1 Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar uma síntese de uma pesquisa mais ampla sobre as políticas de Educação Especial no Estado de Alagoas (Pavezi, 2018a). A referida pesquisa abrangeu o período de 1990 a 2018 e objetivou analisar em que medida essas políticas têm assegurado o direito à educação para os sujeitos do público-alvo da Educação Especial (PAEE) 4, com relação ao acesso, à qualidade e às oportunidades de desenvolvimento e de aprendizagem.
A pesquisa fundamentou-se em uma perspectiva epistemológica pluralista, de forma a combinar aproximações e complementaridades da abordagem do ciclo de políticas (Ball, 1994; Bowe, Ball, & Gold, 1992), da teoria da atuação (Ball, Maguire, & Braun, 2016) e de conceitos da teoria de Pierre Bourdieu (Bourdieu, 2001, 2004a, 2007). Esse referencial teórico demandou a análise das políticas em diferentes contextos, levando em consideração as peculiaridades das dimensões contextuais que influenciam a sua tradução no contexto da prática. A pesquisa envolveu análise documental, entrevistas e observações, sendo a pesquisa de campo realizada em uma escola da Rede Estadual e outra da Rede Municipal de Ensino de Delmiro Gouveia - AL 5.
Entre as razões da escolha do estado de Alagoas e do município de Delmiro Gouveia 6 esteve o compromisso dos pesquisadores em incluir, como participantes, agentes que atuam com as políticas de Educação Especial, pois um deles exerce a docência no Ensino Superior, em cursos de formação de professores. Trata-se de um município do alto sertão alagoano, beneficiado pelo programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais - REUNI, com a oferta de Ensino Superior, público e presencial a partir de 2010 por meio da criação do Campus do Sertão da Universidade Federal de Alagoas.
Outros motivos estiveram relacionados às taxas de analfabetismo, índices educacionais e incidência de deficiência na população alagoana. As taxas de analfabetismo verificadas por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNADC, que, em 2016 7 estiveram em torno de 19,4% entre os jovens de 15 anos ou mais, e, 46,1% entre os alagoanos com mais de 60 anos, sendo as mais elevadas do Brasil.
Os índices educacionais do estado de Alagoas, do município de Delmiro Gouveia e das escolas pesquisadas, apresentados na Tabela 1, também motivaram esta pesquisa, embora não consideremos o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) a melhor forma de aferir a qualidade da Educação Básica.
Ano↓ | Anos iniciais - Ensino Fundamental | Anos finais - Ensino Fundamental | Ensino Médio8 | |||||||||
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BR | AL | DG | EE | EM | BR | AL | DG | EE | EM | BR | AL | |
2011 | 5,0 | 3,5 | 3,4 | 2,5 | 3,5 | 4,1 | 2,6 | 2,7 | 1,7 | 2,2 | 3,7 | 2,9 |
2013 | 5,2 | 3,7 | 3,5 | 3,7 | 3,7 | 4,2 | 2,8 | 3,1 | 2,2 | 3,4 | 3,7 | 3,0 |
2015 | 5,5 | 4,3 | 3,7 | 3,7 | 3,6 | 4,5 | 3,2 | 3,4 | 3,2 | 3,7 | 3,7 | 3,1 |
Fonte: Elaborada pelos autores com base no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP (2007-2015).
Legenda: Brasil (BR); Alagoas (AL); Delmiro Gouveia (DG); Escola Estadual (EE); Escola Municipal (EM).
Os dados de incidência de deficiência na população mundial, brasileira e alagoana apresentados na Tabela 2 constituíram-se em um dos principais aspectos para a definição do campo de pesquisa.
População | |||
---|---|---|---|
Grau/nível de deficiência | Mundial | Brasileira | Alagoana |
Algum tido de deficiência | 15% | 32,18% | 38,32% |
Deficiência mais significativa | 2,2 a 3,8% | 8,27% | 10,88% |
Fonte: Elaborada pelos autores com base na Organização Mundial da Saúde ([OMS], 2011) e no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística ([IBGE], 2010).
O referencial teórico, explicitado a seguir, possibilitou uma análise abrangente das políticas de Educação Especial no estado de Alagoas por compreender todos os contextos nos quais ela é produzida e atuada.
2 Referencial teórico-metodológico
Conforme já explicitado, o referencial teórico-metodológico foi constituído a partir de aproximações e complementaridades da abordagem do ciclo de políticas, da teoria da atuação 9 e de conceitos da teoria social de Pierre Bourdieu, com destaque aos conceitos de campo, habitus e poder simbólico (Bourdieu, 2001, 2004a, 2007). Esse referencial ofereceu elementos bastante satisfatórios para a análise da trajetória da política e de aspectos da sua tradução no contexto da prática.
A abordagem do ciclo de políticas é constituída por três contextos principais: contexto de influência, contexto da produção do texto e o contexto da prática 10. Em síntese, podemos afirmar que: a) contexto de influência: é o contexto em que uma política pública é iniciada, discutida e disputada por diversos grupos de interesse; b) contexto da produção do texto: é onde o discurso dominante sobre a política é representado por meio de texto político que pode assumir diversas formas como: textos legais, comentários e pronunciamentos sobre a política; e c) contexto da prática: é onde a política é colocada em ação e está sujeita à interpretação e à recriação, é onde produz efeitos e consequências (Mainardes, 2006, 2018a).
A teoria da atuação (theory of policy enactment) entende que as políticas não são meramente implementadas, mas são colocadas em ação, ou seja, são submetidas a processos de interpretação e de tradução, de acordo com dimensões contextuais variadas. As dimensões contextuais são as seguintes: a) contextos situados: localização, história, perfil; b) contextos materiais: infraestrutura, recursos financeiros; c) culturas profissionais: responsabilidade, valores, gestão; e d) contextos externos: pressões e expectativas.
A teoria social de Pierre Bourdieu considera a presença de estrutura subjacente ao social. As estruturas, as representações e as ações constituem o campo social e o habitus dos agentes, e por eles são constituídas continuamente. Os principais conceitos dessa teoria podem ser assim apresentados. Na teoria de Bourdieu, habitus é "[...] sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita que funciona como um sistema de esquemas geradores [...]" (Bourdieu, 2003, p. 125). Campo é um segmento do espaço social, um microcosmo relativamente autônomo, com leis e regras próprias, capital e objeto de interesse específico. Poder simbólico é o poder de construção da realidade mediante a construção e legitimação dos sistemas simbólicos, no campo social. O poder simbólico está presente em todos os microcosmos. No entanto, no campo social global, esse poder é exercido legitimamente pelo Estado por intermédio dos atos das instituições que o compõem, ou atos do Estado (Bourdieu, 1989a, 2001, 2004b).
A análise de políticas educacionais, nessa perspectiva, tem início antes mesmo de sua elaboração em forma de texto e segue até sua atuação nas escolas (a política em ação). Parte-se do contexto das influências globais, que, na teoria de Bourdieu (1989a), pode ser explicado a partir do conceito de poder simbólico, o qual é constituído de representações dominantes que ultrapassam as fronteiras das nações, localizando-se no campo social ou macrocosmo.
3 Metodologia
Trata-se de uma pesquisa de cunho qualitativo com foco investigativo sobre a natureza complexa e multifacetada do objeto, que nos possibilita uma análise relacional a partir dos seus determinantes históricos, sociais, econômicos, políticos e culturais. O objeto foi construído a partir da noção de campo, levando em conta que ele "[...] não está isolado de um conjunto de relações de que retira o essencial de suas propriedades" (Bourdieu, 1989b, p. 27).
Na perspectiva da sociologia reflexiva de Bourdieu, devemos manter uma vigilância constante tanto sobre o objeto quanto sobre o pesquisador, a fim de romper com o senso comum, isto é, romper com as representações pré-construídas sobre o objeto e partilhadas pelos agentes envolvidos com ele, incluindo o pesquisador (Bourdieu, 1989b).
O caráter científico da investigação é dado pelo rigor e vigilância epistemológica do pesquisador. Daí decorre a necessidade de explicitação de três elementos dos estudos epistemológicos de política educacional (EEPE): perspectiva epistemológica, posicionamento epistemológico e o enfoque epistemológico (Tello, 2012). O enfoque epismetodológico refere-se à coerência entre objetivos da pesquisa, teoria, análises e conclusões, bem como a coerência entre perspectiva epistemológica e posicionamento epistemológico (Mainardes, 2017, 2018b; Mainardes & Tello, 2016). Na pesquisa, buscou-se observar se os aspectos metodológicos da pesquisa estavam coerentes com a perspectiva e com o posicionamento epistemológico assumido.
Inicialmente, foi realizado um levantamento documental com o objetivo de recolher, analisar e interpretar as contribuições teóricas já existentes sobre o tema. Esse levantamento permitiu identificar as lacunas na pesquisa sobre a Educação Especial em Alagoas e como a pesquisa contribuiria para preencher tais lacunas (Pavezi & Mainardes, 2019a). Em seguida, foram definidos o referencial teórico e o desenho metodológico da pesquisa. Empregou-se a triangulação metodológica (Ferreira, Schimanski, & Bourguignon, 2012) a partir do uso de diferentes técnicas na coleta de dados, que, nesse caso, se deu por meio de análise documental, entrevistas semiestruturadas com 17 agentes sociais que atuam com as políticas de Educação Especial no Estado de Alagoas (gestores da Secretaria de Educação de Alagoas, gestora que atuava na Secretaria Municipal de Educação de Delmiro Gouveia, gestores escolares, professora da Sala de Recursos Multifuncionais (SRM), professores regentes e auxiliares da escola estadual e uma professora da escola municipal). Foram realizadas observações participantes na sala de aula comum, SRM e outros espaços das escolas.
Para a análise do contexto de influência, foram selecionados documentos internacionais, nacionais, estaduais e locais sobre as políticas de Educação Especial. No contexto da produção do texto, foram analisados documentos que orientaram a efetivação das políticas de Educação Especial no Estado de Alagoas, sendo produzidos ou não pelo Estado.
4 O contexto de influência
O campo social global ou macrocosmo é permeado por um conjunto de representações dominantes que ultrapassam as fronteiras das nações. Essas representações constituem o poder simbólico por serem aceitas e exercerem influência em campos específicos. O campo educacional e o campo das políticas educacionais, subcampos do campo social global embora funcionem a partir de uma lógica própria, são pressionados e tensionados pelas representações dominantes no macrocosmo. A capacidade desses subcampos em retraduzir o mundo exterior, criando respostas próprias, vão definir o grau de autonomia na atuação sobre o seu objeto. A Figura 1 a seguir apresenta os documentos internacionais e nacionais selecionados, e indica as prováveis influências daqueles sobre estes, sintetizadas na sequência.
Em linhas gerais, conclui-se que: a) as políticas de Educação Especial, a partir da década de 1990, vêm sendo construídas na perspectiva da chamada inclusão social; b) a perspectiva da essencialização continua presente nos documentos internacionais e nacionais; c) a partir da década de 1990, o campo econômico privado vem influenciando as políticas educacionais brasileiras de forma mais sistemática, principalmente por intermédio das ações do movimento Todos pela Educação (TPE) (Pavezi & Mainardes, 2018).
Percebe-se que os Atos do Estado brasileiro, no uso de seu poder simbólico legítimo, produzem as políticas educacionais e políticas de Educação Especial. No entanto, essas políticas não refletem exclusivamente os interesses do Estado, tampouco todos os interesses e as demandas da sociedade, visto que o campo global das políticas educacionais, somado ao campo econômico privado nacional, vem tendo supremacia na sua definição. Essa constatação reforça a ideia de Bourdieu (2011, 2014) quanto à ausência de autonomia plena por parte do Estado e dos campos burocrático, político e jurídico, além de indicar o forte poder do campo econômico sobre o Estado, que acaba por atuar a favor dos interesses desse campo.
Na próxima seção, apresentamos os achados que classificamos e analisamos como característicos do contexto da produção do texto no Estado de Alagoas.
5 O contexto da produção do texto
A análise do contexto da produção do texto foi desafiadora porque há poucos documentos próprios referentes à Educação Especial no Estado de Alagoas. Constatamos que as políticas de Educação Especial do Estado de Alagoas tendem a reproduzir/recontextualizar as políticas nacionais, resultando em políticas com baixa capacidade de articulação com a realidade do Estado, bem como com as necessidades dos sujeitos.
Em 1973, foi criada a Diretoria de Educação Especializada, no âmbito da Secretaria Estadual de Educação. Uma das suas funções era a coordenação da Educação Especial, mas verificamos que, somente a partir da década de 1990, o Estado passou a elaborar documentos normativos próprios. O Quadro 1 a seguir apresenta as ações da Diretoria de Educação Especializada, voltadas aos alunos do PAEE, no âmbito da Rede Estadual De Ensino de Alagoas, a partir de 1973.
Ano | Ação | Local |
---|---|---|
1973 | Atendimento ao aluno com deficiência visual. | Escola Estadual de Cegos Cyro Accioly (atual Centro Estadual de Atendimento Educacional Especializado para a pessoa com Deficiência Visual Cyro Accioly). |
Atendimento ao aluno com deficiência auditiva. | Classes especiais de três escolas estaduais, utilizando-se do método da oralização. | |
Atendimento ao aluno com deficiência mental moderada. | Classes especiais de sete escolas estaduais. | |
Atendimento ao aluno com deficiência mental severa. | Associação de Pais e Amigos do Excepcional (APAE). Associação Pestalozzi, Centro de Reabilitação de Alagoas (CREAL) e Centro de Reabilitação Helena Antipoff. |
|
1980 | Educação profissional com a implantação da oficina profissionalizante em marcenaria. | Escola Estadual de Cegos Cyro Accioly. |
2001 | Implantação do processo de Inclusão Escolar do aluno com deficiência. | Escolas das Redes públicas de ensino. |
2005 | Início da implantação de salas de recursos multifuncionais. | Escolas dasRedes públicas de ensino. |
Fonte: Adaptado a partir das informações localizadas no site da Secretaria de Estado de Educação e de Esporte de Alagoas (2015).
A seguir, apresentamos uma síntese dos documentos relacionados às políticas de Educação Especial em Alagoas:
A Lei nº 5.805, de 31 de janeiro de 1996, que instituiu a Semana Estadual da Pessoa Portadora de Deficiência, regulamenta uma ação criada pelas APAEs em 1964 11, sob a denominação de Semana Nacional do Excepcional que acontece todos os anos no período de 21 a 28 de agosto. O texto da Lei nº 5.805/1996 apresenta avanços em relação à proposta original das APAEs que era voltada apenas às ações desenvolvidas por elas mesmas, em relação às pessoas com deficiência intelectual e múltipla.
Em 1998, o governo do Estado de Alagoas foi pioneiro ao promulgar a Lei nº 6.060/1998, que reconheceu oficialmente a LIBRAS e outros recursos de expressão como meio de comunicação de uso corrente. Em nível nacional, esse reconhecimento se deu com a promulgação da Lei nº 10.436/2002.
O texto do Plano Estadual de Educação de Alagoas (PEE/AL) 2006-2015, aprovado pela Lei nº 6.757, de agosto de 2006, apontava o restrito alcance das políticas voltadas aos alunos do PAEE, indicando como responsáveis por essa situação a existência de "[...] poucas instituições de caráter não governamental [...]" (Lei nº 6.757, 2006, p. 47), ao passo que reconhecia a necessidade de ampliação e aplicação de políticas educacionais de Educação Especial.
O texto do PEE/AL em vigor, aprovado pela Lei nº 7.795, de 22 de janeiro de 2016, com vigência de 2016 a 2026, reproduz 18 das 19 estratégias propostas para a Meta 4 no PNE 2014-2024 12 e apresenta outras 14 estratégias. Os temas das 14 estratégias versam sobre: acompanhamento do cumprimento da Meta 4 e suas estratégias; disponibilização de livros adaptados para alunos com deficiência visual; contratação de profissionais habilitados em nível superior; construção e reforma de escolas visando à acessibilidade; atendimento às necessidades de comunicação alternativa e aumentativa; orientação e apoio às famílias; proposta pedagógica específica a partir da elaboração do Plano Educacional Individualizado (PEI); democratização do acesso ao Ensino Superior; promoção de campanhas e audiências públicas; formação de professores; subsídio à formulação de políticas. Duas das estratégias específicas do PEE do Estado de Alagoas nos chamaram atenção. A estratégia 4.38 afirma que o Estado deverá subsidiar a formulação de políticas "[...] que atendam as especificidades educacionais de estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação" (Lei nº 7.795, 2016, p. 19). Essa afirmação soa como um retrocesso em relação ao que o Estado havia se proposto no PEE anterior, mas não chegou a cumprir. Mais do que subsidiar, é competência do Estado elaborar, definir, produzir uma política de Educação Especial própria, respeitadas as disposições da legislação nacional. Na estratégia 4.25, o governo do Estado de Alagoas se propôs a contratar profissionais qualificados e habilitados em nível superior para atuar com as diferentes especificidades dos alunos do PAEE. No entanto, tais cargos, até o momento, não haviam sido criados. Na prática, a maior parte desses profissionais vem sendo contratados como temporários, por intermédio de seleções cujos editais ora explicitam exigências quanto à formação para atuação em algumas funções, ora omitem essa informação. Pudemos constatar essa afirmação ao confrontar o conteúdo do Edital nº 002/2015 da Secretaria de Educação de Alagoas (SEDUC/AL), no que se refere à exigência de formação e descrição das atribuições pertinentes ao cargo de auxiliar de sala com as declarações de auxiliares de sala participantes da pesquisa bem como mediante observações. Na Escola Estadual pesquisada, as auxiliares de sala eram responsáveis pelo acompanhamento individualizado a alunos do PAEE inclusos em classes comuns. No entanto, a exigência de formação de acordo com o Edital é de "Certificado ou histórico de Nível Médio em curso normal ou magistério. Certificação em cursos na área de Educação Especial (40 h)".
As Portarias nº 195, 1.325 e 12.764, emanadas da SEDUC/AL em 2016, trataram respectivamente do estabelecimento de normas para a matrícula para o ano letivo de 2016, sistemática de avaliação da aprendizagem e normas para a matrícula em 2017. Embora não sejam documentos especificamente voltados à Educação Especial, eles apresentam algumas orientações voltadas ao trato com os alunos do PAEE. Observamos que os textos dessas Portarias utilizam os termos constantes nos documentos atuais da política nacional de Educação Especial, como a Resolução nº 04/2009, o Decreto nº 7.611/2011, o PNE 2014-2024 e a Lei Brasileira de Inclusão. Demonstram um esforço no sentido de garantir o acesso, priorizando: a oferta de vagas para os alunos do PAEE; propondo adaptações em relação à avaliação e à promoção desses alunos. As Portarias nº 195/2016 e nº 12.764/2016 exigem que o candidato a uma vaga em escola da rede pública estadual declare se é pessoa com deficiência 13 e, para fins de confirmação da matrícula, apresente o laudo comprobatório da deficiência declarada. No artigo 6º, colocam as pessoas com deficiência como prioridade na distribuição de vagas. A exigência do laudo não é condição imprescindível para que o aluno do PAEE passe a receber AEE 14. No entanto, a análise que fazemos do texto da Portaria nº 195 vai no sentido de que pretendia garantir prioridade na matrícula para os alunos do PAEE mediante a comprovação da deficiência declarada. A Portaria nº 1.325/2016, ao tratar da sistemática de avaliação, apresenta como especificidade para a Educação Especial, em seu artigo 3º, § 2º, inciso III, que:
III - Educação Especial - dar-se-á mediante a avaliação pedagógica como processo dinâmico, em que prevaleçam os aspectos qualitativos e que indiquem as intervenções pedagógicas, possibilitando ao(a) professor(a) criar estratégias considerando as necessidades específicas dos(as) estudantes com deficiência/s, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, tais como ampliação do tempo para a realização dos trabalhos e o uso da Língua de Sinais, de textos em Braille, de informática ou de tecnologia assistiva como uma prática cotidiana, sendo avaliados nas competências necessárias a sua inclusão social de acordo com o parecer descritivo específico para o público da Educação Especial. (Portaria SEDUC nº 1.325, 2016, p. 3).
O registro do processo avaliativo dos alunos do PAEE inclusos também recebeu atenção nessa Portaria, ao indicar que seja feita com uso de ficha e parecer descritivo individuais. Considerando que esses alunos frequentam a SRM, o registro da avaliação do AEE deverá ser feito obrigatoriamente por meio de portfólio/dossiê, constando: relação dos alunos atendidos, frequência; Plano de Atendimento Individual (PAI); e relatos de caso. Quanto à promoção desse aluno, a Portaria nº 1.325/2016 estabelece:
Art. 14 Para o(a) estudante da Educação Especial, nos casos em que não obtiver rendimento para a promoção, o Conselho de Classe analisará cada caso e emitira Parecer Descritivo, considerando:
I - A idade, evitando gerar ou aumentar a distorção idade/escolaridade;
II - As experiências sociais vivenciadas;
III - O desenvolvimento individual ocorrido durante o ano letivo.
Parágrafo Único - Os (As) estudantes da Educação Especial deverão ser avaliados prioritariamente de forma qualitativa de modo que a ênfase não deva estar nos aspectos cognitivos, mas nas competências necessárias a sua inclusão social, mesmo que as aprendizagens básicas para a série seguinte não tenham sido alcançadas. (Portaria SEDUC nº 1.325, 2016, p. 8).
Embora, nas orientações normativas dessa Portaria esteja subentendido que todos os alunos da Educação Especial, além de estarem na sala de aula comum, vêm recebendo AEE em SRM, nossas observações atestaram que esse atendimento não está sendo garantido para todos. Portanto, as escolas estaduais do município de Delmiro Gouveia ficam impossibilitadas de atender às determinações dessa Portaria em relação a tudo que se refere ao AEE. Essa afirmação está respaldada no fato de não estar sendo ofertado AEE para nenhum dos 15 alunos do PAEE declarados no Censo Escolar de 2015 15. Destacamos que o número de alunos do PAEE é maior do que vem sendo indicado no Censo Escolar, pois as escolas só estão informando aqueles que apresentam laudo médico, o que está em desacordo com a Nota Técnica nº 04/2014 MEC/SECADI/DPEE, embora esta seja um dos subsídios legais da Portaria nº 1.325/2016. O único serviço de apoio à inclusão dos alunos do PAEE nas escolas estaduais do município de Delmiro Gouveia é a oferta de uma auxiliar de sala que acompanha exclusivamente o aluno do PAEE com laudo, mas não participa do planejamento nem da avaliação desse aluno. Outros aspectos relacionados às atribuições das auxiliares de sala são discutidos na próxima seção.
Além dos aspectos destacados, este estudo possibilitou-nos identificar como a escolarização dos alunos do PAEE vem sendo abordada nesse conjunto de documentos que normalizam a Educação Especial no Estado de Alagoas. Entre outras questões, observamos que: a) a escolarização ainda é identificada com a garantia de acesso à Educação Básica e ao AEE e, no entanto, permanece vinculado à apresentação de um laudo; b) as indicações em propiciar uma proposta pedagógica "[...] específica e acessível [...]" (Lei nº 7.795, 2016, p. 19) e estabelecer que, na avaliação escolar dos alunos do PAEE, sejam priorizadas as "[...] competências necessárias à sua inclusão social" (Portaria nº 1.325, 2016, p. 3) sugerem uma flexibilização baseada na redução do currículo e na descrença quanto à capacidade de aprendizagem desses sujeitos (Pletsch, 2014; Pletsch, Rocha, & Oliveira, 2016); c) embora prevejam o uso de tecnologias pedagógicas que promovam a aprendizagem dos alunos do PAEE, não definem como operacionalizar as parcerias para empreender pesquisas que as desenvolvam; e d) esses documentos, em sua maioria, apresentam uma preocupação mais expressiva com a prevenção das deficiências, a integração social das pessoas com deficiência e sua inserção no mercado de trabalho, em detrimento da garantia de sua aprendizagem.
6 O contexto da prática: aplicando a teoria da atuação
Nesta seção, apresentamos uma síntese das análises a partir da utilização da teoria da atuação (Ball, Maguire, & Braun, 2016). É no contexto da prática que efetivamente a política se concretiza por intermédio da ação dos agentes sociais que, influenciados por suas histórias de vida, sua realidade socioeconômica e cultural, suas possibilidades, seus recursos e suas condições objetivas, interpretam e recriam a política produzindo efeitos e consequências.
Precisamos estar atentos à falsa aparência de consciência das práticas dos agentes, que acabam se ajustando espontaneamente às necessidades do campo, o que os leva a agir a partir das estruturas incorporadas, de forma mais ou menos automática em que "[...] o agente não é por inteiro o sujeito de suas práticas" (Bourdieu, 2001, p. 169).
6.1 Contextos situados
Revelar as características dos contextos situados das escolas pesquisadas envolveu a análise de elementos que as aproximavam e diferenciavam, em relação à atuação das políticas de Educação Especial. Para compreendermos se havia e como ocorria a interferência dessas características na atuação das políticas de Educação Especial e, consequentemente, na garantia ou não do direito à educação aos alunos do PAEE, focalizamos alguns elementos, como: a) Dependência administrativa e localização geográfica em relação às autoridades educacionais; b) História e características das comunidades onde as escolas estavam inseridas; e c) Dados sobre matrículas na Educação Especial.
Verificamos limitada atuação do Estado na garantia das condições mínimas para a atuação das políticas de Educação Especial. Daí decorre que a oferta educacional é inadequada do ponto de vista da legislação, irregular do ponto de vista da formação dos agentes e limitada do ponto de vista da garantia do acesso dos alunos do PAEE ao ensino comum e ao AEE.
Nas escolas investigadas, observamos que: a) a matrícula de alunos do PAEE vinha sendo realizada, mas não atendia toda a demanda desse público; b) a oferta de AEE em SRM não contemplava todos os alunos do PAEE em razão da quantidade reduzida e da má distribuição destas salas em relação às demandas apresentadas; c) o critério da exigência do laudo para prestar o AEE, ou para garantir o acompanhamento de uma auxiliar a esses alunos, indicava que essa prática fazia parte da maneira como as políticas de Educação Especial vinham sendo atuadas nas escolas estaduais e municipais de Delmiro Gouveia.
Estas constatações estão relacionadas ao desconhecimento dos agentes escolares e pais de alunos do PAEE em relação aos direitos educacionais desses alunos, o que compromete a busca por atendimento e apoios especializados. A violência simbólica é exercida pelo Estado ao cercear o acesso ao conhecimento. Esse cerceamento ocorre principalmente pelas dificuldades de acesso da população à educação escolar e pela má qualidade da educação ofertada. O predomínio do ethos do coronelismo contribui para que os agentes sociais enxerguem, nos governantes, os provedores de todas as suas necessidades, limitando, assim, as lutas sociais.
6.2 Contextos materiais
A análise da dimensão dos contextos materiais revela as possibilidades concretas para a efetivação das políticas. Cada ente federado e cada agente do campo educacional têm sua parcela de responsabilidade na atuação das políticas de Educação Especial. A responsabilidade pelo acesso a alguns apoios, técnico e financeiro, recai sobre as gestões estadual e municipal. Constatamos um frágil engajamento das instituições e agentes, a fim de acessar recursos para garantir o direito educacional dos alunos do PAEE e sua inclusão. Isso implica nas possibilidades concretas para a efetivação das políticas de Educação Especial.
Os recursos financeiros impactam nas condições materiais das escolas. Observamos aspectos que envolvem: a) infraestrutura física das escolas; b) recursos para adaptações arquitetônicas de acessibilidade; c) recursos didático-pedagógicos de acessibilidade ao currículo. As características materiais dos contextos situados conduzem os agentes a atuar de diferentes maneiras com as políticas educacionais, a partir das possibilidades concretas que o ambiente lhes proporciona.
A análise dessa dimensão contextual possibilitou perceber as estratégias e a criatividade dos agentes que, mesmo diante da limitação de recursos materiais, colocam as políticas em ação e respondem por seus resultados.
6.3 Culturas profissionais
Nesta dimensão contextual da atuação da política, foi analisado o habitus dos agentes escolares: professores titulares, auxiliares de sala, cuidadores, professores do AEE, coordenadores pedagógicos e diretores.
O processo de colocar uma política em ação envolve sua recontextualização a partir da interpretação e da tradução, que ocorrem em diferentes instâncias. Portanto, ainda que o foco dessa dimensão tenha sido o contexto escolar, abordamos as interpretações e as traduções de agentes que atuavam em outras instâncias do campo Educacional e do campo da Política Educacional.
Analisamos os elementos da cultura profissional considerados mais significativos para a compreensão do objeto. Um dos elementos analisados foi a representação dos agentes em relação à responsabilidade pela inclusão. O nível de responsabilidade que os agentes escolares atribuem à posição que ocupam no campo educacional interfere na maneira como traduzem e como atuam com as políticas de Educação Especial.
A permanência da cultura personalista, em que o prefeito é indicado como responsável maior em relação à inclusão, é um fator de forte influência sobre a ação dos agentes. Sendo o prefeito um representante do Estado, exerce com legitimidade o poder e a violência simbólicos. A visão de mundo legitimada pelas instituições e agentes do Estado, em Alagoas, nos parece mais autoritária e menos democrática, dadas às características sociais e culturais da sociedade local.
Essa limitação, nos processos democráticos, está presente nas escolas. A ausência de eleição para a definição do cargo de direção é um mecanismo que reforça a função conservadora da escola. O diretor exerce a violência simbólica específica do campo educacional e, ao ser indicado, tende a representar os interesses do Estado. Essa situação aponta a supremacia do campo do poder simbólico (Estado) sobre o campo educacional. Portanto, entendemos que o nível de autonomia na gestão escolar é limitado, o que interfere negativamente na atuação das políticas de Educação Especial.
No que se refere à presença do aluno do PAEE nas escolas, identificamos duplo processo de exclusão no contexto pesquisado. De um lado, aqueles que não estão no sistema de ensino, seja porque a família não busca a vaga, seja por abandono ou desistência, seja por encontrarem-se hospitalizados ou acamados em suas residências. Esses alunos autoeliminam-se e deixam de disputar uma nova posição no campo social, por não acessarem o capital cultural. Por outro lado, percebemos a exclusão daqueles que permanecem no sistema de ensino e sofrem os efeitos de um processo de marginalização por dentro (Bourdieu & Champagne, 2001). Tanto na situação de desistência bem como na marginalização por dentro, os alunos do PAEE não se autoeliminam do campo educacional espontaneamente, mas são levados a isso em decorrência do caráter seletivo e excludente da escola (Bourdieu & Passeron, 1975). Para aqueles que permanecem no sistema de ensino, a eliminação é apenas adiada.
Identificamos diversos fatores que evidenciam essa exclusão operada no interior das escolas, como: 1) oferta insuficiente e inadequada de serviços de apoio à inclusão (ausência de intérprete de LIBRAS, insuficiência na oferta de AEE, profissionais contratados temporariamente e sem capacitação adequada, falhas nas adaptações arquitetônicas); 2) promoção automática dos alunos do PAEE para as etapas seguintes da escolarização desvinculada da aprendizagem; 3) isolamento dos alunos do PAEE e dos profissionais que atuam com eles dentro da escola, como se fossem um corpo estranho ao ambiente da escola comum. Esses fatores, associados a outras características contextuais e ao habitus dos agentes escolares, concorrem para a eliminação desses sujeitos do campo educacional, bem como para a demonstração da complexidade da inclusão nas escolas regulares.
6.4 Contextos externos
Elementos dos contextos externos exercem pressão e influências nas maneiras como os agentes escolares atuam com as políticas educacionais. Analisamos os seguintes elementos dos contextos externos: a) o ponto de vista dos agentes pesquisados quanto à imagem da escola junto à comunidade local e às autoridades educacionais; b) a relevância ou não do IDEB nas práticas educacionais; c) as políticas de apoio à gestão escolar oferecidas pela SEDUC/AL, 11ª Gerência Regional de Educação (GERE) e Secretaria Municipal de Educação (SEMED) de Delmiro Gouveia, a fim de favorecer a inclusão; e d) expectativas dos agentes envolvidos na pesquisa, e seu ponto de vista sobre a expectativa dos pais, em relação aos alunos do PAEE.
Constatamos que a reputação e as relações da escola com as autoridades educacionais exercem influência na atuação das políticas. Essas relações estão muito marcadas pelo compadrio e pela troca de favores, em vez de se basearem na legalidade. Isso implica diferenciação na destinação de recursos e no recrutamento e capacitação de pessoal.
No contexto pesquisado, identificamos certa despreocupação com as avaliações em larga escala e resultados do IDEB. A presença dos alunos do PAEE não era fator de preocupação em relação ao IDEB. Consideramos que essa despreocupação está relacionada às condições objetivas do campo social, que dispõem de poucas oportunidades de trabalho e continuidade da escolarização. Nesse sentido, a escola pode estar contribuindo para a reprodução da estrutura vigente e sua função parece assentar-se em um certo determinismo e fatalismo.
Constatamos a inexistência de políticas permanentes de apoio às escolas, a fim de que se constituam em ambientes inclusivos. Verificamos que são aplicadas medidas emergenciais diante do surgimento da demanda, ou seja, as políticas de Educação Especial são atuadas com base no improviso. A exigência do laudo cria um fôlego para as secretarias, tanto no sentido financeiro quanto no que se refere ao recrutamento de pessoal. O fato, da quase totalidade dos agentes da Educação Especial serem contratados temporariamente, causa descontinuidade e economia dos serviços de apoio e implica diretamente na adaptação dos alunos do PAEE.
Ainda que de forma improvisada, os agentes escolares atuam com as políticas de Educação Especial. Essa atuação é influenciada pelas expectativas que nutrem em relação aos efeitos da escolarização para os alunos do PAEE. A implicação dessas expectativas pode manifestar-se na redução das aspirações desses alunos em relação ao seu próprio desempenho/sucesso na escola, como um ajustamento dos seus desejos às suas possibilidades de realização (Bourdieu & Passeron, 1975).
7 Considerações finais
Diante do exposto, argumentamos que a educação ofertada aos alunos do PAEE nas escolas públicas alagoanas pesquisadas configura-se como um atendimento limitado com relação ao acesso, à qualidade e às oportunidades de desenvolvimento e de aprendizagem. Nesse sentido, trata-se de uma oferta educacional que não tem garantido o direito à educação para a totalidade dos sujeitos, dificultando o seu desenvolvimento máximo possível.
Entendemos que é necessário confrontar o Estado e reivindicar direitos, pois os Atos do Estado muitas vezes são pontuais e, em muitos casos, não correspondem às determinações legais. É importante destacarmos que cada ente federado e cada agente do campo educacional tem sua parcela de responsabilidade na atuação das políticas de Educação Especial.
Embora as políticas de Educação Especial vigentes apresentem fragilidades, são instrumentos que asseguram o direito educacional aos alunos do PAEE. Contudo, ainda não vêm exercendo os efeitos proclamados no contexto desta e de outras pesquisas citadas. Isso decorre do fato de que as políticas são pensadas para os melhores contextos possíveis, sem levar em conta as condições objetivas das realidades particulares (Ball, Maguire, & Braun, 2016).
Acreditamos na possibilidade de superação da condição observada. Essa crença assenta-se no reconhecimento da luta de classes pela dominação simbólica e na plasticidade do habitus. Considerando que dominados e dominantes possuem os mesmos instrumentos para conhecer e compreender o mundo social, o que leva à naturalização das relações de poder vigentes, faz-se necessária a tomada de consciência crítica da condição de dominação. Bourdieu (1999) alerta que a consciência e a boa vontade não bastam para superar uma situação de dominação. A transgressão e a ruptura de uma fronteira social poderão ter efeito libertador por fazer advir o impensável. Acreditamos que a construção e a disseminação do conhecimento podem ser os desencadeadores da crise necessária para a revolução simbólica bem-sucedida.