Introdução
O enunciado de Hargreaves (1998), permite refletir sobre o elemento mais importante de todos os tempos, isto é, sobre o próprio tempo. Qual a importância do tempo para a escola? E para a prática docente? E, mais especificamente, para a formação do estudante do ensino médio?
Ao longo dos anos, a realidade brasileira tem revelado os desafios que acompanham esse nível de ensino – última etapa da educação básica para a formação do estudante, sobretudo na modalidade1 da Educação de Jovens e Adultos (EJA) –, não só pelas suas peculiaridades e sua pluralidade, mas também pela sua posição secundarizada no âmbito das políticas públicas e das políticas educativas no sistema educacional brasileiro, onde a educação básica ainda não é prioridade.
Neste contexto, o campo da EJA ainda não está consolidado, o que permite que os conflitos, as tensões, as disputas e as exclusões sejam aspectos fortes ao longo da sua história, sem prejuízo de um novo olhar ser construído, um olhar “[...] que os reconheça como jovens e adultos em tempos e percursos de jovens e adultos” (ARROYO, 2011, p. 23), com direito a uma educação que reconheça as suas especificidades e necessidades, sobretudo, no ensino médio.
No cenário atual, com todas as mudanças resultantes da Reforma do Ensino Médio pela Lei 13.415/17 (BRASIL, 2017), justifica-se a urgência e a necessidade de reestruturar esse nível de ensino, sendo considerados aspectos relevantes o tempo e o currículo. Nesse sentido, interessa neste artigo discorrer sobre as concepções, as funcionalidades e os efeitos práticos do tempo, que se constitui como tempo curricular, pensado e organizado para a formação dos estudantes do ensino médio da EJA, no espaço-tempo da escola. Nesta perspectiva, o tempo curricular funciona como um artefato cultural, de fundamental importância para o professor, como refere Hargreaves (1998, p. 105), “[...] trata-se de um elemento fundamental na formação do seu trabalho”. Assim, a forma da organização do ensino médio dá visibilidade ao modo como funciona a prática docente e como os professores e os estudantes concebem o tempo e o currículo.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 (BRASIL, 1996), no seu Artigo 10, afirma que os estados devem “[...] assegurar o ensino fundamental e oferecer, como prioridade, o ensino médio a todos que o demandarem, respeitado o disposto no art. 38º desta Lei”. Desse modo, a política educativa deve ser contundente e afirmativa, pois a elevação do nível de escolaridade é um dos maiores desafios, seguido da conclusão de curso do ensino médio, sobretudo para o estudante da EJA que, pelos seus modos, é pensada e estruturada em tempos e espaços que diferem dos outros níveis de ensino, principalmente no horário noturno.
Neste sentido, o tempo como uma categoria-chave, “[...] é regulado e estruturado em função de uma organização social diferenciada, que obriga os homens a se disciplinarem” (ELIAS, 1998, p. 42), e nos ajuda a compreender a organização da sociedade e das instituições, nomeadamente da escola. Por isso, tem uma importância fundamental no processo de formação dos estudantes. Para o autor, “[...] do ponto vista sociológico, o tempo tem uma função de coordenação e integração” (ELIAS, 1998, p. 45), o que contribui para compreender a importância do tempo curricular nos processos educativos, formais e não formais, bem como as suas implicações nos propósitos e nos objetivos educacionais pensados e definidos no âmbito da própria dinâmica social da escola.
O tempo é um elemento fundamental tanto na construção do próprio currículo como na sua materialização ao nível das práticas docentes, contribuindo, assim, para que a escola como instituição formal, concretize uma das suas principais funções: propiciar aos estudantes conhecimentos e saberes necessários para elevação do seu nível de escolaridade, essencial quer para o seu pleno desenvolvimento pessoal e social, quer para a sua inserção na sociedade e no mundo do trabalho, numa lógica pautada por um verdadeiro exercício da cidadania.
O tempo curricular como elemento de coordenação e regulação da EJA no Ensino Médio
O tempo, como o espaço, não é um esquema formal simples ou uma estrutura neutra em que a educação é 'esvaziada'. Não é apenas uma moldura, delimitada por uma origem e um término, em que os eventos educacionais acontecem, isto é, onde as atividades escolares estão ‘situadas’ (ESCOLANO, 1992, p. 56, tradução nossa).
Na sociedade contemporânea, as mudanças são mais rápidas, mais intensas e mais complexas, exigindo, por isso, novos olhares, novos questionamentos e novas formas de compreender as transformações e seus efeitos em diversos espaços de referência, nomeadamente o espaço escolar. Daí, Husti (1992, p. 287, tradução nossa) afirma que “[...] a organização do tempo escolar é um fator importante do funcionamento da sociedade”. Uma percepção que leva a refletir e a tentar ressignificar as concepções sobre a escola, bem como sobre os seus efeitos práticos na formação dos estudantes, neste caso, dos estudantes que frequentam a EJA no ensino médio.
Por conseguinte, é preciso compreender o papel da escola, o trabalho dos professores e a formação do estudante, para compreender o impacto dessas mudanças, de como o tempo é vivenciado e qual o seu significado no processo educativo. Para Elias (1998, p. 45), “[...] o tempo tem uma função de coordenação e de regulação”, o que lhe permite concluir que os artefatos sociais, como os calendários ou os relógios, possuem uma função reguladora, que determina o tempo de permanência na escola e na sala de aula, o tempo curricular e o próprio tempo de aprendizagem.
Estas categorias de coordenação e de regulação, pela sua relevância, são significativas na análise do tempo curricular e das suas implicações na prática docente da EJA no ensino médio. Assim, o tempo medido e regulado implica “[...] não só relacionar os acontecimentos de um modo específico, mas também percebê-los e vivê-los de um modo particular” (VARELA, 1992, p. 2), tanto na escola como na sala de aula. Deste modo, “[...] o relógio incorporado ao edifício-escola é um organizador da vida da comunidade e também da vida da infância” (ESCOLANO, 1998, p. 43-44), da mesma forma dos jovens e adultos, em geral.
Nesta ordem de ideias, tornou-se interessante nesta pesquisa analisar o tempo como um elemento de fundamental importância na formação e no desenvolvimento do ser humano, num processo onde a escola, enquanto instituição formal, organiza tempos e espaços para aprendizagens dos estudantes da EJA, com as suas pluralidades sociais, econômicas e culturais. Na verdade, “[...] são muitas as influências e entrecruzamentos entre o espaço e o tempo” (VIÑAO FRAGO, 1998, p. 63), sobretudo, no espaço da escola destinado ao horário noturno.
Na opinião de Elias (1998), Hargreaves (1998) e Husti (1992), o tempo é um referencial relevante e estruturante do funcionamento da sociedade, da escola e das possíveis mudanças na vida dos sujeitos. Este é o motivo da análise do tempo curricular e da prática docente na sala de aula neste estudo, para a partir de sua análise, compreendermos os seus efeitos na formação dos estudantes.
Além dos motivos enunciados acima, também tornou-se prioritário compreender o tempo curricular como artefato cultural, como espaço de relações sociais na sala de aula e, ainda, como espaço e tempo específico, essencial para a concretização das finalidades educacionais. Como refere Viñao Frago (1998, p. 66), “[...] ali, onde se aprende e se ensina, sempre é um lugar, cria-se um lugar”, um lugar para os estudantes da EJA, para os estudantes do ensino médio. Dito de outro modo, um lugar para sujeitos de direitos, trabalhadores plurais, cidadãos e cidadãs com as suas expectativas de aprendizagens, de desenvolvimento de saberes e de competências e de uma certificação que possibilite uma melhor inserção na sociedade e no mundo do trabalho.
Com efeito, são sujeitos que ao longo da história viram, e ainda veem, os seus direitos negados, inclusive, de acesso e permanência na escola. Por isso, o reconhecimento do direito à educação é de fundamental importância para uma efetiva reconstrução do exercício da cidadania. E, nesse processo, “[...] o tempo curricular é reconhecido como um elemento fundamental na formação e desenvolvimento do ser humano, onde a escola, na sociedade contemporânea, é um espaço e tempo forte que contribui para essa formação” (SÉRGIO, 2018, p. 20). Assim, é através da prática que o currículo é materializado, criando condições para a apropriação de conhecimentos e saberes necessários à vida por parte desses estudantes, reconhecidos como sujeitos de direitos, cidadãos e cidadãs com histórias de vida, de marginalização e de exclusão social, política, econômica e cultural.
É também na prática que o tempo tem uma função de coordenação e integração, reiterando Elias (1988, p. 45), para quem o tempo assume um claro protagonismo ao nível da regulação do próprio processo de ensino e aprendizagem. Neste sentido, o tempo e o currículo configuram-se como elementos estruturantes do ensino médio na modalidade da EJA, por seus modos e tempos diferenciados. Por isso, o currículo deve ser pensado e reorganizado na perspectiva da “[...] EJA como um tempo de educação de trabalhadores” (ARROYO, 2017, p. 43), tempo esse que propicie a concretização de práticas que viabilizem e assegurem a construção de saberes e o desenvolvimento de atitudes, valores e competências pelos estudantes.
Por fim, importa reiterar que para compreender o tempo curricular, nesta modalidade de ensino, é necessário observá-lo, revelá-lo e analisá-lo na prática docente, planejada e vivenciada no cotidiano da vida desses sujeitos.
Prática docente na Educação de Jovens e Adultos
Outro saber necessário à prática educativa é o da inconclusão do ser que se sabe inconcluso -, é o que fala do respeito devido à autonomia do ser do estudante. Do educando criança, jovem ou adulto (FREIRE, 1996, p. 59).
Os desafios da sociedade da informação e do conhecimento exigem da escola novas posturas, consubstanciadas em novas formas de ensinar e de aprender. Na opinião de Hargreaves (2003, p. 37), “[...] a sociedade do conhecimento é a sociedade da aprendizagem”, o que compele a escola a criar condições para que os jovens e adultos desenvolvam as competências e habilidades necessárias para darem respostas a essas exigências. Nessa perspectiva, considera aqui a prática docente como uma ação específica do professor, ação essa que está relacionada diretamente com o “[...] maior ou menor sucesso educativo dos estudantes [...]” (MORGADO, 2005, p. 26), nomeadamente, no ensino médio, reconhecido como momento de finalização de uma etapa significativa de ensino.
Convém lembrar que, numa perspectiva freiriana, a prática curricular exige do professor um pensamento crítico, coerente com a sociedade atual, com a educação e com os educandos. Como reitera Freire (1996, p. 38), é essencial uma “[...] prática docente crítica, implicante do pensar certo [...]” e que, por isso, se consubstancia com base num “[...] movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer [...]”. Compreendese, assim, que a escola seja um espaço e um tempo de reflexão, que tenha uma função política, e que o ensino, enquanto prática social e cultural, se concretize por meio dessas funções e do envolvimento dos atores, ou seja, dos sujeitos educativos.
O professor, como figura central nesse processo, desenvolve uma prática que reflete “[...] a cultura e o contexto social a que pertence [...]” (SACRISTÁN, 1999, p. 67). Além disso, o seu trabalho nutre-se de vários elementos pedagógicos que refletem os aspectos políticos, sociais e culturais, que configuram a atividade docente e que devem, por um lado, garantir condições para exercer a sua profissão e, por outro, o direito a uma educação de qualidade, que os estudantes devem usufruir. Para que isso seja viável, Sérgio (2018, p. 56) considera necessário que sejam implementadas “[...] políticas que assegurem e legitimem a elevação do nível de escolaridade, a profissionalização e a formação para a vida com direitos e deveres específicos e culturalmente diversos”, para sujeitos plurais, que desejam a permanência na escola e a conclusão do ensino médio.
À luz destas ideias, reconhece aqui a importância da função do professor e o estatuto da profissionalidade docente constituída pelos seus saberes plurais (TARDIF, 2000), que, na arte de ensinar, produzem seus saberes e constroem conhecimentos no cotidiano da sala de aula. Por isso, ao mencionar a prática docente, reporta aqui às ideias de Arroyo (2000) e de Nóvoa (1999), que consideram os professores como profissionais que possuem um ofício, o que lhes confere uma ação específica – a prática docente e o currículo em ação vivenciados no tempo curricular da EJA.
Relativamente à EJA, importa lembrar que se trata de uma modalidade de ensino que carrega fortes marcas, resultantes em grande parte da ausência de políticas públicas e curriculares eficazes, e que ao longo das décadas negligenciaram a sua inclusão e visibilidade, de fato e de direito, como educação básica, quando, na verdade, se trata de um espaço e um tempo, institucionalmente legítimo, dos estudantes trabalhadores. De acordo com as análises de Rummert (2007, p. 63) “[...] É sem dúvida, uma educação de classes. Assim, se configura, no Brasil, como uma oferta de possibilidade de elevação da escolaridade para aqueles aos quais foi negado à educação na fase da vida historicamente considerada adequada”.
Dessa forma, trata-se de uma dívida histórica e política, que deve ser reparada2 como direito público e subjetivo, desse modo, assegura o Art. 208 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), a qualquer cidadão ou cidadã.
Nesta linha de pensamento, considera que uma prática docente significativa para os estudantes da EJA “[...] envolve múltiplos determinantes que vão desde os contextos institucionais, tradições metodológicas organizacionais, possibilidades reais dos professores, o meio e as condições físicas existentes” (SACRISTÁN, 1991, p. 241, tradução nossa). Sem dúvida, um conjunto de aspectos relevantes, necessários para a prática do professor e para o processo de ensino e aprendizagem. Ao observar a sala de aula, constata-se a existência de uma prática docente voltada para as diversidades e necessidades dos estudantes.
Na opinião de Morgado (2004, p. 13), as políticas educativas e curriculares devem “[...] enaltecer o papel da escola, como espaço central de toda a ação educativa, e dos professores, como elementos nucleares em todo esse processo [...]”, o que permite desenvolver práticas docentes significativas, focadas nos objetivos da formação ao nível do ensino médio, que permitam os estudantes apropriar-se de conhecimentos e saberes contextualizados com a sua vida pessoal e profissional. Trata-se de um conjunto de finalidades essenciais no desenvolvimento da EJA, sobretudo, por se tratar de estudantes que, na sua trajetória de jovens e adultos, retornam à escola com o desejo de aprender e o desejo de obter a certificação.
De fato, as perspectivas de uma vida melhor, mais justa e mais digna, impulsionam o retorno de muitos estudantes à escola. As suas percepções são muito claras ao reconhecerem que a formação é o caminho para uma melhor inserção na vida social e, principalmente, no mundo de trabalho. Estas expectativas são as molas propulsoras para o retorno às salas de aula, com grandes expectativas de superar dificuldades. Nesta ordem de ideias, uma prática docente para estudantes trabalhadores noturnos exige um tempo curricular que permita “[...] que se apropriem de conhecimentos essenciais para ressignificarem a sua compreensão do mundo e da sociedade, criando-se assim, condições de exercerem a cidadania” (SÉRGIO; MORGADO, 2014, p. 137). Intrinsecamente, trata-se de criar condições para que se tornem sujeitos de direitos em termos sociais, culturais e, sobretudo, profissionais.
Em suma, sendo a prática um percurso predefinido e intencional, consubstancia-se a partir de um conjunto de ações permeadas de conhecimentos plurais, que o professor organiza e reorganiza num dado tempo curricular, de modo a fazer um trabalho coerente com os princípios da EJA e do ensino médio. Como defende Paulo Freire (FREIRE, 2003), uma prática docente humanizadora, crítica e ética, que visa o sujeito histórico e social, por consequência, que visa também os sujeitos da EJA.
Opções metodológicas
A problemática deste estudo – compreender a organização da escola a partir da prática docente – e a trajetória investigativa que permitiu deslindá-la incidiu na sala de aula e sustentou-se no paradigma interpretativo. Trata-se de um paradigma em que, de acordo com Carr e Kemmis (1988, p. 98, tradução nossa), procura-se “[...] substituir as noções científicas de explicação, previsão e controle pelas interpretações de compreensão, significado e ação”. No presente caso, interessou nesta pesquisa conhecer as interpretações que os sujeitos têm sobre a sala de aula, realidade em que estão inseridos, bem como o significado que consignam à sua prática.
Em consonância com este paradigma e à luz de autores como Bogdan e Biklen (1994), Denzin e Lincoln (1994) e Lüdke e André (1986), optou-se por uma investigação qualitativa que permitiu compreender os significados dos comportamentos e das atitudes dos professores e dos estudantes. De acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 50), esse significado “[...] é de importância vital na abordagem qualitativa [...]”, pois trata-se de compreender quais os sentidos que os sujeitos dão às suas percepções e às suas vidas nos contextos em que estão inseridos, dentre eles, a escola e a sala de aula.
Importa referir como destaque a escola e a sala de aula, por serem ambientes permeados de sentidos e significados para os estudantes e os professores da EJA. Corroborando essas ideias, Denzin e Lincoln (1994, p. 7, tradução nossa) afirmam que na pesquisa qualitativa a metodologia de investigação se centra “[...] na maneira pela qual os seres fazem sentido de sua realidade subjetiva e atribuem significado a ela”. Por isso, destaca-se a relevância e o cuidado do olhar e da percepção que o investigador deve lançar sobre os sujeitos, bem como sobre as suas opiniões, crenças e sentimentos.
Em síntese, a pesquisa qualitativa, como defendem os autores referidos, têm como fonte de dados o ambiente natural, onde a realidade é construída pelos sujeitos e analisada e interpretada pelo investigador.
Com base no desenho metodológico idealizado e na natureza epistemológica da pesquisa qualitativa, optou-se pela realização de focus groups, por ser considerada uma técnica adequada para a recolha dos dados por meio das interações grupais, com a qual discute-se uma temática sugerida pelo investigador (MINAYO, 2000; MORGAN, 1997). Trata-se, portanto, de um procedimento metodológico que contribui de forma significativa para a recolha dos dados nas pesquisas qualitativas, como trata-se deste estudo.
A escola selecionada para a pesquisa foi uma escola da Rede Estadual de Ensino de Pernambuco, com estudantes e professores do módulo II e III da Educação de Jovens e Adultos do ensino médio, no horário noturno. No estudo, participaram noventa e um sujeitos: trinta e quatro estudantes do módulo II, quarenta e oito estudantes do módulo III e nove professores das diversas áreas de ensino (SÉRGIO, 2018).
Ao longo do tempo de permanência na escola e, de forma específica, na sala de aula, recorreu-se à observação não participante como técnica de recolha de dados, por se tratar de uma técnica que “[...] consiste exclusivamente, em contemplar o que está acontecendo e registrar os fatos sobre o terreno” (GOETZ; LECOMPTE, 1988, p. 153, tradução nossa). Uma técnica que, de acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 113), prevê que se “[..] registre de forma não intrusiva o que vai acontecendo e recolha, simultaneamente, outros dados descritivos”. Em suma, as observações permitiram, de forma direta e intensa, observar a vida na sala de aula e a gestão do tempo curricular por parte dos professores e dos estudantes no horário noturno.
Por fim, optou-se também pela análise documental, por se tratar de uma técnica que permitiu complementar as informações obtidas através da observação não participante e das entrevistas em focus groups. Para Bardin (2011, p. 51), a análise documental pode ser definida como “[...] uma operação ou conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente do original a fim de facilitar, num estado ulterior, a sua consulta e referenciação.” Nesta perspectiva, e seguindo os procedimentos necessários, procurou-se, nos textos analisados, compreender a influência do tempo curricular na prática docente da EJA no ensino médio.
Alguns resultados
Ao longo do período permanecido na escola e, de forma específica, na sala de aula, procurou-se compreender a organização do tempo curricular na prática docente da EJA no ensino médio. Nesse sentido, ver, ouvir e sentir as opiniões dos sujeitos jovens e adultos foi, de fato, muito relevante.
Ao longo do período permanecido na escola e, de forma específica, na sala de aula, procurou-se compreender a organização do tempo curricular na prática docente da EJA no ensino médio. Nesse sentido, ver, ouvir e sentir as opiniões dos sujeitos jovens e adultos foi, de fato, muito relevante.
As informações recolhidas nas entrevistas em focus groups permitiram compreender como é que os sujeitos da EJA percebem, concebem e organizam o tempo curricular nas suas vidas, em particular, a importância do tempo curricular na sua vida pessoal e profissional. Para os estudantes, o tempo curricular é visto como um elemento que condiciona a organização das suas vidas, reconhecendo algumas dificuldades para conciliar o tempo de trabalho com o tempo de estudo e o tempo de convívio familiar.
Também fazem referência à relação entre o tempo curricular e a aprendizagem. Para os estudantes, a influência desse tempo é importante e positiva para a aprendizagem, nomeadamente, na sala de aula. Referem que, no espaço-tempo da sala de aula, aprendem com os professores e com os colegas. Para os estudantes, o tempo curricular tem uma relevância significativa, porque contribui para a conclusão do ensino médio. A certificação do curso representa novas perspectivas de mudança, tanto na sua vida profissional como na sua vida pessoal.
Importa, ainda, referir que os estudantes consideram o tempo como um elemento que eles organizam em função dos diferentes papéis que assumem na sociedade. Nessa perspectiva, o papel de estudante tem um grande significado, pois é na escola e no interior da sala de aula que se apropria de conhecimentos e saberes necessários para a sua vida pessoal e profissional.
Partindo do princípio proposto por Hargreaves (1998, p. 106) de que o “[...] tempo é um recurso ou meio finito que pode ser aumentado ou diminuído, gerido, manipulado, organizado ou reorganizado com vistas a acomodar propósitos educacionais que tenham sido selecionados”, não surpreende que os professores considerem o tempo curricular como um elemento estruturante do currículo em ação. Acresce o fato de as suas opiniões permitirem concluir que o tempo curricular é significativo na organização das suas práticas na sala de aula. Na prática, consideram que o tempo curricular influencia o currículo e a aprendizagem dos estudantes.
De fato, “[...] o tempo curricular funciona como instrumento norteador e organizador das práticas, sendo, por isso, um elemento essencial para compreendermos as organizações que dele decorrem e a forma como a escola organiza e distribui esses tempos” (SÉRGIO, 2018, p. 161). Para os professores, o tempo curricular é o tempo exigido, o tempo destinado a cada disciplina, mas, que nem sempre é possível atingir os objetivos desejados. No entanto, é um tempo organizado e adequado para os estudantes da EJA.
Os aspectos referidos acima permitem, ainda, observar que “[...] falar do conceito de tempo curricular é fazer referência às mudanças tanto na organização dos planos de sistematização das disciplinas, quanto dos seus conteúdos” (PACHECO; FERREIRA; MACHADO, 2010, p. 186). Nesta perspectiva, o tempo é um elemento cultural e político de grandes possibilidades para a elevação do nível de escolaridade. Para os estudantes e para os professores, o tempo curricular é concebido como um dispositivo essencial na organização da sua vida pessoal e profissional. No contexto da sala de aula, o tempo, reorganizado e vivido, configura-se como um campo de possibilidades de aprendizagens.
Existe um aspecto de que não é possível deixar de mencionar: o fato de o tempo e o currículo serem concebidos como artefatos culturais que possibilitam o empoderamento dos estudantes pela apropriação de conhecimentos e de saberes sobre o qual Arroyo (2017, p. 132) afirma que “[...] o tempo da educação pode ser um tempo de afirmação do direito à cidadania e ao conhecimento.” Nesta ordem de ideias, observa-se que o currículo selecionado, reorganizado e vivenciado na prática docente, tem efeitos positivos na vida dos estudantes, permitindo, inclusive, que se assumam como indivíduos autônomos, com espírito crítico e interventivo.
Constata-se a permanência com modelos de ensino que continuam a fazer da memorização dos conteúdos didáticos um dos seus pilares centrais. O tempo é agora de mudança em diversos níveis, o que implica alterações significativas na escola, e em particular no currículo que nela se desenvolve. Trata-se, como reitera Morgado (2005, p. 24), de criar condições para que o ensino se assume como “[...] um conjunto de condimentos capazes de munirem a ação educativa de outro sentido e de contribuírem para que a escola não se esgote na mera transmissão de aquisição de conhecimentos”.
As mudanças referidas implicam que o currículo, em vez de ser visto como um repositório de conhecimentos a transmitir, seja reconhecido como um campo dinâmico de oportunidades, onde “as aptidões técnicas” cedem espaço, como afirma Harari (2018, p. 302), de “aptidões de vida polivalentes” necessárias para que os estudantes lidem com a mudança de forma mais sustentada, aprendam coisas novas e preservem o equilíbrio mental em situações até agora desconhecidas.
Neste processo de transformação e desenvolvimento, os professores assumem responsabilidades acrescidas, uma vez que são os principais atores e mediadores dos saberes escolares. No caso desta modalidade de ensino, aos professores é exigido que desenvolvam práticas que estimulem, para além dos saberes, habilidades, sensibilidades, afetos e compromissos com a EJA, aspectos que, na opinião de Hargreaves (1998, p. 105), não se limitam a reproduzir apenas o tempo técnico-racional, mas sim a reprodução do tempo como “[...] horizonte, subjetivamente definido, de possibilidades [...]” facilitadoras de aprendizagens.
Neste cenário da prática docente da EJA, o ofício do professor e sua arte de ensinar, interagir, produzir e mediar conhecimentos, Arroyo (2000), nos faz compreender a sua interação e o seu empenho com o estudante para sua aprendizagem. O professor é “[...] alguém que sabe alguma coisa e cuja função consiste em transmitir esse saber a outros” (TARDIF; LESSARD; GAUTHIER, 2000, p. 31), para que sejam apropriados e vivenciados na sociedade.
Em síntese, as observações realizadas neste estudo permitiram compreender que a prática docente, materializada num dado tempo curricular, um tempo concreto, real e flexível, foi sendo reorganizada em função dos interesses e necessidades dos estudantes, bem como das atividades a desenvolver na sala de aula. O tempo curricular é o tempo da permanência, o tempo da participação e da produtividade, é o tempo da aprendizagem.
Considerações finais
As análises realizadas neste estudo, permitiram a compreensão de como se processa, em grande parte, a organização do tempo curricular e da prática docente nas aulas da EJA no ensino médio.
Na sala de aula, o principal cenário da reflexão, interessou analisar a organização do tempo curricular e da prática docente, com o objetivo de compreender o seu funcionamento e os seus efeitos práticos na vida dos estudantes. Foi analisado e discutido o tempo como uma dimensão fundamental na estrutura da prática docente, bem como um elemento administrativo a que estudantes e professores estão submetidos. As análises efetuadas permitiram concluir que o tempo se configura como um dos artefatos mais relevantes e significativos na organização e implementação dos processos de ensino e aprendizagem na modalidade da EJA.
As análises e reflexões realizadas permitiram constatar que a prática docente dá visibilidade aos saberes, à autonomia curricular e às práticas a que os professores recorrem na sala de aula. Permitiram, ainda, verificar que na organização curricular e no ato pedagógico, o desejo e a disponibilidade dos estudantes para aprenderem é tão importante como o tempo curricular de que dispõem para se apropriarem de conhecimentos e saberes válidos para o seu empoderamento social e profissional. Na opinião dos estudantes, o tempo de estudo é um dos tempos mais importantes, uma vez que é o tempo dedicado à sala de aula e à aprendizagem. Sem essa disponibilidade temporal o processo ficará condenado ao insucesso.
Em consonância com os estudantes, os professores concebem o tempo curricular como o espaço de materialização da prática, do currículo e da aprendizagem. Concebemno, também, como um dispositivo que precisa ser reorganizado e ajustado a cada módulo de ensino com uma proposta curricular voltada para as necessidades e especificidades da EJA no ensino médio.
As concepções dos estudantes revelam que a prática docente, ação específica dos professores, é pensada e planejada para o ensino e aprendizagem na sala de aula, com o objetivo de atender às necessidades dos estudantes da EJA no ensino médio. Revelam, também, que o professor tem um papel fundamental na organização e nos efeitos políticos e pedagógicos das práticas e que as metodologias utilizadas são adequadas e contextualizadas no tempo curricular e de acordo com o perfil da modalidade.
As concepções dos professores vão de encontro às conceções dos estudantes, quando revelam que as suas práticas são pensadas e planejadas com o objetivo de contribuir para melhorar a vida pessoal e profissional dos estudantes. Essas concepções revelam uma atenção especial ao currículo, à seleção dos conteúdos e às metodologias, o que permite concluir que as práticas docentes são ações conscientes e coerentes que corroboram com os seus discursos.
A prática docente permitiu compreender que o currículo prescrito é reorganizado para atender à proposta da EJA, de acordo com as percepções dos professores e as características e necessidades dos estudantes, gerando um currículo remodelado que procura superar as práticas reprodutoras do currículo tradicional, isto é, um currículo crítico e flexível, que assegure saberes fundamentais e não instrumentais.
Em síntese, o tempo curricular e a prática docente na sala de aula apontam a importância das concepções dos estudantes e dos professores sobre a EJA. Nesse sentido, a escola e sala de aula, na sua intencionalidade, funcionam como esfera pública e democrática para assegurar os direitos dos estudantes, em particular e como refere Arroyo (2017), o direito a um conhecimento articulado com a cidadania.