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Revista Brasileira de Educação Especial

versão impressa ISSN 1413-6538versão On-line ISSN 1980-5470

Rev. bras. educ. espec. vol.26 no.2 Marília abr./jun 2020  Epub 11-Maio-2020

https://doi.org/10.1590/s1413-65382620000100009 

Relato de Pesquisa

Formação de Professores das Salas de Recursos Multifuncionais e Atuação com a Diversidade do Público-Alvo da Educação Especial1,2

Anna Augusta Sampaio de OLIVEIRA3 
http://orcid.org/0000-0002-8675-967X

Rosângela Gavioli PRIETO4 
http://orcid.org/0000-0003-4013-1163

3Livre-docente em Educação Especial, Departamento de Educação Especial, Faculdade de Filosofia e Ciências - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) - campus de Marília. Marília/São Paulo/Brasil. E-mail: anna.augusta@unesp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8675-967X

4Doutora em Educação, Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação, Faculdade de Educação - Universidade de São Paulo (USP). São Paulo/Brasil. E-mail: rosangel@usp.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4013-1163


RESUMO:

As mudanças implementadas no Brasil, relacionadas à Educação Inclusiva e ao Atendimento Educacional Especializado (AEE), têm efeitos substanciais na atuação das(os) professora(es) em Sala de Recursos Multifuncionais (SRM), uma vez que passa a ser exigido o trabalho com todas as categorias do público-alvo da Educação Especial. Assim, esta pesquisa teve como objetivo analisar a formação e a atuação das(os) professoras(es) das SRM da Rede Municipal de Ensino de São Paulo. Como procedimento de coleta de dados, foi usado um questionário eletrônico por meio do Google Docs, o qual foi enviado para 400 professoras(es) dessas salas, dos quais foi obtida a devolutiva de 179 (45%). Após a coleta, os dados foram analisados por meio do Software Atlas.ti 8.4-14 for Windows. Os resultados indicaram que 150 professoras(es) (84%) não se sentem capacitadas(os) para atuação com todas as categorias do público-alvo da Educação Especial e 29 (16%) afirmaram que sim. Como complementação, foi solicitado às(aos) professoras(es) que comentassem suas respostas. Das(os) 179 respondentes, 81 (45%) apresentaram justificativas relacionadas à sua experiência de trabalho nas áreas de sua formação; 61 (34%) referiu-se à necessidade de aperfeiçoamento profissional; 28 (16%) comentaram que possuem formação apenas em uma ou poucas das categorias que atuavam; 5 (3%) remeteram à sua experiência de trabalho; e 4 (2%), à intersetoriedade. A análise dos dados permite afirmar que há distanciamento significativo entre a formação e a atuação com toda a diversidade do público-alvo da Educação Especial, de modo a interpor dificuldades substanciais à prática pedagógica.

PALAVRAS-CHAVE: Educação Especial; Educação Inclusiva; Formação de professoras(es)

ABSTRACT:

The changes implemented in Brazil related to inclusive education and Specialized Educational Service (SES) have substantial effects on teacher performance in Multifunctional Resource Rooms (SRM), as it is now necessary to work with all categories of the target population of Special Education. Thus, this research aimed to analyze the training and enactment of teachers of the Municipal Education Network of São Paulo. As a data collection procedure, an electronic questionnaire was used through Google Docs, sent to 400 teachers of these classrooms, from which we obtained a return of 179 (45%). After the collection, data were analyzed through Atlas.ti 8.4-14 Software for Windows. The results indicated that 150 teachers (84%) did not feel able to work with all categories of the target population of Special Education and 29 (16%) said they did. In addition, teachers were invited to comment on their responses and of the 179 respondents, 81 (45%) provided justifications related to their work experience in their training areas, 61 (34%) mentioned the need for professional improvement, 28 (16%) commented that they have training in only one or a few of the categories they worked with, 5 (3%) referred to their work experience and 4 (2%) referred to intersectority. The analysis of the data allows us to affirm that there is a significant distance between training and enactment with all the diversity of the target population of Special Education, bringing substantial difficulties to the pedagogical practice.

KEYWORDS: Special Education; Inclusive education; Teacher training

1 Introdução

O direito de todos à educação escolar e ao atendimento educacional especializado (AEE) - prescrito na Constituição Federal de 1988, e, posteriormente, as mudanças implementadas no país com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996), além dos documentos promulgados nos anos 2000, como a publicação das Diretrizes Nacionais da Educação Especial na Educação Básica, por meio da Resolução CNE/CP nº 2, de 11 de setembro de 2001, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI) de 2008, as Diretrizes Operacionais para o Atendimento Educacional Especializado (Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009), entre outros -, trazem implicações na organização dos serviços de apoio pedagógicos especializados, compreendidos como AEE. Estes são quase que exclusivamente ofertados em salas de recursos multifuncionais (SRM), em uma compreensão simplista sobre as diferentes necessidades do público-alvo da Educação Especial (PAEE) e apontado por Mendes e Malheiros (2012) como um serviço de “tamanho único”, ou seja, um único modelo de apoio especializado.

A organização dos serviços especializados de apoio, preferencialmente na forma de SRM, trouxe consigo a interpretação de que seu regente deva ser um professor multicategorial - aquele que deve atuar com todas as categorias expressas no conceito de PAEE. A Resolução nº 4/2009, que instituiu as diretrizes operacionais para o AEE, em seu artigo 13, ao definir as atribuições do professor do AEE, em seu inciso I, orienta que lhe cabe a tarefa de “identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recursos pedagógicos, de acessibilidade e estratégias considerando as necessidades específicas dos alunos público-alvo da Educação Especial” (p. 3), reafirmando uma interpretação sobre a atuação com toda a diversidade do PAEE.

O Manual de Orientação: Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais (2010), que teve como objetivo disponibilizar equipamentos, mobiliários e materiais pedagógicos, entre outras orientações, aponta a possibilidade de constituição de dois tipos de SRM - a I e a II -, sendo a II constituída de recursos próprios para estudantes cegos ou com baixa visão. Isso poderia levar a uma interpretação sobre a necessidade de diferenciar o atendimento a determinadas condições desses estudantes, o que, de certa forma, caracteriza a sala ser multifuncional, ou seja, ter recursos diversos e uma formação mais específica para atuar, por exemplo, na área da deficiência visual. Contudo, na prática, o professor especializado passar a ter atribuição de atuar com toda a diversidade das diferentes categorias que compõem o PAEE: os com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação e, além disso, obviamente, a diversidade interna de cada categoria.

Essa parece ser a tônica da formação e da atuação do professor do AEE, talvez por uma relação entre SRM e atuação multicategorial ou pela interpretação do disposto nas diretrizes que remetem à ideia de planejamento com foco nas necessidades do PAEE. Por um lado, embora não esteja explícito, parece-nos que a legislação acaba por conduzir a essa visão mais genérica da função a ser exercida por esse profissional. Por outro lado, as proposições de cursos realizados pelo Ministério da Educação (MEC) e as orientações da própria equipe assessora que colaborou no delineamento do AEE esclarecem que:

A primeira estruturação que ocorre nessa formação parte da compreensão de que o professor do AEE não é um especialista em uma dada deficiência. Seu objetivo é conhecer o aluno, identificar suas possibilidades e necessidades, traçar um plano de AEE para que possa organizar os serviços, as estratégias e os recursos de acessibilidade. (Machado, 2011, p. 5).

Assim, podemos concluir que houve uma condução institucional e oficial do MEC para uma formação e atuação com toda a diversidade do PAEE, apesar de não termos dispositivos legais que impeçam municípios de adotar outro tipo de organização. Entretanto, além de regulamentações específicas para Educação Inclusiva e Educação Especial, a publicação das Diretrizes Nacionais para os Cursos de Graduação em Pedagogia (Resolução CNE/CP nº 1, de 15 de maio de 2006), entre outras providências, estabelece a extinção das habilitações e, como consequência, extingue a formação em Educação Especial que ocorria de forma majoritária no Brasil desde a década de 1970 (Oliveira & Mendes, 2017). Isso traz implicações significativas para pensarmos em como formar, então, professores para a atuação no AEE, no modelo de SRM, contribuindo para a consolidação da ideia de uma formação e atuação multicategorial, impulsionada, inclusive pelas proposições dos cursos de Formação em AEE, promovidos pela própria Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC).

Apesar de proposições oficiais de cursos de formação de professores para o AEE, não foi observada a constituição de uma política de formação de professores especializados. Oliveira (2009) já questionava sobre essa ausência de diretrizes e sobre a necessidade de regulamentação nacional para o estabelecimento de critérios orientadores da formação em Educação Especial e um sistema de avaliação e de acompanhamento no que se refere à estrutura, à organização e à proposta pedagógica das proposições de cursos que pudessem garantir a especificidade de uma formação consistente a partir das novas indicações prescritas em normativas da educação nacional.

No entanto, na atualidade, ainda observamos ausência de diretrizes nacionais para a formação desse professor nesse novo cenário educacional - de educação inclusiva e de AEE - para atuar com as necessidades do PAEE e oferecer-lhes respostas educacionais específicas, como: tecnologia assistiva, organização e sistematização de procedimentos de ensino estruturados para apoio à aprendizagem, estratégias diversificadas para orientar a interação social recíproca na área do Transtorno do Espectro Autista, o desenvolvimento interfuncional das funções psíquicas e o enriquecimento curricular, entre outros (Barroco, 2012; Bersch, 2017; Educação Especial: Manual de apoio à prática, 2008; Galvão Filho, 2009; Hogan & Hogan, 2007; Renzulli, 2014).

Vários autores (Hora & Miranda, 2017; Oliveira & Mendes, 2017; Oliveira, 2019; Otalara & Dall’acqua, 2016; Pagnez, Prieto, & Sofiato, 2015; Silva, Miranda, & Borda, 2017) vêm se dedicando ao estudo sobre a formação dos professores especializados, uma vez que sua atuação em SRM muda substancialmente e possui novas características, desde a extensão de suas atribuições com todas as categorias do PAEE, a organização de estratégias, orientação e acompanhamento para o uso de recursos de acessibilidade na classe comum e/ou na escola, articulação com os outros professores, com a escola, a família, entre outras. Mendes (2009) aponta que os professores apresentam dúvidas sobre como organizar um ensino diferenciado, alguns deles demonstram “incerteza sobre o que seria correto: igualar ou diferenciar [levando à percepção de] que havia pouca compreensão do conceito de equiparação de condições de ensino” (p. 29).

Os desenhos de formação em Educação Especial ou para atuar no AEE (Jesus & Borges, 2018) parecem não estar dando conta de consolidar conhecimentos específicos que orientem a ação do professor que atua na SRM com a diversidade de características dos estudantes PAEE. Esse foi um ponto de nossa investigação, cujo objetivo foi analisar a formação e atuação dos professores dessas salas da Rede Municipal de Ensino de São Paulo (RME-SP). A pergunta de pesquisa que orientou nossa investigação foi: Quais argumentos são utilizados pelas(os) professoras(es) que avaliam ter formação para atuar junto a todas as categorias do PAEE e quais justificativas são utilizadas para afirmar o contrário? Nosso foco foi a atuação em SRM, uma vez que o município de São Paulo possui outras propostas de AEE.

2 A organização do AEE no município de São Paulo

A Secretaria Municipal de Educação (SME-SP), devido à sua dimensão e para melhor operacionalização de suas ações, organiza-se por meio de 13 Diretorias Regionais de Educação (DRE), encontrando-se, em cada uma delas, um Centro de Formação e Apoio à Inclusão (CEFAI), o qual é responsável, entre outras atribuições, pela formação dos professores de AEE (Portaria nº 8.764, de 23 de dezembro de 2016). O CEFAI é composto de um coordenador e de Professores de Acompanhamento e Apoio à Inclusão (PAAI) das diferentes áreas das deficiências5, os quais também exercem função itinerante e possuem a atribuição de atuação conjunta aos professores da classe comum e aos outros profissionais da escola para colaborar na organização das práticas relacionadas ao atendimento às necessidades educacionais especiais do PAEE.

A Política Paulistana de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva, estabelecida pelo Decreto nº 57.379, de 13 de outubro de 2016, e pela Portaria nº 8.764, de 23 de dezembro de 2016, define o público-alvo a ser atendido, aspectos referentes à matrícula e à escolarização; esclarece a estrutura e a organização dos serviços de Educação Especial, assim como os responsáveis pela sua execução e pelo seu acompanhamento, mantendo um CEFAI em cada regional; e estabelece a atuação itinerante realizada pelos PAAIS e as SRM regidas por professores com formação em Educação Especial, responsáveis pela organização e pela oferta do AEE nas unidades educacionais.

O Decreto nº 57.379/2016 define, no artigo 5º, o AEE como “o conjunto de atividades e recursos pedagógicos e de acessibilidade organizados institucionalmente, prestado em caráter complementar ou suplementar às atividades escolares, destinado ao público-alvo da Educação Especial que dele necessite”; define sua função como disposto na Política Nacional; estabelece a articulação dos educadores da escola com os professores do AEE; e aponta que “a oferta do AEE dar-se-á nos diferentes tempos e espaços educativos, sob as seguintes formas: I - no contraturno; II - por meio de trabalho itinerante; III - por meio de trabalho colaborativo”.

No artigo 9º da Portaria nº 8.764/2016, há o esclarecimento de que o AEE no contraturno escolar será realizado em SRM, não substitutivo à matrícula e à frequência do PAEE em classes comuns. O documento estabelece, portanto, seu caráter complementar ou suplementar, tal como definido na PNEEPEI (2008). Esse serviço em SRM poderá ser estendido a estudantes matriculados em escolas da região e a atuação será exercida pelo professor do AEE.

Embora essa forma de organização tenha sido prevista pelos documentos (Decreto nº 57.379/2016 e Portaria nº 8.764/2016), não há esclarecimentos ou definição clara de critérios diferenciadores e funcionamento de cada um deles, o que poderia permitir uma melhor orientação às regionais sobre sua exequibilidade, encontrando-se, na Portaria, a seguinte descrição:

  1. colaborativo: desenvolvido dentro do turno, articulado com profissionais de todas as áreas do conhecimento, em todos os tempos e espaços educativos, assegurando atendimento das especificidades de cada educando e educanda, expressas no Plano de AEE, por meio de acompanhamento sistemático do público-alvo da educação especial.

  2. contraturno: atendimento às especificidades de cada educando e educanda, expressas no Plano de AEE, no contraturno escolar, realizado pelo PAEE, na própria U.E, em U.E do entorno ou em Centro de Atendimento Educacional Especializado - CAEE em Instituição de Educação Especial conveniada com a SME.

  3. Itinerante: dentro do turno, de forma articulada e colaborativa com professores da turma, a Equipe Gestora, o PAAI e demais profissionais, assegurando atendimento às especificidades de cada educando e educanda, expressas no Plano de AEE. (Portaria nº 8.764/2016).

É possível observar uma tentativa de diferenciar e pontuar aspectos específicos na organização dos tipos de AEE, porém, da forma como está descrito, não nos permite ter clareza de como executar, de forma equivalente nas diferentes regiões paulistanas, a proposição prescrita em termos do delineamento da política municipal, particularmente em relação ao AEE colaborativo e itinerante, posto o contraturno ser a marca da prática dos professores especializados vinculados às SRM. Contudo, as atividades próprias do AEE são definidas no artigo 22, em total conformidade com a PNEEPEI (2008), como o ensino do Braille, Soroban6, orientação e mobilidade; desenvolvimento da autonomia, da independência e dos processos mentais; ensino de Língua Brasileira de Sinais (Libras) e da Língua Portuguesa escrita como segunda língua; comunicação alternativa e aumentativa; informática acessível e tecnologia assistiva; e enriquecimento curricular.

A Portaria nº 8.764/2016 é bastante extensa, contando com 100 artigos, distribuídos nos diferentes assuntos que, conjugados, compõem as diretrizes políticas do município, as quais estão distribuídas da forma mostrada na Figura 1.

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Figura 1 Distribuição de artigos na Portaria nº 8.764/2016 em percentuais.Legenda: EE: Educação Especial; AEE: Atendimento Educacional Especializado. 

Na visualização do gráfico, destaca-se o conjunto de dispositivos referentes à educação de surdos, conferindo maior consolidação na organização dessa área, por meio das escolas bilíngues, classes bilíngues em escolas polos e em classes comuns, com acesso ao AEE em suas três formas de organização. Nesses três diferentes serviços, a orientação bilíngue requer investimentos em políticas de formação de professores para que seja assegurada ao surdo a aquisição da Libras e da Língua Portuguesa na modalidade escrita como primeira e segunda línguas, respectivamente.

No item sobre o AEE, com 29% dos 100 artigos da Portaria, concentram-se vários aspectos, desde a informação sobre organização, avaliação, encaminhamento, tipos de AEE, formação e atribuição de professores para atuação nas diferentes possibilidades de oferta do AEE. Nos outros itens, com 12% e 9%, os artigos relacionam-se aos serviços de educação especial e os de apoio, respectivamente, nos quais constam orientações e especificações sobre os serviços referidos.

Podemos afirmar, com base em Oliveira e Drago (2012), que “a trajetória em educação especial, na rede municipal de ensino de São Paulo, tem atuado na busca de um crescimento significativo das ações político-administrativas” (p. 352) e que há avanços na promulgação de leis, as quais podem impulsionar a constituição de processos inclusivos e respostas mais adequadas as necessidades do PAEE, apesar da dificuldade de execução dos serviços nos termos preconizados na lei. Nesse sentido, justifica-se um estudo que busque explorar a exequibilidade das ações de Educação Especial, no caso, do AEE contraturno (SRM), tendo como referência a narrativa do próprio professor especializado que atua nesse espaço.

3 Procedimentos metodológicos

Foram convidados a participarem do estudo 400 professoras(es) do AEE, atuantes nas SRM das 13 Diretorias Regionais de Educação da Rede Municipal de Ensino de São Paulo, o que correspondia à 95% da totalidade de 421 professoras(es), uma vez que foram excluídos 21 deles cujos endereços eletrônicos não foram localizados e, mesmo com nossa insistência, não foram corrigidos ou atualizados para que pudéssemos realizar o contato para convite à participação na pesquisa. Esse levantamento foi realizado por meio de contato com as coordenadoras do CEFAI, após a autorização para a pesquisa por parte da SME-SP. Assim, foram efetivados os envios de 400 convites para participação na pesquisa e obtivemos devolutiva de 179 (45%) professoras(es) respondentes, consideradas todas as diretorias regionais.

Para a coleta de dados, foi aplicado um questionário eletrônico, elaborado com a ferramenta Google Docs, junto aos professores das SRM. O envio foi realizado por meio de mensagem eletrônica em que constavam os e-mails das(os) professoras(es) agrupados por regional e o acompanhamento das respostas foi realizado constantemente, por um período de três meses, o que permitiu a ampliação paulatina da participação das(os) professoras(es).

O questionário gerou respostas de múltipla escolha e descritivas. As de múltipla escolha foram exportadas para o Excel e permitiram a geração de gráficos pelo próprio programa Google, e as descritivas foram exportadas para o software Atlas.ti. Realizamos, então, a organização dos dados com as ferramentas disponíveis no próprio software, as quais nos permitiram a composição de categorias analíticas, conforme Quadro 1.

Quadro 1 Categorias de análise sobre formação e atuação do professor da SRM 

Categorias Definição
Especificidade das áreas Destacam as especificidades de cada uma das categorias do PAEE.
Aperfeiçoamento Profissional Destacam a necessidade de aperfeiçoamento formativo nas áreas específicas do PAEE a ser atendido na SRM.
Formação Destacam que possuem formação na(s) área(s) que atuam.
Experiência de trabalho Destacam a experiência como forma de prepará-los para a atuação com todo o PAEE.
Intersetorialidade Destacam a necessidade ou a ausência de atuação com outros setores.

Fonte: Elaborado pelas autoras

Essas categorias foram construídas na tentativa de diferenciarmos e refinarmos os comentários das(os) professoras(es). Contudo, há comunicabilidade entre elas, mas buscamos considerar, em cada narrativa utilizada como ilustrativa, qual aspecto se destacava em suas justificativas.

4 Resultados7

Ao considerarmos nosso objetivo de analisar a relação entre formação e atuação do professor da SRM da RME-SP, a qual exerce uma das formas de organização do AEE, o atendimento da(o) estudante em contraturno, frente à proposição de educação inclusiva, em nosso questionário, organizamos uma seção de perguntas sobre a formação e a atuação do professor do AEE, com uma introdução que apontava o seguinte:

A Portaria nº 8.764/2016, em seu artigo 43, define as atribuições do Professor do AEE e estabelece que sua atuação envolve todos educandos e educandas público-alvo da Educação Especial, ou seja, aqueles (as) com deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação. (Oliveira, 2018a, p. 7).

Em face a essa afirmação, perguntamos às(aos) professoras(es) respondentes: “Você se considera com formação/preparação para atuar em todas as áreas referentes ao público-alvo da educação especial (deficiência, TGD e altas habilidades/superdotação)?” (Oliveira, 2018a, p. 7). As respostas indicaram que 150 delas(es) (84%) responderam que não se sentiam preparadas(os) e 29 (16%) afirmaram que sim, o que evidencia uma problemática em relação à formação e à atuação do professor da SRM com todas as categorias. Como complementação, foi solicitado a todas(os) professoras(es) que comentassem suas respostas, tanto as(os) que responderam positivamente como as(os) que responderam negativamente em relação à preparação para o exercício do trabalho com todo o PAEE.

Das(os) 179 respondentes, 81 (45%) apresentaram justificativas em relação à preparação para o trabalho com todo o público-alvo da Educação Especial, devido à sua experiência de trabalho com todas as áreas, 61 (34%) referiu-se à necessidade de aperfeiçoamento profissional, ou seja, de ampliar áreas de sua formação, 28 (16%) comentaram que possuíam formação nas áreas ou nas categorias com as quais atuavam, 5 (3%) remeteram à sua experiência de trabalho como forma de se tornar capaz de atuar com toda a diversidade do PAEE e 4 (2%) apontaram a ausência de intersetorialidade na atuação e a necessidade de parcerias com a área da saúde como forma de possibilitar troca de conhecimento e orientações para atuação com todo o PAEE. Na Figura 2, podemos observar graficamente o panorama das justificativas dos professores em relação às suas respostas sobre preparação/formação para atuar com toda a diversidade do PAEE, conforme exigências estabelecidas na legislação nacional e paulistana.

Fonte: Elaborada pelas autoras.

Figura 2 Formação e atuação com toda a diversidade do PAEE. 

Oitenta e um (45%) professores justificam que suas dificuldades de atuação com toda a diversidade do PAEE se relacionam às diferentes especificidades de cada uma das áreas ou categorias desse público, as quais são complexas e exigem competências variadas para responder adequadamente às necessidades de cada um desses estudantes. A título de exemplificação, transcrevemos algumas de suas respostas:

Por mais que busque sempre me especializar e fazer cursos não sou multifuncional nem acredito que um dia serei. Posso ter conhecimentos básicos sobre as diferentes áreas, mas não sei sobre tudo. TGD, por exemplo, é uma área com diferentes estudos e abordagens. (P09)8.

A formação do AEE que tive foi com aprofundamento em surdez. Quando fiz o curso tive aprofundamento em surdez. mesmo assim foram necessários mais seis anos de cursos específicos para compreender melhor Libras e a cultura surda. Assim sendo, outras áreas como deficiências visuais e intelectuais foram apenas vistas de relance. (P26).

O âmbito da Educação Especial é muito amplo e não me considero apta, pois me especializei na área de deficiência intelectual. Não sei Braille e nem Libras, o que dificultaria o atendimento desses alunos. (P113).

Ainda me sinto despreparada para trabalhar com deficiência auditiva, visual e múltipla. Apesar de ter obtido uma ótima formação em Educação Especial, acho necessário e urgente formação contínua nessa área. (P175).

Como podemos observar, os professores relatam ter consciência das especificidades das áreas como uma questão da maior importância, pois, se não há o conhecimento sobre como identificar e eliminar ou reduzir as barreiras de aprendizagem, como realizar um trabalho pedagógico adequado e que atenda às necessidades do PAEE? Muitos deles mencionaram, principalmente, a falta de conhecimento de Libras e Braille como também não ter conhecimento sobre a área de AH/SD, ou da deficiência múltipla.

Ao comentar sobre suas dificuldades em lidar com toda a diversidade do PAEE, 61 (34%) professoras (es) afirmaram que, embora tinham formação e experiência de trabalho em algumas das áreas, ainda sentiam necessidade de aperfeiçoamento profissional para adequar a formação de forma a responder às necessidades específicas dos PAEE. As(os) professoras(es) colocam em si mesmas(os) a responsabilidade em buscar aperfeiçoamento para realizar sua atividade didática a contento, o que, seguramente, também faz parte do movimento de formação permanente daquela(es) que atuam na área da educação. Contudo, essa ação profissional individual não desonera as redes de ensino de sua obrigação com a garantia de formação continuada aos profissionais da educação, conforme estabelecido pela LDB, em seu artigo 62, parágrafo único (Lei nº 9.394/1996).

Nessa direção, a RME-SP tem se revelado como uma rede que tem buscado possibilitar às(aos) suas(seus) professoras(es) esse aperfeiçoamento, por meio de proposição de cursos promovidos pela própria SME-SP, a partir da Divisão de Educação Especial, ou mesmo pelos CEFAI. A despeito desse quadro, seguem buscando aperfeiçoamento profissional. Os comentários dos participantes da pesquisa giram em torno dos seguintes argumentos:

Além da pós-graduação, procuro participar de toda formação oferecida pela SME e cursos relacionados às deficiências de meus alunos. (P06).

Apesar da minha formação ser específica em AH/SD, faço cursos nas demais áreas e procuro informações para dar conta das demandas referentes ao trabalho que desenvolvo na escola. (P66).

Acho que temos que aprender sempre mais, adquirindo conhecimentos e experiências. Não conhecemos tudo sobre todas as deficiências. (P135).

Sem dúvida não podemos deixar de descartar o movimento pessoal de cada professor(a) para que se torne cada vez mais competente. Isso exige estudo e esforço no plano pessoal, além de competência e de criatividade para buscar recursos e estratégias que sejam condizentes com as características de aprendizagem de cada estudante. Além disso, não podemos esquecer que mesmo estudantes de condições semelhantes apresentam necessidades diferentes, porque não é a circunstância individual em si que determina o trabalho pedagógico, mas as suas implicações para um ensino que garanta a aprendizagem. Importante destacarmos que a própria jornada de trabalho do professor na RME-SP (Lei nº 14.660, de 26 de dezembro de 2007) prevê reuniões coletivas de formação, as quais visam a possibilitar o aperfeiçoamento de sua formação e, como consequência, pode incluir temática que crie condições de aprimorar a sua atuação com toda a diversidade que compõe o PAEE.

Ao comentarem os motivos pelos quais não se sentem preparadas(os) para atuar com toda a diversidade do PAEE, 28 (16%) delas(es) remeteram seus comentários à própria formação, ou seja, se especializaram em determinada categoria e, na prática, se veem frente a outras situações que iriam exigir conhecimento não adquirido no curso de formação inicialmente realizado, alguns em Educação Especial, de forma geral, outros em uma categoria específica do PAEE. Como exemplificação, citamos algumas das respostas:

As especializações na área de Educação Especial são específicas a uma determinada área de atuação. Apesar da minha atuação profissional estar pautada na eliminação de barreiras, percebo que a qualidade do AEE é elevada quando atuo na área a qual fiz a especialização, porque consigo visualizar os instrumentos necessários para o acesso à sala de aula comum com maior rapidez e a sua confecção. (P31).

Minha pós-graduação na época foi voltada à deficiência intelectual, portanto leituras e estágios foram realizados com esse público-alvo, além de ter exercido docência em escola especial para deficiência intelectual. (P70).

Fiz duas pós-graduações voltadas à surdez, por isso me sinto mais preparada para trabalhar com o Surdo. (P81).

A base da minha formação é em deficiência intelectual e transtornos globais. Para atuar em todas as áreas, faz-se necessária formações específicas de cada área de atuação. (P120).

Não tenho formação para AH e sinto falta de maior preparo para trabalhar com os alunos com TGD. (P144).

Observamos que as(os) professoras(es) se remetem à sua formação e à busca para aprender mais; entretanto, vale destacarmos a fala do professor P31, que pondera realizar sua atuação com foco na eliminação de barreiras, mas admite que mesmo isso se torna mais fácil na área de sua formação.

Ao comentar a resposta sobre a preparação para atuar com todas as categorias do PAEE, encontramos a referência de cinco professores (3%) à experiência de trabalho como uma maneira de se formar, como podemos observar pelas narrativas a seguir.

Com a prática de anos, consigo realizar meu trabalho a contento. Só sou inexperiente em altas habilidades. (P15).

A área em que um professor atua lhe proporciona experiência e maior segurança e competência com o tempo. (P130).

Eu considero que tenho formação/preparação para atuar com os estudantes que realizo os atendimentos, muitos conhecimentos foram adquiridos de fato, com o exercício e a construção de práticas. (P171).

Certamente, a experiência possibilita-nos adquirir mais conhecimento e segurança na realização do trabalho pedagógico, mas também pode ser perigoso se sustentamos a ação educativa apenas nesse aspecto da ação cotidiana, pois isso nos afasta do pensamento científico e reflexivo, possibilitado pelo estudo teórico e sua relação com a prática, no sentido da práxis educativa apontada por Paulo Freire (Streck, Redin, & Zitkoski, 2008).

Outra justificativa que pode ser identificada nas respostas dos professores, sobre a dificuldade em atuar com todo a diversidade do PAEE, foi a importância das parcerias, mencionadas por quatro professores (2%):

Há casos em que precisamos atuar com a contenção física de educandos com excessiva agitação psicomotora, com autismo associado, sem apoio algum por parte da rede de saúde mental, pois trata-se de aspecto comportamental evidente, crianças, adolescentes e jovens sem contorno ou intervenção junto aos serviços de saúde mental, inclusive indicando vulnerabilidade emocional e psíquica por parte de suas famílias que nos relatam fragilidade inclusive no manejo cotidiano junto aos seus filhos, em questões como as atividades de vida diárias e o deslocamento para as consultas médicas. (P43).

Embora tenha feito vários cursos, EaD em autismo, AH/SD... não temos formação e prática suficiente e satisfatória. E, quando precisamos encaminhar para fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia, centros de formação para altas habilidades, não conseguimos. Falta parceria com saúde. As famílias não têm condições. (P44).

Sou muito dedicada, mas não estou preparada para atender “todos” os casos. Cada caso tem sua complexidade e exige de nós, equipe pedagógica da Unidade Escolar e professor do AEE, estudar muito... Precisamos que a Equipe/UBS/CA9 com os nomes da saúde faça visitas periódicas/quinzenais... Precisamos de mais formação com psiquiatras, psicólogas, neuropediatra, fisiatras. (P71).

Os professores pontuam a ausência de intersetorialidade para a atuação, desde a parceria na própria unidade educacional, em uma perspectiva de um trabalho colaborativo e de corresponsabilidade, assim como a parceria com outras áreas que poderiam dar suporte à ação educativa com os estudantes PAEE, como a família, a saúde mental, ou os equipamentos sociais que possam possibilitar um pensar coletivo sobre as necessidades de alguns casos específicos, os quais, muitas vezes, não são nem fáceis e nem simples, portanto podem impor a prerrogativa de ações conjugadas e coletivas, na escola como também com outros setores da administração pública, como a área da saúde para assegurar sua aprendizagem e seu bem-estar.

Ainda considerando a preparação para atuar com toda a diversidade do PAEE, indagamos aos participantes em quais áreas consideram possuir melhor formação para atuar e observamos a situação sistematizada na Figura 3.

Fonte: Elaborada pelas autoras

Figura 3 Categoria do PAEE que o professor da SRM possui melhor formação para atuar.Legenda: DI: deficiência intelectual; TGD: transtornos globais do desenvolvimento; DF: deficiência física; DMU: deficiência múltipla; DA: deficiência auditiva; AH/HISD: altas habilidades/superdotação; DV: deficiência visual 

A categoria mais indicada por 143 das(os) professoras(es) (80%) foi a da deficiência intelectual, seguida por 63 delas(es) (35%) que consideraram ser a de TGD. Esse dado nos chama atenção, uma vez que são as duas categorias de maior complexidade para definição de suas necessidades e, até mesmo, se considerarmos a questão diagnóstica, pois, bem sabemos, ser de difícil avaliação devido à dificuldade de estabelecer critérios e de recorrer a aspectos mais subjetivos.

Na área da deficiência física, 54 professoras(es) (30%) consideraram estar melhor preparadas(os), 36 (20%) na deficiência múltipla, 30 (17%) em surdez/deficiência auditiva, 23 (13%) em altas habilidades/superdotação, 19 (11%) em deficiência visual e 8 (4%) delas(es) em surdocegueira. Observamos que, nas áreas às quais, em geral, recorre-se a mais recursos pedagógicos ou mesmo de tecnologia assistiva (TA), temos uma variação de 4% a 30% das(os) professoras(es) que se sentem capacitadas(os) para a atuação com essas(es) estudantes, o que pode nos indicar que, ao mencionarem as áreas de deficiência intelectual ou TGD, elas(es) consideraram ter conhecimento pelo fato de, aparentemente, não serem necessários recursos pedagógicos muito específicos, embora não seja bem assim, uma vez que estudantes com TEA precisam de uma estruturação de ensino mais sistemática e podem precisar de recursos de TA, como o de Comunicação Alternativa e Suplementar, tanto quanto na área da deficiência física; entretanto, as(os) professoras(es) se percebem melhor preparadas(os).

Chama atenção, da mesma forma, que 17% delas(es) se consideraram preparadas(os) para atuação com a deficiência múltipla, embora não detalhem as características das(os) estudantes que atendem; contudo, isso indica a presença delas(es) na RME-SP. O fato de se considerarem capacitadas(os) pode indicar a ocorrência de oferta de cursos de formação pela própria rede, internamente, ou o fato de São Paulo se caracterizar como um município no qual se encontram instituições especializadas que promovem cursos de formação, que podem estar sendo procurados pelas(os) professoras(es) paulistanas(os).

Em relação à surdez/deficiência auditiva, por um lado, embora tenhamos de considerar que há uma questão muito particular que é o domínio da Libras, surpreendeu-nos o dado de que 13% apenas se consideram capacitadas(os) para atuação com estudantes surdos, uma vez que, como apresentamos anteriormente, a própria Portaria nº 8.764/2016 dedica 37% de seus artigos para tratar da educação bilíngue; por outro lado, talvez o foco esteja mais nas escolas bilíngues ou nas escolas polo, do que na formação do professor do AEE, que atua em SRM com a(o) estudante com surdez.

A preparação para atuar na área das altas habilidades/superdotação foi considerada por 13% das(os) professoras(es), mas essa é uma área que, realmente, ainda apresenta certa invisibilidade e dificuldade tanto de identificação dessa(e) estudante, quanto de oferta de enriquecimento curricular, principalmente se pensarmos no Modelo Triádico de Enriquecimento (Renzulli, 2014)10.

Atuar junto a estudantes com deficiência visual e surdocegueira exige conhecimentos técnicos, como a elaboração de recursos táteis ou sinestésicos, uso de TA11, orientação e mobilidade para facilitar ou proporcionar acesso pleno ao conhecimento veiculado pelo currículo escolar para essas(es) estudantes, portanto é esperado que apenas 11% e 4% das(os) professoras(es) se considerem preparadas(os) para atuar com essas categorias, respectivamente.

Ao observar esse cenário sobre a preparação ou formação docente para atuar melhor com determinadas áreas do que com outras, levantamos dúvidas: poderia ser devido ao fato de não dominarem os recursos mais específicos das outras categorias, como discutimos? Ou estaria ligado à sua formação em determinadas áreas? Para elucidar tais indagações, fizemos o cruzamento dos dados disponíveis sobre as áreas de formação e as de atuação, cujos resultados foram registrados por meio da Figura 4.

Fonte: Elaborada pelas autoras

Figura 4 Relação entre formação e atuação do professor da SRMLegenda: DI: deficiência intelectual; TGD: transtornos globais do desenvolvimento; DF: deficiência física; DMU: deficiência múltipla; DA: deficiência auditiva; AH/HISD: altas habilidades/superdotação; DV: deficiência visual 

A Figura 4 permite-nos perceber que a atuação das(os) professoras(es) não corresponde à sua formação, ou seja, atua com algumas áreas para as quais não possui formação. Há maior aproximação nas áreas de altas habilidades/superdotação e de surdocegueira, com uma defasagem entre formação e atuação de 3%, com mais formadas(os) nessas categorias do que atuando com essas(es) estudantes. Em relação à deficiência intelectual e surdez/deficiência auditiva, aproximadamente 18% e 17% das(os) professoras(es), respectivamente, não possuem formação específica para atuação, o que se torna bastante preocupante, uma vez que, na educação de surdos, há de lidar-se com a constituição de uma língua e o ensino de língua portuguesa como segunda língua, o que exige, entre outros conhecimentos, domínio das especificidades dessa área e domínio de Libras. Obviamente não estamos desconsiderando o conhecimento necessário para lidar com a condição de deficiência intelectual ou auditiva, mas constituição de língua é um fator fundamental para o desenvolvimento intra e interpsíquico, portanto uma relação inquestionável entre linguagem e pensamento (Vygotski, 2001).

Há outros problemas na relação entre formação e atuação elencados pelas(os) respondentes. As áreas de TGD e deficiência múltipla apresentam uma defasagem de 43% e 42% respectivamente; na de deficiência física, 36%; e na visual, 19%. São diferenças importantes, cujo sentido está, justamente, em como atuar respondendo às necessidades dessas(es) estudantes se não há formação que possa orientar o planejamento e a ação da(o) professora/professor da SRM.

Vários aspectos sobre a atuação em SRM foram considerados pelas(os) professoras(es) e trouxeram para o centro da discussão a necessidade de equipe multidisciplinar de profissionais de diferentes áreas para atuação conjunta, melhorias na política de educação especial, constituição de núcleos e apoio e, até mesmo, a questão da demanda ou do desinteresse das(os) professoras(es) comuns, remetendo à própria política de educação inclusiva e suas implicações para o cotidiano da escola e o interior da sala de aula. Atender à diversidade na sala de aula e às necessidades do PAEE requer mudança na forma de ensinar e organizar o trabalho pedagógico; caso contrário, fica deslocada para a SRM a responsabilidade integral pela garantia da permanência dessas(es) estudantes na classe comum e pelo seu acesso a níveis mais elevados de ensino, com direito à aprendizagem. Isso é fato e, não seria exagero afirmar que, ainda, no Brasil, não se constituiu uma política de educação inclusiva (Oliveira, 2018b), como se a abertura de serviços fosse suficiente para se impulsionar as mudanças decorrentes de uma política que preconize uma escola para todos.

5 Considerações finais

Muitos são os desafios interpostos aos sistemas ou redes públicas de ensino na implantação da política de inclusão escolar no Brasil, a qual garante a matrícula do PAEE na classe comum. No entanto, certamente, é com a geração de condições favorecedoras ao seu acesso a níveis mais elevados de ensino, com aprendizagem, que a preocupação tem recaído, posto o ingresso não esgotar o compromisso com a garantia do direito à educação de qualidade para todos.

Nessa esteira, está estabelecido, desde a Constituição Federal de 1988 (1988), como fator de equidade, que a esse alunado seja garantido o AEE, regulamentado em normativas posteriores (Resolução nº 4/2009), organizado a partir, predominantemente, de oferta no contraturno em SRM, sob a regência de professoras(es) com algum nível de formação em Educação Especial. Contudo, a associação entre a sala ser multifuncional e a exigência de um(a) professor(a) multicategorial foi se firmando sem que, de fato, diretrizes nacionais e políticas de formação desse(a) profissional fossem definidas e implantadas.

Esse cenário motivou a realização da pesquisa em tela e, da análise das respostas ao questionário aplicado junto a professoras(es) atuantes em SRM na rede de ensino paulistana, pudemos depreender que a maioria (84%) julga ter formação insuficiente para atender demandas do alunado matriculado no AEE das SRM, que recebem matrículas de estudantes classificados nas diversas categorias que compõem o PAEE.

Os cursos de formação administrados nessa rede de ensino com o objetivo de formar professores do seu quadro de funcionárias(os) na área de Educação Especial pautaram-se no modelo de focalização em uma dada categoria do PAEE. Disso decorre o distanciamento identificado entre a formação em Educação Especial e as exigências da prática em SRM.

Parte delas(es) afirma que o aprofundamento do conhecimento sobre dada categoria confere maior qualidade ao seu trabalho, pois este possibilita reconhecer as necessidades específicas das(os) estudantes e planejar respostas pedagógicas mais assertivas. Diante desse desafio, as(os) professoras(es) registraram que buscaram realizar formação complementar sobre temas que pudessem auxiliá-las(os) no AEE. Parte desses cursos, oficinas, palestras, entre outras modalidades, foram oferecidos pela própria rede de ensino e os demais são atribuídos a iniciativas próprias, o que é também esperado de um profissional da área de educação.

Outro destaque é o fato de atribuírem à experiência na área de Educação Especial a aquisição de conhecimento para atender à diversidade de condições manifestadas pelas(os) estudantes das SRM. É inegável que profissionais aperfeiçoam seu fazer e também o seu saber nos anos de atuação na educação, neste caso em SRM, mas também é inquestionável que a formação teórico-prática abrevia esse processo de aproximação entre fundamentos teóricos e a prática pedagógica. O risco que se deve evitar é a política de inclusão escolar manter-se em caráter provisório e precário, sempre à espera de atingir patamares de qualidade exigidos pela assunção do compromisso com a educação de qualidade para todos.

Um forte indício desta pesquisa é provocar questionamentos quanto à formação de professoras(es) para atuar na Educação Especial com orientação inclusiva adotada nos últimos anos, pois as(os) respondentes ao questionário problematizaram a insuficiência de conhecimentos para garantir o AEE, considerando as especificidades de cada categoria do PAEE e trouxeram com convicção a avaliação de maior qualidade quando seu conhecimento coincide com a necessidades específicas do(a) estudante ou grupo ao qual atendem. Apesar dos subterfúgios que declararam utilizar para preencher as lacunas de sua formação, as(os) professoras(es) consideraram que esses subterfúgios são insuficientes, o que compromete a área de Educação Especial a se envolver no debate e na construção de novas e outras propostas de formação.

2Financiamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

5Teoricamente, em cada CEFAI, deveria ter no mínimo quatro PAAI, um para cada uma das áreas: surdez, deficiência física, intelectual e visual, mas nem sempre é assim, pois depende da região, das atribuições e do quadro de especialistas com formação e disponíveis para assumir a função.

6Instrumento utilizado para cálculo, originalmente chinês.

7Alguns dos dados aqui descritos foram parcialmente apresentados na 18ª Jornada do Núcleo de Marília (2019).

8As narrativas dos professores serão identificadas com a letra P em maiúsculo, seguida da indicação numérica do professor, em conformidade com nossos registros dos dados.

9UBS: Unidade Básica de Saúde. CAPS: Centros de Atenção Psicossocial.

10Modelo Triádico de Enriquecimento, de acordo com Renzulli (2014), é composto por três tipos de enriquecimento. O Tipo I visa ações e projetos coletivos que envolvem a todos os estudantes; o Tipo II propõe um envolvimento maior com determinadas áreas do conhecimento e, portanto, pode estar direcionado a determinados grupos de escolares, embora também possa ser desenvolvido no contexto da sala de aula comum ou nas SRM; e o Tipo III direciona-se para estudos mais avançados, que, certamente, extrapolam as possibilidades do sistema escolar e, muitas vezes, exigirão parcerias externas para que se possa, realmente, aprofundar o conhecimento em determinadas áreas ou temas específicos.

11A TA caracteriza-se por ser uma área de conhecimento bastante ampla, classificada em determinadas categorias e diretamente relacionadas a objetivos de funcionalidade, autonomia e participação (Bersch, 2017). Obviamente que nem todos são específicos para as áreas de deficiência visual e surdocegueira, pois trata-se de uma proposta de conhecimento e atuação interdisciplinar, mas, certamente, muitos de seus recursos contribuem bem de perto para o acesso visual e auditivo dos estudantes.

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Recebido: 04 de Dezembro de 2019; Revisado: 22 de Janeiro de 2020; Aceito: 25 de Janeiro de 2020

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