1 Introdução
Em diferentes ambientes onde estejam presentes crianças, encontram-se estímulos dos mais diversificados possíveis, sejam eles advindos de situações naturais ou de pessoas que as estimulam em meio à relação de trocas interativas em contextos lúdicos ou em situações de lazer. Os estímulos são condições com as quais as crianças agem, reagem ou mesmo trocam possibilidades de se desenvolverem mediante o que sentem ou veem em condições esperadas ou não.
Ao tratar-se de crianças com condições sensoriais e/ou físicas limitantes, há de prever-se, planejar ou mesmo adequar as situações de interação para garantir que estas recebam estímulos e oportunidades para incluí-las e, consequentemente, acompanharem o desenvolvimento de seus pares e estarem oportunamente equiparadas.
No caso da criança com deficiência múltipla, essa estimulação é fundamental devido aos comprometimentos advindos da deficiência. A deficiência múltipla é caracterizada na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008, p. 15) como: “associação, no mesmo indivíduo, de duas ou mais deficiências primárias (mental/visual/auditiva/física), com comprometimentos que acarretam atrasos no desenvolvimento global e na capacidade adaptativa”. Essa caracterização é reiterada pelo Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999, que aponta a deficiência múltipla como uma “associação de duas ou mais deficiências”. Dessa forma, discussões acerca do conceito de deficiência múltipla são veementes, porém não há um consenso na literatura quanto aos aspectos que a definem (Teixeira & Nagliate, 2009).
Alguns autores defendem um aprofundamento no conceito de deficiência múltipla, pois é importante enfatizar que este não deve ser somente compreendido como a somatória de duas ou mais deficiências, “mas sim, como limitações acentuadas no domínio cognitivo, nas formas de interação, comunicação, linguagem, nas habilidades sensório-motoras, na competência social e na capacidade de adaptação do sujeito” (Bruno, 2009, p. 37). Contudo, deve-se ressaltar que muitos diagnósticos proferidos às pessoas com deficiência múltipla não são pautados em avaliações que verifiquem cada um desses aspectos descritos. Seria imprescindível considerar os meios pelos quais as pessoas com deficiência múltipla percebem, conhecem e interagem com o ambiente. Desse modo, para considerar o impacto da deficiência múltipla, não basta compreender somente as deficiências que estão associadas, mas, sim, os seus efeitos sobre a funcionalidade da pessoa com relação ao ambiente em que ela vive.
Caracteriza-se por um tipo de deficiência múltipla a associação entre deficiência visual ou cegueira e a deficiência física (M. Rocha & Pletsch, 2015). Crianças com limitações motoras e/ou visuais podem desenvolver-se de maneira mais lenta, podendo ser superadas ou minimizadas pela estimulação sensorial, perceptiva e motora, fator preponderante na construção do esquema corporal, coordenação, orientação espacial, lateralidade e equilíbrio, fortalecimento de vínculo, desempenho físico e destreza (Warren, 1994; Porreta, 2016; Lieberman, 2016; A. Silva, Valenciano, & Fujisawa, 2017).
A pessoa com deficiência múltipla, ao receber oportunidades para brincar, melhora as habilidades de coordenação motora, cognição, linguagem, socialização e atenção (Peres, 2004; Lomônaco & Cazeiro, 2006; Bruno, 2009; Diretrizes de Atenção à Pessoa com Paralisia Cerebral, 2013). Nessa direção, o foco é a estimulação para que a criança interaja com o meio e com os objetos e, por sua vez, conheça, reconheça e discrimine pessoas, locais e objetos com destreza motora, capacidades sensoriais e perceptivas. No caso da ausência da visão, essas ações potencializam o uso dos sentidos remanescentes, cujo resultado pode colocar a criança em condições de oferecer feedbacks diante de estímulos variados (Bruno, 2009; S. Nunes & Lomônaco, 2010; Lieberman, 2016; Lieberman & Houston-Wilson, 2017).
O brinquedo como objeto de suporte para a brincadeira (Kishimoto, 2012) e também compreendido como objeto cultural (Lira & Rubio, 2014), com significados e representações de contextos sociais com distintas compreensões (Vygotsky, 1991; Friedmann, 1996; Negrine, 2002; Biscoli, 2005; Cordazzo & Vieira, 2007; Bruno, 2009) podem, no caso da criança com deficiência, envolver aspectos como barreiras ambientais, culturais e sociais que impeçam ou dificultem que essa ação, tão significativa do brincar, seja de fato estabelecida.
Na concepção de Spencer-Cavaliere e Watkinson (2010), é de suma importância que a criança com deficiência tenha o sentimento de ser um legítimo participante da atividade. As relações só podem ser estabelecidas quando alcançam todos os alunos (Nacif et al., 2016). Como se pode depreender, encontra-se, na maior parte das vezes, desde parques e brinquedos inadequados, como também a falta de amigos/pares para interagirem com essas pessoas. O suporte oferecido e a adaptação necessária podem fazer com que as relações sociais, mediante a diversidade cultural, integrem nas crianças com deficiência, no momento da brincadeira, a percepção de aceitação pelos colegas diante de suas diferenças.
Para atender a essa demanda, os profissionais da educação bem como os terapeutas têm se utilizado, adaptado ou adquirido recursos pedagógicos na intenção de potencializar a funcionalidade, interação ou mesmo o desempenho desses sujeitos em atividades de vida diária e, por conseguinte, dar subsídios para que eles façam melhor uso de seu potencial funcional nas atividades educacionais (Lieberman & Houston-Wilson, 2017; A. Rocha & Deliberato, 2012; Seabra, Fiorini, & Manzini, 2015).
No Brasil, um compendio de “brinquedos educativos”, assim denominados por Siaulys (2005), foram propostos, no Manual Brincar para Todos, desenvolvidos com a finalidade de proporcionarem estímulos sensoriais, voltados às crianças cegas e com baixa visão para minimizarem as barreiras existentes nos brinquedos convencionais que limitam a exploração, a manipulação e o próprio ato de brincar.
S. Silva (2009) utilizou algumas adaptações dos brinquedos educativos desenvolvidos por Siaulys (2005) para elaborar kits de estimulação aplicados pelos pais às crianças com deficiências visuais. Participaram desse estudo seis crianças com baixa visão de dois anos de idade. Como resultado, pôde-se observar melhoras nas habilidades motoras, uso e aumento da visão residual, de forma a proporcionar mais independência e autonomia por meio das atividades que envolviam os brinquedos educativos.
Na literatura, há uma escassez de estudos que envolvam a pessoa com deficiência múltipla (paralisia cerebral e cegueira) em situações de interação com brinquedos educativos. Entretanto, serão descritos alguns estudos que se aproximam dessa temática como os de DiCarlo, Reid e Stricklin (2003), Lancioni et al. (2010) e o de Bataglion, Zuchetto e Nasser (2014).
No estudo de Bataglion et al. (2014), os autores envolveram o desempenho de sete crianças com variadas deficiências, dentre elas a paralisia cerebral e a deficiência visual. As atividades propiciadas foram: seis no solo: encontrando os colegas, coelhinho sai da toca, pato ganso, morto-vivo, estátua, bate-manteiga. Na piscina, realizaram mais seis atividades: deslocando espaguetes, voleibol, basquetebol, handebol, caça ao tesouro, e sai tainha. A intervenção consistiu em: dar informações adicionais referentes às atividades, dar demonstrações e estímulos, auxílios para se deslocarem, auxílios para alcançarem materiais, verificar a necessidade de adaptações de movimentos e oferecer mais tempo para realizar a tarefa. Como resultados, os autores apontaram que a intervenção interferiu positivamente no desempenho motor dos participantes e possibilitou mais envolvimento nas atividades, considerando que foi imprescindível adequações das atividades para que proporcionassem, além de desenvolvimento de habilidades motoras, melhoras na autoestima e no condicionamento físico.
Crianças com prejuízos físicos e sensoriais se engajam menos em brincadeiras envolvendo brinquedos e, necessariamente, precisam de mais apoio para realizarem a interação com os brinquedos (Dicarlo et al., 2003; Lancioni et al., 2010; Bataglion et al., 2014). Assim, DiCarlo et al. (2003) tiveram como finalidade aumentar o número de brincadeiras com brinquedos pelos participantes, em um ambiente de sala de aula inclusiva. Foram utilizadas como intervenção duas opções: a escolha de brinquedos preferidos somente, e escolhas de brinquedos preferidos mais sugestões e elogios. Participaram do estudo três crianças, uma criança com atraso no desenvolvimento e duas com paralisia cerebral com aproximadamente três anos. Os resultados indicaram que houve aumento de brincadeiras entre as crianças durante a rotina de uma sala de aula inclusiva. Para uma criança, a escolha de brinquedos preferidos mostrou aumento no número total de brincadeiras com os brinquedos. Para as outras duas crianças, a escolha de brinquedos preferidos mais sugestões e elogios teve maior aumento. Contudo, concluiu-se que, quando as crianças são estimuladas a brincarem e, principalmente, puderem escolher seus brinquedos, maior interação com os brinquedos ocorrerá, além de que se estiverem com um brinquedo preferido, receberem instruções e sugestões de outro e, ao final, receberem um elogio, a chance de aumentar a interação com o brinquedo é maior, como observado em dois participantes.
Como aponta o estudo de Lancioni et al. (2010), a escolha de um brinquedo interessante e a sua adaptação faz diferença no engajamento e na manipulação da pessoa com deficiência múltipla no momento de interação. Os autores analisaram a manipulação de brinquedos por duas crianças de cinco e nove anos com deficiência múltipla (deficiência intelectual e paralisia cerebral) e puderam perceber a quantidade de manipulação por meio de dispositivos que detectavam o número de movimentos dos participantes. Em continuidade, a intervenção consistia em oferecer estímulos positivos (música, vozes familiares, brinquedos que vibram e exibições de luz) para observar se houve maior manipulação de brinquedos pelos participantes com a presença dos estímulos. Como resultados, a intervenção mostrou-se eficaz no aumento das respostas de manipulação de brinquedos pelos dois participantes quando oferecido estímulos positivos.
A partir do exposto, pode-se compreender que a utilização de brinquedos educativos pode ser uma possibilidade de estimular a criança com deficiência múltipla e, consequentemente, reduzir prejuízos físicos e sensoriais que lhe são impostos durante uma brincadeira. Assim, justifica-se a importância acadêmica e social deste estudo, com a premissa de que foram encontrados poucos estudos que relacionaram brinquedo educativo voltado às pessoas com deficiência múltipla e, ainda, com a possibilidade de vislumbrar uma metodologia de intervenção voltada à interação de crianças com deficiência múltipla com brinquedos educativos associados à contação de histórias, que, neste estudo, foi compreendida como uma estratégia utilizada para que a criança explorasse e interagisse com o brinquedo. Assim sendo, o objetivo deste artigo foi analisar os efeitos dos brinquedos educativos associados à contação de histórias na interação de uma criança com deficiência múltipla.
2 Método
2.1 Procedimentos éticos
O presente estudo foi submetido e aprovado pelo comitê de ética da universidade. O Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) da pesquisa tem a aprovação de Nº 40342414.0.0000.5402. A responsável pelo participante autorizou a participação assinando o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Fotografia e Filmagem.
2.2 Participante
Participou do estudo uma criança de dez anos de idade, do gênero masculino, com o diagnóstico de deficiência múltipla. Nesse caso, refere-se aos acometimentos da cegueira congênita, sem resquícios visuais, reconhece facilmente ambientes, sons e objetos familiares. Foi acometido pela encefalopatia crônica não progressiva (Diparesia Espástica), mais conhecida como paralisia cerebral, deficiência que acarretou problemas motores, como dificuldades de motricidade fina e grossa dos membros superiores e de locomoção, sem prejuízos cognitivos e com a comunicação verbal preservada. O participante é cadeirante com controle de tronco ineficiente, não movimenta a cadeira de forma independente. Essa criança está regularmente matriculada no Ensino Fundamental, ciclo I, da rede municipal de ensino. As informações quanto à caracterização do participante foram retiradas a partir de um relatório contendo o diagnóstico e outras avaliações realizadas por uma equipe multiprofissional.
2.3 Local
O estudo foi conduzido na casa do participante devido à dificuldade de disponibilidade de transporte. As sessões ocorreram em um cômodo da casa, arejado e com luminosidade adequada, com piso de tatame, organizado para que os brinquedos pudessem ficar expostos e acessíveis ao participante.
2.4 Materiais e equipamentos
Foram selecionados brinquedos educativos do Instituto LARAMARA: Associação Brasileira de Assistência ao Deficiente Visual (Siaulys, 2005). Dos 109 brinquedos educativos que compõem o livro, foram selecionados oito que ofereciam, dentre outras finalidades, a estimulação motora e sensorial em atendimento às condições do participante. Conforme a descrição no Quadro 1, os brinquedos selecionados foram:
Fonte: Elaborado pelas autoras.
2.5 Delineamento experimental e procedimentos
Nesta pesquisa, foi utilizado o delineamento AB (Gast, 2009) que permitiu a análise das alterações do comportamento do sujeito antes, durante e após a intervenção, de forma a inferir relação entre intervenção e mudança de comportamento, ou seja, relações prováveis entre as variáveis dependentes e independentes (Horner et al., 2005; Kratochwill et al., 2010).
As variáveis do estudo constituíram-se em variável dependente como sendo as habilidades de interação com os brinquedos educativos. A variável independente caracterizou-se pela aplicação de brinquedos educativos associados à contação de histórias. Nesse sentido, para mensurar as variáveis do estudo, utilizou-se como instrumento de coleta de dados a Folha de Registro que apresentava as pontuações de zero (0) a quatro (4) pontos. Assim, 4 pontos significaram que o sujeito deu mais de uma função ao brinquedo - exemplo: quando o participante realizava a brincadeira esperada para aquele brinquedo e acrescentava mais uma função; 3 pontos deu função ao brinquedo - exemplo: quando o participante realizava a brincadeira esperada para aquele brinquedo; 2 pontos quando ele interagiu com o brinquedo - exemplo: quando pegava o brinquedo na mão e o manipulava; 1 ponto teve contato com o brinquedo - exemplo: somente quando pegava na mão; zero ponto quando não teve contato com o brinquedo - exemplo: ignorou o brinquedo totalmente.
O participante tinha de 10 a 20 tentativas para realizarem a interação com os brinquedos. Nesse sentido, a pontuação de cada tentativa era de zero a 4 pontos. O total de pontos atingidos pelo participante na sessão foi dividido pelo total de pontos possíveis, multiplicados por 100. O resultado do cálculo gera a porcentagem de respostas da interação do participante com o brinquedo associado à contação de histórias.
Após a definição das variáveis do estudo e sua mensuração, iniciou-se a coleta de dados em duas sessões semanais com duração de aproximadamente uma hora cada. Em cada dia, foram utilizados dois brinquedos, um de cada vez com intervalo de 20 minutos entre uma sessão e outra. Após finalização, iniciava-se outros dois brinquedos, e assim consecutivamente. A coleta de dados nas fases do delineamento AB foi dividida em duas etapas, linha de base (A) e intervenções (B). A Linha de Base consistiu em três sessões para cada brinquedo educativo. Consistia no contato do participante com o brinquedo sem a presença da contação de história e sem o uso de auxílios verbais ou físicos, ou seja, sem qualquer interferência do pesquisador, sendo um momento livre de interação ou não com o brinquedo. As observações foram registradas de modo a considerar os aspectos apresentados na Folha de Registro.
A Intervenção foi introduzida após a linha de base. Foram realizadas três sessões para cada brinquedo educativo associado à contação de histórias. Nesse momento, o pesquisador utilizou algumas estratégias que consistiram em auxílio físico e/ou verbal para estimular o participante, oportunizando diferentes e novas interações com os brinquedos. O Quadro 2 apresenta uma descrição da intervenção, de forma a considerar o uso dos brinquedos educativos, da contação de histórias e estratégias utilizadas.
Brinquedos educativos | Contação de Histórias "Eu conto, você conta": Assuntos do interesse da criança, em que a pesquisadora contava uma parte da história e o participante continuava completando a história com o uso dos brinquedos educativos. | Estratégias utilizadas | |
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Auxílio físico | Auxílio verbal | ||
Amassadinha | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre as trajetórias dos artistas das suas músicas preferidas. | Colocar o brinquedo na mão da criança e auxiliar o movimento nas mãos. | Foram apresentadas diferentes situações na história para que a criança introduzisse o brinquedo e utilizasse a imaginação para dar função a ele. |
Cubo geométrico | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre músicas preferidas e trechos dessas músicas que o fazem admirar os escritores. | Auxílio para desprender e prender as peças. | Auxílio verbal para achar os pares. Exemplo: vire para cima, vire para baixo, vire mais uma vez. |
Cole Ball | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre fazer compras no supermercado. | Ajuda para colar e descolar o velcro para vestir; colocar no corpo de modo correto. | Por meio da história, estimular e despertar a imaginação da criança. |
Ao pé do ouvido | Tema sugerido pelo participante: contar histórias a partir de suas imaginações sobre ser cantor e professor. | Segurar o tapete de base para que não saísse do lugar; desenrolar os objetos. | Auxílio verbal para utilização de todos os instrumentos presentes no brinquedo. |
Cubo surpresa | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre suas dificuldades com a cadeira de rodas e sobre o transporte. | Segurar a caixa para poder pegar as peças. | Auxílio verbal para encontrar os buracos na caixa e identificar as peças. |
Tateando | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre as atividades escolares como se ele fosse o professor: o que faria? | Segurar o tapete de base para que não saísse do lugar; desenrolar os objetos. | Auxílio verbal (por meio de uma história) para utilização de todos os instrumentos presentes no brinquedo. |
Body ball | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre as músicas sertanejas e seus personagens. | Segurar o quadro; retirar a bolinha da roupa da figura; movimentar o brinquedo. | Ênfase na história para despertar o interesse em usar o brinquedo; auxílio para colocação da bolinha no local correto. |
Trincos e truques | Tema sugerido pelo participante: contar histórias sobre sua escola e seus colegas: como recebe ajuda e como faria se fosse o diretor. | Auxílio para abrir o teto de madeira para retirar as peças e para fixar o brinquedo. | Auxílio para achar os lados da casinha. |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
As contações de histórias foram nomeadas como: “eu conto, você conta”, devido às características da proposta que envolvia a construção conjunta do pesquisador e do participante, com a finalidade de promover a interação do participante com os brinquedos e despertar a sua imaginação para dar variadas funções aos determinados brinquedos.
Para que isso fosse possível, as histórias constituíram-se a partir de temas de interesse apontados pelo próprio participante. Foram realizadas as seguintes questões: O que você mais gosta de fazer nos momentos livres? Em quais lugares você gosta de passear? O que você mais gosta de comer? A partir dessas questões, foram propostas as contações de história que levava o participante a imaginar, a criar um “faz de conta”. Dessa forma, um dos lugares que o participante gostava de passear era o supermercado. Consequentemente, o supermercado foi um dos temas propostos, identificado nas questões acima descritas. Por exemplo: Pesquisador: Era uma vez uma mulher chamada Joana, ela e seus filhos foram ao supermercado fazer compras, quando, de repente...Participante: O filho quer comprar uma fruta...Pesquisador: Que fruta seria, meu filho, uma banana? Participante: Não, uma manga (pega uma fruta do brinquedo educativo Cole Ball).
2.6 concordância interobservadores
O Índice de Fidedignidade foi mensurado pelo segundo autor em 25% das sessões de cada fase, ou seja, uma sessão de linha de base e uma sessão de intervenção foi assistida de cada jogo. O cálculo final foi realizado pelo número de concordância dividido pelo número de concordância mais discordância, multiplicado por 100 (Hersen & Barlow, 1982), obtendo, portanto 81% de concordância.
3 Resultados e discussão
Os dados coletados na linha de base A e intervenção B estão representados na Figura 1. O eixo X representa o número de sessões associadas à linha de base (A) bem como as intervenções (B) de cada brinquedo. No Eixo Y, estão representadas as porcentagens de respostas quanto à interação do participante com os brinquedos. Os dados foram demonstrados por meio da distribuição de frequência relativa para se obter melhor análise.
A representação gráfica do brinquedo educativo Tateando (Figura 1) demonstra que, na linha de base, em três sessões consecutivas, o participante obteve a pontuação de 33%. Com a introdução da intervenção, a média foi de 78% (variação: 67% a 100%). Dessa forma, foram realizadas três sessões de linha de base com cinco tentativas em cada sessão e, em cada uma delas, o participante obteve cinco pontos, totalizando 33% em cada sessão. Na intervenção, foram realizadas três sessões. Na primeira sessão, foram atingidos 10 pontos em cinco tentativas, obtendo 67% de acertos. Na segunda sessão, foram realizadas cinco tentativas e o participante obteve 15 pontos, atingindo 100%. Na terceira sessão, em cinco tentativas obteve 10 pontos, atingindo 67% de acertos. Observa-se que a pontuação foi muito superior à linha de base. Entretanto, a variação da pontuação foi decorrente da limitação do próprio brinquedo que, em certos momentos, acabou dificultando a manipulação, pois a base do brinquedo, que consiste em um tapete acolchoado, prejudicou a mobilidade do participante e influenciou a exploração de todos os elementos contidos no recurso.
Os estudos de C. Nunes (2008) e de Amaral, Saramago, Gonçalves, C. Nunes, & Duarte (2004) denotam que crianças com deficiência múltipla precisam ser expostas às mais diversas experiências e atividades a fim de garantir o desenvolvimento da aprendizagem. Para isso, é essencial que estas recebam informações sobre o meio externo e possam interagir. É preciso respeitar o tempo que elas levam para compreender e responder a um estímulo que lhes foi oferecido.
No brinquedo Cubo Surpresa (Figura 1), na linha de base, fica constatado que houve um pequeno aumento de pontuação, com média de 10% (variação de 0% a 20%). Esse resultado ocorreu devido ao estudante, no início da linha de base, mostrar um desinteresse pelo brinquedo e falta de experiência anterior. Nesse sentido, na primeira sessão de linha de base, foram realizadas cinco tentativas - o participante não obteve nenhuma pontuação. Na segunda sessão, o participante alcançou somente dois pontos em cinco tentativas, atingindo 13%. Na terceira e última sessão de linha de base, ele adquiriu três pontos em cinco tentativas, atingindo 20%. No decorrer dos dias, ele aumentou seu interesse, porém de modo muito restrito por ser um brinquedo com peças e formatos iguais. Nas sessões de intervenção, esse interesse foi despertado por meio dos estímulos (contação de histórias) e estratégias (auxílios físicos e verbais) utilizadas, em que ele obteve uma média de 93% (variação de 80% a 100%). Na primeira sessão de intervenção, foram realizadas cinco tentativas, ele obteve 15 pontos, pois atingiu 100% de acerto, o mesmo ocorreu na segunda sessão. Na terceira sessão, o participante obteve 12 pontos em cinco tentativas, visto que atingiu 80% de acertos.
Para G. Preisler (1993) e Lieberman (2016), as crianças cegas demonstram maior interesse por brincadeiras semiestruturadas, ou seja, em que havia uma orientação do que deveria ser feito, como, por exemplo, pintar. Quando se trata de brincadeiras livres como o faz de conta, apresentam dificuldades de entender o significado das brincadeiras, o que faz com que elas interajam menos. Consequentemente, como explicitado por S. Nunes e Lomônaco (2010), as estratégias e os programas que garantam adaptações para promover a participação dessas pessoas devem ser desenvolvidos, pois a pessoa cega utilizará outros mecanismos, principalmente a exploração tátil-cinestésica, para explorar e conhecer o mundo.
Contudo, quando estão na presença de um adulto conseguem realizar as brincadeiras com mais interação. Isso pode ser determinante para que o participante não tenha interagido com esse brinquedo em linha de base. Troster e Brambring (1994), Lancioni et al. (2010), Bataglion et al. (2014) também apontam que as crianças cegas quando expostas às situações livres com brinquedos pré-determinados acabam por apresentar menor interesse. Isso posto, estabelece-se consonância com o estudo em questão, pois a contação de histórias e estratégias utilizadas pelo pesquisador foram fundamentais para que acontecessem a interação e a manipulação do brinquedo educativo.
No brinquedo Trincos e Truques (Figura 1), na fase de linha de base, houve média de 17% (variação de 0% a 30%). Assim, foram realizadas, na primeira sessão de linha de base, cinco tentativas, o participante obteve cinco pontos, atingindo 30% de acertos. Na segunda sessão de linha de base, foram realizadas cinco tentativas e o participante não obteve nenhum acerto. Na terceira sessão de linha de base, em cinco tentativas, obteve 3 pontos, atingindo 20% de acerto. Com a introdução da intervenção, o participante obteve média de 89% (variação de 80% a 100%). Dessa forma, foram realizadas cinco tentativas e obteve 15 pontos, atingindo 100% de acertos. Na segunda sessão, foram realizadas cinco tentativas e o participante obteve 13 pontos, alcançando 87% de acertos. Na terceira sessão, em cinco tentativas, conseguiu 12 pontos e alcançou 80% de acertos. Os acertos ocorreram no primeiro momento, no qual o participante demonstrou grande interesse pelo brinquedo. Não obstante, no decorrer apresentou dificuldades em manipular, porém, com os estímulos, essas dificuldades foram superadas, demonstrando que as estratégias e os estímulos foram eficientes para interação do participante. Os autores Gallahue e Ozmun (2002) ressaltam a importância de disponibilizar recursos, equipamentos e tempo, como elementos de grande importância para propiciar à criança a prática de suas habilidades motoras em desenvolvimento.
No brinquedo Amassadinha (Figura 1), a pontuação média na fase de linha de base foi de 4% (variação de 0% a 13%). Na primeira e segunda sessão de linha de base, o participante não obteve nenhuma pontuação, somente na terceira sessão em cinco tentativas, obteve dois acertos, caracterizando 13%. Na fase de intervenção, obteve pontuação média de 42% (variação de 27% a 53%). Na primeira sessão, foram realizadas cinco tentativas, obtendo quatro pontos de acertos, totalizando 27%. Na segunda sessão, obteve sete pontos em cinco tentativas, totalizando 46%. Na terceira sessão, atingiu oito pontos de acerto, 53%. Os brinquedos educativos são propostas adaptadas de brinquedos; entretanto, algumas necessidades são próprias de cada indivíduo, ainda mais quando se trata de uma pessoa com deficiência múltipla. As crianças com deficiência múltipla “possuem variadas potencialidades funcionais e necessidades concretas que necessitam ser compreendidas e consideradas. Apresentam, algumas vezes, interesses inusitados, diferentes níveis de motivação, formas incomuns de agir, comunicar e expressar suas necessidades, desejos e sentimentos” (Associação de Assistência à Criança Deficiente [AACD], 2006, p. 13).
No brinquedo Ao Pé do Ouvido (Figura 1), na linha de base, obteve-se a média de 29% (variação: 20% a 33%). Foram realizadas três sessões de linha de base. Na primeira e segunda sessão, o participante obteve, em cinco tentativas de cada sessão, cinco pontos de acerto, atingindo 33% nas duas sessões. Na terceira sessão, obteve, em cinco tentativas, três pontos de acertos, totalizando 20%. Na intervenção, houve estabilidade, obtendo 100% em três sessões. Todas as sessões foram realizadas em cinco tentativas cada. Essa pontuação deve-se às estratégias utilizadas, uma vez que proporcionou ao participante explorar todo o espaço do brinquedo e seus objetos, além de utilizar a imaginação para dar as mais variadas funções. As estratégias mais necessárias foram algumas adaptações de modo a proporcionar maior mobilidade em sua manipulação.
A exploração é considerada uma das ações motoras mais importantes para o desenvolvimento da criança com deficiência múltipla, no tocante as alterações visuais, pois as ações motoras manuais que envolvem o agitar, dedilhar, transferir e manipular potencializam significativas mudanças no desenvolvimento motor (Schmitt & Pereira, 2014).
No brinquedo Body Ball (Figura 1), a pontuação de linha de base ficou na média de 29% (variação: 20% a 40%). Na primeira sessão de linha de base, em cinco tentativas, obteve três pontos de acerto, atingindo 20%. Na segunda sessão, em cinco tentativas, obteve quatro pontos, totalizando 27% de acerto. Na terceira sessão, atingiu seis pontos, obtendo 40% de acertos em cinco tentativas. Nesse momento, o participante começou a demonstrar interesse pelo brinquedo e usar a imaginação em relação à função. Na fase de intervenção, essa pontuação aumentou, devido às possibilidades proporcionadas pelo brinquedo com média de 76% (variação: 60% a 80%). Nesse sentido, foram realizadas na primeira sessão cinco tentativas e o participante obteve doze pontos, totalizando 80% de acertos. Na segunda sessão, obteve 13 pontos, atingindo 87% em cinco tentativas. Na terceira sessão, obteve 9 pontos, conseguindo 60% de acertos em cinco tentativas.
No brinquedo Cole Ball (Figura 1), a pontuação manteve-se estável para a linha de base alcançando 33% nas três sessões. Foram realizadas cinco tentativas em cada sessão, e, em cada uma, obteve cinco pontos, perfazendo um total de 33%. Na fase de intervenção, obteve a média de 73% (variação de 67% a 80%). Assim, na primeira sessão, obteve 10 pontos, conseguindo 67% de acertos em cinco tentativas. Na segunda sessão, obteve 12 pontos, atingindo 80%; e, na terceira sessão, 11 pontos, obtendo 73% de acertos. As estratégias utilizadas possibilitaram a diminuição das dificuldades do participante, pois ele pôde explorar e utilizar da sua imaginação para o uso do brinquedo.
C. Preisler e Palmer (1989) estudaram crianças de dois e três anos e constataram que elas tinham interação maior com o brinquedo e com brincadeiras quando havia a participação de um adulto, de modo a aumentar a interação entre elas após as propostas de brincadeiras feitas pelo autor. Isso demonstra a importância de a estimulação acontecer desde os primeiros anos da criança para que essa interação se torne visível nas outras fases da vida. O mesmo ocorreu para o referido brinquedo, maior interação quando estimulado e brincado com o pesquisador.
No último brinquedo, Cubo Geométrico (Figura 1), foi constatado que, na fase de linha de base, se obteve média de 20% (variação de 13% a 27%). Na primeira sessão, atingiu três pontos, 20% de acertos. Na segunda sessão, quatro pontos, 27% de acertos. Na terceira sessão, dois pontos, 13% de acertos. Essa oscilação ocorreu devido ao participante não demostrar motivação pelo brinquedo, além de que as funções variadas (reconhecimento das três diferentes formas geométricas, diferenciação das texturas, organização espaço temporal) que o brinquedo exigia pode ter dificultado o desempenho do participante que não apresentava familiaridade com o brinquedo. Na fase de intervenção, obteve média de 73% (variação de 67% a 80%), devido às estratégias utilizadas que estimularam o participante a sentir as mais variadas funções que aquele brinquedo poderia proporcionar. Na primeira sessão, obteve 12 pontos, 80% de acertos. Na segunda sessão, 11 pontos, 73% de acertos. Na terceira sessão, 10 pontos, 67% de acertos. Todas as sessões foram realizadas com cinco tentativas.
Ressalta-se que a criança, por diversas oportunidades, se sentiu insegura para manipular, explorar e dar qualquer função ao brinquedo, o que demonstra confirmação nas constatações de Revuelta, Andrés, Rodríguez-Porrero e Escudero Pérez (1992), que dizem que a criança com deficiência múltipla, no caso da cegueira ser uma delas, quando na presença de um adulto, ela se sente mais segura, devido à motivação, apoio e controle sobre o meio, o que acaba fazendo com que a criança tenha atitudes diferentes em relação à interação com o brinquedo e sua forma de brincar.
Diante dos resultados obtidos neste estudo, pode-se verificar que as dificuldades encontradas pelo participante estão associadas à ausência de conhecimento e estímulos anteriores (experiência física). Manzini e Santos (2002), Basto e Gaio (2010), S. Nunes e Lomônaco (2010), Masini (2011), Lieberman (2016), Porreta (2016) evidenciam a importância dos estímulos dos sentidos remanescentes na vida da pessoa com deficiência visual, assim como as estratégias, avaliação e intervenção para o desenvolvimento (Pletsch, 2015) são fundamentais para a vida da pessoa com deficiência múltipla. Bruno (2009), Masini (2011), Kishimoto (2012) relatam a importância do contato da criança com brinquedos nas fases iniciais de vida, o que poderá dar subsídios para que, nas outras fases, ela consiga ter interação direta no meio em que vive e com oportunidades equiparadas.
4 Considerações finais
Em síntese, esses dados denotam que, na condição de linha de base, o participante não demonstrou evolução na interação com os brinquedos educativos, o que pressupõe que as limitações físicas e visuais somadas à insegurança para manter contato e ser autônomo na interação e função do brinquedo privou seu desempenho. Na condição de intervenção, o participante interagiu e atribuiu função aos brinquedos, o que evidencia que os brinquedos educativos selecionados, bem como a contação de histórias e as estratégias utilizadas foram adequadas.
Dessa forma, com relação à área da educação especial, o presente estudo pode demonstrar que o recurso por si só não foi suficiente para estimular e promover o desenvolvimento de habilidades de interação do participante. Consequentemente, somente após a utilização de estratégias (auxílios físicos e verbais), bem como o uso da contação de histórias, a interação do participante com os brinquedos educativos foi superior. O apoio oferecido no uso do recurso fez diferença na quantidade e na qualidade da interação do participante com o brinquedo educativo.
Nesse sentido, o uso dos brinquedos educativos associados à contação de histórias pode ser uma possibilidade de intervenção para pessoas com deficiências múltiplas com vistas a oferecer maior interação com o brinquedo, mas somente com a interferência direta do pesquisador/professor o treinamento pode ser considerado funcional. Sugere-se que pesquisas futuras envolvam maior número de participantes e com diferentes idades para que haja generalização dos resultados.