1 Introdução
A prática odontológica gera uma variedade de riscos à saúde dos cirurgiões-dentistas (CD), que podem resultar em acidentes ou doenças ocupacionais capazes de causar efeitos adversos para a saúde desses profissionais (EU-OSHA, 2017; ŞOAITA, 2014). Para controlar e minimizar tais riscos na rotina do trabalho odontológico é necessário que a prática profissional seja baseada na Biossegurança. Em Odontologia, Biossegurança constitui-se em um conjunto de medidas de controle dos riscos ocupacionais, princípios de controle da infecção e práticas ergonômicas que buscam garantir que a assistência à saúde bucal aconteça sob condições adequadas de segurança para o profissional, o paciente e o ambiente (SILVA; RIBEIRO; RISSO, 2009). Estas medidas, princípios e práticas são aprendidas durante o processo de formação profissional, destacando que, segundo Pimentel et al. (2012), o CD tende a seguir na vida profissional os hábitos adotados durante a vida acadêmica. Ressalte-se que a pandemia de COVID-19 evidenciou a importância da Biossegurança para a segurança das atividades odontológicas (ADA, 2020).
Contudo, o número de notificações de acidentes ocupacionais envolvendo CDs brasileiros é alto (MPT; OIT, 2020), apesar da reconhecida subnotificação desses acidentes (MUSSI; MARASEA, 2016; NOGUEIRA et al., 2016). Além disso, na literatura existem diversos relatos sobre CDs e alunos de Odontologia com práticas que denotam desconhecimento e/ou descuido com relação à Biossegurança, bem como estudos que consideraram insuficientes os conteúdos e/ou disciplinas sobre o tema em certas instituições de ensino superior (IES) (LOPES et al., 2019; MAZUTTI; FREDDO; LUCIETTO, 2018; KUHN et al., 2018; OLIVEIRA et al., 2017). Tais fatores podem estar apontando para a possibilidade de haver cursos de Odontologia em que a formação não esteja favorecendo a assimilação e/ou consolidação dos conhecimentos sobre Biossegurança, que são essenciais ao exercício seguro da profissão.
A presença da disciplina Biossegurança no currículo da graduação em Odontologia pode influenciar positivamente na formação e manutenção de práticas seguras no cotidiano da atividade odontológica, visto que incutir conceitos e princípios, como os de Biossegurança, durante um período acadêmico formativo, além de ser mais fácil do que em profissionais que já se encontram atuantes, é um primeiro passo lógico na construção de uma cultura de responsabilidade (MANCINI; REVILL, 2008). Desta forma, esta pesquisa se propôs a analisar a Biossegurança em disciplinas, específicas e não específicas, como componente curricular das faculdades de Odontologia do Brasil.
2 Metodologia
Pesquisa transversal, exploratória e descritiva. A população de estudo foi composta por coordenadores de cursos de graduação em Odontologia do Brasil dos quais foi possível obter um e-mail de contato nos sites das faculdades ou por meio de mensagem eletrônica para as IES.
A coleta de dados foi realizada por meio de um questionário online na plataforma Google Drive, autoaplicável e padronizado, contendo 22 questões (11 fechadas e 11 abertas). As questões visaram obter informações relacionadas ao ensino da Biossegurança nas faculdades: I) existência de disciplinas específicas obrigatórias ou eletivas sobre o tema; organização da disciplina; II) ensino de Biossegurança em outras disciplinas e como ela é apresentada na disciplina em que está inserida; III) referências bibliográficas utilizadas.
Após um pré-teste com um grupo semelhante ao da pesquisa real, uma mensagem-convite para participação da pesquisa, contendo o link para o questionário e o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido anexado, foi enviada por e-mail a 302 coordenadores, tendo ficado disponível para preenchimento de novembro/2019 a fevereiro/2020. Durante esse período, na expectativa de obter um maior número de adesões à pesquisa, a mensagem-convite com o questionário foi reenviada duas vezes. As respostas ficaram arquivadas na plataforma virtual até o encerramento do recebimento, quando foram exportadas para uma planilha eletrônica e analisadas.
Todas as variáveis foram analisadas sob a perspectiva estritamente descritiva, sem aplicação de avaliação estatística e de inferência ou generalização de resultados.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva / Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAAE: 06143218.3.0000.5286).
3 Resultados e discussão
Responderam o questionário 68 coordenadores (22,5%). A figura 1 ilustra a distribuição dos cursos investigados segundo a existência ou não de disciplina específica para o ensino de Biossegurança nos currículos, a natureza da disciplina (obrigatória ou eletiva) e o método de ensino aprendizagem utilizado (teórica ou teórico-prática).
O baixo número de respondentes já era esperado, visto que questionários online apresentam, por motivos variados, índice de resposta inferior a outros métodos de aplicação (VASCONCELLOS; GUEDES, 2007). Outros estudos que tiveram coordenadores de cursos de graduação como população de estudo também obtiveram baixo percentual de retorno de questionários (OLIVEIRA, 2018; ROCHA; SCHUH; MACHADO, 2019).
O currículo não é um fim, mas sim um meio para promoção de uma aprendizagem de qualidade (UNESCO, 2016). As novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de graduação em Odontologia (BRASIL, 2018) recomendam que a organização curricular seja orientada por objetivos formativos focados no perfil do egresso com capacidade de associar conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias à compreensão da totalidade do indivíduo e à uma atuação humanizada na prevenção e promoção da saúde na sua área de atuação, ratificando estudos sobre o tema (MORAES; COSTA, 2016; TAVARES et al., 2016).
É recomendado que os currículos dos cursos de formação em Odontologia sejam continuamente reavaliados e reestruturados, para se adaptarem à constante evolução do conhecimento e da biotecnologia, bem como para buscarem uma educação integral, mais humanizada, vinculada à realidade e com qualidade técnico-científica (MORAES; COSTA, 2016; TOASSI et al., 2012).
A unanimidade de respostas sobre a natureza obrigatória da disciplina específica mostra que é ponto pacífico a fundamentalidade de sedimentar o conhecimento sobre Biossegurança nos alunos de graduação em Odontologia, em consonância com outros estudos sobre o assunto que recomendaram a obrigatoriedade da disciplina (BELLISSIMO-RODRIGUES; BELLISSIMO-RODRIGUES; MACHADO, 2010; RIBEIRO, 2004; ZENKNER, 2006). Arantes et al. (2015) e Lopes et al (2019) enfatizaram a importância da disciplina de Biossegurança na conscientização dos futuros profissionais acerca da necessidade de respeitar permanentemente as medidas de prevenção e proteção contra os riscos ocupacionais envolvidos na prática odontológica. Pesquisa realizada em 142 cursos de 57 universidades em 29 países concluiu que a Biossegurança precisa fazer parte do currículo básico obrigatório dos cursos de ciências da vida, o que incluiu a Odontologia, a fim de desenvolver nos alunos uma cultura de responsabilidade social e ambiental (MANCINI; REVILL, 2008). Porém, mesmo com tantas pesquisas evidenciando a importância da Biossegurança para a prática odontológica, nas novas DCNs (BRASIL, 2018) não consta a obrigatoriedade dessa disciplina, havendo somente a sua citação como conteúdo curricular essencial.
A alternância entre disciplinas/atividades teóricas e disciplinas/atividades práticas implica na suposição de que o aluno é capaz de interconectar o que foi ensinado durante as aulas com o que é vivenciado na rotina de trabalho, além de poder resultar em distanciamento entre o ensino da teoria e da prática, fragmentação do conhecimento e insatisfação de alunos e egressos (ARMOND et al., 2016; MORAES; COSTA, 2016). Nesse sentido, um currículo onde haja articulação permanente entre a teoria e a sua aplicação na clínica odontológica permite um aprendizado mais contextualizado, que leva à formação de profissionais com pensamento crítico e reflexivo acerca da prática profissional ética e segura (NORO et al., 2017), conforme recomendado pelas DCN (BRASIL, 2018).
Estudos sugeriram a inclusão de um supervisor para garantir a efetiva aplicação das normas de Biossegurança durante as atividades clínicas, considerando que a obrigatoriedade e a supervisão costumam resultar em maior adesão de estudantes às referidas normas (LAGES et al., 2015; LOPES et al., 2019; RIBEIRO, 2004).
Após responder à primeira questão - sobre existência de disciplina específica para a Biossegurança no currículo do curso - o respondente era direcionado automaticamente para a seção subsequente à resposta afirmativa ou negativa. Por isso, os demais resultados foram organizados em três partes: i) todos os cursos; ii) cursos com disciplina específica para Biossegurança no currículo; iii) cursos sem disciplina específica para Biossegurança no currículo.
3.1 Todos os cursos
Os motivos citados pelos coordenadores para a existência ou não de uma disciplina específica para o ensino de Biossegurança no currículo dos cursos foram organizados em categorias, conforme a semelhança das respostas. Algumas se enquadraram em mais de uma categoria. Os motivos são apresentados no quadro 1.
Currículo com disciplina específica para Biossegurança | Categorias | N |
---|---|---|
Sim | Importante/básico/fundamental/elementar para a formação e/ou o exercício da profissão | 24 |
Estabelecimento de boas práticas de trabalho durante o curso e na rotina profissional | 10 | |
Importante apresentar conceitos, instruir sobre normas e procedimentos, uniformizar ações | 5 | |
Capacitação/orientação/desenvolvimento de competências para lidar com o risco de infecção/contaminação/disseminação de doenças durante o curso e na rotina profissional | 5 | |
Conhecimento necessário previamente à atividade clínica | 4 | |
Proteção/segurança de profissionais, pacientes, ambiente de trabalho, meio ambiente | 4 | |
Controle de riscos para CDs, equipe de trabalho e pacientes | 3 | |
Estímulo à responsabilidade/consciência crítica/ética/bioética | 2 | |
Necessária para cursos da área de saúde | 2 | |
Aprendizagem e execução de todo o processo de esterilização | 1 | |
Cumprimento das DCN | 1 | |
Desenvolvimento de competências relacionadas à promoção, prevenção e recuperação da saúde bucal | 1 | |
Sem resposta | 1 | |
Valorização das condições de trabalho | 1 | |
Não | A faculdade adota o modelo de currículo integrado, onde a Biossegurança é trabalhada em outras disciplinas, teóricas e práticas, ao longo do curso, assim como os estágios / cada disciplina assume a sua parte no conteúdo / assunto é abordado como conteúdo programático de outras disciplinas, cada uma expondo a sua especificidade | 19 |
Porque ultrapassaria a carga horária do curso previsto no PPC | 3 | |
É abordado em outra disciplina | 2 | |
Porque ainda não foi criada | 1 | |
A grade curricular foi montada por outra coordenação | 1 |
Na maioria dos cursos investigados havia disciplina específica para Biossegurança, corroborando o achado de Bellissimo-Rodrigues; Bellissimo-Rodrigues; Machado (2010) sobre o aumento na oferta dessa disciplina nos cursos de graduação de Odontologia. Para Ribeiro (2004), uma disciplina específica para Biossegurança no currículo seria um meio salutar de sistematizar a promoção do aprendizado sobre o tema. Para Gomes et al. (2014), caso não haja uma disciplina específica, a Biossegurança deve ser obrigatoriamente abordada em outra(s) disciplina(s).
A adoção de um currículo integrado/interdisciplinar, no qual a Biossegurança faz parte do conteúdo programático de outras disciplinas, consistiu no motivo mais citado (73%) para a inexistência de uma disciplina específica para o tema. Esta forma de organização curricular tem disso defendida por diversos estudos, com base no argumento de que o desenvolvimento de habilidades e competências gerais e específicas para o exercício das profissões da saúde envolve diferentes campos do conhecimento, além de ser permeado pela IES e pelos docentes (MORAES; COSTA, 2016; SOUZA; LOPES; LIMA FILHO, 2017), visto que a Biossegurança não se resume somente a normas de prevenção e controle.
De acordo com Costa Neto (2006), a graduação em Odontologia deve adotar um modelo curricular baseado na integralidade/interdisciplinaridade, com os componentes curriculares articulados: i) verticalmente, para que haja uma sequência de conteúdos a serem ministrados, em grau crescente de complexidade, ao longo de todo o curso; ii) horizontalmente, para conectar os conteúdos programáticos ofertados em um mesmo semestre/período. Para Noro et al. (2017), o currículo integrado deve conferir maior importância à aprendizagem contextualizada pelo aluno do que à provisão do conhecimento específico de uma única disciplina. Tal organização, segundo Cezarino e Corrêa (2019), pode beneficiar o aluno por capacitá-lo a articular e empregar conhecimentos na busca de soluções no seu cotidiano de trabalho.
Na literatura, entretanto, são rotineiramente encontrados estudos que observaram alunos e profissionais da Odontologia com conhecimento insatisfatório sobre Biossegurança (LOPES et al., 2019; OLIVEIRA et al., 2017). Nesse contexto, existem alertas sobre a necessidade de aprimoramento do ensino da Biossegurança nos cursos de Odontologia, tanto em disciplinas específicas quanto nas de abordagem interdisciplinar, de modo a melhorar a assimilação e a sedimentação do conhecimento, bem como a adesão às práticas de Biossegurança pelos profissionais em formação e formados (ARMOND et al., 2016; BELLISSIMO-RODRIGUES; BELLISSIMO-RODRIGUES; MACHADO, 2010; GOMES et al., 2014; RIBEIRO, 2004; TREZENA et al., 2019). Destaque-se que o aprimoramento do ensino inclui aulas ministradas por docentes com formação em Biossegurança e que utilizem estratégias educativas motivadoras, bem como capacitação de todos os trabalhadores de todas as categorias profissionais que atuam na clínica e que também precisam seguir normas e protocolos de Biossegurança (ARMOND et al., 2016; RIBEIRO, 2004).
As informações coletadas junto aos coordenadores sobre o conteúdo programático da disciplina específica para o ensino de Biossegurança, bem como sobre os tópicos sobre o tema ministrados nas disciplinas não específicas foram agrupadas em 30 categorias, conforme as semelhanças das respostas (Quadro 2):
Categorias | N | ||
---|---|---|---|
Cursos com disciplina específica | Cursos sem disciplina específica | ||
Precauções-padrão/Protocolos/Conduta em ambiente clínico | 31 | 19 | |
Preparo do ambiente clínico / Montagem do equipo (crítico e semicrítico) / Processamento de instrumentais odontológicos / Controle de contaminação e infecção em ambiente odontológico / Gestão da qualidade | 30 | 37 | |
Riscos ocupacionais | 24 | 8 | |
Gerenciamento de resíduos / Educação ambiental | 23 | 7 | |
Acidente com perfurocortante/exposição a material biológico: prevenção/conduta pós-acidente | 16 | 1 | |
Doenças infecciosas/transmissíveis e não infeciosas/não transmissíveis na prática odontológica / Tecnopatias na prática odontológica | 16 | 3 | |
Conceitos/Terminologia/Princípios básicos/História | 13 | 3 | |
Ergonomia / Instalação do consultório odontológico | 12 | 1 | |
Legislação/Normas | 11 | 3 | |
Imunização | 10 | 7 | |
Biossegurança em Odontologia | 7 | 5 | |
Saúde ocupacional/Saúde do trabalhador | 5 | - | |
Atendimento a situações de emergência | 2 | - | |
Documentação odontológica | 2 | - | |
Órgão dental / bancos de dentes | 2 | 1 | |
Segurança do paciente | 2 | - | |
Anatomia, Histologia, Bioquímica e Genética e Microbiologia em Odontologia | 1 | - | |
Atenção primária à saúde/à saúde bucal | 1 | - | |
Atividades práticas e metodologias ativas visando aplicação dos conceitos teóricos | 1 | - | |
Bioética | 1 | - | |
CIPA | 1 | - | |
Comissão de controle de infecção Odontológica | 1 | - | |
Controle da qualidade da água e do ar | 1 | - | |
Humanização na saúde | 1 | - | |
Instruções de higiene oral e enxaguatórios bucais | 1 | - | |
Mercado de trabalho | 1 | - | |
Microbiologia em Odontologia | 1 | - | |
Prevenção de cárie e doença periodontal | 1 | - | |
Princípios biológicos do indivíduo saudável | 1 | - | |
Razão, meios e aplicabilidade clínica | 1 | - | |
Sem resposta / Não recorda | 4 | 2 |
A partir da análise dos tópicos sobre Biossegurança ministrados, verificou-se um conteúdo mais substancial sobre o tema nos cursos em que há uma disciplina específica, em comparação com aqueles em que a Biossegurança não consta no currículo como disciplina. Bellissimo-Rodrigues, Bellissimo-Rodrigues e Machado (2010) advertiram que sem uma disciplina específica, há o risco de o conteúdo sobre Biossegurança ficar diluído em outras disciplinas e ser ensinado de forma desestruturada, sem uma abordagem efetiva. Para Zenckner (2006), colocar a Biossegurança dentro de outra disciplina de certa forma desmerece a importância do tema. Meireles e Lindino (2020) observaram maior percepção de conhecimento entre acadêmicos que estudaram o tema investigado em uma disciplina específica em comparação aos que o estudaram integrado a outras disciplinas.
Percebe-se que no currículo de ambos os tipos de cursos há predominância de tópicos relacionados a prevenção e controle de infecção, o que pode ser considerado acertado, posto que a contaminação por micro-organismos patogênicos é um dos principais riscos relacionados ao trabalho odontológico (ARMOND et al., 2016; KUHN et al., 2018; TREZENA et al., 2019). O tópico sobre imunização recebeu pouca, mas similar citação dos coordenadores dos dois tipos de cursos, corroborando estudos que destacaram a importância desse tema e até sugeriram cobrança do esquema vacinal completo para todos os envolvidos nas atividades clínicas, especialmente os discentes (ARMOND et al., 2016; MAZUTTI; FREDDO; LUCIETTO, 2018).
Por outro lado, pode ser preocupante o fato de entre os cursos sem disciplina específica haver apenas uma citação a acidente com perfurocortante/exposição a material biológico: prevenção/conduta pós-acidente. Este tipo de acidente ocupacional tem alta frequência entre CDs e também alunos de Odontologia (MAZUTTI; FREDDO; LUCIETTO, 2018; NOGUEIRA et al., 2016), motivo pelo qual entende-se como altamente relevante que o tópico faça parte do conteúdo programático da formação em Odontologia. Nos demais tópicos, também foi verificada uma maior citação dos cursos com disciplina específica em comparação aos sem disciplina específica, sugerindo que naqueles que contam com uma disciplina exclusiva para o tema há uma abordagem mais enfática da Biossegurança.
Foi perguntado se a faculdade indicava aos alunos referências bibliográficas sobre Biossegurança. Dentre aquelas que possuíam disciplina específica, 42 responderam sim e apenas 01 respondeu não. Já entre as que não possuíam disciplina específica, 23 afirmaram indicar referências sobre o tema, 03 disseram que não indicavam e 01 coordenador não respondeu. Todas as referências citadas foram checadas, o que permitiu detectar e excluir da relação final duas referências desatualizadas e uma que não foi possível ser identificada.
Assim, verificou-se um total de 100 referências bibliográficas, entre livros-texto contendo conceitos e fundamentos (54), manuais técnicos (21), legislações (8), artigos científicos (5), manual ou procedimento operacional padrão (POP) elaborado pela própria instituição (3), protocolo (1) e termos genéricos sem especificação de título e autor (8). Em ambos os grupos, houve maior citação para livros-texto, com predominância de alguns clássicos sobre Biossegurança em Odontologia, tais como Naressi, Orenha e Naressi (2013) (18), Silva, Ribeiro e Risso (2009) (16), Hirata, Hirata e Mancini Filho (2016) (12) e Estrela e Estrela (2003) (4). No quesito legislação, a mais citada foi a Portaria 1.748/2011, que dispõe sobre a Norma Regulamentadora N° 32 (NR-32) e o Plano de Prevenção de Riscos de Acidentes com Materiais Perfurocortantes (BRASIL, 2011). Acerca da autoria, houve predominância de textos de instituições do governo brasileiro, com um total de 27 documentos, incluindo manuais técnicos, protocolo e legislação sobre o tema, com destaque para o manual técnico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2006) sobre prevenção e controle de riscos nos serviços odontológicos (11).
Os coordenadores dos cursos com disciplina específica citaram 85 diferentes referências, divididas entre livros-texto com conceitos e fundamentos (50), manuais técnicos (21), legislações (8), artigos científicos (5) e protocolo (1). Houve um maior número de citações de textos produzidos por instituições governamentais brasileiras (24). Dentre as publicações não-governamentais, os autores mais citados foram Silva Ribeiro e Risso (2009) (13), Naressi, Orenha e Naressi (2013) (11) e Hirata, Hirata e Mancini Filho (2016) (8).
Para os cursos sem disciplina específica para Biossegurança, os coordenadores citaram 21 diferentes referências, divididas entre livros-texto contendo conceitos e fundamentos (8), manuais técnicos (2), manual/POP elaborado pela própria instituição (3), termos genéricos sem título/autor (8). Nesse grupo, os autores mais citados foram Naressi, Orenha e Naressi (2013) (7), Hirata, Hirata e Mancini Filho (2016) (4), Estrela e Estrela (2003) (4) e Silva, Ribeiro e Risso (2009) (3).
A maior quantidade e abrangência das referências informadas pelos coordenadores de cursos com disciplina específica, em comparação aos sem disciplina específica, provavelmente está relacionada à já citada diferença no volume de tópicos sobre Biossegurança. A preferência por livros-texto, conforme observado por Catarino e Chiara (2014), procura facilitar os alunos que dependem da biblioteca da instituição para acessar os conteúdos, bem como pelo fato de inexistirem livros eletrônicos em todas as áreas do conhecimento. Além disso, livros textos são mais facilmente assimilados que outros tipos de publicação.
Dentre os manuais técnicos recomendados pelos cursos com disciplina específica, foram citados textos elaborados por instituições governamentais brasileiras (13), órgãos de classe da Odontologia (2), instituições regulamentadoras e de pesquisa (3) e autores diversos (3). Nos cursos sem disciplina específica que citaram manuais técnicos, os textos são de autoria da própria IES (3). Em geral, nos manuais técnicos constam os riscos existentes no ambiente de trabalho, assim como as práticas e procedimentos de Biossegurança necessários à minimização ou eliminação da exposição aos riscos inerentes à atividade.
Percebeu-se que a maioria das IES revisam rotineiramente a bibliografia indicada aos alunos. Os cursos com disciplina específica citaram como periodicidade da revisão: a cada 6 meses (4), entre 6 e 12 meses (21), entre 12 e 18 meses (7), entre 18 e 24 meses (6), mais de 24 meses (4) e não informado (1). Nos cursos sem disciplina específica, a revisão da bibliografia ocorre entre 6 e 12 meses (2); entre 12 e 18 meses (9); entre 18 e 24 meses (2); mais de 24 meses (6); nunca é atualizado (2); não informado (4).
A relevância da bibliografia reside no fato de ser o meio pelo qual o aluno poderá buscar informações adicionais sobre o seu assunto de interesse (CATARINO; CHIARA, 2014). Por isso, a atualização sistemática das referências permite mantê-las adequadas às exigências da formação, bem como acompanhar mudanças nos projetos pedagógicos das IES, nas normas/legislações pertinentes e nas exigências dos órgãos fiscalizadores do Ministério da Educação (MEC) (BRASIL, 2017) e, desta maneira, fomentar e satisfazer as necessidades de informação do aluno.
Periodicamente, as IES do Brasil são avaliadas pelo MEC, visando à renovação da autorização de funcionamento. Um dos critérios de análise consiste na avaliação do acervo bibliográfico, que precisa estar em conformidade com a bibliografia citada nos planos de ensino. Nesse sentido, esta pesquisa considera que a revisão das referências bibliográficas dos cursos deve seguir pelo menos a mesma periodicidade das avaliações do MEC, de modo a evitar a indicação de textos obsoletos e também contribuir para uma melhor avaliação do curso. Às IES, assim como aos docentes, cabe a responsabilidade pela atualização permanente dos conhecimentos, atenção à evolução da ciência, busca por novas ideias e compreensão da realidade atual (LACERDA; SANTOS, 2018).
3.2 Cursos com disciplina específica para o ensino de Biossegurança
Foram identificadas 28 nomenclaturas diferentes para a disciplina, conforme demonstrado no quadro 3.
Modo de oferta (N° cursos) | Nomenclaturas |
---|---|
Biossegurança acompanhado ou não de termo aludindo à Odontologia (16) | Biossegurança; Biossegurança em Odontologia; Biossegurança Odontológica; Biossegurança Aplicada à Odontologia |
Associada à Ergonomia (8) | Biossegurança e Ergonomia; Ergonomia e Biossegurança; Ergonomia em Odontologia e Biossegurança; Princípios Básicos de Ergonomia e Biossegurança |
Associada à Ergonomia e à Saúde do Trabalhador (1) | Biossegurança, Ergonomia e Saúde do Trabalhador |
Associada a outra disciplina (4) | Bioética e Biossegurança; Biossegurança e Introdução à Clínica; Biossegurança e Saúde Ambiental; Gestão em Saúde e Biossegurança |
Sem menção ao termo Biossegurança (14) | Orientação profissional; Orientação Profissional e Ergonomia; Pré-Clínica; Pré-Clínica Odontológica; Prática profissional: ciência e Odontologia; Práticas Profissionais; Atenção Integrada em Odontologia I; Atenção Primária a Saúde; Clínica Integrada de Atenção Básica; Integralidade da Atenção à Saúde; Introdução à Clínica Odontológica; Microbiologia Bucal; Odontologia e meio ambiente; Seminários Integrados I |
Este resultado mostra-se em consonância com o objetivo da Biossegurança que, para proteger o CD, a equipe e os pacientes contra os agentes de risco presentes na prática odontológica, recomenda a adoção de medidas de controle dos riscos ocupacionais e de controle da infecção, práticas ergonômicas e desempenho ético com preocupações sociais e ambientais (ANVISA, 2006). A associação da Biossegurança com a Ergonomia é a mais frequente nos cursos de graduação em Odontologia brasileiros (MOIMAZ et al., 2019), interface que também é encontrada na Universidade Nacional de Córdoba - Argentina (2020).
A pesquisa pela forma de organização da disciplina de Biossegurança no currículo dos cursos identificou-se que, semestralmente, a disciplina apresentava uma média de 45 alunos/turma, com um mínimo de 15 alunos e um máximo de 80. O ciclo da disciplina era anual em 6 cursos e semestral em 37.
Para os cursos de ambos os ciclos, anual e semestral, verificou-se uma carga horária média de 50 horas/aula, com carga horária mínima de 15 horas/aula. Já a carga horária máxima foi de 90 horas/aula para os cursos com ciclo anual e de 128 horas/aula para os de ciclo semestral. Um coordenador citou o reforço da transmissão dos conhecimentos de Biossegurança em todas as clínicas integradas, que não contabilizava para a carga horária da disciplina de Biossegurança.
Uma aula costuma ter quatro horas de duração. As DCN (2018) determinam que 20% da carga horária total do curso deve ser destinada a estágio supervisionado, o qual não pode estar incluído na carga horária das atividades práticas. Assim, estima-se que a carga horária destinada a aulas teóricas e práticas nos cursos investigados seria: média de 40 horas/aula (10 aulas), mínimo de 12 horas/aula (3 aulas), máximo de 72 horas/aula (18 aulas) para os de ciclo anual e de 102,4 horas/aula (25,6 aulas) para os semestrais.
As cargas horárias para o ensino de Biossegurança mais comumente citadas na literatura são as de 30 e 45 horas/aula em um semestre Toassi (2008); Razaboni (2008). Para Razaboni (2008), quando há mais de um período da mesma disciplina, deve-se evitar que o docente seja o mesmo nos dois tempos para não ficar repetitivo, e que sejam empregadas metodologias ativas de aprendizagem para evitar a perda de interesse dos alunos dos períodos mais adiantados e que já se encontram em aulas essencialmente práticas. Diante da relevância da Biossegurança na prática odontológica, pode-se supor que 15 horas/aula, conforme verificado em alguns cursos, sejam insuficientes para transmitir conhecimentos e treinar exitosamente os alunos.
Houve variação no semestre/período de oferta da disciplina, com predomínio dos iniciais: 1º semestre (7); 2º semestre (11); 3º semestre (13); 4º semestre (7); 5º semestre (2); 6º semestre (2); 10º semestre (1).
É senso comum a recomendação de que o processo formativo em Biossegurança seja iniciado nos primeiros períodos do curso (GOMES et al., 2014; LAGES et al., 2015; LOPES et al., 2019; MANCINI; REVILL, 2008), conforme ocorre em algumas IESs de países do Mercosul (UCU, 2020; UNA, 2019; UNC, 2020), de modo a construir uma sólida base teórica, promotora de uma cultura de consciência e responsabilidade, que garanta aos alunos uma entrada mais confiante nas atividades clínicas. Porém, é preciso atentar para o fato de que certos aprendizados fundamentais nos períodos iniciais (básicos), como é a Biossegurança, precisam estar articulados com o período profissionalizante (NORO et al., 2017). Nesse contexto, estudos destacaram a necessidade de reforçar o ensino da Biossegurança ao longo de todo o curso, especialmente nas disciplinas que envolvem atividades práticas, para fortalecer a sensibilização e a sedimentação dos conhecimentos atitudes e práticas dos alunos e futuros profissionais (ARANTES et al., 2015; LAGES et al., 2015; TREZENA et al., 2019).
Verificou-se que em 11 cursos havia outra disciplina como pré-requisito para a específica sobre Biossegurança, enquanto em 32 não havia pré-requisito. Também foi verificado que em 26 cursos, a disciplina específica para o ensino de Biossegurança era pré-requisito para outra disciplina - sendo 20 profissionalizantes - e em 17 cursos não era pré-requisito para outras disciplinas.
É recomendado evitar a quantidade excessiva de pré-requisitos e manter somente as disciplinas imprescindíveis ao aprendizado crescente, de modo a fornecer certa flexibilidade e autonomia de escolha aos alunos (BRASIL, 2000; TOASSI et al., 2012). Porém, tendo em vista a relação direta da Biossegurança com a segurança do exercício da Odontologia, considera-se indispensável que esta disciplina seja pré-requisito para aquelas que envolvem atividades práticas.
3.3 Cursos sem disciplina específica para o ensino de Biossegurança
Em 25 cursos desse grupo, a Biossegurança fazia parte do conteúdo programático de alguma outra disciplina. Somente um coordenador informou que o curso não incluía tópicos de Biossegurança em outra disciplina.
As disciplinas não específicas, com nomenclaturas variadas, que continham tópicos de Biossegurança em seu conteúdo programático compunham três grupos: com atividades práticas (20), preparatórias para a prática (6), teóricas (11) e outras (3).
A estratégia interdisciplinar é fundamentada na competência de cada especialista e no diálogo constante entre estes, os quais devem atuar de forma articulada, com disponibilidade para colaborações e troca de saberes, tendo como objeto a elaboração e implantação dos planos de ensino interdisciplinares, respeitando as especificidades e a qualidade de cada disciplina (ALMEIDA FILHO, 2014). Assim, é possível dizer que para as IES há o desafio de estabelecer e manter o diálogo, a integração e a troca de saberes entre os docentes, visando à uma formação com excelência acadêmica, pautada em princípios éticos e humanistas.
Pode-se apontar como limitação deste estudo o fato de não terem sido encontradas publicações sobre o assunto oriundas de outros países, além do Brasil, que permitissem comparar o ensino de Biossegurança na formação de CDs brasileiros com os de outras nacionalidades. Por outro lado, a força do estudo reside no fornecimento de informações que podem contribuir para o aprimoramento do ensino da Biossegurança na Odontologia, além de mostrar que na literatura há um gap de estudos sobre esse tema, especialmente em outros países, os quais seriam contribuições importantes para a discussão sobre a forma como os futuros profissionais estão sendo preparados para enfrentar os riscos ocupacionais da Odontologia.
4 Conclusão
A maioria das IES investigadas mantém um processo formativo empenhado em transmitir conhecimentos e treinar seus alunos acerca da Biossegurança. Algumas deveriam ampliar os tópicos sobre Biossegurança abordados e/ou aperfeiçoar o ensino sobre o tema ao longo do curso.
Considera-se que o ideal seja a presença de uma disciplina específica para Biossegurança, de caráter obrigatório, na matriz curricular dos cursos de graduação em Odontologia, no primeiro ano do curso. Como a Biossegurança abrange uma série de princípios e práticas interdisciplinares na busca do atendimento integral do paciente, vê-se a nomenclatura “Biossegurança” como adequada para identificar o conteúdo da disciplina.
Mesmo sendo específica, a disciplina não deve perder a essência interdisciplinar. Nesse sentido, a disciplina Biossegurança deve ser responsável por fornecer a todos os alunos os conhecimentos e treinamentos necessários, bem como por auxiliar no direcionamento das atividades de sensibilização e consolidação dos conhecimentos, atitudes e práticas em outras disciplinas, especialmente nas que envolvem atividades práticas.
Com base nos resultados e na literatura sobre o tema, acredita-se que os seguintes tópicos sobre Biossegurança sejam essenciais no processo formativo dos cirurgiões-dentistas:
- Acidente de trabalho com exposição a material biológico: prevenção e conduta pós-acidente;
- Antissepsia da boca do paciente;
- Barreiras físicas de proteção;
- Conceitos, fundamentos e relação com outras disciplinas;
- Desinfecção dos equipamentos e do ambiente;
- Doenças ocupacionais transmissíveis e não transmissíveis na Odontologia;
- EPI;
- Ergonomia na prática odontológica;
- Fontes e rotas de contaminação no ambiente odontológico;
- Gerenciamento de resíduos de serviços de saúde;
- Higienização das mãos;
- Imunização (obrigatória para todos os alunos, docentes e demais envolvidos nas atividades clínicas);
- Leis e normas;
- Manifestações bucais de doenças infecciosas;
- Manuseio e descarte adequado de perfurocortantes;
- Processamento de instrumentais odontológicos: procedimentos pré-esterilização (descontaminação, limpeza, secagem, inspeção visual, embalagem), monitoramento dos ciclos de esterilização (indicadores físicos, químicos e biológicos), esterilização do instrumental (meios físicos, químicos e físico-químicos);
- Proteção da equipe de saúde;
- Qualidade da água e do ar;
- Qualidade de vida no trabalho (QVT);
- Radioproteção;
- Riscos ocupacionais na Odontologia;
- Segurança do paciente.
Desta feita, buscou-se incentivar o aprimoramento do ensino da Biossegurança na Odontologia e, consequentemente, contribuir para a formação de cirurgiões-dentistas capazes de articular os conhecimentos adquiridos e, de forma crítica e humanizada, prestar um atendimento integral ao paciente. Espera-se que os coordenadores dos cursos de formação em Odontologia compreendam a importância desta temática para a saúde e segurança do cirurgião-dentista, assim como dos pacientes e do ambiente, e insiram/aprimorem o ensino da Biossegurança no currículo da IES sob suas responsabilidades.