Introdução
As fake news não são um fenômeno recente, mas começaram a ganhar mais visibilidade a partir da primeira década do século XXI. Política, saúde, reputações vêm sendo atingidas por estes textos travestidos de notícias e provocando danos às populações de diversos países. As fake news influenciaram resultados de eleições em países - como os Estados Unidos em 2016 -, bem como outras decisões políticas de grande porte, como o referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), no mesmo ano (ROSS; RIVERS, 2018). No Brasil, tramitam processos investigativos para apurar responsabilidades pela disseminação de fake news nas eleições de 2018.
No caso da saúde, as fake news sobre vacinação podem aumentar a hesitação vacinal e reduzir a busca pelos imunizantes disponíveis. Um exemplo brasileiro atual é a queda na cobertura vacinal de adultos e crianças. De acordo com dados do Ministério da Saúde, de 2019 a 2021, a porcentagem de vacinação dos brasileiros caiu de 73% para menos de 59% (FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ, 2022). Como resultado, registra-se o recrudescimento de doenças evitáveis pela vacinação, como o sarampo.
A pandemia da Covid-19 evidenciou e aprofundou esse processo, na medida em que as fake news têm estado presentes desde o início da descoberta do Sars-cov-2. Entre os conteúdos disseminados, encontram-se teorias da conspiração, segundos as quais o vírus teria sido forjado em laboratório para criar a necessidade de uma vacina e, com isso, lucrar com sua venda, além de afirmações equivocadas de que o uso de máscaras não seria eficaz para prevenir o contágio. A Organização Panamericana da Saúde (2020) chegou a caracterizar este fenômeno como uma infodemia, lançando materiais para prevenir e informar corretamente a população.
Antes de seguir adiante, porém, faz-se necessário explicitar com que definição de fake news se está trabalhando aqui.
Fake news: uma definição
Entre as diferentes definições de fake news, suas nuances e gradações, optou-se pela defendida por Gelfert (2018, p. 108, tradução nossa): “[...] a apresentação deliberada de afirmações tipicamente falsas ou enganosas como notícias, em que que as afirmações são enganosas por design”. Destacam-se, nesta definição, a intenção de enganar, bem como uma preparação do material trabalhado para se adequar a este fim. É disso que se trata, aqui.
A partir de 2020, com as vacinas contra a Covid-19, começaram a surgir fake news associando os imunizantes à morte, à internação e até mesmo a doenças como a Aids (MARTINS, 2022).
Devido à importância da adesão aos imunizantes no processo de enfrentamento da pandemia de Covid-19, é necessário buscar estratégias para combater as fake news, a partir de diferentes frentes, como a divulgação científica e o ensino de ciências. Para isto, é necessário, em primeiro lugar, conhecer o conteúdo destes textos enganosos, bem como observar as estratégias discursivas principais utilizadas. Busca-se, então, responder à seguinte pergunta: dentro das fake news sobre vacinas encontradas no serviço de checagem de notícias Fato ou Fake do Portal de Notícias G1, em 2021, quais os temas (e argumentos/ estratégias) predominantes?
Metodologia
Trata-se, aqui, de uma pesquisa qualitativa, descritiva e de cunho documental (GIL, 2008). Ao longo do percurso, buscamos identificar temas predominantes nas fake news sobre as vacinas contra a Covid-19 desmentidas pelo serviço de checagem de notícias Fato ou Fake, pertencente às Organizações Globo, o maior conglomerado midiático da América Latina.
Criado em 2018, o serviço Fato ou Fake está vinculado ao G1, um dos portais de notícias das organizações Globo. O serviço mantém, como vias de comunicação com seu público, contas nas redes sociais (Twitter, Instagram, Facebook), além de uma seção fale conosco no próprio site e de um número de WhatsApp para o qual se podem enviar as notícias que se quer checar.
Devido à pandemia e à quantidade de notícias que chegavam ao serviço, a organização criou uma seção específica, intitulada Coronavírus, para abrigar materiais relacionados ao assunto.
Material analisado
As matérias coletadas que fazem parte deste estudo têm como objetivo desmentir notícias sobre as vacinas da Covid-19 encontradas na rede ou recebidas via algum dos canais de comunicação do serviço. Observou-se que todos os textos sobre vacinas contra o coronavírus constavam desta seção. A partir desta constatação, procedeu-se à coleta dos textos. Coletaram-se, manualmente, todas as reportagens da seção Coronavírus do serviço de checagem Fato ou Fake relacionadas às vacinas contra a Covid-19 no período estipulado.
Vale ressaltar que todos os textos analisados são assinados por jornalistas e seguem a estrutura tradicional de textos jornalísticos (LAGE, 2011). Começam por “É#FAKE que...” e contêm trechos das notícias originais.
Período analisado
Analisou-se o período compreendido entre 1º de janeiro de 2021 e 31 de dezembro de 2021. Neste intervalo de tempo, segundo o serviço de checagem, foram desmentidas 285 notícias enganosas sobre a pandemia. Destas, 119 tinham as vacinas como tema.
Técnica de análise
Para analisar os textos encontrados, recorreu-se à análise de conteúdo com base em Bardin (2011). A escolha teve, como norte, a pergunta de pesquisa: qual/is foi/ram o/s tema/s predominante/s nas fake news sobre vacina contra a Covid-19 no ano de 2021 publicados no serviço de checagem Fato ou Fake.
A partir da leitura flutuante, realizou-se a pré-análise do material encontrado. Na sequência, iniciou-se a exploração dos textos, com a categorização e a codificação. É importante ressaltar que as categorias foram criadas a posteriori, como se observa na seção a seguir. Depois da categorização e da codificação, procedeu-se às inferências.
Limitação da metodologia
Os textos analisados comentam as fake news que os originaram. Isto significa que não se trabalhou com as fake news originais. Buscá-las consumiria tempo e esforço, para este caso específico, desnecessários. Como o objetivo, aqui, é levantar os assuntos mais recorrentes nas fake news sobre vacinas desmentidas pelo serviço Fato ou Fake, as matérias publicadas por esse serviço contêm informação suficiente para a proposta desta pesquisa.
Resultados e discussão
No período analisado, encontraram-se, no serviço Fato ou Fake, 119 matérias jornalísticas em que se desmentiam fake news sobre vacinas. Os textos foram agrupados nas categorias a seguir, como se pode observar no quadro 1.
Categoria | Explicação | Exemplo | Quantidade de matérias |
---|---|---|---|
Teorias da conspiração | Narrativas segundo as quais existiriam fatos escusos e desconhecidos sobre as vacinas | É #FAKE que Pfizer registrou patente para rastrear pessoas vacinadas | 26 |
Óbito | Narrativas segundo as quais as vacinas teriam causado mortes | É #FAKE que vídeo mostre crianças mortas após tomar vacina contra Covid na África do Sul | 20 |
Doenças e sintomas causados pela vacina |
Narrativas segundo as quais as vacinas causariam doenças e sintomas prejudiciais à saúde | É #FAKE que vacinas de RNAm provocam doenças autoimunes | 17 |
Figuras públicas e vacina | Narrativas envolvendo figuras públicas e a vacina | É #FAKE que Biden simulou ter tomado a segunda dose da vacina de Covid-19 | 15 |
Informações falsas sobre a vacinação | Inclui todos os registros de informações falsas sobre o processo de vacinação: público-alvo, locais, faixa etária, entre outros | É #FAKE cartaz com cronograma de vacinação contra a Covid-19 no estado de SP | 14 |
A l t e r a ç õ e s n o (funcionamento do) organismo |
Vacina causando alterações no organismo dos indivíduos | É #FAKE mensagem que relaciona vacina contra Covid-19 a nascimento de criança com cauda no CE | 11 |
Vacinação em crianças e adolescentes | Narrativas em que se descreve a morte de crianças e adolescentes após a vacina | É #FAKE que menina de Santiago del Estero, na Argentina, morreu após ser vacinada contra a Covid-19 | 10 |
Composição das vacinas | Inclusão de falsos componentes perigosos na vacina |
É #FAKE que vacinas contenham ímãs e causem magnetismo | 7 |
Ineficácia da vacina | Imunizante retratado como ineficaz | É #FAKE que virologista do Einstein fez áudio criticando vacina contra Covid-19 | 7 |
Vacinação forçada | Narrativas segundo as quais os indivíduos estariam sendo forçados a se vacinar | É #FAKE que vídeo mostre mulher sendo agredida por enfermeiros em elevador após recusar vacina contra a Covid-19 | 5 |
Vacina e os três poderes | Falsas leis e/ ou decretos sobre a vacinação |
É #FAKE que governo irlandês colocou placa luminosa contra máscaras e vacinas em pedágio | 4 |
Restrições pós-vacina/ vacinados | Vacinados correm riscos de perderem seus direitos | É #FAKE que Cruz Vermelha americana proibiu doação de sangue de vacinados contra a Covid-19 | 3 |
Substituição de vacinas por tratamento ineficaz | Narrativas em que se descreve a substituição das vacinas por tratamento que não tem resultados eficazes | É #FAKE que União Europeia anunciou a substituição das vacinas pela Ivermectina | 2 |
Total (ocorrências por categoria) | 141 |
Nota: Há textos que se enquadram em mais de uma categoria.
Fonte: elaborado pelos autores.
São apresentadas, a seguir, as categorias comentadas, em ordem decrescente, e seus tipos de veiculação predominantes.
Teorias da conspiração
Esta categoria requer um esclarecimento prévio. Entende-se, aqui, por teorias da conspiração, “A crença de que determinados acontecimentos ou situações são manipulados secretamente, por trás dos bastidores, por forças poderosas e mal-intencionadas.” (EUROPEAN COMISSION, 2021).
Esta foi a categoria com maior número de ocorrências, aparecendo em 26 dos 119 textos analisados.
Como exemplo, temos o texto publicado em 29 de junho de 2021: Circula pelas redes sociais uma mensagem que diz que um relatório oficial britânico pede com urgência que a vacinação contra a Covid-19 seja interrompida. É #FAKE (DOMINGOS, 2021a, grifo nosso).
Observa-se, no texto, a menção a um documento governamental, evocando, possivelmente, a confiabilidade que o governo britânico possa inspirar para semear suspeitas a respeito das vacinas e da vacinação.
As ideias de que existe algo além do que se fala sobre a vacina contra a Covid-19 são comuns a muitos outros países, caracterizando-as como teoria da conspiração. Léonard e Philippe (2021), e Loomba et al. (2021) definem teorias da conspiração como narrativas que possibilitam e aumentam a desconfiança dos indivíduos em relação aos profissionais de saúde e autoridades, e alertam para o risco à saúde pública que essas teorias representam, destacando três aspectos. O primeiro é que as ações realizadas pelos indivíduos que acreditam nestas teorias podem levá-los a contrair e a espalhar mais o vírus entre a população, aumentando a pressão sobre os sistemas de saúde. Além disso, estes indivíduos podem ter repercussões econômicas no nível pessoal. O terceiro aspecto é que pessoas com estas características podem desenvolver crenças semelhantes em outros temas.
Já no início da pandemia, em 2020, em pesquisa realizada pelo Instituto Gallup em 2020, envolvendo 28 países, observou-se que um terço dos entrevistados acreditavam que a pandemia havia sido causada por uma força ou poder estrangeiro (GALLUP, 2020).
Esta é uma categoria encontrada também em outros trabalhos de análise temática de fake news, tanto no Brasil como em outros países (BARCELOS et al., 2021; GOMES, 2022; LOOMBA et al., 2021).
Em relação ao ensino de ciências, Araújo e Eichler (2023, p. 6) advertem para os efeitos de uma teoria da conspiração ligada às vacinas: “[...] se a teoria da Terra plana, por exemplo, poderia ser inofensiva em um primeiro momento, o retorno à negação das vacinas demonstraria algo real e fatal na atualidade, induzindo pessoas a um caminho perverso e perigoso”.
Desconfiança, insegurança, medo são sentimentos provocados nesta categoria, que está presente também em assuntos como política e até mesmo a existência, ou não, de vida fora da Terra. A desconfiança e o medo da morte podem se alimentar mutuamente.
Óbito
A categoria segundo as quais as vacinas causariam óbito esteve presente em 19 dos 119 textos. Entre os exemplos estão as fake news descrevendo falsas mortes de crianças, adolescentes e adultos após a vacinação, veiculadas por vídeos e/ou textos em redes sociais.
Apresentamos, um exemplo do desmentido, datado de 6 de janeiro de 2021: “Circula pelas redes sociais uma mensagem que diz que a enfermeira do Exército María Dominguez morreu no quartel Zapala, em Neuquén, na Argentina, horas após tomar a vacina russa contra a Covid-19. É #FAKE”. (DOMINGOS, 2021b).
A ideia subjacente, nos textos originais, é de que a vacina causou a morte das pessoas retratadas e, por extrapolação, vai fazer o mesmo em todos os que se vacinarem. Introduzem-se aqui, também, as noções de perigo e risco, tão caras a áreas de estudos como a biossegurança. Segundo Costa e Costa (2010, p. 21), “[...] o perigo é a fonte, e o risco, a consequência”. Ambos prejudicam a percepção da vacina como uma medida segura.
Ao se fomentar a insegurança, pode-se obter o efeito de dúvida, ou até mesmo a ideia de que as vacinas causam a morte, não a proteção da vida. Fabrica-se, deste modo, a informação de que, supostamente, as vacinas trariam a morte, e não a proteção contra a Covid-19 e demais doenças.
Em nível nacional, outros pesquisadores também encontraram esta categoria em estudos realizados com amostras mais amplas de agências e outros serviços de checagem de fatos (GOMES, 2022). Deste modo, podemos perceber que esta ideia vai além dos textos trabalhados no serviço escolhido, o que nos faz estar em alerta.
E mais: a conexão direta entre vacina e morte está presente também em fake news de outros países, como os Estados Unidos e os que integram o Reino Unido (LOOMBA et al., 2021). Tal fato nos faz pensar em que algumas destas ideias podem circular em muitos países, por incluírem valores universais, como a vida.
No caso específico da vacina da covid 19, Loomba et al. (2021) descobriram que, no caso dos participantes da pesquisa que realizaram no Reino Unido e nos Estados Unidos, informações falsas reduzem a intenção de aceitar o imunizante. Segundo os autores, “[...] a aceitação do público em relação à vacina não é estática; é altamente sensível à informação que circula no momento e ao sentimento em relação à vacina da Covid-19, e também ao status da epidemia e ao risco percebido de contrair a doença (LOOMBA et al., 2021, p. 337, tradução nossa).
Como consequência direta, existe a possibilidade de baixas taxas de adesão à vacinação. Entre as implicações, destaca-se o aumento das possibilidades de surgirem novas variantes principalmente se contiverem mutações que provoquem escape da vacina, o que pode recrudescer a pandemia.
As ideias de morte associadas à vacina apareceram em dez dos 12 meses, com pelo menos uma notícia (em abril e agosto) e, no máximo, 3 (fevereiro e março). Foram 17 publicações em redes sociais, 2 mensagens e uma nota. Observa-se a predominância das redes sociais como veículo de transmissão destas informações.
Doenças e sintomas causados pela vacina
Doenças e sintomas causados pela vacina é uma categoria que se refere às notícias que enfatizaram que o indivíduo, ao ser vacinado, desenvolveria patologias decorrentes dos componentes de vacina, como, por exemplo, mal súbito, desmaio, acidente vascular cerebral, entre outros. São, nesse contexto, informações que geram nos indivíduos um sentimento de medo e preocupação. Essas notícias foram difundidas através de imagens, vídeos e postagens em redes sociais, tomando grande proporção de compartilhamento - e visualizações - e levando a população a acreditar e repassá-las (WILSON; WIYISONGE, 2021).
Por isso, como advogam Wilson e Wiysonge (2021), na agenda global para o enfrentamento do vírus, a compreensão acerca da ameaça causada pelo movimento antivacina nas redes sociais deve ser um fator chave a ser considerado nos programas de vacinação. Isso porque, conforme constatado pelos autores, há uma relação significativa entre a difusão de falsas informações nas redes sociais com o surgimento de dúvidas do público sofre a segurança do componente. Ademais, os países desenvolvidos, ao espalharem essas informações, tendem a influenciar para a diminuição da cobertura vacinal estrangeira (WILSON; WIYISONGE, 2021).
Diante disso, retoma-se a discussão necessária sobre a alfabetização científica em saúde, uma vez que, conforme encontraram Montagni et al. (2021), os indivíduos com menores conhecimentos básicos sobre saúde pública tendem a ter mais comportamentos antivacinação. Por isso, programas de educação e comunicação em saúde têm potencial nesse contexto (MONTAGNI et al., 2021; RYZMSKI et al., 2021).
Figuras públicas e vacina
Dentre as 119 notícias jornalísticas analisadas, percebemos que, em 15, foram mencionadas figuras públicas. Os principais assuntos veiculados foram: a não utilização de máscaras por famosos durante a vacinação, inversão entre a ordem das doses da vacina contra a Covid-19, simulação da imunização, posicionamentos antivacina, prisões e efeitos colaterais. Destaca-se que as formas de veiculação das fake news foram: 11 em redes sociais, três em mensagens, e uma publicação em site.
Observa-se, em seguida, um exemplo desmentido, datado de 3 de julho de 2021, envolvendo a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Nesta notícia foi atribuída à figura pública uma frase jamais dita e/ou publicada por ela em suas redes sociais. “Circula pelas redes sociais um cartaz com a foto da ex-presidente Dilma Rousseff e a seguinte frase atribuída a ela: ‘se a segunda dose da vacina é a que garante a imunização, então deveriam dar a segunda dose primeiro’. É #FAKE” (DOMINGOS, 2021c).
A partir do estudo de Loomba et al. (2021), é possível perceber que, no Reino Unido, os indivíduos que confiam em celebridades para obter informações sobre a Covid-19 são mais propensos à desinformação quando comparados àqueles que não confiam e/ou utilizam figuras públicas como referência.
Ademais, o Ministério da Saúde (MS), em seu Boletim Epidemiológico, número especial 90 (BRASIL, 2021), indica que as vacinas contribuem para a redução drástica do número de casos e mortes por Covid-19. Por fim, o documento destaca ainda que o risco de morte é 57 vezes maior se uma pessoa contrair a doença, do que se esse mesmo indivíduo se vacinar.
Desta forma, a publicação e/ou o compartilhamento de fake news envolvendo figuras públicas e aspectos sobre a vacinação contra a Covid-19 podem influenciar no posicionamento, e até mesmo trazer riscos à saúde (em caso de não vacinação), da população.
Informações falsas sobre a vacinação
Nesta categoria, foram identificados 14 textos que apresentaram fake news de informações que buscam confundir ou dificultar a vacinação da população por meio de cronogramas com datas, locais, faixa etária e prioridades para vacinação diferentes e necessidade de cadastro prévio por meio da Unidade Básica de Saúde (UBS), pelo SUS e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Nesta categoria também foram encontrados textos que informam sobre sorteio para vacinação, campo de quarentena para vacinação e afirmação de que website Vacina já, do governo, aplicava golpe nos usuários.
Como exemplo da categoria, apresenta-se, a seguir, o trecho datado de 23 de março de 2021:
Circula nas redes sociais um cronograma com uma previsão de vacinação contra a Covid-19 para diversas faixas etárias em São Paulo. A mensagem mostra datas de imunização, de março até agosto, para a população entre 18 e 71 anos, dividida em diversos grupos. Há compartilhamentos que atribuem a informação ao Ministério da Saúde e outros ao governo do estado de São Paulo. A mensagem, porém, é #FAKE (GABIRA, 2021).
Tais afirmações enganosas buscam desorientar a população sobre determinações federais e governamentais para a aplicação da vacina em acordo com o cronograma oficial, confundindo e dificultando o acesso de grupos estipulados. Compreende-se a utilização de governos e instituições públicas para transparecer uma veracidade no conteúdo falacioso.
É possível observar que o medo possui papel nas ações dos indivíduos em tempos de incertezas, como no caso de pandemias (VASCONCELLOS-SILVA; CASTIEL, 2020). Devido ao medo da Covid, a vacina tem sido desejada o quanto antes por diversos indivíduos que a enxergam como uma solução para a pandemia. Assim, partindo deste anseio da população, estas fake news buscam atingir indivíduos que acreditam na eficácia da vacinação e possuem o interesse de se vacinar.
Alterações no funcionamento do organismo
Outra categoria encontrada nas notícias falsas envolvendo a vacina contra a Covid-19 foi a de alterações no funcionamento do organismo. Logo, a população, ao ser vacinada, passaria a sofrer abortos (no caso das mulheres), ter Acidente Vascular Cerebral (AVC), coágulos sanguíneos, e haveria, até mesmo, a implantação de vermes através da vacina.
Novamente, ao serem usados discursos patológicos associados ao imunizante, a população, devido ao sentimento de medo e desespero, tendeu a acreditar e repassar essas informações. Os principais meios de divulgação, tal como discutido na categoria anterior, foram as redes sociais.
Vacinação de crianças e adolescentes
Ao todo, 10 textos jornalísticos foram classificados como notícias sobre vacinação de crianças e adolescentes. No geral, as fake news mencionavam: cinco textos sobre mortes de crianças e adolescestes após imunização, dois sobre vacinação forçada, dois a respeito de contraindicação da vacina e um sobre os efeitos colaterais.
No exemplo desmentido a seguir, de 4 de novembro de 2021, os grupos antivacinas responsáveis pela veiculação de fake news utilizaram imagens de acidente ocorrido em uma escola no Quênia, no ano de 2020, para distorcer a mensagem e vincular as mortes à temática da vacinação em crianças e adolescentes: “Circula pelas redes sociais um vídeo junto de uma mensagem que diz que 13 crianças morreram vítimas das vacinas contra a Covid-19 em uma escola na África do Sul. É #FAKE" (DOMINGOS, 2021d, grifo nosso).
Segundo revisão de dados levantados pelo órgão governamental Centro de Controle de Doenças dos Estados Unidos (CDC), após 8,7 milhões de doses terem sido aplicadas em crianças de cinco a 11 anos no país, percebeu-se que reações adversas à vacina da Covid-19 nesta faixa etária são raríssimas. Tal fato se opõe ao assunto mais frequente nas fake news desta categoria, as quais atribuem como causa das mortes de crianças e adolescentes a vacinação contra a Covid-19.
Composição das vacinas
Nesta categoria foram observadas sete notícias cujo foco da informação era a composição das vacinas. Dentre as informações enganosas, nota-se na composição secreta das vacinas a incidência de chip líquido, componentes magnéticos e ferrosos e a presença de proteínas spike tóxicas.
Destaca-se o exemplo da notícia de 27 de janeiro de 2021 sobre chip líquido: “Circulam pelas redes sociais mensagens em áudio e vídeo que afirmam que as vacinas contra a Covid-19 têm um chip em forma líquida que vem com uma codificação que traz uma leitura para inteligência artificial, permitindo, assim, controlar os vacinados. Diz, ainda, que ‘é como se fosse um chip, mas de forma líquida, que é o plasma’. É #FAKE” (DOMINGOS, 2021e).
A ideia de que existe algo oculto na composição das vacinas também é encontrada em discursos que apresentam sentidos antivacina. Wong et al. (2021) analisaram comentários de indivíduos céticos e antivax em mídias sociais, indicando a presença de comentários questionando a composição das vacinas.
Ao se deparar com fake news sobre a composição das vacinas, indivíduos que apresentam desconhecimento ou dúvidas sobre os componentes reais das vacinas contra a Covid-19 podem utilizar tal informação tendenciosa como justificativa para não aderência à vacinação.
Neste aspecto, Wong et al. (2021) compreendem a necessidade demonstrar a garantia de segurança dos constituintes da vacina para o público, obtendo desta forma a confiança de sua eficácia para a proteção.
Ineficácia das vacinas
Houve, ainda, com bastante prevalência, as informações equivocadas a respeito da eficácia da vacina. Dentre os principais argumentos contra o imunizante, esteve o fato do tempo de produção da mesma. Ademais, o fato das pessoas imunizadas, independentemente da quantidade de doses, contraírem novamente o vírus, embora com menos danos ao organismo, também levantou dúvidas sobre sua eficácia.
Nesse contexto, ainda que com estudos científicos realizados e divulgados pelas principais universidades do mundo, atestando e reforçando a eficácia da vacina, tais informações continuaram sendo difundidas. No Brasil, por exemplo, de acordo com o Ministério da Saúde, 156 milhões de pessoas1 estão totalmente imunizadas (tomaram as duas doses). Por outro lado, conforme reportagem da CNN Brasil (SERRANO; SOUZA, 2022), considerando uma entrevista do presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), 85% dos internados nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) no mês de janeiro do ano de 2022 não haviam tomado nenhuma dose da vacina contra a Covid-19.
Nesse contexto, percebe-se que a desinformação, aliada a fatores políticos e ideológicos dos indivíduos, agravou ainda mais a pandemia, resultando, ainda, em óbitos.
Vacinação forçada
Nesta categoria, cinco reportagens foram incluídas por apresentarem fake news que informaram uma obrigatoriedade na aplicação da vacina. É possível observar, nestes textos, a vacinação sendo imposta em adultos e crianças, como também agressões e a criação de campos de concentração para quem se recusasse a se vacinar.
Como exemplo, destaque para a reportagem de 12 de março de 2021, desmentindo o ocorrido: “Circula pelas redes sociais um vídeo que mostra crianças correndo e gritando no pátio de uma escola. Uma legenda diz: ‘Crianças fugindo da vacinação forçada na África’. É #FAKE. O vídeo mostra, na verdade, um tumulto provocado em Port Harcourt, na Nigéria, após confronto entre estudantes.” (DOMINGOS, 2021f).
Observa-se, nestas fake news, o esforço de instigar no receptor uma revolta sobre a perda do seu livre arbítrio e direito de escolha. Demonstram uma crueldade do sistema sobre os personagens que não desejam se vacinar, como também uma insatisfação, luta e braveza destes indivíduos fictícios ao se oporem ao sistema e optarem pela liberdade e não se vacinarem.
É válido ressaltar que na situação pandêmica de uma doença infecciosa e contagiosa, como a Covid-19, a prevenção é coletiva e não apenas individual. Neste sentido, para assegurar a saúde da população mediante a obrigação da vacinação, Lima e Santana (2021, p. 5.041) destacam que
[...] a obrigatoriedade da vacina, no entanto, não pode ser entendida como vacinação forçada, sendo garantido ao administrado o direito de recusa em se submeter a imunização. Contudo, a recusa deve ser acompanhada de sanções indiretas à pessoa, como proibição de frequentar determinados lugares, exercer atividades, dentre outras, sempre com expressa previsão legal e objetivando o pleno atendimento ao interesse da coletividade.
Essas fake news buscam vilanizar o sistema de saúde, caracterizando-o como ditatorial. Neste sentido compreende-se necessário demonstrar aos cidadãos que o ato de se vacinar não é apenas um ato individual, mas sim coletivo e de empatia. Por isso, ao optar pela não vacinação, o indivíduo deve compreender os riscos aos quais expõe a sociedade, e, com isso, as sanções implicadas pela regência para o bem da população.
Vacina e os três poderes
Na categoria Vacina e os três poderes foram encontradas quatro notícias. Dentre elas, destacaram-se os seguintes assuntos: três sobre governos contrários à vacina, e uma sobre a proteção de artigo do Código Civil a não vacinados. Assim, pode-se perceber a presença de supostas diretrizes e determinações públicas que desaprovam as medidas de imunização coletiva contra a Covid-19.
Observou-se na notícia a seguir, datada de 4 de setembro de 2021, desmentida no serviço Fato ou Fake, que o texto de uma organização de defesa dos direitos humanos foi retirado de contexto para responsabilizar o poder legislativo da União Europeia por se opor à vacinação. Na ocasião, assuntos como a aprovação de resoluções contra a obrigatoriedade da vacina e proibição de certificados Covid-19 foram atribuídos erroneamente ao Parlamento Europeu: “Mensagem falsa atribui ao poder Legislativo da União Europeia decisões não tomadas. Textos, na verdade, são de uma organização de defesa dos direitos humanos e foram tirados de contexto. Parlamento aprovou em junho projeto que permite emissão de certificados Covid” (É #FAKE que parlamento europeu..., 2021).
Fayet e Cunha (2021) destacaram, em seu estudo, a importância dos direitos fundamentais e sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988, sobretudo no que diz respeito à promoção do direito à saúde. Além disso, enfatizaram que cada estado tem o dever de se posicionar, com medidas claras e efetivas, para o enfrentamento e redução dos efeitos negativos da pandemia da Covid-19. Os autores mencionaram que tal colocação torna-se uma questão de saúde pública internacional, impactando nas relações de comércio, em mercados e na sociedade como um todo.
Dessa forma, o compartilhamento de fake news, atribuindo aos governos documentos e/ou posicionamentos contrários às medidas de controle ao estado pandêmico, influencia tanto nas dinâmicas internacionais quanto na saúde global.
Restrições pós-vacina/vacinados
Ao todo, três notícias foram categorizadas como Restrições pós-vacina/vacinados. Em ambas, foi encontrada a ideia de que os imunizados perderam direitos como, por exemplo, restrição de viajar de avião (publicação em redes sociais), não ser possível doar sangue (mensagem) ou perder a humanidade (publicação em redes sociais).
No exemplo a seguir, é possível observar a fake news desmentida no serviço Fato ou Fake, datada de 23 de setembro de 2021, em que foi atribuída à Cruz Vermelha norteamericana a proibição de doar sangue por imunizados contra a Covid-19: “Circulam pelas redes sociais diversas mensagens dizendo que quem tomou a vacina contra a Covid-19 não pode mais doar sangue e que uma proibição foi feita, inclusive, pela Cruz Vermelha americana. É #FAKE” (DOMINGOS, 2021g).
A divulgação de fake news associadas à contrariedade de imunização podem, por si só, influenciar e/ou comprometer a saúde da população, tendo em vista que a vacina constitui uma forma segura e eficiente de produzir uma resposta imunológica (proteção) aos indivíduos sem causar doença (NORONHA, 2021).
No entanto, quando a notícia falsa abrange também a perda de direitos, ou seja, “indivíduos vacinados não poderão doar sangue” a situação pode ser ainda mais grave. Isso porque, aqueles que possuem amigos e/ou familiares que precisam de bolsas de sangue podem se opor à vacinação contra a Covid-19 devido à restrição, além de promover um risco maior às pessoas debilitadas ou pertencentes aos grupos de risco.
Substituição de vacinas por tratamento ineficaz
Por outro lado, em muitos países e, especialmente no Brasil, o que se observou foram as figuras públicas, sobretudo o presidente da República, disseminando e insistindo incisivamente em tratamentos precoces ineficazes, como o uso de cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina e ivermectina. Ademais, alguns representantes da comunidade médica, especialmente um grupo denominado médicos pela vida, por conflito de interesse, segundo o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), defenderam as informações sobre os tratamentos ineficazes (MALACARNE et al., 2021).
Esse movimento de incentivo a tratamento preventivo e ineficazes conta o vírus desencadeou outros problemas para a Saúde Pública, como, por exemplo, o fato de as pessoas com doenças crônicas ou que necessitavam desses medicamentos para o tratamento das suas condições, ficaram sem acesso devido à falta no estoque. Ainda, foram relatados, com recorrência, casos de pessoas que tiveram problemas no organismo devido ao uso excessivo e não prescrito desses medicamentos (LEMOS, 2020).
De acordo com Rzymski et al. (2021), entre as estratégias que estão se mostrando eficazes no combate às desinformações envolvendo a vacinação contra a covid, podemse destacar: (a) rastrear e combater as informações falsas; (b) auxílio de celebridades e políticos para transmissão de informações científicas ao público; (c) punição para as pessoas que difundirem informações falsas sobre a vacina, especialmente representantes públicos, profissionais da saúde e cientistas. Para os autores, essas medidas devem ser implantadas em todo o mundo, independente do percentual de indivíduos já vacinados.
Ensino de ciências, divulgação científica e fake news: algumas reflexões e desafios
A partir da análise do conteúdo falso veiculado sobre as vacinas contra a covid-19, percebem-se caminhos a percorrer em distintas áreas. O foco, aqui, é somar-se às reflexões nas áreas de Ensino de Ciências e de Divulgação Científica, buscando enfrentar os desafios trazidos pelas fake news em escala global.
No caso do Ensino de Ciências, Britto e Melo (2022) destacam que é preciso ir além dos procedimentos iniciais de checagem de fake news:
[...] o ensino de Ciências não pode se limitar a dizer aos estudantes que é importante checar a fonte das notícias recebidas, é necessário problematizar e apontar as consequências que esse tipo de notícia pode vir a trazer: qual é o impacto das fake news na sociedade? E na Ciência? E na saúde pública? (BRITTO; MELO, 2022, p. 6).
Fica evidente, assim, o papel do professor como facilitador e orientador destas discussões.
[...] é importante que o professor dê o devido destaque a supostos “pontos fracos” de determinada teoria e como eles são “resolvidos/encarados” pela própria ciência, preparando, assim, o aluno para que ele não seja seduzido por uma teoria da conspiração/Fake News que explique de maneira errônea o assunto em questão. (BRITTO; MELO, 2022, p. 6).
Segundo as autoras, as fake news sobre temas científicos ainda podem ser utilizadas como oportunidades para aprendizagens de conceitos relacionados à ciência de forma contextualizada. Desta forma, transforma-se um desafio em possibilidade de aperfeiçoamento no processo ensino-aprendizagem e até mesmo de práticas docentes.
Ainda, nesse contexto, as autoras trazem a proposta de utilizar materiais de divulgação científica em sala de aula, tendência também defendida por autores como Colpo e Wenzel (2021) e Miceli et al. (2020), em estudo no qual identificaram o aumento do número de artigos em que se relatam experiências semelhantes, o que nos anima e dá esperança - do verbo esperançar.
Para professores e alunos, defende-se aqui a necessidade de alfabetização midiática - entendida como “[...] compreender e utilizar os meios de comunicação de maneira assertiva ou não assertiva, com uma compreensão informada e crítica [...] dos meios, a sua propriedade, as funções o emprego e os efeitos de seu conteúdo” (UNESCO, 2023, p. 399, tradução nossa).
O currículo também desempenha um papel importante nessa discussão e, em nível mundial, o documento Media and information literate citizens: think critically, click wisely!, da Organização das Nações Unidas para a Ciência e a Cultura (Unesco), contém orientações para docentes e alunos, entrelaçando as propostas aos objetivos de desenvolvimento sustentável (ODS) propostos pela organização.
O desafio é grande, e as reflexões, ainda mais profundas do que as desenvolvidas aqui. As informações obtidas nesta pesquisa são material para reflexão e ação.
Considerações finais
Buscamos, aqui, levantar os temas predominantes nas fake news desmentidas pelo serviço de checagem Fato ou Fake, das Organizações Globo, ao longo do ano de 2021. Encontramos 97 textos, divididos em 13 categorias. Destas, as principais foram: teorias da conspiração (26), óbito (20) e doenças e sintomas causados pela vacina (17). Transformamos em frases as ideias predominantes nessas três categorias para facilitar a visualização e a compreensão: Existe algo errado por trás das vacinas; vacina causa mortes; vacina causa doenças e sintomas. A partir deste conteúdo, podemos traçar estratégias de combate a estes textos enganosos. Estas categorias estão presentes, também, em trabalhos de outros pesquisadores fora do Brasil, o que nos faz pensar em possibilidades de elaborar uma estratégia global também de combate às fake news.
As fake news representam também um grande desafio para o ensino de ciências, que pode responder a esse chamado de diversas maneiras. Trazer, para a sala de aula, as fake news, indo além da discussão sobre a importância de checar a fonte, é uma estratégia possível, eficaz e recomendável. Além disso, a importância do professor como um orientador, facilitador e interlocutor qualificado para pensar a ciência e seus mecanismos fica evidenciada. A Divulgação Científica, também desafiada pelas fake news, pode se unir ao Ensino de Ciências, seja na utilização de textos de divulgação em sala de aula, ou em outras atividades, trazendo a força e a abrangência necessárias para superar mais este obstáculo.