assumiram paulatinamente as atribuições do Estado brasileiro, amparadas pelas constituições vigentes até os anos 1960.
Uma vez que a Constituição de 1988 (Brasil, 1988) extinguiu o exercício da censura no país, uma parcela da sociedade, ativa na defesa desse dispositivo (Mostaço, 2021), sentiu-se desamparada pelo Estado, pois entendia que a censura, instrumento em vigor em outros países, cumpria seu papel de "guardiã" da sociedade brasileira de diversas formas, em especial a manutenção da ordem pública e da segurança nacional e a defesa dos valores cristãos, da moral e dos bons costumes.
A Constituição de 1988 (Brasil, 1988), conhecida como Constituição Cidadã, é considerada um marco na história do Brasil Republicano por desestruturar algumas práticas autoritárias arraigadas na sociedade brasileira, pois, segundo Marilena Chaui, não existe fenômeno dessa natureza5 apartado de uma sociedade igualmente autoritária, uma vez que "o autoritarismo político se organiza no interior da sociedade e através da ideologia; não é exceção, nem é mero regime governamental, mas a regra e expressão das relações sociais" (Chaui, 2014, p. 242).
Uma das práticas autoritárias extintas da Carta Magna diz respeito à censura de diversões públicas ou qualquer outro instrumento regulador da liberdade de expressão. Sem estabelecer exceções, como ocorria anteriormente, a Constituição extinguiu "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística" (Brasil, 1988, art. 220, § 2).
As constituições anteriores não eram tão incisivas quanto ao assunto da censura e consideravam a censura de diversões públicas uma exceção à regra. A Constituição de 1946, por exemplo, garantia liberdade à "manifestação do pensamento", sem sujeitá-la a qualquer tipo de censura, exceto em relação a "espetáculos e diversões públicas". Além disso, demonstrava intolerância em relação à "propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política e social, ou de preconceitos de raça ou de classe" (Brasil, 1946, art. 141, § 5).
A Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional n. 1 de 1969 modificaram superficialmente a redação da Constituição de 1946, sem alterar o conteúdo em relação à censura de diversões públicas: "É livre a manifestação de pensamento, de convicção política ou filosófica e a prestação de informação sem sujeição à censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas". Desde que, no entanto, não se fizesse "propaganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de raça ou de classe" (Brasil, 1967, art. 150, § 8; Brasil, 1969, art. 156, § 8).6
Esses artigos, se lidos sem considerar o contexto no qual foram produzidos, tendem a ser vistos como garantias da ordem constitucional7 ou como instrumentos contra as manifestações de preconceitos raciais ou de classe. Na prática, no entanto, deram sustentação a campanhas anticomunistas, primeiramente no contexto da Primeira República, estas retomadas inúmeras vezes no decorrer do século XX (ver Motta, 2002). Assim como a censura, o anticomunismo é um fenômeno de longa duração constante e permanentemente renovado no Brasil, em momentos de aguda crise política.
No campo da censura, a Constituição de 1988 (Brasil, 1988) representou um avanço significativo para a democracia brasileira e colocou em discussão muitas práticas autoritárias vigentes no país. No caso aqui examinado, o controle da livre manifestação do pensamento e as tentativas de formalizá-lo como censura remontam, pelo menos, aos tempos do Império (ver Garcia e Souza, 2019), embora alguns autores o estendem ao período colonial, tomando como fonte os processos inquisitoriais (ver Costa, 2006).8
Apesar de representar um marco no processo de construção democrática, após traumáticos 21 anos de Ditadura Militar, a Constituição de 1988 (Brasil, 1988) mais apaziguou projetos inconciliáveis, resultado de "transição negociada", da "justiça de transição", do que impediu que forças antidemocráticas voltassem a se articular em nova configuração, como fizeram (e fazem), com certa frequência, as Forças Armadas.9 Também o ESP assumiu para si, com especificidades próprias do tempo presente, funções políticas exercidas anteriormente pelo Estado brasileiro, sob comando militar, por meio de instituições como o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) e a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP).
No contexto pós-ditatorial, a rearticulação dessas forças manifestou-se através da realização de manifestações pontuais ao longo dos anos, até encontrar coesão no esgotamento do chamado "presidencialismo de coalizão", que no Brasil, mesmo nas primeiras décadas do século XX, não havia rompido com uma das tradições políticas nacionais mais sólidas: o aliancismo interclasses.
Jorge Zaverucha afirma que "sem a existência de instituições sólidas e de respeito aos valores democráticos, crises de governo ameaçam se transformar em crises institucionais". Diante da progressiva instabilidade das instituições nacionais, inúmeros agrupamentos de natureza antidemocrática, assim denominados porque primavam pela "tentativa de minimização da dominação de uns indivíduos sobre outros" (Zaverucha, 2010, p. 72, 75), lançaram-se em campo aberto das disputas políticas.
Nas últimas três décadas, o desaparecimento da "direita envergonhada", expressão cunhada por Elio Gaspari (2002), pode ser considerado um indício dessa reestruturação do campo político. A elite política, religiosa e até mesmo econômica, pelo menos até os anos 1990, raramente se identificava ou se sentia confortável ao se definir ou ser definida como "extrema-direita". Temiam ser associados à Ditadura Militar e aos crimes a ela relacionados (tortura, censura, corrupção etc.). Atualmente, porém, essa preocupação parece ter perdido sentido e cada vez mais indivíduos e grupos se sentem encorajados a defender princípios tradicionais e excludentes:
É razoável estabelecer que, a partir do fim da ditadura militar, o combate à desigualdade extrema e a defesa dos direitos humanos formavam a base de um consenso – mesmo que apenas verbal – entre todas as forças políticas relevantes. […] Agora, ao contrário, é perceptível uma significativa presença de discursos em que a desigualdade é exaltada como corolário da "meritocracia" e em que tentativas de desfazer hierarquias tradicionais são enquadrados como crime de lesa-natureza. (Miguel, 2016, p. 592)
Sobre o autoritarismo no Brasil, como afirma Lilia Moritz Schwarcz (2019, p. 14)
naturalizar a desigualdade, evadir-se do passado, é característico de governos autoritários que, não raro, lançam mão de narrativas edulcoradas como forma de promoção do Estado e de manutenção do poder. Mas é também fórmula aplicada, com relativo sucesso, entre nós, brasileiros.
Dessa forma, um dos efeitos desse processo de naturalização do que deveria ser inadmissível pode ser observado em grupos ligados a entidades religiosas10 e nas recorrentes tentativas de controlar ou nivelar o comportamento de cidadãos brasileiros, mesmo daqueles que não compartilham das mesmas crenças, em reação à agenda progressista dos últimos anos. O principal alvo desses grupos religiosos é a chamada "ideologia de gênero" e seus alegados propagadores, entre os quais estão os profissionais da educação que não corroboram com os valores estagnados da sociedade brasileira.
A "ideologia de gênero", em referência aos "estudos de gênero", os quais não possuem nenhuma relação com esse rótulo, é considerada uma afronta à família nuclear formada por um homem cisgênero e heterossexual (o pai), que teoricamente tem a função de provedor do lar; uma mulher (a mãe), também cisgênero e heterossexual, responsável pela criação dos filhos e, portanto, inferior na estrutura patriarcal; e os filhos, que devem seguir o exemplo dos pais na reprodução desse arranjo familiar em que todos desempenham papéis predefinidos.
Essa construção engessada do núcleo familiar pode ser entendida como expressão daquilo que o escritor francês Frédéric Mistral definiu como "tempos de antes" (apudSchwarcz, 2019, p. 207). Uma espécie de paraíso da autoridade patriarcal convertido, segundo Lilia Moritz Schwarcz (2019, p. 206-207), em uma "intimidade protetora de um grupo social fechado e estritamente hierarquizado; um léxico familiar de afetos, que une a figura do pai governante aos irmãos, filhos e amigos, numa comunidade de justos autoeleitos".
Para esses grupos sociais, portanto, é necessário extirpar tudo que represente ameaça a essa construção social, e uma das estratégias recorrentes é a estigmatização daquilo que não é por eles entendido como "natural", que não está de acordo com as normas impostas a toda sociedade. Dessa forma, Rogério Diniz Junqueira (2017, p. 44) afirma que a expressão "ideologia de gênero", além de gerar comoção política baseada em "formulação fantasmagórica", representa uma estratégia discursiva que, em vez de promover o debate coletivo em torno de temas sensíveis e, com isso, primar pelo respeito às diferenças, busca rotular aqueles que destoam dessa visão de mundo, atribuindo-lhes expressões pejorativas como "homossexualistas", "familiafóbicos", "cristofóbicos", "gayzistas" e até "pedófilos". Judith Butler aponta que estigmatizar aqueles que expressam ponto de vista críticos é um modo de destruir credibilidades (das pessoas, não das opiniões) e, consequentemente, silenciá-las, uma vez que ninguém está disposto, principalmente um profissional da educação, a ficar "marcado" com uma denominação considerada pela opinião pública, ou construída por ela, como "hedionda" (2019, p. 10).
A agenda em torno da "ideologia de gênero", mesmo sendo hoje considerada inconstitucional, foi instrumentalizada em benefício eleitoral de muitos candidatos. Entre eles, Ana Caroline Campagnolo, professora de história e uma das mais aguerridas participantes do ESP. Eleita deputada estadual por Santa Catarina e pelo Partido Social Liberal (PSL), em 2018, e a reboque da candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência da República, Campagnolo definiu-se como "antifeminista, conservadora, cristã e de direita" e projetou-se nacionalmente por incentivar "a denúncia de professores ‘doutrinadores’" (Carta Capital, 2018). Em 2013, já havia criado um canal no YouTube em que se declarou fã de Olavo de Carvalho. Uma vez eleita, utilizou o espaço da Assembleia Legislativa do Estado para homenageá-lo.11
Até eleger-se deputada estadual, Campagnolo envolveu-se em inúmeras polêmicas. A primeira e talvez a mais conhecida, a que se transformou em uma espécie de "cartão de visitas" para seu ingresso na vida pública, data da sua época de estudante de mestrado do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Após divergências teórico-metodológicas com a orientadora, a então estudante de mestrado decidiu mover um processo judicial contra a professora Marlene de Fáveri. Alegava-se vítima de "estresse emocional" causado pela orientadora, que no meio do processo decidiu deixar de orientá-la (Portal Catarinas, 2017).
Para defender-se da acusação da estudante, a professora afirmou não haver nenhuma perseguição, apenas não podia orientar quem não acreditava naquilo que havia apresentado como projeto de mestrado nem havia conexão com a produção de Fáveri (Portal Catarinas, 2017). O processo judicial movido por Campagnolo, bem como a "agitação digital" promovida na internet, tiveram consequências diretas nas atividades da professora, que foi levada a se afastar temporariamente da universidade e até mesmo da vida social, devido à superexposição que sofreu e, em decorrência desta, dos ataques a ela dirigidos (não apenas virtuais).12
O procedimento acusatório contra Marlene de Fáveri baseou-se na suposição de que o professor é, por pressuposto, um "doutrinador", que instrumentaliza estratégias discursivas e práticas de perseguição para impor determinada visão de mundo, ideologia ou posição político-partidária.13
A exemplo de Campagnolo, outros parlamentares colocaram-se a favor das ideias do ESP. Nas eleições presidenciais de 2018, dois deputados haviam se manifestado favoráveis ao seu projeto de lei. Um deles, cabo Daciolo, candidato pelo Patriota (Valle, 2018). O outro, Jair Bolsonaro, na época ligado ao PSL. Somente este, no entanto, ofereceu a Miguel Nagib, caso fosse eleito, cargo no Ministério da Educação (Mascarenhas, 2018), o que, na prática, não se concretizou e isso foi um dos motivos de desacordo entre os dois.
No âmbito das Secretarias Estaduais de Educação, a atuação do ESP repercutiu no estado do Paraná, cuja Secretaria de Educação formalizou a orientação de denúncias contra professores considerados por pais, responsáveis e estudantes suspeitos de praticar "doutrinação partidária ou política". Como argumenta Marionilde Dias Brepohl de Magalhães (1997), a atuação repressiva na Ditadura Militar sustenta-se na "lógica da suspeição": não precisa haver provas para iniciar um processo persecutório, uma única denúncia é suficiente para dar seguimento à prática discricionária.
Essa orientação do governo estava diretamente relacionada à greve de três meses dos professores estaduais que, em 2014, reivindicaram (e reivindicam até o presente momento) a garantia dos direitos definidos em plano de carreira do servidor público do Estado e reposição salarial. Segundo o chefe da Casa Civil, Eduardo Sciarra, "esse tipo de discurso só interessa[va] aos partidos que sustentaram a greve, que lesou um terço do ano letivo no Paraná" e "os professores não deveriam utilizar o tempo do aprendizado dos estudantes na disseminação de apologias contra o governo do Estado". Para a então Secretária de Estado da Educação, Ana Seres, "a orientação [era] que os pais e responsáveis e os próprios estudantes [denunciassem] às Ouvidorias dos Núcleos Regionais de Educação (NREs) qualquer atividade ou conteúdo que considerarem indevidos" (Governo do Estado do Paraná, 2015).
No campo da educação, em todas as esferas de competência (sejam elas municipal, estadual ou federal), o fortalecimento do ESP e as legislações resultantes dele contribuíram para a diminuição do diálogo entre o setor educacional e partes da sociedade envolvidas nesse processo. Ao excluírem professores e estudantes dessa discussão mais ampla, atribuindo-lhes papéis e funções que não se alinhavam com suas identidades, tanto o movimento quanto o anteprojeto de lei do Programa Escola sem Partido inspiraram outros textos jurídicos semelhantes, as quais foram concebidas como expressão de um projeto de natureza política.
Em um contexto democrático diferente, a articulação dessas instâncias e seus mecanismos reguladores poderia ser compreendida como elementos isolados do conservadorismo brasileiro, sem necessariamente representar alguma ameaça à estabilidade da democracia. No entanto, na conjuntura atual, a imposição verticalizada dessas iniciativas, sem promover uma discussão mais abrangente com o público envolvido, nem buscar estabelecer um consenso social, evidencia sua natureza autoritária.
DA REPRESENTAÇÃO PATRIARCAL DO "PAI PROTETOR E COMPROMETIDO" À FORMULAÇÃO CONCRETA DE ANTEPROJETOS E PROJETOS DE LEI
Como líder do movimento "Escola sem Doutrinação", como o ESP é também conhecido, Miguel Nagib já participou de inúmeras entrevistas e audiências públicas. Apesar de pregar "neutralidade ideológica", ele esteve ligado ao Instituto Millenium (IMIL) e foi membro do Instituto Liberal (IL). Em 2009, publicou um artigo intitulado "Por uma escola que promova os valores do Millenium", no qual defendia que os preceitos liberais fossem difundidos nos estabelecimentos de ensino.14
Ao acompanhar a trajetória política do idealizador do projeto ESP, há de se concordar com Fernando de Araujo Penna e Diogo da Costa Salles quanto a já mencionada preocupação com a "doutrinação" da filha não ser fortuita. Pelo contrário, tratava-se de um discurso cuidadosamente elaborado, uma espécie de "mito fundador" que encontrou validação social na manipulação de imaginários coletivos. Nesse sentido, afirmam os autores:
[…] essa reconstituição não deve ser tomada somente como um apanhado factual a respeito do movimento. No decorrer dos 13 anos de existência do MESP, essa história se estabeleceu como a versão oficial de sua formação e isso não se deu por pura causalidade. Essa narrativa serve uma função específica, transmitindo a mensagem de como o movimento quer ser visto e percebido dentro do espaço público. Há nesse discurso fundador uma síntese de alguns elementos centrais de que o MESP [Movimento Escola Sem Partido] passaria a lançar mão para demarcar seu território no debate educacional. (2017, p. 14)
Na atuação de Nagib, como se fosse um ator a desempenhar o seu papel, materializou-se a figura do pai presente, interessado e preocupado com o desenvolvimento intelectual da sua filha (sobre as relações entre política e teatro, ver Paranhos, 2012). Porém, ao assumir a liderança desse caso, acabou revelando uma trama mais complexa, ligada à esfera nacional, mas também global. Acredita-se que esta esteja ameaçada pela subversão dos fundamentos da cultura ocidental e seus mecanismos de sustentação: a família, a heteronormatividade, a propriedade privada e a liberdade de mercado. As bases da cultura ocidental (cristã, capitalista e eurocêntrica) estavam ameaçadas naquilo que havia de mais frágil, isto é: a formação "sadia" de crianças e adolescentes. Para Nagib, isso era resultado da corrosão de valores provocada pelo avanço das pautas da "diversidade" que, defendemos, entrelaçam aspectos morais e políticos, num emaranhado de ações difíceis de diferenciar em qual desses campos incide exatamente. Porém, é certo, assentadas no autoritarismo brasileiro de longa duração. Isso é, quando
nosso passado escravocrata, o espectro do colonialismo, as estruturas de mandonismo e patriarcalismo, a da corrupção renitente, a discriminação racial, as manifestações de intolerância de gênero, sexo e religião, todos esses elementos juntos tendem a reaparecer, de maneira ainda mais incisiva, sob a forma de novos governos autoritários, os quais, de tempos em tempos, comparecem na cena política brasileira. (Schwarcz, 2019, p. 206)
Nos debates acerca da ESP, não é possível discernir plenamente as preocupações morais das questões políticas, uma vez que igrejas e fiéis empreenderam ataques sistemáticos a instituições de ensino, estendendo-os ao ensino superior, estimulados por parlamentares de direita que temem tanto a discussão de pautas políticas, genericamente classificadas como "doutrinação ideológica", quanto o debate sobre questões comportamentais, também genericamente rotulados como "ideologia de gênero".
Essa aproximação entre aspectos políticos e morais não é nova na história do Brasil. A principal diferença é que na Ditadura Militar a questão moral serviu, muitas vezes, para escamotear o controle político, que os governos militares utilizavam múltiplos artifícios para ocultar.15 Hoje, no entanto, essa relação não é apenas pública, mas também serve de parâmetro para vários projetos de lei protocolados nas instâncias legislativas, endossados por uma parcela significativa da sociedade, que tem suas crenças confrontadas na esfera pública.
Os dois primeiros projetos de lei da ESP partiram da iniciativa de Flávio Bolsonaro (2014), então deputado estadual do estado do Rio de Janeiro, autor do projeto de lei n. 2.974, de 13 de maio de 2014, e de Carlos Bolsonaro (2014), na época vereador do município do Rio de Janeiro, autor do projeto de lei n. 867, de 3 de junho de 2014, ambos filhos de Jair Bolsonaro, na ocasião deputado federal pelo Partido Social Cristão (PSC). O contato da família Bolsonaro com Miguel Nagib se deu quando os parlamentares solicitaram ao idealizador do projeto ESP a redação de um anteprojeto de lei que versasse sobre a "doutrinação ideológica" nas escolas brasileiras (Canal Futura, 2017).
Para redigi-lo, Miguel Nagib, com o auxílio do professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Bráulio Porto de Matos, tomou como referência uma pesquisa do Instituto CNT/Sensus, encomendada pela revista Veja. Nesta, apesar de não ter sido evidenciada a metodologia empregada, declarou ter realizado entrevistas com 3 mil estudantes, dos 45 milhões existentes no Brasil na época, entre os quais havia relatos de terem ouvido, em sala de aula, citações favoráveis a Lênin, Che Guevara e Hugo Chávez (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, 2016).
Pelos vínculos traçados acima, pode-se afirmar que a redação do anteprojeto de lei do Programa ESP foi motivada pela solicitação de parlamentares eleitos, os quais estão associados a partidos de direita. A partir daí, vereadores, deputados estaduais e federais, assim como senadores, protocolaram nas suas respectivas Casas Legislativas a solicitação de aprovação do projeto de lei, com pouca ou nenhuma modificação no texto original. Isso representou uma forma de incentivar parlamentares contrários às pautas mais progressistas da agenda nacional a adotar o programa sem necessariamente mobilizar suas equipes de gabinete para redigir uma proposta.16
Desse modo, os projetos de lei do Programa ESP, alguns também denominados Programa Escola Livre (Brasil, 2016a), são praticamente cópias do anteprojeto de lei e da minuta de justificativa do movimento homônimo. No entanto, apresentam diferenças na redação quanto aos órgãos de fiscalização, se seriam apenas as Secretarias de Educação ou se incluiriam o Ministério da Educação, e em relação às sanções e penalidades, que poderiam ir desde a simples formalização de uma reclamação até o encaminhamento da queixa ao Ministério Público.
Os defensores do ESP têm sublinhado que seu foco central é a educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio), porque nesta as crianças e os adolescentes, concebidos como "audiência cativa", ainda não têm maturidade intelectual para discernir conteúdo programático de doutrinação ideológica e, portanto, são vulneráveis à "ação doutrinária" dos professores. A leitura atenta do anteprojeto de lei, no entanto, revela também interesse no controle das universidades públicas. Quando define a "pluralidade de ideias" como princípio do sistema de ensino público, inclusive do ensino superior (Bolsonaro Carlos, 2014; Bolsonaro Flávio, 2014, art. 1, item 2), e quando considera a aplicação da lei nos processos seletivos destinados a professores dos cursos de licenciatura (Bolsonaro Carlos, 2014; Bolsonaro Flávio, 2014, art. 7, item 5). Fosse aprovado, em qualquer esfera, básica ou superior, haveria implicações seríssimas.
No período de dois anos, de 2014 a 2016, foi possível observar ampla difusão desses projetos em Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas e Senado Federal. Os representantes desses projetos, muitas vezes, eram pessoas ligadas ao Movimento Brasil Livre (MBL) e ao Revoltados Online, cuja figura mais expressiva na época era o deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), também por membros da família Bolsonaro e por parlamentares da chamada "bancada evangélica". Em 2017, o MBL propôs o "Dia Nacional do Movimento Escola sem Partido". O ano se encerrou com a duplicação do número de projetos protocolados (Moura, 2018).
Nesse sentido, pode-se afirmar que a aproximação do ESP com as entidades e indivíduos mencionados fortaleceu mutuamente todos os envolvidos. Além disso, os candidatos conseguiram vencer as eleições mobilizando as demandas mais sensíveis da população. Os projetos de lei, mesmo não sendo aprovados, tiveram a capacidade de expandir a atuação do ESP para diversas regiões, municípios e estados brasileiros. O ambiente escolar, que nunca tinha recebido tanta atenção na agenda nacional, transformou-se em campo de disputas acirradas, resultando no desprestígio dos profissionais da educação.
Tais peças jurídicas construíram a imagem do "professor doutrinador", que no exercício de suas funções se aproveita da "audiência cativa" para fins de propaganda política e ideológica. A construção desse estigma sobre o professor, em analogia ao que Judith Butler identificou como "anti-intelectualismo" nos Estados Unidos, visa limitar o dissenso do debate público, além de se configurar uma espécie de "terrorismo psicológico". Isso porque as pessoas deixam de se expressar livremente com medo de perder o direito de falar. Nessas condições sociais, "a censura opera implícita e vigorosamente", pois "a linha que circunscreve o que é falado e o que pode ser vivido também funciona como instrumento de censura" (Butler, 2019, p. 10).
Na simplificação do processo de ensino-aprendizagem, o professor é representado como sujeito ativo que dispõe de superioridade hierárquica para transmitir "ideologia esquerdista" e, assim, promover a "doutrinação ideológica", como denominava outrora a "comunidade de informações" (ver Magalhães, 1997). Assume o papel de "inimigo" da nação, muitas vezes associado a partidos de esquerda, principalmente ao Partido dos Trabalhadores (PT). Sociologia, história e filosofia tornam-se, então, as disciplinas mais visadas pelo ESP, embora outras áreas cujos componentes curriculares não endossam o chamado "negacionismo científico" também sofram com ataques semelhantes.
Os estudantes, por sua vez, são concebidos como sujeitos passivos dessa relação verticalizada, à mercê dos interesses escusos de "gente de má-fé", que, em tese, se vale da sua "posição de mando" para empreender uma espécie de "lavagem cerebral" em "crianças indefesas" e "adolescentes suscetíveis", ambos "inocentes úteis", como também foram denominados pela "comunidade de informações".
Ambos os fenômenos, embora separados no tempo, partilham da mesma construção: a denominada "utopia autoritária", que considera a sociedade brasileira rude e despreparada, imatura e incapaz de gerir-se sem a intervenção enérgica, a "mão de ferro" do Estado, sobretudo quando se tratava do menor de idade (a respeito, ver Fico, 1997, p. 145 e Garcia, 2008, p. 220).
Essa renovação permanente da "utopia autoritária", que atravessa a história do Brasil desde os tempos mais remotos, contou com o auxílio da censura que, até ser extinta em 1988, se converteu em um poderoso instrumento de controle social e político, justificado com base em três princípios lapidares: 1. a sociedade brasileira não estava preparada para gerenciar sua liberdade e livre-arbítrio nem exercer com responsabilidade seus direitos e deveres; 2. o Estado tinha o dever de responsabilizar-se por sua proteção e, portanto, utilizar-se da censura quando fosse necessária; e 3. da perspectiva histórica, a censura existiu em várias sociedades e culturas, era o caso de apenas aprimorá-la, adaptá-la às demandas do momento (Garcia, 2015, p. 414). Com tantos "atributos" aos olhos do panóptico, restituí-la tornou-se imperativo do ESP.
DO CONTROLE POLÍTICO DA ATIVIDADE DOCENTE ÀS GARANTIAS CONSTITUCIONAIS DE LIBERDADE DE EXPRESSÃO
O advogado Miguel Nagib, responsável pela redação do anteprojeto de lei que serviu de inspiração para projetos similares em todo o país, sustentou a tese de que o professor não possui o direito de exercer a liberdade de expressão em sala de aula, uma vez que "equivaleria a reconhecer-lhe o direito de obrigar seus alunos a ouvi-lo falar, opinar e pregar sobre qualquer assunto" (apudMoreno, Tenente e Fajardo, 2016).
De forma análoga, o senador Magno Malta protocolou o projeto de lei no Senado Federal e, em defesa da proposta, considerou que a "liberdade de ensinar" não deveria ser confundida com "liberdade de expressão". "Não existe liberdade de expressão no exercício estrito da atividade docente, sob pena de ser anulada a liberdade de consciência e de crença dos estudantes, que formam, em sala de aula, uma audiência cativa" (Brasil, 2016d, item 4), "de forma análoga, não desfrutam os estudantes de liberdade de escolha em relação às obras didáticas e paradidáticas cuja leitura lhes é imposta por seus professores" (Brasil, 2016d, item 5).
No diagnóstico do ESP, "é fato notório que professores e autores de materiais didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas". Com isso, os professores pretendem, segundo os idealizadores da proposta, "fazer com que eles [os estudantes] adotem padrões de julgamento e de conduta moral — especialmente moral sexual — incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis" (Bolsonaro Carlos, 2014; Bolsonaro Flávio, 2014).
Nessa linha de pensamento, a liberdade de expressão estava restrita a espaços específicos, excluindo a sala de aula. Os representantes do ESP argumentam que a liberdade de cátedra difere da liberdade de expressão e, portanto, é necessário impor limites aos professores em suas atividades. Sob o lema "Por uma lei contra o abuso da liberdade de ensinar", constava entre as obrigações dos professores e educadores o compromisso com a neutralidade política e ideológica, assim como a proibição de discutir questões relacionadas a gênero e sexualidade, reservadas exclusivamente às famílias e aos responsáveis pela educação moral e religiosa das crianças e adolescentes.17
Para colher a opinião da população sobre o projeto de lei apresentado pelo senador Magno Malta, o Senado Federal lançou uma consulta pública em seu próprio site. A pesquisa foi encerrada com 199.873 votos a favor e 210.819 votos contra o projeto de lei (Brasil, 2016c).
Embora por uma pequena margem de votos, o projeto de lei da ESP não apenas perdeu na consulta pública realizada no site do Senado, mas também sofreu uma perda de credibilidade em diversos setores da vida nacional. Especialistas, incluindo legisladores, consideraram o projeto de lei como uma violação aos princípios constitucionais, visto que a liberdade de expressão é uma das principais conquistas da Constituição de 1988 (Brasil, 1988), ao contrário das constituições anteriores.
A Advocacia-Geral da União (AGU) considerou o Programa ESP matéria inconstitucional, já que não é competência dos estados alterar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) (Brasil, 1996, 2016d) nem garantir a "pluralidade de ideias e de concepções pedagógicas" no ambiente escolar (Brasil, 1988, art. 260).
Em nota técnica emitida pela Procuradoria Federal dos Direitos Humanos, do Ministério Público Federal (MPF), sobre a inclusão do Programa ESP na LDB, a procuradora Deborah Duprat foi assertiva:
o que se revela, portanto, no PL e no seu documento inspirador é o inconformismo com a vitória das diversas lutas emancipatórias no processo constituinte; com a formatação de uma sociedade que tem que estar aberta a múltiplas e diferentes visões de mundo; com o fato de a escola ser um lugar estratégico para a emancipação política e para o fim das ideologias sexistas – que condenam a mulher a uma posição naturalmente inferior, racistas – que representam os não brancos como os selvagens perpétuos, religiosas – que apresentam o mundo como a criação dos deuses, e de tantas outras que pretendem fulminar as versões contrastantes das verdades que pregam (Brasil, 2016b, p. 2).
Nesse mesmo documento, Duprat considerou que o projeto de lei subvertia a ordem constitucional por inúmeras razões:
confunde a educação escolar com aquela que é fornecida pelos pais, e, com isso, os espaços públicos e privado;
impede o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, III);
nega a liberdade de cátedra e a possibilidade ampla de aprendizagem (art. 206, II);
contraria o princípio da laicidade do Estado, porque permite, no âmbito da escola, espaço público na concepção constitucional, a prevalência de visões morais/religiosas particulares (Brasil, 2016b, p. 2).
O Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH), uma organização não governamental (ONG) sediada em Santa Catarina, também reportou o projeto ESP aos relatores especiais da Organização das Nações Unidas (ONU) (Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos, 2016). As fundamentações da denúncia se concentraram no argumento de que o movimento representa uma violação do direito à educação e da liberdade de opinião e expressão. Isso ocorre porque um professor que expressa opiniões sobre o assunto abordado em suas aulas, e que pode ser interpretado por menores como "doutrinação", estaria sujeito a sanções por parte de entidades reguladoras. Ao promover a "lógica da suspeição", as instituições educacionais teriam à disposição um canal de denúncia direto aos órgãos superiores, que poderiam iniciar processos de investigação interna contra o professor denunciado. Em última análise, o professor poderia perder o emprego. Se fosse servidor público, seria exonerado; se estivesse vinculado à iniciativa privada, seria demitido por justa causa.18
A derrota mais significativa do ESP ocorreu com o parecer do ministro Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn). Apesar do avanço sistemático do obscurantismo na educação pública e de sua intenção de hostilizar a produção científica e epistemológica, o STF entendeu que a liberdade de expressão não está sujeita a nenhum tipo de condicionamento.
A Lei 7.800/2016 traz, ainda, previsões de inspiração evidentemente cerceadora da liberdade de ensinar assegurada aos professores, que evidenciam o propósito de constranger e de perseguir aqueles que eventualmente sustentem visões que se afastam do padrão dominante, estabelecendo vedações – extremamente vagas. (Barroso, 2017, p. 22, art. 3º, IV)
Com base no parecer do ministro Barroso, que definiu a inconstitucionalidade da matéria, a lei foi integralmente suspensa em 21 de março de 2017. Em 2020, após o julgamento das ADIns n. 5.537, n. 5.580 e n. 6.846 e das Arguições de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPFs) n. 461, n. 465 e n. 600, referentes à proibição de debates sobre gênero e sexualidade nos municípios de Paranaguá (PR), Blumenau (SC) e Londrina (PR), respectivamente, o STF declarou o projeto de lei da ESP inconstitucional por nove votos a um (sendo Marco Aurélio Mello o único ministro favorável ao documento). Este momento foi considerado uma vitória dos movimentos de trabalhadores da educação, que também receberam apoio de parcelas da sociedade preocupadas com o impacto do Programa ESP no ambiente escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como observado, as ideias do movimento ESP e seus instrumentos normativos foram inicialmente aceitos por vários setores da sociedade. No entanto, os projetos de lei não conseguiram aprovação nas esferas legislativas devido à análise da matéria em instâncias superiores.
Na prática, esses projetos de lei, independentemente de sua consideração como inconstitucionais, se tornaram ferramentas de coerção para os trabalhadores da educação que abordassem temas controversos no ambiente escolar. Isso resultou na criação de um clima de terror nas escolas, afetando não apenas a relação de respeito mútuo entre professores e alunos, essencial para o processo de ensino-aprendizagem, mas também teve consequências dramáticas para os docentes, que consciente ou inconscientemente passaram a se autocensurar como medida preventiva ou de proteção.
Por fim, este artigo buscou apresentar os princípios orientadores do ESP, com base em seus instrumentos normativos, e mapear os principais debates que o movimento gerou no espaço público, discutindo como isso impacta diretamente a atividade docente em todos os níveis de ensino, desde a educação básica até o ensino superior.
O movimento ESP, em suas diversas dimensões, é um projeto político de natureza autoritária, que apresenta vínculos (diretos ou indiretos) com a Ditadura Militar e é também uma expressão sintomática do autoritarismo brasileiro. Surgiu da instabilidade política atual, tendo os trabalhadores da educação como alvos principais, embora tenha se estendido a outros agentes e instituições culturais, como artistas, museus e exposições. Parece ter sido derrotado, pelo menos na esfera legislativa. Em mais um gesto teatral, na página da ESP, Nagib se despede do movimento (sobre as relações entre política e teatro ver Paranhos, 2012).19 Entretanto, algumas tentativas atuais de reconstituição, sem a presença do idealizador, evidenciam ser um recuo tático, aguardando o momento oportuno para uma nova aparição.
Em Origens do totalitarismo: antissemitismo, imperialismo, totalitarismo, publicado no Brasil em 1989, mas escrito em 1951, Hannah Arendt, citada por Heloisa Murgel Starling no posfácio ao livro "Arendt entre o Amor e o Mal: Uma Biografia", afirma que a experiência do totalitarismo, desde que se manifestou como "uma forma inteiramente nova de governo" no tempo presente e revelou os elementos "de uma espécie de essência totalitária" (1989, p. 531), tornou-se um risco iminente, "que tende a ficar conosco de agora em diante", entranhado nos sistemas políticos, sejam eles regimes totalitários, autoritários, também em sociedades democráticas, representativas, fluindo silenciosamente por meio de "correntes subterrâneas" (Heberlein, 2021, p. 228).
Starling convoca para que reconheçamos os "sinais", não nos paralisando diante do aniquilamento das instituições democráticas, que pode ocorrer de duas maneiras: pela "ação furtiva" (ou às claras, acrescentamos) de governantes com vocação para autocratas, ou pela disseminação do ódio a indivíduos, grupos ou instituições que têm capacidade real de exercer resistência, incluindo professores, mas também lideranças políticas, ativistas, artistas, universidades, jornalistas, meios de comunicação, sistema judicial e corte suprema (Heberlein, 2021, p. 229).
Starling adverte que a imposição de um regime totalitário ou autoritário não ocorre de repente, não foi assim que aconteceu com o nazismo, com a Ditadura Militar, nem "acontecerá de uma vez, cada um desses passos é alarmante e talvez o caminho seja longo". A menos que a sociedade reaja, "o efeito será cumulativo e os movimentos totalitários irão prosperar em novas estruturas de poder extremas, cuja configuração política não se sabe qual será" (Heberlein, 2021, p. 229).
As pesquisas sobre regimes totalitários e autoritários e suas conexões não lineares entre passado e presente assumem, portanto, um compromisso com a democracia e com as sociedades, ao evidenciar como esses sistemas políticos se impuseram gradualmente, corroendo todo o tecido social. Isso não ocorre apenas "de cima para baixo", da noite para o dia, por meio de um único e certeiro golpe, mas sim aos poucos, sorrateira e silenciosamente, com o apoio de agentes infiltrados nas instituições, corrompendo as estruturas por dentro. Estejamos alertas.