Introdução
A construção social da profissão médica de uma atividade nobre que salva vidas, de uma escolha de doação, de uma carreira de sucesso e bem-sucedida geram pressões e expectativas muitas vezes contraditórias e distante da realidade, causando frustações. O estudo de Ward e Outram (2016) sinaliza a existência de uma toxicidade na cultura médica provocada por um estresse cronificado no exercício da profissão ao exigir uma excelência nas práticas e uma adoção de conhecimentos infalíveis. Por conta disso, médicos e estudantes de medicina têm apresentado taxas mais elevadas de sofrimento psíquico, esgotamento, doença mental diagnosticada, ideação suicida e tentativa de suicídio em relação à população em geral.
Estudos realizados na Universidade do Zimbabwe mostram alta prevalência de transtornos psíquicos entre os acadêmicos de medicina, aproximadamente 64% dos estudantes do primeiro período apresentaram algum grau de depressão e/ou estresse, sendo que 11% destes demonstraram altíssimos níveis de estresse. Já nos Estados Unidos evidenciou-se que 46% dos estudantes pesquisados apresentaram pelo menos um dos sintomas que sugerem depreciação psíquica, como estresse, ansiedade, fadiga, entre outros (FIOROTTI et al., 2010).
Em Montreal, um estudo realizado com 18 estudantes distribuídos entre o primeiro e o quarto ano de Medicina destacou a procura pelo apoio psicológico devido ao prejuízo acadêmico e à ansiedade de não conseguir conciliar as atividades acadêmicas com as de lazer e exercício físico - apresentados como fatores atenuantes para estresse (MOREIRA et al., 2015).
Os resultados da maioria das pesquisas brasileiras retratam um quadro similar entre as escolas médicas. O ingresso do estudante no contexto universitário consiste em múltiplos processos que expõem seus aspirantes às situações de extenuação, principalmente na formação médica, uma das graduações mais procuradas no Brasil (BENEVIDES-PEREIRA; GONÇALVES, 2009; FIOROTTI et al, 2010).
Os índices entre os estudante de medicina são maiores do que a população em geral, e configura-se uma questão sobre os estudantes de Medicina que comumente não reconhecem seus próprios adoecimentos, principalmente psíquicos (MACHADO et al., 2015). Outras preocupações referentes aos prejuízos no campo cognitivo (ALMEIDA et al., 2007) e funcional, e não apenas no âmbito acadêmico, tem motivado a ampliação de estudos acerca da saúde mental dos acadêmicos de medicina, uma vez que observa-se uma relação entre o baixo rendimento no curso e a condição mental dessa população.
Neste cenário, o presente trabalho buscou conhecer a produção de conhecimentos sobre o fenômeno do adoecimento de estudantes de medicina no Brasil.
Metodologia
Para analisar a produção científica acerca da Saúde Mental dos Estudantes do Curso de Medicina nas Universidades Brasileiras realizou-se uma Revisão Sistemática da Literatura de caráter descritivo-analítico que fornece uma aquisição e atualização do conhecimento sobre uma temática específica de maneira solidificada em um intervalo de tempo reduzido (SEGURA-MUNOZ et al., 2002).
Para tal, foram selecionadas três bases de dados amplamnete utilizadas na área de saúde: SciELO (Scientific Eletronic Library OnLine), MedLine (Medical Literature Analysis and Tetrietal System On-Line) e PubMed. A coleta de dados eletrônica ocorreu durante o período de agosto a setembro de 2016 com os seguintes descritores e suas combinações em língua portuguesa e inglesa: Acadêmico de Medicina; Estudante de Medicina; Transtornos Mentais; Sofrimento Mental; Saúde Mental; e Sofrimento Psíquico. Em um primeiro momento, esses unitermos foram cruzados entre si e, em uma segunda abordagem, foram associados ao descritor “Brasil”. Com base na sistematização e na combinação desses termos, foram encontrados 1082 artigos na íntegra e com acesso livre publicados nos últimos 25 anos.
Em uma segunda fase de seleção, consideraram-se o título e o resumo dos artigos que compunham a amostra dos 1082 artigos. A fim de apurar a pertinência dos mesmos para a atual pesquisa, através de perguntas pré-estabelecidas constituiu-se um Teste de Relevância. Foram aplicadas questões que apreciavam os seguintes critérios de inclusão: (a) pesquisa ter como tema a Saúde Mental do Estudante de graduação Medicina apenas; (b) se o artigo teve seu período de coleta e publicação nos últimos 25 anos; (c) se a pesquisa foi realizada em contexto brasileiro. Foram rejeitados, além daqueles que claramente não retratavam a saúde mental de estudantes de graduação de medicina de universidades brasileiras, artigos de revisão, relatos de caso ou comunicações e artigos repetidos na amostra (SEGURA-MUNOZ et al., 2002).
A partir dessa pré-seleção, obtivemos uma segunda amostragem de 122 artigos científicos que foram lidos na íntegra e averiguados através da reaplicação do Teste de Relevância. Ao final, foi possível atingir a marca de 47 artigos, configurando a amostra final do presente estudo. Com estes, deu-se início à terceira fase da Revisão Sistemática, representada pela análise detalhada de cada artigo organizada em quadros sinópticos com especificidades de cada publicação, tais como: ano de publicação, revista científica, tipo do estudo e abordagem metodológica, regiões brasileiras do estudo permitindo uma análise com características bibliométricas. Adicionada a esta uma compreensão descritiva-analítica formulada por categorias temáticas extraídas dos textos selecionados permitiram-se articulações às concepções e conhecimentos produzidos nas diversas publicações. As categorias buscaram captar o fenômeno entre estudantes de medicina em várias dimensões desde da caracterização deste adoecimento, condições de produção - com fatores que desencadeiam e agravam o processo de adoecimento psíquico nessa população além de abordar atenuantes e estratégias individuais e coletivas de enfretamento das situações de adoecimento.
Discussão e análise de dados
A análise dos artigos traz uma visão geral sobre a produção científica nos últimos 25 anos. O tipo de pesquisa da maioria dos artigos analisados enquadrou-se nos estudos transversais com 90% das publicações analisadas, indicando pouco investimento em pesquisas longitudinais, ou seja, de acompanhamento da saúde dos estudantes de medicina no decorrer do curso, que possibilitaria apreender melhor sobre situações e condições de produção do fenômeno de adoecimento.
A abordagem quantitativa foi identificada como a metodologia mais utilizada com 71% dos estudos. A presença de estudos qualitativos ou quantitativo-qualitativos totalizaram 13 artigos. Nota-se um predomínio de pesquisas de mapeamento estatístico do adoecimento, com pouca ênfase na caracterização de fatores causadores e influenciadores da saúde dos estudantes ou mesmo estratégias de enfrentamento das condições de adoecimento que poderiam ser retratados em pesquisas longitudinais e qualitativas (BENEVIDES-PEREIRA, GONÇALVES, 2009; QUINTANA et al., 2008; TEMPSKI et al., 2012; ZONTA et al., 2006).
As regiões em que as pesquisas foram realizadas destacam-se o Sudeste (46%) seguido do Nordeste (21%), localizações em que se encontram o maior número de escolas médicas no Brasil, com proporção similar respectivamente, segundo dados do Conselho Federal de Medicina (CFM, 2015).
A revista que mais publicou a respeito desse tema, com mais de um terço dos artigos, foi a Revista Brasileira de Educação Médica que congrega muitas escolas de medicina do Brasil e apresenta reconhecido interesse na formação de médicos em suas diversas dimensões e tem como missão publicar debates, análises e resultados de investigações sobre temas considerados relevantes para a Educação Médica (ABEM, 2018).
A análise mostra um aumento de publicação sobre o tema entre o período de 2011 a 2015 abrange 48% das publicações analisadas. As instituições públicas são as que mais produzem pesquisas a respeito do tema, com 69% dos trabalhos. Provavelmente, este dado reflita um menor grau de conflito de interesse que facilita o acesso aos sujeitos de pesquisa e sua realização em uma condição de maior autonomia destas universidades.
A compreensão do fenômeno do adoecimento entre estudantes de medicina nos remete a profissão médica e suas inúmeras gratificações psicológicas intrínsecas como curar doenças, amenizar a dor e o sofrimento, salvar vidas, aconselhar, prevenir doenças, realizar o diagnóstico correto, sentir-se competente, ser reconhecimento e obter gratidão (CUNHA et al., 2009). Estas ditas gratificações na carreira médica oscilam e podem proporcionar instabilidades emocionais com consequente decréscimo da saúde mental, tendo seu início ainda na graduação. (ANDRADE, 2014; CUNHA et al., 2009; OLIVEIRA et al., 2009).
Outras abordagens apontam particularidades estressoras na graduação médica tais como carga horária intensa e extensa, dificuldade em conciliar a vida pessoal e acadêmica, competitividade entre os estudantes, privação do sono, realização de exame físico em paciente, bem como o medo de adquirir doenças e de cometer erros. Esses estudos indicam que tais aspectos de vulnerabilidade justificam a não adaptação do estudante de medicina, demostrada pela negação dos sentimentos, percepção negativa da realidade, ingestão de bebidas alcoólicas, além de transtornos alimentares, ideação e tentativas de suicídio (ALEXANDRINO-SILVA et al., 2009; ANDRADE, 2014; BALDASSIN et al., 2008; 2012; PAULA et al., 2014; MOREIRA et al., 2015; REZENDE et al., 2008; VASCONCELOS et al., 2015). Outros estudos focam aspectos como dedicação, esforço, sacrifício e principalmente a resistência física e emocional dos estudantes de medicina e associam ao estresse, aos prejuízos na qualidade de vida e às características da síndrome de burnout nessa população (ALMEIDA et al., 2007; ALVES et al., 2010; BAMPI et al., 2013; LIMA; DOMINGUES; CERQUEIRA, 2006; MEYER et al., 2012; MORI et al., 2012; COSTA et al., 2012; PAGNIN; QUEIROZ, 2015a, 2015b; PARO et al., 2014; PEREIRA et al., 2015; TEMPSKI et al., 2012; ZONTA et al., 2006).
De modo geral, nota-se que os artigos ora focam principalmente em características individuais dos estudantes e momento de mudanças para a vida adulta, ora na graduação, sua estrutura curricular e peculiaridades da educação médica, ora a própria profissão e contextos mais gerais presentes na vida universitária, todos estes aspectos de compreensão do sofrimento psíquico são considerados condicionantes ou desencadeantes dos processos de adoecimento. A complexidade do fenômeno aponta para conexões multicausais em que condicionantes e desencadeadores se movimentam assim como os fatores atenuantes compondo leituras variadas sobre a produção do adoecimento entre estudantes de medicina. Ou seja, o aparecimento de alguns sintomas e reações psíquicas diante de situações de estresse e de ansiedade durante a graduação, afetam ou são afetados pela qualidade de vida, e o ambiente universitário compõem esta vida de forma intensa neste momento de muitos jovens estudantes.
Exploraremos estas dimensões do adoecimento deditamente ao abordarmos a caracterização do adoecimento, fatores condicionantes e desencadeadores, bem como estratégias de enfretamento e atenuantes deste.
Caracterização do adoecimento
Diversas pesquisas brasileiras (BALDASSIN et al., 2012; FIOROTTI et al., 2010; LIMA; DOMINGUES; CERQUEIRA, 2006; SERRA et al., 2015) têm abordado a saúde mental entre estudante de medicina e identificado sintomas e adoecimentos tais como distúrbios alimentares e do sono, estresse, ansiedade, depressão e Transtorno Mental Comum (TMC).
O adoecimento pode ser compreendido por um desgaste psicológico e físico que impacta a qualidade de vida dos sujeitos e pode desencadear quadros de depressão e de ansiedade. Os desgastes se apresentam como irritabilidade, insônia, fadiga, esquecimentos, dificuldades de tomar decisão e de se concentrar, além de queixas somáticas como má digestão, alteração de apetite, tremores e dores de cabeça (CUNHA et al., 2009; FIOROTTI et al., 2010). Os desfechos diante das condições que os estudantes estão submetidos abrangem sentimento de culpa, de desvalia e de impotência, medo de errar, depressão e vontade de abandonar o curso ou, até mesmo, o suicídio (SERRA et al., 2015; SANTA; CANTILINO, 2016; VASCONCELOS et al., 2015).
A caracterização estressante do curso de medicina é destacada na maioria dos artigos científicos, em seus causadores e suas consequências para a saúde dos estudantes. O estresse se torna um fator importante a partir do contato com o treinamento médico e colabora para a redução do bem-estar psíquico e o aumento de quadros com diagnóstico de depreciação psicológica como a ansiedade, a depressão e o burnout (ALVES et al., 2010).
A caracterização da saúde mental dos estudantes de medicina nos artigos analisados é retratada principalmente por três instrumentos de pesquisa validados no Brasil a saber, o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) que avalia o risco para TMC, o Whoqol-bref que aprecia domínios da qualidade de vida e o Inventário de Beck (BDI) que identifica sintomas de quadro depressivos.
Os TMC representam quadros menos graves e mais frequentes de sofrimento psíquico que não implicam em um diagnóstico psiquiátrico formal, mas parecem caracterizar adequadamente o fenômeno de adoecimento entre os estudantes de medicina. São definidos como uma situação de saúde que não se encaixa em diagnósticos formais como depressão ou ansiedade segundo o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fourth Edition (DSM-IV) e segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-10), mas são um potencial substrato para o desenvolvimento de transtornos mais graves e configuram um estado significativo de sofrimento com impacto nos relacionamentos e no cumprimento de tarefas cotidianas (MARAGNO et al., 2006) já que incluem sintomas como esquecimento insônia e fadiga, bem como queixas somáticas - cefaleia, náuseas, entre outros (FIOROTTI et al., 2010).
A prevalência de risco de TMC em estudantes de medicina é demostrada na maioria dos artigos utilizando o SRQ-20 (ALMEIDA et al., 2007; ANDRADE, 2014; COSTA et al., 2010; CUNHA et al., 2009; FIOROTTI et al., 2010; LOAYZA et al., 2001; SANTANA; SASSI, 2013).
Um dos estudos pioneiros sobre o tema, conduzido pela Universidade Federal de Santa Maria e que fez uso do SRQ-20, observou que o risco para TMC entre os estudantes do primeiro ao décimo semestre do curso de medicina foi de 31,7% (BENVEGNU; DEITUS; COPETE, 1996). Resultados similares foram apurados em outras universidades brasileiras, como na Universidade Federal da Bahia com 29,6% (ALMEIDA et al., 2007), na Universidade Estadual Paulista-Botucatu cuja prevalência foi de 44,7% (LIMA; DOMINGUES; CERQUEIRA, 2006), semelhante ao valor de 42,6% encontrado na Universidade Federal de Pernambuco (FIOROTTI et al., 2010).
Na Universidade Federal do Espírito Santo, cuja amostra estudada abrangia do primeiro ao sexto período do curso, verificou-se que a prevalência de TMC foi de 37,1%, tendo maior prevalência em estudantes mulheres (FIOROTTI; ROSSONI; MIRANDA, 2010). Em uma Universidade situada em um município do Vale do Paraíba, as investigações apontaram para uma prevalência de 26,1% para quadros de transtornos mentais leves, com exacerbação no segundo, terceiro e quarto períodos de graduação (CUNHA et al., 2009).
Outros mecanismos de investigação do decréscimo psicológico dos acadêmicos na escola médica expressivos nos artigos publicados foi o questionário Whoqol-bref (validado no Brasil) que avalia a qualidade de vida abrangendo as esferas de saúde física, estado psicológico, nível de consciência, relações sociais e relações com as características do meio ambiente do indivíduo. Um estudo com Whoqol-bref realizado em universidades da cidade de Recife abarcou 370 alunos distribuídos no primeiro e último período do curso de medicina. Entre os dois grupos, apenas o domínio psicológico apresentou diferença significativa com decréscimo deste domínio entre os alunos em conclusão do curso médico, quando comparados aos estudantes do início do curso (ALVES et al., 2010).
Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro, um quadro semelhante foi constatado com um declínio sistemático nos domínios da qualidade de vida no decorrer do primeiro ao terceiro ano, com recuperação no terceiro ao quinto ano e piora novamente no sexto, chegando, para alguns domínios, à escores mais baixos do que os encontrados no primeiro ano de graduação. (CHAZAN; CAMPOS, 2013).
Na Universidade de Brasília, o Whoqol-bref demonstrou resultados de diferentes fatores, na qual 71,5% dos participantes consideraram terem uma qualidade de vida boa ou muito boa e 70,2% estão satisfeitos ou muito satisfeitos com sua saúde. Entretanto, o estudo evidenciou que o domínio psicológico foi o que recebeu o mais baixo escore na avaliação. O mau humor, o desespero, a ansiedade e a depressão estiveram presentes na avaliação de 95,2% dos entrevistados e, destes, 50% experimentaram esses sentimentos frequentemente, muito frequentemente ou sempre (BAMPI et al., 2013).
Alguns artigos retratam a utilização do Inventário de Beck (BDI) que abrange sintomas sugestivo de risco para quadros depressivos permitindo investigar o acometimento psíquico na população acadêmica médica. (ALVES et al., 2010; BALDASSIN et al., 2008; BAMPI et al., 2013; CHAZAN; CAMPOS, 2013; REZENDE et al., 2008).
Rezende e outros (2008) traz em sua pesquisa, realizada na Universidade Federal de Uberlândia, que 79% dos indivíduos indagados apresentaram algum sintoma depressivo, sendo que a quantidade desses sintomas crescia conforme o avançar dos períodos. É comum observar nos estudantes com o processo de depreciação psíquica a piora nas questões afetivas, somática e cognitiva, bem como redução da participação em atividades sociais, principalmente naqueles que se encontram na fase de internato em detrimento com os colegas que ainda não iniciaram. (BALDASSIN et al., 2008, 2013; CHAZAN; CAMPOS, 2013).
Os dados quantitativos que demostram alterações de risco em períodos diferentes do curso são de frágeis comparações entre cursos já que os currículos são diferentes e a análise deste dado requer uma aproximação mais minuciosa sobre a dinâmica curricular de cada curso. Entretanto, apontam informações importantes para estudo de caso que contribuem na compreensão do fenômeno.
Condicionantes e desencadeadores do adoecimento
A caracterização do adoecimento nos remete ás condições sociais, contextos institucionais, ambientes coletivos, situações grupais e ocorrências singulares que conformam o sofrimento psíquico do universitário. Nota-se que o modelo explicativo baseado no estresse é utilizado com frequência nas publicações na busca de configurar as relações entre sujeito, ambiente e qualidade de vida na produção do sofrimento.
De modo geral, o ambiente de aprendizagem torna-se estressante ao passo que o acadêmico tem que lidar com sobrecarga de aulas, doenças de pacientes e relações conflitantes com membros da turma ou equipe (PAGNIN; QUEIROZ, 2015a; QUINTANA et al., 2008), bem como o próprio processo de ensino-aprendizagem, informação sobre a profissão e sobre o curso, além de rede social e experiências pessoais conflituosas na infância e/ou adolescência e condições socioeconômicas (BASSOLS et al., 2014; SILVA; LIMA; CERQUEIRA, 2014).
Os artigos retratam que os principais fatores predisponentes estressantes são: competição em processo seletivo, sobrecarga de conhecimento, dificuldade na administração do tempo, grande número de afazeres e pouco tempo para atividades de lazer, responsabilidade e expectativas sociais no papel do médico. Além disso, a caracterização do momento instável esse de transição para a vida acadêmica ao ingressar no ambiente universitário, o contraste entre a euforia de êxito no vestibular seguida de frustração causada pela mudança de hábitos do cotidiano, podem acionar um mecanismo de defesa psicológico tal como dissociação ou isolamento afetivo (MILLAN; ARRUDA, 2008; PAULA et al., 2014; FIOROTTI et al., 2010; SANTANA; SASSI, 2013).
Os estudos também apontam as condições socioeconômicas como origem, idade, sexo, etnia/raça, renda, instituições escolares anteriores como fatores que trazem inserções e expectativas diferentes em relação ao curso universitário. Há uma prevalência em mulheres quanto a correlação entre adoecimento e problemas financeiros, e a idade de transição para a vida adulta. (BASSOLS et al., 2014; FURTADO; FALCONE; CLARK, 2003; LIMA; DOMINGUES; CERQUEIRA, 2006; PARO et al., 2014; SERRA et al., 2015).
Na graduação, o contato com a morte e o sofrimento, a competitividade e a exigência pela excelência em avaliações como forma de perpetuar o perfil do ensino médico, o pouco tempo para outras atividades devido à sobrecarga, a falta de “incentivo” dos professores a respeito da saúde mental dos estudantes, a dificuldade em fazer amigos, a baixa auto avaliação de desempenho acadêmico, transtornos de sono e viver longe da família são fatores que estão intimamente ligados aos quadros de sofrimento mental (ALMEIDA et al., 2007; ALVES et al., 2010; BALDASSIN et al., 2012; CHAZAN; CAMPOS, 2013; COSTA et al., 2014; FURTADO; FALCONE; CLARK, 2003; GONÇALVES; SILVANY NETO, 2013).
Estudos como de Pagnin e Queiroz (2015a; 2015b) demonstra alta frequência de burnout ao ajustar o conceito para os estudantes considerando então o esgotamento emocional, o cinismo e o baixo desempenho acadêmico. Os alunos com exaustão, que estão submetidos à sobrecarga devido as demandas acadêmicas, costumam utilizar mecanismos de enfrentamento impróprios, como a privação do sono, a fim de aumentar o tempo de estudo. A qualidade do sono é um fator importante da qualidade de vida e distúrbios deste estão associados a ansiedade, depressão e não comparecimento às aulas (GONÇALVES; SILVANY NETO, 2013; LOAYZA et al., 2001).
Com a diminuição das horas de sono, há mais exaustão, gerando um círculo crônico com altos níveis de burnout e sofrimento mental. Loayza e outros (2001) apresenta associação significativa entre TMC e insônia. Em contrapartida, a angústia do aluno também pode levar a dificuldades de sono, que incluem problemas para adormecer, despertar no meio do sono, acordar muito cedo, ronco e sonolência diurna excessiva (PAGNIN; QUEIROZ, 2015b).
Os artigos sinalizam a importância do condicionante ambiente universitário/escola médica, principalmente o currículo e a relação educativa que constituem a formação de médicos, ao descreverem elementos de um ciclo de adoecimento do estudante. Entretanto, este condicionante e outros desencadeadores do sofrimento de estudantes universitários necessitam de uma articulação mais consistente em um modelo analítico claro que considere o estudo da educação médica como condição central na produção do adoecimento universitário neste grupo social.
Fatores atenuantes e respostas individuais e coletivas diante do adoecimento
Os diferentes modelos de compreensão dos fatores causadores do adoecimento levam a análises diferentes e consequentemente, à distintas estratégias de enfrentamento.
A valorização dos relacionamentos interpessoais e de fenômenos do cotidiano, a organização do tempo, os cuidados com a saúde como alimentação e sono, interesses religiosos, bem como trabalhar a própria personalidade para lidar com situações adversas e a procura pela assistência psicológica são elencados pelos artigos como importantes para evitar os processos de adoecimento tanto físico quanto mental (ALVES et al., 2010; ZONTA et al., 2006).
Um componente importante para a manutenção de uma vida saudável é a realização de atividades de esporte e lazer, contudo, estas são comprometidas pelo excesso de carga horária do estudante de medicina (BAMPI et al., 2013). Estudos apontam o uso de drogas consideradas ilícitas por parte dos acadêmicos com objetivos de melhorar o desempenho acadêmico, reduzindo a fadiga, de aliviar a tensão psicológica e de compensar a falta de tempo outras atividades de lazer (OLIVEIRA et al., 2009; PADUANI et al., 2008).
Vários autores destacam que a rede de apoio é um fator atenuante para os casos de sofrimento, assim como o uso de psicotrópicos, em alguns casos, inicialmente (BASSOLS et al., 2014; OLIVEIRA et al., 2009; PADUANI et al., 2008; ROCHA et al., 2011).
Outro estudo constatou que 44,5% da amostra estudada relatou fazer consumo de álcool e outras drogas, com maior frequência de consumo entre estudantes do último ano. Já o uso de agentes estimulantes foi descrito em 78,7%, sem haver diferença entre os alunos do primeiro e sexto ano. O uso de vários medicamentos foi relatado em 42,8% dos indivíduos, com destaque no sexto ano do curso médico (BASSOLS et al., 2014; ROCHA et al., 2011).
Uma parte expressiva dos artigos voltam-se para o acolhimento e a atenção dos estudantes de medicina com foco no oferecimento de espaços para reflexão sobre seus sentimentos e emoções em sua trajetória formativa, e por vezes, incentivam a procura de ajuda especializada para acompanhar o processo de formação profissional, sendo este um fator atenuador (FIOROTTI et al., 2010; SILVA et al., 2009; PEREIRA et al., 2015).
Respostas institucionais e medidas preventivas são adotadas pelas escolas médicas, com destaque para os Programas de Tutoria ou Mentoring. Outras estratégias também são utilizadas como a inclusão de disciplinas obrigatórias e optativas na grade curricular com temática da psicologia médica, capacitação de professores, rodas de conversa, apoio psicoeducativo - ajudando o aluno e seus familiares em situações de crise que afetam as questões educativas (CUNHA et al., 2009).
A maior parte das estratégias abordadas nos artigos referem-se a apoio psicológico, amigos, lazer e esporte e disciplina para estudos centrando as mudanças no indivíduo apenas, além do consumo de álcool e outras drogas (ALVES et al., 2010; BAMPI et al., 2013; BASSOLS et al., 2014; OLIVEIRA et al., 2009; PADUANI et al., 2008; ROCHA et al., 2011). Algumas outras abordagens arriscam retratar a dimensão da universidade e do currículo de medicina e a própria profissão e sua relação social, sinalizam ações coletivas, inclusive de mudança na formação e prática médica. (ALEXANDRINO-SILVA et al., 2009; ZONTA et al., 2006).
Um estudo realizado na Universidade de São Paulo demonstrou que apenas uma parte dos estudantes que apresentaram quadros de ansiedade (21%), depressão (32%) e baixa qualidade de vida (15%) admitiram possuir “necessidades emocionais” (LEÃO et al., 2011). Há, dessa forma, a sugestão de um processo de naturalização da depreciação da saúde mental por parte dos estudantes de medicina, fato que pode interferir negativamente na busca por ajuda (LEÃO et al., 2011).
Alguns artigos destacam que o acolhimento e acompanhamento dos estudantes ao longo do seu processo de formação, com a valorização das dimensões psicológicas não fique a cargo apenas dos serviços de apoio psicopedagógico ou grupos de tutoria, mas façam parte do encontro de docentes e destes com os discentes em processos de ensino-aprendizagem, com o foco na educação médica e na qualidade de vida dos atores ali envolvidos, assim como no desenvolvimento de estratégias para alcançá-las (ALVES et al., 2010; BAMPI et al., 2013; CHAZAN; CAMPOS, 2013; MARCO, 2009).
Na produção científica brasileira aqui estudada, poucos são os artigos que aprofundam nas questões sobre o currículo, metodologia de aprendizagem bancárias e na relação educativa autoritária (FREIRE, 1974). Ainda assim, há um distanciamento entre a análise de condicionantes de adoecimento com as respostas e intervenções institucionais, observando uma ação predominante voltada exclusivamente para o estudante buscar sua adaptação. Nota-se, dessa forma, que para compreender melhor o fenômeno e apontar estratégias de enfrentamento as situações de adoecimento, é preciso, juntamente com os parâmetros quantitativos, expandir os estudos longitudinais e qualitativos sobre o tema, abrangendo condicionantes importantes como a educação médica e a cultura profissional dos médicos na sociedade brasileira.
Conclusão
O crescimento da produção científica sobre a saúde mental do estudante de medicina neste século revela uma inquietação necessária em relação ao adoecimento de estudantes já que os resultados das pesquisas trazem, em sua maioria, que a incidência de sofrimento mental entre os estudantes de medicina é maior do que na população em geral.
O sofrimento como parte do processo de tornar-se médico é um discurso reafirmado constantemente pela escola médica e pela sociedade que contribui para a naturalização do adoecimento psíquico dos acadêmicos. Esse sofrimento naturalizado é percebido entre estudantes de medicina que tendem a desenvolver estratégias individuais como a negação, o isolamento, a culpa, a racionalização e o silêncio sobre o acometimento, proporcionando um ciclo que fomenta ainda mais o processo de depreciação psíquica do indivíduo e dificulta rupturas, cuidados e mudanças na produção deste.
Com a expansão de cursos e vagas de medicina e em sua proposta de interiorização e ampliação da cobertura da atenção médica no país, o fenômeno do adoecimento tende a crescer e exigirá do campo da educação médica a realização de mais pesquisas para compreender e intervir junto a essa problemática, adotando uma perspectiva psicossocial para analisar e enfrentar as condições de adoecimento de estudantes de medicina.